Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
sexta-feira, 10 de maio de 2024
O que Macron quer é mais do mesmo - Assis Moreira (Valor)
Um discurso importante de Macron. Resumo: ele quer mais subvenções estatais e mais protecionismo. Não se sabe se ambas as medidas são sustentáveis na ausência de maior produtividade europeia. Um cul-de-sac como diriam os franceses.
quinta-feira, 4 de janeiro de 2024
Marcos Troyjo: *Um Brasil mais leve para a concorrência global* - Assis Moreira (Valor)
Um Brasil mais leve para a concorrência global
O Brasil precisa ficar mais ágil na corrida com os outros países nesse universo da neoindustrialização e incertezas geopolíticas.
Assis Moreira, de Genebra
Valor Econômico, 04/01/2024
Após deixar em março a presidência do Novo Banco do Desenvolvimento (NDB), o Banco do Brics, para dar lugar à Dilma Rousseff, Marcos Troyjo passou a lecionar na Universidade de Oxford, na cátedra antes ocupada por Iván Duque, ex-presidente da Colômbia, e também no Insead (França). Nesse período, ele visitou 18 países em contatos com autoridades, investidores e acadêmicos, e os questionamentos sobre o Brasil foram inevitáveis.
Para Troyjo, a convergência de crises atualizou a noção de policrise, com a pandemia mais grave que o mundo experimentou desde a gripe espanhola, depois a situação geopolítica mais delicada na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, e uma economia mundial que ainda não se recuperou na esteira de frouxidão fiscal e monetária que levou o centro macroeconômico mundial a fortes turbulências inflacionárias.
Essa situação acaba sendo muito exacerbada porque vem acompanhada de aumento do protecionismo no mundo, do que ele chama de recessão da globalização. Sua análise é de que a globalização não parou, mas há menos fluxos de mercadorias e capitais do que há 20 anos, e isso acaba por se converter em força de pressão inflacionária.
Olhando pela ótica do Brasil, Troyjo considera que esse é um cenário perigoso, mas que traz também muitas oportunidades para o país. Ele destaca a questão demográfica. Nota que nos próximos 25 anos a população mundial vai saltar de 8 bilhões para 10 bilhões de habitantes. Observa que no ano em que Jesus Cristo nasceu a população mundial era estimada em 150 milhões de habitantes. E calcula que nos próximos 25 anos teremos o mesmo acúmulo de população ocorrido em 1.929 anos. É como se enormes naves descessem na Terra trazendo uma nova Rússia, depois outro EUA, com 350 milhões de pessoas, e uma nave bem maior que deposita uma nova China com 1,5 bilhão de pessoas. É muita gente.
As características de aumento populacional ficam mais positivas para as grandes economias emergentes, com o maior potencial do que no caso do G7 industrializado (EUA, Alemanha, Japão, França, Reino Unido, Itália, Canadá). A expectativa é de a Índia crescer em média 5% ao ano, a Indonésia, 6%, e a China, por volta de 4%, a partir de renda per capita ainda baixas. E quando vão crescer num intervalo tão curto, a tendência é que essas rendas adicionais sejam direcionadas a alimentos, energia e infraestrutura.
Significa que o mundo terá de responder à pergunta de onde virão os alimentos, energia e insumos, também para fortalecer a economia verde. E o que Troyjo repete no exterior é que o Brasil tem resposta para isso: é um dos quatro maiores produtores mundiais de alimentos, é o país que tem o mais facilmente renovável estoque de acesso a recursos hídricos, por exemplo. Em comparação, se o chinês tomar um copo de água a mais por dia, a zona desértica do mundo chega à periferia de Pequim. Na Índia, de 10 litros de água, 8,5 vão para agricultura, o que mostra uma situação de esgotamento. EUA e Europa também têm recursos limitados. Quem tem esses recursos abundantes é o Brasil.
Portanto, esse crescimento populacional brutal é promissor para o Brasil nesse jogo. Haverá inevitavelmente maior participação das exportações brasileiras no PIB. O trem já saiu da estação, e não apenas do ponto de vista comercial, mas também infraestrutural.
Existe o discurso de que no Brasil as empresas do agro e energia são muito boas da porteira para dentro, mas enfrentam dificuldades da porteira para fora. Ocorre que, quando o mundo tem problemas de segurança enérgica e alimentar, as dificuldades brasileiras são problema global. Para Troyjo, daí uma parte da explicação para o nível persistente de Investimento Estrangeiro Direto (IED) para o país.
A doutrina do que ele chama de geoeconosegurança beneficia o Brasil na prática. Mas a concorrência é fortíssima. O capital humano é essencial nesse jogo. Hoje, o México forma mais engenheiros por ano que os EUA, e isso o torna um polo de atração, exemplifica o ex-presidente do Banco do Brics. Ou seja, o Brasil precisa ajustar as prioridades, para extrair o máximo de benefícios como protagonista comercial em alimentos, energia e como destino de investimentos.
Para Troyjo, o Brasil precisa ficar mais leve na corrida com os outros países nesse universo da neoindustrialização e incertezas geopolíticas. Antes, se falava que o mundo era plano, no qual a maioria dos concorrentes, com exceção da mão de obra, teria oportunidades iguais. Agora o mundo, ainda mais com inteligência artificial, está ficando muito mais rápido. Ele pergunta: nesse cenário, quem vai atrair mais IED, país com carga tributária de 20% ou de 35% do Produto Interno Bruto (PIB)? Quem tem Banco Central independente ou vinculado a objetivos políticos? Quem trata as empresas públicas pela lógica da eficiência ou quem vai transformá-las em departamento de fisiologia política? Quem fica mais leve é quem está sempre trabalhando para melhorar o país no ambiente de negócios ou quem acha que isso não é importante?
Assis Moreira é correspondente em Genebra e escreve quinzenalmente
E-mail: assis.moreira@valor.com.br
quarta-feira, 1 de novembro de 2023
Brasil foi o segundo país que mais atraiu investimento externo - Assis Moreira Valor Econômico
Brasil foi o segundo país que mais atraiu investimento externo
Fluxo global de IED caiu 30% em relação ao primeiro semestre do ano passado
Valor, 31/10/2023 por Assis Moreira
O Brasil foi o segundo país que mais atraiu Investimento Estrangeiro Direto (IED) no primeiro semestre deste ano, só atrás dos Estados Unidos. O resultado é ainda mais significativo considerando o cenário de enormes incertezas globalmente.
Em 2022, o Brasil tinha sido o quinto país a mais acolher IED, com US$ 86 bilhões, só superado pelos EUA, China, Singapura e Hong Kong.
Agora, entre janeiro e junho deste ano, o fluxo de IED para a economia brasileira alcançou US$ 34 bilhões, comparado a US$ 35 bilhões no semestre anterior, mas -32,6% comparado a janeiro-junho de 2022.
O país sobe na classificação em meio à degringolada do fluxo global de IED, que alcançou US$ 727 bilhões entre janeiro e junho, ou 30% abaixo do volume registrado no mesmo período do ano passado. Os dados são da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Economico (OCDE).
Entre o primeiro e o segundo trimestre, o volume de IED para a economia brasileira declinou, na esteira do que vem acontecendo globalmente.
De toda maneira, o Brasil está entre os países que mais receberam anúncios de projetos novos, ao lado dos Estados Unidos, India, Mauritânia e Reino Unido. Uma parte desses projetos é para energia renovável, como aconteceu no caso da Mauritânia.
Ao mesmo tempo, o Brasil aparece entre os emergentes como um dos países que mais ampliou IED no exterior, com US$ 21 bilhões no primeiro semestre comparado a US$ 3 bilhões no segundo semestre do ano passado.
Os Estados Unidos continuaram a ser o país a mais atrair investimento estrangeiro direto, com US$ 190 bilhões no primeiro semestre. O Brasil vem em segundo, e em terceiro ficam o Canadá e o México, e só então vem a China.
É que o fluxo de IED para a China desacelerou em 2023, com queda de 32% comparado ao segundo semestre de 2022, ilustrando o gradual desengajamento de muitas firmas na segunda maior economia do mundo.
Por outro lado, os EUA, a China e o Japão continuam a ser as maiores fontes de investimentos estrangeiros diretos no mundo.
Globalmente, as atividades de fusão e aquisição continuaram a tendência de queda, em meio ao ambiente económico mais frágil, impactado por preços altos, taxas de juros mais elevadas e as incertezas geopolíticas.
Recentemente, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), destacou que o aumento de IED em alguns países, especialmente no Brasil, no ano passado, ocorreu pelo crescimento de todos os componentes do IED, especialmente o reinvestimento de lucros; e pelo aumento do fluxo no setor de serviços. Essa dinâmica está em consonância com a recuperação pós-pandemia e não é claro se se manterá em níveis semelhantes em 2023.
Em 2022, o montante de anúncios de projetos de IED na América Latina e o Caribe cresceu 93%, totalizando cerca de US$ 100 bilhões. Pela primeira vez desde 2010, o setor de hidrocarbonetos (carvão, petróleo e gás) liderou os anúncios, com 24% do total, seguido pelo setor automotivo (13%) e energias renováveis (11%).
Para a Cepal, a transição energética é um dos setores impulsionadores do crescimento econômico, que pode se tornar um motor para a transformação produtiva da região. A porcentagem da capacidade instalada de energia renovável na América Latina e no Caribe é superior à média mundial, e a matriz de geração elétrica é uma das mais limpas do mundo, diz a entidade.
Para a Cepal, o desafio de atrair e reter investimento estrangeiro direto que contribua efetivamente para o desenvolvimento produtivo sustentável e inclusivo da região é mais atual do que nunca.
Avalia que existem novas oportunidades em uma era de reconfiguração das cadeias globais de valor e de realocação geográfica da produção diante de uma globalização em mudança. https://valor.globo.com/opiniao/assis-moreira/coluna/brasil-foi-o-segundo-pais-que-mais-atraiu-investimento-externo.ghtml?li_source=LI&li_medium=news-multicontent-widget
segunda-feira, 10 de abril de 2023
Brasil na presidência do G20: quando menos poderá ser mais - Assis Moreira, Valor
Brasil na presidência do G20: quando menos poderá ser mais
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023
Brasil não recebeu convite para a 'Parceria das Américas' - Assis Moreira (Valor)
Brasil não recebeu convite para a 'Parceria das Américas'
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023
Passo cadenciado' do governo Lula na relação com a OCDE - Assis Moreira (Valor)
Passo cadenciado' do governo Lula na relação com a OCDE
terça-feira, 3 de janeiro de 2023
Brasil assume presidência do G20 em dezembro e precisa se preparar logo - Assis Moreira (Valor)
Brasil assume presidência do G20 em dezembro e precisa se preparar logo
Itamaraty, desbolsonarização e criação de um ‘Conselhão’ - Assis Moreira (Valor)
Itamaraty, desbolsonarização e criação de um ‘Conselhão’
Assis Moreira
É correspondente do Valor em Genebra desde 2005. Cobriu 20 vezes o Fórum Mundial de Economia, em Davos, e dezenas de conferências ministeriais em vários países.
Valor Econômico, 03.01.23, 18:23
Brasil de volta ao mundo – mas não pode improvisar
Novo chanceler prometeu um ‘enorme trabalho de reconstrução’ da política, desbolsonarização e participação social na política externa.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva volta ao poder num momento internacional significativamente mais grave do que em 2003, quando assumiu pela primeira vez a presidência. Era um momento de relativo otimismo e moderação, fim da guerra do Iraque, hegemonia americana, China crescendo muito, boom de commodities, Brasil crescendo pela primeira vez em mais ou menos em linha com a média mundial, e a América Latina subindo junto.
Hoje é o contrário, com efeitos persistentes da covid-19, acirramento da competição estratégica entre China e EUA, guerra na Europa, ameaça de recessão global, e securitização de todos os temas. Se em 2003 se estava negociando Rodada Doha de liberalização comercial, hoje o foco é em segurança energética, segurança alimentar, guerra e controle de exportação de chips, uso do argumento de segurança nacional para fechar as fronteiras, lógica de blocos em vez de multilateralismo.
Em 2003, o mundo passava por um momento de estabilidade das relações internacionais. Estava tudo mais ou menos funcionando. Agora, há uma tremenda confusão e mais imprevisibilidade. É um cenário tenso, que trouxe a geopolítica para o dia a dia das considerações de cada governo e empresas.
O Brasil é um país com boa complementaridade com a China, mas habita em outra vizinhança. A pressão vai persistir para nações como o Brasil se reposicionem. O que todo mundo tem feito é procurado evitar decisão, para um ou outro lado, americano ou chinês. Existem limites para a ação diplomática do novo governo Lula, mesmo em movimentos pequenos.
Além dessa primeira grande condicionante, que é a situação internacional, tem a situação interna, altamente polarizada, com uma política externa que foi muito contestada muito contestada por causa do isolamento especialmente na área ambiental. Isso vai levar ao que parece ser a mais evidente correção de rumos. O risco, para certos analistas, é de um excesso de correção, fazer tudo o que parceiros exigem e passar de mau aluno para aluno modelo num cenário complicado.
Basta ver que uma legislação da União Europeia para proibir commodities originárias de desmatamento, com alto risco de seletividade que aumentará o custo da produção agrícola. O mesmo ocorrerá na área industrial com a taxa de carbono na fronteira que a UE vai impor sobre siderurgia e outros produtos. Bruxelas usa unilateralmente sua capacidade regulatória como um fator de distorção do comércio. Uma questão é como o novo governo em Brasília vai conciliar os interesses do agronegócio e dos ambientalistas, e responder na prática aos europeus.
O novo governo prioriza também aumentar a integração com a América do Sul e a retomada da cooperação com a África. Mas a capacidade brasileira de fazer coisas concretas é menor, hoje. O Brasil diminuiu de perfil mundial nos quatro anos de Bolsonaro. Agora, o governo Lula tem uma série de aspirações políticas, mas se defronta com restrições do mundo real.
É preciso ver como o Itamaraty se encontra hoje. É uma instituição inchada no topo ao longo dos anos. Aumentou a idade da aposentadoria para 75 anos, colocou mais gente nos seus quadros e a soma das ambições individuais é muito maior do que o Itamaraty. Com isso, surgem brigas entre diferentes gerações de diplomatas, diferentes grupos de diplomatas, entre homens e mulheres diplomatas, e entre identidade de diplomatas (étnica, sexual etc).
Uma frase repetida em Brasília é a de que a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se. Mauro Vieira é considerado como tendo a experiência e sensibilidade para modernizar a instituição nesses tempos conturbados. Mas um artigo de um jovem diplomata em licença remunerada, e atualmente professor da Queen University of London, Felipe Antunes de Oliveira, mostra que a tarefa não será fácil.
Para ele, mesmo se a desastrosa política internacional do governo Bolsonaro está prestes a acabar, o bolsonarismo continua vivo dentro do Itamaraty. ‘Há um bolsonarismo arraigado no Itamaraty. Enquanto não houver uma profunda reforma da política externa brasileira e da instituição responsável por sua implementação, qualquer combinação entre más ideias e péssima implementação continua possível’, escreveu Antunes.
A base material do bolsonarismo latente no Itamaraty, segundo Antunes, se assemelha a uma grande linha de produção com quatro engrenagens articuladas entre si: elitismo sistêmico, formação continuada de baixíssimo nível, infantilização funcional permanente e falta de transparência e previsibilidade nas práticas de promoção e remoção, gerando uma série de incentivos negativos ao longo da carreira de todos os diplomatas – e tudo isso tem efeito sobre políticas públicas.
A possibilidade de Ernesto Araújo ter chegado ao posto de chanceler e durar mais de dois anos, implementando a política externa que implementou, mostra que a sociedade não pode deixar o Itamaraty dirigindo a política externa em piloto automático, diz essencialmente Antunes.
O reconhecimento da política externa como política pública, e inseparável da política interna, deveria levar ao estabelecimento de um mecanismo permanente de diálogo com a sociedade civil. A necessidade de institucionalização da abertura do Itamaraty à sociedade, com as devidas atenções à especificidade da diplomacia, já foi tema de tese no Itamaraty, como o da diplomata Vanessa Dolce de Faria.
A ideia de um grande ‘Conselho’ para debater linhas gerais da política externa, com participação de diferentes setores da sociedade, chegou a ser explorada nas gestões dos ministros Antonio Patriota e Luiz Alberto Figueiredo. Proposta de criação de um Conselho Nacional de Política Externa também foi encaminhada a Mauro Vieira quando chanceler de Dilma Rousseff. Ele tem nova oportunidade de tratar do tema, agora, num novo governo que fala muito de transparência e participação social.
quinta-feira, 24 de novembro de 2022
OMC: Trade Policy Review do Brasil - Assis Moreira (Valor)
Países pedem ao Brasil na OMC combate ao desmatamento e reforma tributária
Olhando para o futuro, a União Europeia disse encorajar o Brasil em objetivos de coesão social, estabilidade fiscal e uma maior abertura da economia
Por Assis Moreira, Valor — Genebra
24/11/2022 10h09 Atualizado há 3 horas
Parceiros sinalizaram na Organização Mundial do Comércio (OMC) pelo menos dois temas que vão pesar na atração de mais investimentos e no reforço das relações econômicas também durante o próximo governo em Brasília: combate ao desmatamento e reforma tributária.
Durante exame da política comercial brasileira, iniciada na quarta-feira, 48 delegações se manifestaram, e outras vão fazer o mesmo nesta sexta-feira, em meio a expectativas sobre o que fará o governo de Luiz Inácio Lula da Silva a partir de janeiro.
A União Europeia (EU) lembrou que o país está em transição para um novo governo, e destacou que o governo atual em Brasília “tomou medidas tomadas para facilitar o comércio e os investimentos, melhorar o clima empresarial, colocar em prática novas regras de compras públicas e para abrir ainda mais a economia brasileira para o mundo”.
Olhando para o futuro, a UE disse encorajar o Brasil em objetivos de coesão social, estabilidade fiscal e uma maior abertura da economia. “A UE também encorajará o Brasil a enfrentar uma série de desafios ambientais, notadamente para reverter a tendência atual de aumento do desmatamento, e para assegurar que o comércio não sirva como um motor para tal desmatamento”, afirmou o representante europeu.
A UE disse ter acolhido com satisfação o discurso feito em Sharm el-Sheikh pelo presidente eleito Lula. “O comércio e os investimentos têm um papel importante a desempenhar.
Incentivamos o Brasil a continuar a criar um clima de investimento favorável às energias renováveis e a tomar medidas para dissociar a produção agrícola e o comércio do desmatamento. Estamos prontos para cooperar com você enquanto tentarem enfrentar este desafio”, afirmou.
Os europeus disseram esperar mais informações sobre o atual plano de reforma tributária do Brasil, incluindo seu cronograma. “Em particular, estaríamos interessados em saber como o governo irá lidar com as distorções fiscais existentes entre produtos importados e nacionais que acreditamos não terem justificativa”, disse seu representante.
A Suíça, que participa da Efta, um grupo de pequenos países fora da UE e que tem praticamente fechado um acordo com o Mercosul, destacou que “a abertura comercial deve ir de mãos dadas com considerações para o desenvolvimento sustentável” e conclamou o Brasil “a considerar também a preservação do meio ambiente, a proteção dos povos indígenas e a redução das desigualdades sociais ao definir suas políticas econômicas e comerciais para o futuro”.
O Reino Unido, que também vai procurar acordo com o Mercosul em algum momento, observou que existem oportunidades para o Brasil e o Reino Unido construírem em terreno comum na área ambiental. Exemplificou com a Tarifa Global do Reino Unido, que removeu unilateralmente as barreiras ao comércio verde.
Os Estados Unidos, de seu lado, mencionaram o relatório da OMC sobre o Brasil, notando que nos últimos cinco anos o país “vem implementando ambiciosas reformas estruturais de longo prazo, projetadas para tornar sua economia mais competitiva e resistente” e que, “com o início da pandemia, o crescimento projetado do Brasil parou, e o governo redirecionou recursos para atender às necessidades urgentes dos brasileiros”.
Agora, na medida em que os dois países emergem da pandemia, os EUA acreditam em oportunidades de expandir os laços comerciais com o Brasil “de uma maneira que reflita valores compartilhados”.
O Japão elogiou o que chamou de esforços do Brasil para melhorar seu ambiente de
investimento e negócios, mas cobrou novas iniciativas para resolver o chamado custo-Brasil,
como o complexo sistema tributário e os gargalos de infraestrutura, como apontado no relatório
da OMC.
“Esperamos também que o governo continue a considerar e ouvir as necessidades do setor privado nestes esforços”, acrescentou o Japão. Destacou que o baixo crescimento continua a ser um desafio perene no Brasil. “Acreditamos que novos esforços para melhorar o sistema tributário e os gastos fiscais, fortalecer a governança e aumentar a produtividade do trabalho são importantes para superar o baixo crescimento da economia brasileira no futuro, uma vez que o espaço para as políticas fiscal e monetária está se estreitando no contexto de um endividamento elevado e preços crescentes”, disse.
Também para o Canadá “o Brasil ainda apresenta desafios significativos para as empresas que desejam fazer negócios no país”. Disse que a necessidade de implementação efetiva e oportuna de uma reforma tributária significativa no Brasil e de uma maior redução da carga regulatória sobre as empresas continuam sendo as principais preocupações do Canadá, assim como a redução das lacunas de infraestrutura.
Para a Coreia do Sul, que desde 2018 negocia um acordo comercial com o Mercosul, é do interesse das empresas estrangeiras receber mais informações e clareza sobre o sistema de tributação - incluindo tributação interna, ajuste de fronteiras de exportação e incentivos fiscais.
Igualmente, um ponto de preocupação para o México “é o complexo regime tributário interno do Brasil, que o próprio relatório da OMC reconhece que afeta particularmente o tratamento de bens e serviços importados”. Para o México, o fato de as transações domésticas e transfronteiriças estarem sujeitas a vários impostos federais e subfederais não só cria custos mais altos para os exportadores para o Brasil e a possibilidade de acumulação cruzada desses impostos, mas também gera ineficiências no sistema.
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/11/24/pases-pedem-ao-brasil-na-omc-combate-ao-desmatamento-e-reforma-tributria.ghtml
Brasil recebe mais de 800 questões sobre política comercial na OMC
Delegação brasileira afirmou que o atual governo fez liberalização unilateral, enquanto outros países se fechavam, e que a agricultura brasileira é sustentável do ponto de vista ambiental
Por Assis Moreira, Valor — Genebra
24/11/2022 13h28 Atualizado há 11 minutos
O Brasil recebeu mais de 800 questões para responder no exame de sua política comercial, na Organização Mundial do Comércio (OMC). E uma de suas mensagens é que o governo atual fez liberalização unilateral, enquanto outros países se fechavam, e que a agricultura brasileira é sustentável do ponto de vista ambiental.
A delegação brasileira observou que o país tem uma agenda comercial baseada em três pilares: intensificação da rede de acordos comerciais e das negociações comerciais, inclusive na OMC; modernização da estrutura tarifária do Mercosul; e facilitação do comércio.
“Embora ainda haja muito trabalho a ser feito, o Brasil foi capaz de produzir resultados significativos em cada um desses pilares”, defendeu.
Exemplificou que todos os parceiros comerciais do Brasil se beneficiariam pelo menos da tarifa média de 9,4%, a partir de julho deste ano, o que representaria um declínio de 18% (ou 2,2 pontos percentuais) relativamente a 2017.
“O Brasil conseguiu liberalizar ainda mais o comércio durante tempos desafiadores para a economia mundial, quando muitas outras partes do mundo seguiram numa direção diferente”, afirmou.
Em resposta à pandemia da covid-19, o Brasil diz que reduziu a zero as taxas de importação sobre uma lista de 548 equipamentos médicos e de proteção. E que eliminou mais de 700 mil exigências de licenças de importação automáticas e não-automáticas.
Segundo a delegação brasileira, o governo reduziu também de 13 para 5 dias o tempo médio de exportação, o que teria gerado uma economia anual estimada em US$ 14 bilhões para o setor privado, graças ao programa de janela única.
Quanto à sustentabilidade ambiental, tema do qual o país é cobrado, na agricultura o Brasil diz que tem buscado a adoção de tecnologias de economia de terra, medidas de conservação e políticas para fomentar a produtividade e a sustentabilidade do setor.
“A sustentabilidade agrícola como conceito significa a possibilidade dos sistemas agrícolas manterem a produção a longo prazo, sem o esgotamento sensível dos recursos que lhes dão origem, tais como a biodiversidade, a fertilidade do solo e os recursos hídricos”, argumentou a delegação brasileira.
Na visão do Brasil, “o mundo não terá as ferramentas para enfrentar os desafios de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, a menos que promovamos mais crescimento e desenvolvimento mais sustentável”.
Para o governo, os membros da OMC “não podem enfrentar a questão ambiental de forma eficaz se perdermos de vista o quadro geral”.
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/11/24/brasil-recebe-mais-de-800-questes-sobre-poltica-comercial-na-omc.ghtml
quarta-feira, 12 de janeiro de 2022
Um precedente relevante no Direito Internacional Comercial: a aplicação unilateral de retaliações - Assis Moreira (Valor)
Brasil adotará retaliação unilateral tendo Índia e Indonésia como primeiros alvos
Por Assis Moreira, Valor — Genebra
Valor Econômico, 12/01/2022 13h37 Atualizado há 45 minutos
O governo brasileiro vai se dotar de arsenal para aplicar retaliação unilateral contra países que foram condenados por medidas ilegais sobre exportações brasileiras, mas usam artimanhas para manter as restrições, conforme o Valor apurou.
Uma medida provisória (MP), já aprovada em reuniões ministeriais, e atualmente na Casa Civil, autoriza o Poder Executivo a retaliar proporcionalmente e de forma unilateral, em casos de ganhos de contenciosos na OMC, quando o país perdedor fizer a chamada “apelação no vazio”.
Foi o que aconteceu nesta semana com a Índia, na disputa do açúcar, e com a Indonésia, no fim de 2020, num contencioso envolvendo barreiras à entrada de carne de frango. Os dois países recorreram ao Órgão de Apelação sabendo que o mecanismo está inoperante e não pode decidir; daí o termo “apelação no vazio”. Com isso, na prática, travam a vitória brasileira e mantêm as medidas julgadas ilegais pelo painel (comitê de investigação) que custam milhões de dólares de prejuízos a produtores brasileiros.
Índia e Indonésia são assim potencialmente os primeiros ameaçados quando a MP entrar em vigor. Uma retaliação ocorre na forma de sobretaxa sobre bens e serviços provenientes dos países alvejados ou também suspensão de direitos de propriedade intelectual.
O secretário de Comércio Exterior e de Assuntos Econômicos do Itamaraty, Sarquis J. B. Sarquis, enfatizou que “a atual paralisia do Órgão de Apelação da OMC está na origem da iniciativa concebida pelo Itamaraty, que visa tanto proteger os interesses comerciais legítimos do País no marco do sistema multilateral do comércio, como promover o próprio funcionamento pleno do sistema baseado em regras e nos princípios fundamentais da OMC”.
Uma vez que o Órgão de Apelação da OMC volte a funcionar a contento, a iniciativa terá cumprido seu propósito”, completou.
Na mesma linha, o secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia, Lucas Ferraz, afirmou: “Entendemos que é um mecanismo muito importante para enfrentarmos a situação atual de apelações no vazio. O governo brasileiro está empenhado no processo de reformas da OMC, assim como no restabelecimento tempestivo do seu Órgão de Apelação. Não podemos compactuar com o uso oportunístico da situação atual, em claro prejuízo ao nosso setor produtivo.”
As regras atuais da OMC permitem que um país aplique retaliação comercial se o condenado não implementar as recomendações do Órgão de Apelação, espécie de corte suprema do comércio internacional.
Ocorre que o Órgão de Apelação está paralisado, sem nenhum dos sete juízes permanentes, porque Washington bloqueia a nomeação de novos árbitros. Enquanto perdurar esse fato jurídico, que ninguém tinha previsto, os membros da OMC têm a possibilidade de contornar as condenações estabelecidas por painel e evitar alterar as medidas consideradas ilegais.
O Brasil seguirá agora o exemplo da União Europeia, com o mecanismo de retaliação unilateral. Enquanto o Órgão de Apelação não funcionar, e o país condenado não participar de um mecanismo paralelo de arbitragem, Brasília vai impor o que negociadores chamam de princípio de precaução para proteger interesses dos produtores nacionais.
Um grupo de 25 membros da OMC, incluindo a União Europeia (27 países), tentou atenuar o problema do bloqueio do Órgão de Apelação criando um sistema de arbitragem paralelo plurilateral. Os contenciosos entre seus participantes têm assim decisão final. Por exemplo, a mais recente disputa aberta pelo Brasil, que é contra a UE envolvendo barreiras a carne de frango no mercado europeu, está assegurado que terá decisão implementada, porque ambos participam desse mecanismo plurilateral
Já a Índia e a Indonésia não participam desse mecanismo plurilateral. Em 2019, quando o Brasil denunciou a Índia por políticas ilegais de apoio ao setor açucareiro, que afetam os preços internacionais, o Itamaraty mencionou que estimativas de especialistas apontavam prejuízos de até US$ 1,3 bilhão para os exportadores brasileiros por ano.
No caso da Indonésia, os cálculos são de que o Brasil poderia vender até 3 mil toneladas de carne de frango por ano na fase inicial, se restrições condenadas fossem levantadas. Mas o governo indonésio resiste há anos.
O Brasil ganhou, sem realmente levar, uma disputa contra o país asiático em 2017. Um painel (comitê de investigação da OMC) deu razão ao Brasil naquele ano. A Indonésia teve prazo até julho de 2018 para implementar as recomendações dos juízes. Fez algumas modificações que o Brasil considerou insuficiente.
Um outro painel foi então aberto para examinar a implementação das recomendações dos juízes, e o Brasil ganhou de novo, ao comprovar que os indonésios mantiveram restrições às exportações brasileiras. A Indonésia então apelou ao vazio em dezembro de 2020, sabendo que o Órgão de Apelação da OMC não funciona.
Índia e Indonésia estão hoje entre os países que mais subsidiam a agricultura no mundo. E a paralisia do órgão de apelação da OMC acaba na prática por beneficiá-los. “O Brasil continua trabalhando ativamente para o restabelecimento do Órgão de Apelação e para o pleno desenvolvimento das regras e da reforma da OMC, inclusive em agricultura e disciplinas para subsídios, conforme termos e mandatos estabelecidos desde a Rodada Uruguai”, disse Sarquis.
A paralisia do Órgão de Apelação provocada pelos norte-americanos “é muito grave, dá a impressão de que os EUA não querem mais a OMC, no sentido de um sistema de regras e de disciplinas multilaterais, consentidas, aplicadas, com um processo de contencioso que obriga a parte perdedora a obedecer” a decisão, nota Pascal Lamy, ex-diretor-geral da OMC
Ele lembra que essa obrigação de respeitar as decisões, sob pena de retaliação, é que distinguia a OMC de outras organizações cujas regras são mais ou menos aplicadas e onde os Estados, quando eles perdem um caso diante da Corte de Justiça de Haia, por exemplo, guardam a soberania de aplicar ou não o resultado.
Lamy avalia que os EUA são obcecados pela China, querem poder bater unilateralmente sem estar ligados ao respeito de regras da OMC e a decisões de seu Órgão de Apelação. Essa ausência americana provoca uma degradação do sistema multilateral, e mais países buscam arsenais unilaterais.
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/01/12/brasil-adota-retaliacao-unilateral-na-omc-tendo-india-e-indonesia-como-primeiros-alvos.ghtml
sexta-feira, 1 de outubro de 2021
Ditadura em transformação na China e a verdadeira ameaça ao Ocidente: Jean-Marie Guéhenno, entrevista a Assis Moreira (Valor)
Ditadura em transformação na China e a verdadeira ameaça ao Ocidente
Ex-secretário-geral adjunto da Organização das Nações Unidas (ONU) e chefe das operações de manutenção da paz entre 2000 e 2008 lança o livro “O primeiro século XXI, da globalização à pulverização do mundo”
Por Assis Moreira — De Genebra
Valor Econômico, 01/10/2021 07h55
Para Jean-Marie Guéhenno, a verdadeira ameaça está no interior das sociedades ocidentais, na fragmentação crescente, que não se sabe ainda como superar
Ex-secretário-geral adjunto da Organização das Nações Unidas (ONU) e chefe das operações de manutenção da paz entre 2000 e 2008, o diplomata francês Jean-
Marie Guéhenno publica um novo livro, intitulado Le premier XXIe siècle, de la globalisation à l’émiettement du monde (O primeiro século XXI, da globalização à pulverização do mundo, Flammarion), no qual avalia que o Ocidente democrático atravessa sua crise mais grave desde o fim da Guerra Fria.
Especialista de relações internacionais e questões de defesa e hoje professor na Universidade Columbia, de Nova York, Guéhenno observa que o período atual tem, em todo o caso, pouco a ver com a precedente Guerra Fria, e o sucesso chinês coloca o Ocidente capitalista numa situação bem diferente em comparação à confrontação com a União Soviética.E TRÈS POPULAIRE TRÈS POPULAIRE
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Para ele, o medo cresce em sociedades desorientadas e extremamente polarizadas, e isso pode alimentar a chamada “tentação chinesa”, a atração pelo modelo chinês. Guéhenno avalia que a ditadura chinesa parece tentar indivíduos em vários países, com seu sucesso material que fascina e sua capacidade de manter uma certa harmonia da sociedade.
Usando o poder das novas tecnologias, a China procura passar da ditadura repressiva - descrita por George Orwell, baseada no terror - à ditadura preventiva descrita por Aldous Huxley, baseada num controle dos espíritos em que a pessoa não se sente em prisão. Mas, para o autor, a verdadeira ameaça está no interior das sociedades
ocidentais, na sua fragmentação crescente, que não se sabe ainda como superar.
Xi Jinping procura aumentar seu controle sobre as grandes empresas de dados porque ele percebe a dimensão desse poder”
Guéhenno aborda o que chama de ilusão da nova ordem mundial, o indivíduo perante a sociedade, a crise da política tradicional, a nova política e novos nacionalismos, o poder das grandes companhias digitais, o futuro da guerra em sociedades pulverizadas.
No capítulo sobre a nova política, Guéhenno destaca como certos líderes não procuram mais o terreno comum na política, para superar diferenças e agregar pelo compromisso eleitores diversos. Ao contrário, procuram aprofundar as clivagens. Pela brutalidade da linguagem e dos atos, o partido acentua o que o diferencia de seu adversário. Não ofender é visto como começar a mentir. Não tenta sequer se fazer
“respeitável”, seguindo a lógica de partidos fascistas.
Guéhenno nota que nesse cenário a diferença entre o fato e a ficção, entre o verdadeiro e o falso, não existe mais. Destaca o cinismo de líderes que fazem as pessoas acreditarem nas declarações mais absurdas um dia, certos de que podem dizer todo o contrário no dia seguinte como uma espécie de habilidade tática superior na política.
Assim, o espaço compartilhado da razão, que desde a antiguidade foi a base do debate democrático, se fragmenta numa multitude de ilhas de certezas incompatíveis e irreconciliáveis, observa Guéhenno.
Trechos da entrevista:
Valor: O sr. diz que o Ocidente democrático passa pela mais grave crise
desde o fim da Guerra Fria. O que deu errado?
Jean-Marie Guéhenno: Durante toda a Guerra Fria não pensamos sobre
quem éramos, porque tínhamos como adversário o bloco comunista, a
União Soviética, e víamos que nossa sociedade, com todas suas
deficiências e fraquezas, era ainda assim bem superior à deles. Em 1989
(queda do Muro de Berlim), ficamos sem inimigo. Naquele momento, em
vez de nos indagarmos sobre o que faz uma sociedade, o que nos une,
quais os valores em que acreditamos, qual é nossa vontade coletiva para
o futuro, o que fizemos foi simplesmente celebrar o fato de termos
ganhado e fomos triunfalistas.
Esse foi o pecado original. Confundimos o colapso de um sistema
soviético em fim de linha com o triunfo da democracia. Mas democracia
é muito mais que eleições, é um conjunto social de valores
compartilhados que permite eleições. Eleições são evidentemente muito
importantes, mas sem debate público, sem um alicerce compartilhado
entre os cidadãos, tornam-se o que Fareed Zakaria (analista de política
internacional) chama de democracia iliberal, que pode conduzir na
verdade ao contrário da democracia.
Valor: E resulta no triunfo do indivíduo?
Guéhenno: Sim. Essa ideologia do indivíduo vem de longe, da ruptura na
relação direta do indivíduo ao divino. Foi uma ruptura da religião que
colocava antes de tudo a família, a tribo, como base da sociedade. Essa
ideia do indivíduo foi fundamental para o desenvolvimento do mundo,
com sua liberdade de espírito e de empreender. Mas, com o colapso do
comunismo, o que vimos como triunfo do indivíduo foi ao mesmo tempo
o apogeu e a descoberta de seus limites. Porque o indivíduo de algum
modo isolado, cortado do coletivo, é algo muito angustiado.
O indivíduo precisa de fronteiras, de uma comunidade, de um
engajamento coletivo. O que temos hoje são indivíduos que se afogam
num mundo que eles não controlam. Daí esse sentimento de angústia e
reação de xenofobia, nacionalismo, tudo isso que vemos e que é
desastroso. É uma reação a essa imensa discrepância entre o indivíduo, a
quem prometemos todos os poderes, e um mundo que o esmaga mais
que o libera.
Para os europeus, para os brasileiros, sempre
haverá maior proximidade com parceiros com
tradição democrática”
Valor: Isso explica a crise da política tradicional e o aparecimento de
forças como Trump e suas cópias em outros países?
Guéhenno: Sim, acho que explica amplamente. Quando o comunismo
desmoronou, inicialmente a social-democracia achou que sua hora tinha
chegado. Mas, no rastro disso, houve uma perda de confiança no Estado,
na capacidade do poder público de mudar a sociedade. Rapidamente a
social-democracia foi identificada a uma forma de suavizar o capitalismo
puro e duro, mais que de transformar realmente a sociedade. E partidos
conservadores, que também podiam pensar que era sua hora, ao
celebrar o mercado sem nuance, como vimos com Margaret Thatcher,
que foi um grande sucesso político, igualmente atingiu o movimento
conservador clássico.
Apareceram esses novos movimentos políticos que não são baseados
em programas - e muito mais em identidade. Essa é uma mudança
profunda. Frequentemente se vincula o populismo a razões puramente
socioeconômicas, como erosão da classe média e aumento das
desigualdades. Sim, é uma parte da explicação, mas só uma parte.
Quando vemos a ascensão do que chamamos preguiçosamente de
populismo no mundo, vemos que isso acontece em países
extraordinariamente diferentes. O Brasil é diferente dos EUA, que é
diferente do Reino Unido, que é diferente da Índia, que é diferente da
Itália, e as situações socioeconômicas são diferentes. Há outras razões
que são mais políticas.
Valor: Por exemplo?
Guéhenno: Por exemplo, o sentimento de que em todos os países há
uma perda de controle, de que somos dependentes de ações que estão
bem além de seu país e fora de seu alcance. Outro elemento são as
novas tecnologias, com influência sem precedentes, e que facilitam a
emergência de novos partidos num mundo inicialmente virtual, onde
competem e desestabilizam estruturas políticas tradicionais. Antes a
política evoluía lentamente, marcada pela proximidade. Agora, as
pessoas se encontram na internet. E o mundo virtual encoraja a
brutalidade. Estudos mostram que se pode ter muito mais sucesso na
política evitando nuances. Na “nova política”, que agrupa pela identidade,
mais que em torno de projetos, um discurso equilibrado, que mostra o
pró e o contra, não interessa. O que interessa é o julgamento pleno de
certeza, determinado. A lógica das comunidades virtuais é da violência.
Primeiro, é uma violência virtual, e depois, quando se é suficientemente
numeroso, o que chamo no meu livro de rio subterrâneo que incha fora
da vista, pode fazer irrupção no mundo territorial. E nesse momento
pode ter um impacto devastador, surpreende, sacode ou pode quebrar
os partidos tradicionais, como a vitória de Donald Trump à Presidência
dos EUA (em 2016), em que ninguém ou poucos acreditavam antes.
Valor: O sr. fala de declínio da democracia...
Guéhenno: Há um declínio porque justamente a democracia é reduzida
à pura mecânica eleitoral, onde é transposta a ideologia do mercado pela
qual o melhor produto é aquele que se vende melhor. Ora, o centro da
democracia é a deliberação, a troca de ideias, a negociação de interesses.
E quando se reduz a democracia à pura mecânica para determinar um
vencedor, perdemos o que faz seu valor.
Valor: A truculência do discurso político é a tendência para atrair os
eleitores?
Guéhenno: Sim, na política tradicional os partidos tentavam ganhar
eleitores do centro, mostrar algo para eles se identificarem ao partido.
Os partidos convergiam para o centro, em algum momento, e contendo
extremos. Hoje, novos movimentos procuram sobretudo mobilizar sua
base, marcar sua diferença. E assim acentuam o que os separam do
adversário, endurecem o discurso, ofendem, buscam ser o mais violento
possível, porque é isso que vai energizar a base. A linguagem política
encolerizada se tornou a linguagem em várias democracias ocidentais.
Valor: O sr. menciona uma escolha entre GAFA, os gigantes do digital, e a
China. Como explicar isso?
Guéhenno: O fenômeno que sacode tudo é a nova economia dos dados,
que é tão importante quanto a Revolução Industrial. A revolução de
dados muda a maneira como o poder e o saber vão ser distribuídos. O
poder e a riqueza estão hoje na coleta e na gestão de dados. Há
inquietações sobre efeitos mais visíveis desse poder, como a capacidade
de espionagem que ameaça o espaço privado, a capacidade de
manipulação que pode ameaçar as campanhas eleitorais. Mas os efeitos
são muito mais profundos, porque é a estrutura mesmo das sociedades,
nas suas dimensões políticas e econômicas, que estão sendo redefinidas
pelos novos controladores de dados. Por isso que essas grandes
empresas, todas americanas, passaram a ter uma importância
gigantesca no mundo ocidental. A China também tem grandes empresas
de dados e tem o Partido Comunista (PC). É interessante como o
presidente Xi Jinping procura aumentar seu controle sobre as grandes
empresas de dados porque ele percebe a dimensão desse poder. E ele
provavelmente não quer um centro de poder independente do PC que
se desenvolva na China e que um dia se torne mais importante que o
partido. Isso coloca a China diante de escolhas difíceis e não sabemos
como vai acabar. Se Xi e o partido querem controlar o poder dos dados
com uma ditadura tradicional, colocando censores, vigilantes em todo
lugar, não vão conseguir, ou o que vão é causar uma ossificação da
sociedade, pois não se controla um país com 1,4 bilhão de habitantes
dessa maneira. Outra solução é dar o poder aos algoritmos. É o que se
passa no Ocidente, com Facebook, Twitter etc. Aceita deixar os
algoritmos livres, mas não para polarizar, pelo contrário, para
harmonizar, e isso causa muito medo. No Ocidente, vemos os algoritmos
do lado comercial e vemos uma exaustão, um esgotamento dessa
sociedade disfuncional onde todo mundo disputa com todo mundo.
Valor: O sr. aponta riscos de “tentação chinesa”. E pergunta se a China é
o nosso futuro. Qual é a resposta?
Guéhenno: A grande diferença entre a China e a URSS é que a URSS era
um fiasco econômico e a China é um sucesso econômico. Vemos em
pesquisas que, no fundo, a ideia de país onde se fabrica uma espécie de
bolha de felicidade é uma tentação forte. Alguns aspectos do dito
modelo chinês, comparado a nossas sociedades democráticas em
decomposição, ameaçam se tornar mais atrativos. A China tem tanto a
repressão horrível aos uigures como tem a ditadura amena, quase
invisível. O sistema chinês de crédito social, que Pequim tenta
implementar, procura criar uma espécie de harmonia social que pode
alimentar desejos de indivíduos desorientados em outras sociedades.
Quando se combina isso com medo, porque em nossas sociedades hoje
a única coisa que as mobilizam é o medo, isso pode resultar numa
demanda de autoridade e de controle. É um verdadeiro risco em
sociedades desorientadas, confusas, ao mesmo tempo hiperconectadas
e hiperfragmentadas. Isso provoca a demanda de um poder que o
protege como uma bolha e que gera suas emoções.
Valor: Os EUA com essa confrontação com a China colocam freios à
“tentação chinesa”?
Guéhenno: Os americanos justamente estão numa situação difícil para
contrapor-se ao modelo chinês porque o que vemos dos EUA hoje não é
muito encorajador. É um país extraordinariamente polarizado, suas
instituições políticas funcionam mais e mais dificilmente, as relações são
ainda mais judicializadas e colocam um peso ainda maior nas costas dos
juízes. Uma questão é se a Suprema Corte, com maioria de juízes
nomeados por presidentes republicanos, e que sempre foi considerada
acima da política, se ela manterá sua legitimidade numa sociedade mais
e mais polarizada. Vemos uma fragmentação da sociedade americana
que não é invejável. Há também as grandes desigualdades na sociedade
americana, que o presidente Joe Biden tenta corrigir um pouco. Ele tem
limites, com um Partido Democrata também rachado sobre a questão.
Assim, o modelo americano como alternativa à China tem muito menos
atrativo que tinha face à URSS. Ao mesmo tempo, é verdade que o
mundo da internet é dominado por empresas americanas, e essa
influência americana continuará muito potente no mundo. Mas no
momento ela consegue mais fragmentar o mundo do que uni-lo, de
forma que o triunfo americano é de uma certa maneira também o que
fragiliza um pouco o mundo hoje. Os EUA vão colocar em ordem de
batalha essas empresas digitais para fazer contrapeso à influência
chinesa. Da mesma maneira que Xi Jinping tenta reforçar o controle
sobre empresas de dados, nos EUA não é evidentemente o mesmo
sistema, mas a lógica da confrontação com a China produzirá
provavelmente uma aproximação mais e mais importante entre o Estado
e essas empresas.
Valor: Entramos numa segunda Guerra Fria?
Guéhenno: A história aqui não se repete realmente. As economias
ocidental e soviética eram dois mundos separados. Hoje, a China é o
maior detentor de títulos do Tesouro americano, é um parceiro
comercial fundamental para a Alemanha e mesmo para os EUA, é o
primeiro cliente da Austrália. Não vejo muito uma dissociação aí. Os
chineses construíram uma espécie de muralha da China virtual para a
internet. Mas, ao mesmo tempo, sabem que para gerir suas empresas
de maneira eficaz é preciso uma circulação de dados global. Distinguir
entre dados a bloquear ou não é muito complicado. Assim, os dois
mundos estão muito mais interligados do que ocorreu na Guerra Fria.
Também a distinção hoje entre política externa e política interna é
menos e menos pertinente. Os dois mundos são muito porosos. E cada
um procurará influenciar, fazer mover do interior o outro país, e cada um
vai procurar manipular a interdependência para seu proveito. Em vez de
guerra fria no sentido clássico que conhecemos, hoje temos é uma
competição muito mais difusa.
Valor: O recente acordo militar para transferência de tecnologia
americana de submarinos para a Austrália amplia até que ponto a
tensão entre americanos e chineses?
Guéhenno: O aspecto mais importante é que os EUA romperam uma
espécie de acordo tácito, de consenso ocidental, de não transferir essa
tecnologia muito proliferadora de submarino nuclear. Mudar sua posição
é um fato importante e militariza ainda mais a rivalidade com a China. E
isso significa que o prognóstico de 15 anos, 20 anos, é o de uma
confrontação militar. O lado chinês vai acelerar o reforço da capacidade
marítima chinesa, acelerar uma corrida aos armamentos na região do
Pacífico, mas ao mesmo tempo essa rivalidade tomará vários outros
caminhos. E os chineses esperam contornar a rivalidade militar por todo
o tipo de meios que não são militares.
Valor: Uma confrontação militar é inevitável?
Guéhenno: Acho que nada é inevitável. É preciso confiar na capacidade
humana de não fazer sempre besteiras. Mas vejo riscos reais de erro de
cálculo. A China foi uma potência dominante do mundo por séculos.
Quando ela renunciou à potência naval, na época do Renascimento, se
isolou e perdeu o movimento de modernização que começou no século
XVI e se acelerou no fim do século XVIII. Ela foi humilhada e tem uma
revanche a tomar. Mas, nesse mundo complicado, fragmentado, um
elemento de esperança é justamente que há uma multitude de vínculos
que conectam o mundo. É um fator de inquietação, mas que pode
também se tornar um fator de estabilização. Os Estados podem fazer
erros catastróficos, que nos levariam a confrontação. Mas podemos
esperar que todos esses vínculos paralelos aos Estados possam nos
ajudar a não chegar a esses confrontos.
Valor: Os parceiros serão obrigados a escolher claramente entre EUA e
China em certo momento?
Guéhenno: Espero que não. Acho que para os europeus, para os
brasileiros, sempre haverá maior proximidade com parceiros com
tradição democrática. Ao mesmo tempo, creio que há um desejo que
cresce de um país não estar em situação de “conosco ou contra nós”. Um
mundo onde há diferentes maneiras de pensar a relação do indivíduo ao
coletivo é a melhor garantia de pluralismo e de paz. Países que não estão
na linha de confrontação direta, como o Brasil e como os europeus, têm
todo interesse de conversarem, não para formar blocos, mas para
mostrar que pode haver respostas diferentes.
Valor: Crise do Ocidente, tentação chinesa, potência de dados. Quais
alternativas a tudo isso?
Guéhenno: Tento desenhar algumas respostas no livro. Acho que
devemos refletir sobre uma nova governança de dados, pela qual o
poder dos dados não fique nas mãos de empresas nem nas mãos de um
Estado. Creio que essa é uma das questões que pessoas que prezam o
pluralismo devem se colocar. Quanto à questão de legitimidade da
autoridade, acho que toda tentativa de democracia direta, e até sorteio,
por exemplo, é uma resposta superficial, porque não é reproduzindo
uma sociedade disfuncional que vamos torná-la funcional e isso
tampouco resolve a falta do debate. Também num mundo em que o
conhecimento supera mais e mais a capacidade de cada indivíduo, a
relação entre saber e poder está mal resolvida hoje. Vimos na pandemia
de covid-19 de um lado governos que procuram ignorar o saber, o que é
catastrófico, e de outro governos que se escondem atrás do saber. Ora,
há espaço para o saber e para reconhecer sua utilização e há questões
que são de natureza política. A medida do risco é uma questão científica.
O grau de risco a que estamos dispostos é do campo da política.