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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Uma palavra de caução diplomática, acima da simplificação política-ideológica - Paulo Roberto de Almeida sobre a PEI

 Uma palavra de caução diplomática, acima da simplificação política-ideológica

Paulo Roberto de Almeida

A morte de Samuel Pinheiro Guimarães, um grande diplomata que ingressou no Itamaraty sob a PEI, trabalhou metade da carreira sob a ditadura militar e que depois foi protagonista de certa inflexão na política externa sob influência do PT, deu vezo a um tipo de aproximação ou analogia com os tempos passados da PEI e a uma comparação indevida com sua suposta deformação “neoliberal” pela postura externa do Brasil dos anos 1980 e 90 como sendo “submissa” a Washington ou contrária ao tipo de nacionalismo econômico que teria vigorado nos anos 1961-64.

O problema dos rótulos diplomáticos — muito em vigor na própria era militar — é que eles são simplistas e auto atribuídos, dificultando uma análise séria das especificidades contextuais em cada uma das épocas, pois os países dominam apenas uma parte da agenda diplomática, o resto vindo de fora, ao que cada governo tem de reagir, responder, aproveitar as oportunidades externas para alcançar certos beneficios internos.

Creio que tanto a PEI original quanto seu suposto renascimento sob o lulopetismo diplomático estão sendo oversold, com base apenas no slogan, sem que se faça um exame circunstanciado de cada contexto e da própria substância de cada uma das políticas efetivas. 

Análise de PExt tem certos requerimento que ultrapassam os rótulos. Vamos fugir da superfície autodeclarada e examinar o conteúdo de cada proposta. Do contrário é triunfalismo autoproclamado.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 1/02/2024

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Sobre os mitos que mobilizam a corporação diplomática - Paulo Roberto de Almeida

Sobre os mitos que mobilizam a corporação diplomática

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

 

 

Toda sociedade tem os seus mitos fundadores, verdadeiros ou falsos, não importa, eles mobilizam a sociedade num conjunto de crenças que se incorporam aos demais elementos que compõem a identidade nacional: língua, religião, cultura, história comum, território identificado ao povo que o habita, etc.

Corporações dentro de uma sociedade também podem ter os seus mitos fundadores, e as mais importantes são as corporações de Estado, pois este é o núcleo organizador da vida em sociedade e o agente comum para o relacionamento com outras sociedades, nações, Estados. 

Dentre as mais importantes corporações de Estado estão os soldados, garantidores da ordem interna e da defesa externa, e os diplomatas, representantes da nação e do Estado na interface com o vasto mundo que cerca toda e qualquer sociedade.

O Brasil, manifestamente, não é um império, ou seja, um agregado de nações e sociedades submetidas a uma ordem comum. O Brasil é um Estado-nação como são dezenas, duas centenas de outros Estados nacionais que foram se constituindo, nascendo e aparecendo no contexto mundial nos últimos quatro séculos, e que hoje constitui a forma predominante da comunidade internacional organizada em torno de certos princípios comuns, que são os da Carta da ONU. 

Isso não impede a existência continuada, mesmo informal, de impérios, de fato ou de direito, sabendo que os impérios foram uma forma comum de organização, até predominante, das muitas sociedades que existiram e ainda existem ao longo do tempo. Mas hoje o que temos são Estados-nacionais convivendo pacificamente entre si ou de forma mais conflituosa, o que de certa forma reflete o caráter imperial de alguns deles.

 

Um parêntese sobre a corporação militar

Não vou me ocupar disso agora, mas tentar voltar aos mitos fundadores de nossas corporações de Estado. Da corporação militar não preciso falar muito, senão de dois mitos fundadores que estão no âmago de seu papel legitimador na história nacional. Primeiro, a tal ideia de que as FFAA, o Exército em especial, se forjou nas lutas contra os invasores holandeses no século XVII, em especial na batalha de Guararapes, onde estariam as três principais vertentes do povo brasileiro: o colonizador branco português, os indígenas, autóctones no território, e os africanos importados, que lutaram livremente em prol da nova nação que surgia. É um mito e uma mentira, mas o Exército faz questão de manter. 

A outra fabulação em torno da corporação militar é o seu papel contemporizador em momentos de crise na sociedade, assumindo pretensamente o papel de Poder Moderador que terminou com o desaparecimento da ordem monárquica (que eles mesmos liquidaram, de forma bastante atabalhoada por sinal). As FFAA, o Exército especialmente, foram militaristas (o que é até “normal”, em função da sua natureza intrínseca), mas sobretudo intervencionistas e autoritários ao longo de toda a nossa história republicana (pois praticamente não tínhamos FFAA antes da Guerra do Paraguai). Nem sempre foi para um saudável debate democrático em torno de nossa organização política, e sim para impor certa concepção do mundo, de forma improvisada nos anos 1920, quando começaram suas intervenções, de forma mais deliberada a partir dos anos 1930; daí resultaram as duas ditaduras que modernizaram e que também infelicitaram a nação duas vezes no século XX: o Estado Novo (1937-45) e o regime militar (1964-85). Duas experiências autocráticas de fato modernizadoras, mas também deformadoras de uma boa organização política com uma economia livremente empreendedora, o que de fato nunca tivemos. Mas deixemos isso de lado.

 

Os mitos fundadores da corporação diplomática

Deixando de lado o mito fundador sobre a excelência de nossa primeira diplomacia — a do Império, relativamente de boa qualidade, nem sempre para boas causas, como a defesa do tráfico e da escravidão — e, sobretudo, o mito do Barão, pai fundador e paradigma insuperável para todo o sempre, vamos aos mitos mais recentes, na verdade balizas fundamentais da postura da corporação no período contemporâneo: a Política Externa Independente, a tese sobre o “congelamento do poder mundial” e a ideologia do desenvolvimento, que combina elementos das teorias cepalianas e da teoria da dependência.

A Política Externa Independente é uma tautologia, só “justificada” pela conjuntura da Guerra Fria e pela adesão incontida de nossas lideranças políticas e militares ao “império Ocidental”, com os EUA à frente. Parece ter sido uma grande invenção, mas mobilizou os corações e mentes dos jovens diplomatas que estiveram na condução da diplomacia e de boa parte da política externa nos 30 anos seguintes. Não vou comentar mais sobre isso devido à clara obviedade do slogan: como ou porque uma boa política externa não haveria de ser “independente”. Passons, donc.

A tal “tese” sobre o “congelamento do poder mundial” surgiu mais ou menos na mesma época e denota uma constatação evidente — aliás em todas as épocas e lugares —, a de que grandes potências exercem preeminência sobre outras nações e sobre o “sistema” mundial, mas também é de uma evidente falsidade: em nenhum momento os impérios conseguem “congelar” todas as possibilidades de crescimento ou de desenvolvimento autônomo de sociedades ou nações normalmente constituídas: mesmo entre eles, os mais poderosos, o poder nunca está congelado, menos ainda no que concerne Estados-nacionais formalmente independentes (ainda que teoricamente “dependentes” de um império predominante em sua região).

A famosa “teoria da dependência” também é de uma platitude exemplar, e derivada em parte da “tese” do congelamento, e por outro lado das doutrinas cepalianas sobre o desenvolvimento econômico, uma espécie de keynesianismo adaptado às necessidades de países “dependentes”, como os da América Latina. O que ela diz, em sua essência? Que mesmo na situação de dependência existem espaços ou interstícios que possibilitam o progresso, a industrialização e os avanços. Nada mais do que um marxismo light acoplado às noções cepalianas então em voga.

O mito fundador mais consistente na corporação diplomática é obviamente a do seu papel eminentemente mobilizador do desenvolvimento econômico da nação pela via da autonomia na política externa — o que é, como já dissemos, uma obviedade e uma tautologia — e pela possibilidade de se ter espaços de políticas públicas para a formulação de programas e projetos nacionais de desenvolvimento (que por acaso se confundem com as determinações das classes dominante e das elites dirigentes na formulação e execução das principais políticas públicas, especialmente na área econômica e na política externa). Essa é a história da ideologia do desenvolvimento nacional dos últimos 80 anos, tanto mais forte na consciência nacional quanto mais incapaz ela foi de realmente construir o desenvolvimento nacional.

Mas eu vou discutir essa nossa obsessão frustrada — pois é evidente que o Brasil falhou nesse projeto— numa próxima oportunidade. Acredito que um bom começo de enveredar numa nova fase do desenvolvimento nacional começa pelo esclarecimento — talvez desmantelamento— de alguns dos mitos do nosso passado.

Não tenho certeza de que uma nova “doutrina” para esse tal desenvolvimento sairá das próprias hostes da corporação diplomática, e isto por uma razão muito simples: ao lado, e acima, dos dois “valores” básicos impostos e entranhados nessa corporação desde o início da carreira, as famosas consignas de “hierarquia e disciplina”, está uma característica também presente nessa corporação: o CONFORMISMO. Mas disso, eu também tratarei oportunamente.

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4080: 13 fevereiro 2022, 4 p.

 


quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Relatório (secreto) da visita do vice-presidente João Goulart à China de Mao, em agosto de 1961, quando o presidente se demitiu - J.A. Araújo Castro

Agreguei à minha página do Academia.edu, a cópia fotográfica do ofício secreto encaminhado a partir do Consulado do Brasil em Hong Kong, em 4 de setembro de 1961, pelo então ministro-conselheiro da embaixada do Brasil em Tóquio, João Augusto de Araújo Castro, a propósito da visita do vice-presidente reeleito João Goulart à República Popular da China, em agosto de 1961, quando o Brasil reconhecia apenas a República da China (Formosa), com considerações pessoais sobre a forma e a natureza dessa visita, no curso da qual, brasileiros e chineses foram surpreendidos com a notícia da renúncia do presidente Jânio Quadros.



Quando puder, farei a análise desse ofício secreto, contextualizando-o na conjuntura histórica daquele momento da diplomacia brasileira, entre os "apelos" (americanos) da Guerra Fria e os novos eflúvios da Política Externa Independente, do presidente Jânio Quadros e do chanceler Afonso Arinos de Melo Franco (que acabou saindo com a demissão inopinada do presidente que se acreditava com virtudes "gaullistas".
Jânio já havia "ordenado" a retomada de relações diplomáticas e comerciais com os países socialistas da órbita soviética, mas a China de Mao era uma coisa bem diferente, e não tenho certeza de que Jânio ou Goulart tivessem plena consciência do que isso significava na geopolítica mundial e nas relações exteriores do Brasil.
A decisão de enviar Goulart à China antecedeu, provavelmente, à decisão de Jânio de tentar o seu "golpe" contra o Congresso, mas pode-se argumentar que ele partia da suposição maquiavélica de que a apresentação da sua carta de demissão, no meio daquela viagem, induziriam tanto os congressistas, quanto os militares, a pressionarem pela sua manutenção como presidente. Não aconteceu nem uma coisa, nem outra, sobretudo depois que ele resolveu dar a Ordem do Cruzeiro do Sul ao Ché Guevara...
Gostaria, neste momento, de destacar o enorme auxílio que sempre tive enquanto estive como diretor do IPRI (e aproveitava o cargo para aventurar-me em outras esferas, sobretudo históricas, do Itamaraty) do meu amigo, historiador Rogério de Souza Farias, o garimpeiro dos arquivos da Secretaria de Estado.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/12/2021

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A PEI, para neófitos e distraídos - Paulo Roberto de Almeida

Minha pequena reflexão histórica sobre a assim chamada Política Externa Independente (muito oversold, é verdade, na literatura acadêmica a respeito).
Estes comentários foram suscitados pela sucessão inacreditável de 15 twites ofensivos à PEI e a San Tiago Dantas, que transcrevi mais abaixo; ver aqui:  
https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/10/san-tiago-dantas-e-pei-segundo-o-atual.html


A PEI sempre foi a base de TODA a política externa brasileira desde a segunda metade do governo JK, sob a condução básica do Itamaraty, com subsídios eventuais de assessores presidenciais, como Augusto Frederico Schmidt, no caso da OPA, Operação Pan-Americana.
Ocorre que ela não tinha essa designação, que foi a grande sacada do Afonso Arinos ao ser convidado por Jânio para ser um chanceler inovador, o que ele foi (leiam seu segundo volume de memórias: Planalto).
Foi inteiramente preservada por San Tiago Dantas no primeiro gabinete parlamentarista de Goulart, e invariavelmente desde então, sem grandes mudanças, mas com pequenos ajustes sob Castelo Branco, Medici, Collor e FHC (por necessidades circunstanciais), e mesmo por Lula, que a distorceu bastante, para apoiar execráveis ditaduras de esquerda.
A PEI sempre guiou os passos de gerações de diplomatas brasileiros, e não poderia ser de outro modo, dada nossa formação. 
A ideologia do Itamaraty, desde os anos 1950, é invariavelmente desenvolvimentista com autonomia nacional, ou seja, defesa intransigente da soberania, nacionalismo, protecionismo, políticas de construção do poder nacional, dentro do multilateralismo onusiano, hoje estupidamente rejeitado por alguns malucos que tomaram conta do Itamaraty, para vergonha da quase totalidade dos diplomatas.
Os militares foram defensores entusiastas da PEI, embora sem o reconhecer. Pode-se dizer que a diplomacia da dupla Geisel-Silveirinha foi um “exagero” de PEI, tanto que os EUA denunciavam os “barbudinhos” do Itamaraty. Política externa subserviente em relação aos EUA só tivemos em alguns poucos episódios localizados do governo Dutra e ainda assim combatida por Oswaldo Aranha, representante na ONU. Até mesmo o governo constitucional de Vargas (951-54) assinou um acordo de assistência militar com os EUA, em 1952, combatido pela esquerda.
Só Bolsonaro-Araújo nos levaram a essa vergonha de sermos capachos dos EUA, algo que escandaliza 99,99% dos diplomatas.


Mais um pouco de PEI, para curiosos, neófitos e alguns poucos ignorantes, que acham positiva a atual política externa subserviente, míope e destrambelhada do olavo-bolsonarismo inepto:

Passado o governo Castelo Branco, que só foi alinhado na cabeça de acadêmicos e opositores políticos (teve o episódio da República Dominicana, que foi apenas um pequeno “pedágio” numa trajetória basicamente correta, dentro das circunstâncias), mas que se manteve na mesma linha dos governos Vargas (51-54) e JK, a partir do governo Costa e Silva a diplomacia brasileira retomou INTEIRAMENTE e INTEGRALMENTE as bases da PEI, sem o nome e de forma discreta.
O chanceler era o Magalhães Pinto, ou seja, um inepto em política externa, e o SG era o embaixador Sergio Corrêa da Costa: imediatamente o governo RECUSOU e denunciou o TNP, como iníquo e discriminatório, denunciou a hipocrisia comercial americana, na questão das sobretaxas ilegais a café solúvel e calçados e voltou totalmente à postura unctadiana da origem. 
Moniz Bandeira explica o crescimento das contradições Brasil-EUA no seu livro de história diplomática Rivalidade Emergente.
Mesmo o “neoliberal” Collor nunca foi alinhado, como agora está ocorrendo de forma vergonhosa sob o escandaloso governo atual.

FHC abandonou (mas só parcialmente) o contemplativo terceiro-mundismo que vigorava no Itamaraty, mais por inércia do que por decisão refletida, e corajosamente aderiu ao TNP e ao MTCR (busquem na Wikipedia). Depois do alinhamento bolivariano do governo Lula (mais do Palácio do Planalto do que do Itamaraty), a nossa política externa retomou inteiramente as bases da PEI, só rejeitada explicitamente agora, com os aloprados da Bolsodiplomacia, para desgosto da quase totalidade da Casa.
Como o Itamaraty é muito disciplinado (tanto porque todos os diplomatas dependem do Gabinete do chanceler acidental, menos eu), ninguém de dentro ousa criticar as loucuras que estão sendo perpetradas em nome do Brasil.
Um dia isso acaba.

Paulo Roberto de Almeida
Poços de Caldas, 25/10/2019