Sobre os mitos que mobilizam a corporação diplomática
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Toda sociedade tem os seus mitos fundadores, verdadeiros ou falsos, não importa, eles mobilizam a sociedade num conjunto de crenças que se incorporam aos demais elementos que compõem a identidade nacional: língua, religião, cultura, história comum, território identificado ao povo que o habita, etc.
Corporações dentro de uma sociedade também podem ter os seus mitos fundadores, e as mais importantes são as corporações de Estado, pois este é o núcleo organizador da vida em sociedade e o agente comum para o relacionamento com outras sociedades, nações, Estados.
Dentre as mais importantes corporações de Estado estão os soldados, garantidores da ordem interna e da defesa externa, e os diplomatas, representantes da nação e do Estado na interface com o vasto mundo que cerca toda e qualquer sociedade.
O Brasil, manifestamente, não é um império, ou seja, um agregado de nações e sociedades submetidas a uma ordem comum. O Brasil é um Estado-nação como são dezenas, duas centenas de outros Estados nacionais que foram se constituindo, nascendo e aparecendo no contexto mundial nos últimos quatro séculos, e que hoje constitui a forma predominante da comunidade internacional organizada em torno de certos princípios comuns, que são os da Carta da ONU.
Isso não impede a existência continuada, mesmo informal, de impérios, de fato ou de direito, sabendo que os impérios foram uma forma comum de organização, até predominante, das muitas sociedades que existiram e ainda existem ao longo do tempo. Mas hoje o que temos são Estados-nacionais convivendo pacificamente entre si ou de forma mais conflituosa, o que de certa forma reflete o caráter imperial de alguns deles.
Um parêntese sobre a corporação militar
Não vou me ocupar disso agora, mas tentar voltar aos mitos fundadores de nossas corporações de Estado. Da corporação militar não preciso falar muito, senão de dois mitos fundadores que estão no âmago de seu papel legitimador na história nacional. Primeiro, a tal ideia de que as FFAA, o Exército em especial, se forjou nas lutas contra os invasores holandeses no século XVII, em especial na batalha de Guararapes, onde estariam as três principais vertentes do povo brasileiro: o colonizador branco português, os indígenas, autóctones no território, e os africanos importados, que lutaram livremente em prol da nova nação que surgia. É um mito e uma mentira, mas o Exército faz questão de manter.
A outra fabulação em torno da corporação militar é o seu papel contemporizador em momentos de crise na sociedade, assumindo pretensamente o papel de Poder Moderador que terminou com o desaparecimento da ordem monárquica (que eles mesmos liquidaram, de forma bastante atabalhoada por sinal). As FFAA, o Exército especialmente, foram militaristas (o que é até “normal”, em função da sua natureza intrínseca), mas sobretudo intervencionistas e autoritários ao longo de toda a nossa história republicana (pois praticamente não tínhamos FFAA antes da Guerra do Paraguai). Nem sempre foi para um saudável debate democrático em torno de nossa organização política, e sim para impor certa concepção do mundo, de forma improvisada nos anos 1920, quando começaram suas intervenções, de forma mais deliberada a partir dos anos 1930; daí resultaram as duas ditaduras que modernizaram e que também infelicitaram a nação duas vezes no século XX: o Estado Novo (1937-45) e o regime militar (1964-85). Duas experiências autocráticas de fato modernizadoras, mas também deformadoras de uma boa organização política com uma economia livremente empreendedora, o que de fato nunca tivemos. Mas deixemos isso de lado.
Os mitos fundadores da corporação diplomática
Deixando de lado o mito fundador sobre a excelência de nossa primeira diplomacia — a do Império, relativamente de boa qualidade, nem sempre para boas causas, como a defesa do tráfico e da escravidão — e, sobretudo, o mito do Barão, pai fundador e paradigma insuperável para todo o sempre, vamos aos mitos mais recentes, na verdade balizas fundamentais da postura da corporação no período contemporâneo: a Política Externa Independente, a tese sobre o “congelamento do poder mundial” e a ideologia do desenvolvimento, que combina elementos das teorias cepalianas e da teoria da dependência.
A Política Externa Independente é uma tautologia, só “justificada” pela conjuntura da Guerra Fria e pela adesão incontida de nossas lideranças políticas e militares ao “império Ocidental”, com os EUA à frente. Parece ter sido uma grande invenção, mas mobilizou os corações e mentes dos jovens diplomatas que estiveram na condução da diplomacia e de boa parte da política externa nos 30 anos seguintes. Não vou comentar mais sobre isso devido à clara obviedade do slogan: como ou porque uma boa política externa não haveria de ser “independente”. Passons, donc.
A tal “tese” sobre o “congelamento do poder mundial” surgiu mais ou menos na mesma época e denota uma constatação evidente — aliás em todas as épocas e lugares —, a de que grandes potências exercem preeminência sobre outras nações e sobre o “sistema” mundial, mas também é de uma evidente falsidade: em nenhum momento os impérios conseguem “congelar” todas as possibilidades de crescimento ou de desenvolvimento autônomo de sociedades ou nações normalmente constituídas: mesmo entre eles, os mais poderosos, o poder nunca está congelado, menos ainda no que concerne Estados-nacionais formalmente independentes (ainda que teoricamente “dependentes” de um império predominante em sua região).
A famosa “teoria da dependência” também é de uma platitude exemplar, e derivada em parte da “tese” do congelamento, e por outro lado das doutrinas cepalianas sobre o desenvolvimento econômico, uma espécie de keynesianismo adaptado às necessidades de países “dependentes”, como os da América Latina. O que ela diz, em sua essência? Que mesmo na situação de dependência existem espaços ou interstícios que possibilitam o progresso, a industrialização e os avanços. Nada mais do que um marxismo light acoplado às noções cepalianas então em voga.
O mito fundador mais consistente na corporação diplomática é obviamente a do seu papel eminentemente mobilizador do desenvolvimento econômico da nação pela via da autonomia na política externa — o que é, como já dissemos, uma obviedade e uma tautologia — e pela possibilidade de se ter espaços de políticas públicas para a formulação de programas e projetos nacionais de desenvolvimento (que por acaso se confundem com as determinações das classes dominante e das elites dirigentes na formulação e execução das principais políticas públicas, especialmente na área econômica e na política externa). Essa é a história da ideologia do desenvolvimento nacional dos últimos 80 anos, tanto mais forte na consciência nacional quanto mais incapaz ela foi de realmente construir o desenvolvimento nacional.
Mas eu vou discutir essa nossa obsessão frustrada — pois é evidente que o Brasil falhou nesse projeto— numa próxima oportunidade. Acredito que um bom começo de enveredar numa nova fase do desenvolvimento nacional começa pelo esclarecimento — talvez desmantelamento— de alguns dos mitos do nosso passado.
Não tenho certeza de que uma nova “doutrina” para esse tal desenvolvimento sairá das próprias hostes da corporação diplomática, e isto por uma razão muito simples: ao lado, e acima, dos dois “valores” básicos impostos e entranhados nessa corporação desde o início da carreira, as famosas consignas de “hierarquia e disciplina”, está uma característica também presente nessa corporação: o CONFORMISMO. Mas disso, eu também tratarei oportunamente.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4080: 13 fevereiro 2022, 4 p.
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