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segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Bolivar Lamounier e os sobressaktos da democracia

 Bolívar Lamounier e os sobressaltos da democracia: leiam por inteiro e guardem, que depois vem mais; assim, vcs já terão metade do próximo livro do Bolivar…

Paulo Roberto de Almeida 

Caríssimos e caríssimas: como uma modesta contribuição ao tédio a que somos forçados pela pandemia, de vez em quando vou postar aqui um mini-ensaio de teor mais acadêmico, esperando não causar dano cerebral irreparável a nenhum de vocês. 

I.

A POLÍTICA COMO UMA ATIVIDADE DE FINS LIMITADOS

Bolívar Lamounier – 13.02.2022


Em 1928, numa entrevista ao New York Times, Benito Mussolini afirmou o seguinte : “Democracy is talking itself to death.The people do not know what they want; they do not know what is best for them. There is too much foolishness, too much lost motion. I have stopped the talk and the nonsense. I am a man of action. Democracy is beautiful in theory; in practice it is a fallacy; you in America will see that some day”. (extraido de  Mencken, Dictionnary of Quotations)

Vigoravam, à época, os mitos revolucionários fascista e marxista. No entre-guerras, a esquerda julgava-se capaz de decifrar o devir histórico, graças a um conhecimento supostamente superior, fundado na filosofia, na história e na economia política. Julgava-se portadora de um “que fazer”.  A direita fascista não compartilhava o mito marxista da progressiva realização de um mundo conhecido de antemão – o curso da história, desvendado pelo materialismo  histórico-, mas confiava cegamente em sua capacidade de intuir o momento certo para a tomada do poder, de seize the moment. O momento da ação, do putsch.  O que faria depois da tomada do poder é outra história; tinha em germe alucinações semelhantes às do nacional-socialismo alemão, a mesma crença na violência e na guerra, mas não chegou a cogitar a “solução final”, o holocausto, como os dementes nazistas. 

Assim, tanto para o fascismo como para o marxismo-leninismo, o problema do liberalismo democrático seria a falta desse “que fazer”. Faltar-lhe-ia a mística e principalmente a vontade e os meios de agarrar a iniciativa a fim de deflagrar uma intervenção transformadora na história. A democracia seria um regime letárgico, lento e indeciso, ineficiente na gestão econômica e incapaz de promover o crescimento econômico em benefício da maioria. Eis aí um refrão idiota que ouvimos quase todo dia na América Latina: a democracia seria na melhor das hipóteses “formal”, não “social” ou “substantiva”. 

Os comunistas estavam, naturalmente, se esbaldando com a Revolução Russa e curtindo o que, com muita felicidade, Bernard Yack denominou “o anseio da revolução total” (“The longing for total revolution –philosophical sources of social discontent, from Rousseau to Nietsche; Los Angeles, University of California Press). A Revolução  – segundo a crença comunista -  havia liquidado a Rússia feudal, o Estado não tardaria a “desaparecer” e, com ele, a sociedade de classes. 

No Brasil, desde os anos 30, quando o ensino das ciências sociais teve início, e no após-guerra, quando se generalizaram por quase todo o  país, a história da União Soviética era contada nesse diapasão ético. A Revolução e os planos quinquenais teriam efetivado a maior transformação da  história, dando ensejo à acelerada constituição de uma superpotência. Sobre o regime totalitário, a censura generalizada, a polícia secreta, nem uma palavra. Minha geração universitária não ouviu uma palavra sequer sobre o homodolod -, o “deixar de morrer de fome” imposto por Stálin à Ucrânia no inverno de 1932-33, com o objetivo de exterminar milhões de pessoas e confiscar a produção de trigo. 

Existia também, e existe ainda, a teoria de que a democracia é funcionalmente indecisa, invertebrada, contraditória; que sua lentidão e inapetência decisória atendem à “lógica do capitalismo”. No Ocidente democrático, não era comum, mas acontecia de intelectuais e políticos práticos, querendo ser realistas, passarem recibo de tais patacoadas. Discursando na House of Commons em 1935, Stanley Baldwin afirmou: “One of the weaknesses of a democracy, a system of which I am trying to make the best, is that until it is right up against it, it will never face the truth”. 

No Brasil, o próprio Afonso Arinos, cuja qualidade intelectual e convicções liberais ninguém haverá de pôr em dúvida, esbravejou contra a   “hemorragia de discursos” ao ver dele característica do Congresso. Ainda hoje, com o fascismo e o “socialismo real” convenientemente sepultados, uma logorreia “participatória” de origem rousseauísta difunde-se pelo planeta, em especial no Terceiro Mundo, que mal chegou a constituir verdadeiros Estados e peleja contra todo tipo de ignorância e canalhice no esforço de consolidar as engrenagens da  democracia representativa. 

Sim, a velha Rússia, depois a URSS e agora novamente a Rússia de Vladimir Putin tornou-se uma grande potência, mas não porque os ombros do proletariado a teriam elevado a tal altitude. Ela cresceu, petrificou-se, desmoronou e agora se restabelece graças ao já mencionado regime totalitário, ao stalinismo, a fabricação de armas nucleares e, não nos esqueçamos, ao Gulag, versão soviética dos campos de concentração nazistas.  

O que a legião de ignorantes antiliberais nunca conseguiu entender é que o totalitarismo é o fim da política, e que, sem política, a sobrevivência de uma humanidade civilizada estará por um fio. A política no sentido apropriado do termo sempre foi e sempre será uma atividade com fins limitados. Seu fim último é equacionar os conflitos que soem emergir a todo momento em toda sociedade com o mínimo possível de violência estatal. O totalitarismo se configura e a política desaparece no exato momento em que os boçais que provisoriamente detêm o poder do Estado ignoram e destroem essa fundamental distinção. 

Jamais em tempo algum mentiras, contrafações ou contorções verbais, por requintada que seja sua elaboração intelectual ou simbólica, conseguirão apresentar fornos crematórios como exemplo de uma linha de ação política. Atingido esse ponto, o que existe é pura alucinação e animalidade. 

O que acima se expôs é sabido ou pelo menos intuído pela maioria da  humanidade, salvo, talvez, por aquela camada à qual tudo foi negado, a começar pela mais singela escolarização. Apesar disso, algum tipo de pressa enlouquecida vem à tona quase toda semana, no mundo inteiro. A maior parte delas traz nas entranhas o “anseio da revolução total”. Algumas até são movidas por um generoso, mas equivocado sentimento de que as injustiças que de fato existem, inegavelmente intoleráveis, precisam ser removidas de imediato e a qualquer custo. Outras, infinitamente mais toscas, expressam a crença de que a justiça só pode ser alcançada pela destruição: fiat iustitia, pereat mundus.  Assim, por toda parte, com ou sem impulsos partidários ou governamentais, vemos arruaças,  desordens plebiscitárias, tentativas de destruir o que existir só porque existe, quebra-quebras anômicos. O objetivo implícito é destruir as instituições, uma patética versão do que Rousseau pensou de pior, como se as instituições políticas, indispensáveis à manutenção da paz e da ordem fossem a causa última das injustiças e desordens. Um breve retrospecto é suficiente para mostrar  que tais loucuras não levam a lugar comum, ou, melhor dizendo, que sempre levam a retrocessos,  a mais violência, a rupturas constitucionais que requerem décadas para serem remendadas; dizendo-o de forma concisa, a um estúpido consumo de capital humano e material.   

O leitor poderá talvez objetar que estou tangenciando a questão mais difícil. Conceituar a política como uma atividade limitada num mundo angustiado por mudanças? É certo, nosso planeta vive sob  a dupla angústia da paz e da tranquilidade, por um lado, e de grandes mudanças, por outro.  Para os que apenas lhe deitam uma vista d’olhos, a ideia da política como uma atividade de fins limitados pode sugerir vagareza, indecisão, no mínimo  descoordenação. 

O antídoto para esse monumental equívoco é ressaltar que a harmonização total dos interesses e a consequente liquidação de toda política é uma quimera; não é possível nem desejável, e é por isso que a democracia, com todos os defeitos que possa ter, e sabe Deus quantos são, precisa ser mantida, aprimorada e considerada como um bem inegociável. Sim, o mundo espera muito da política, há muito a realizar, e nosso tempo é escasso. Mesmo no Primeiro Mundo, com sua abundância de bens materiais, problemas urgentes e gravíssimos dão margem a conflitos dantescos - veja-se o caso dos Estados Unidos; no  Terceiro Mundo, o panorama é centenas de vezes pior. Mas onde foi que os referidos problemas foram resolvidos, permitindo-nos sequer entrever de um convívio social mais feliz?


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