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terça-feira, 12 de novembro de 2024

Resistência da economia global surpreende - Martin Wolf (Valor)

Resistência da economia global surpreende

Martin Wolf 


Um fato notável é que o aumento da inflação, em grande medida inesperado, dissipou-se a um custo baixo em termos de produção e de emprego

 Valor Econômico, quarta-feira, 23 de outubro de 2024

 

“Uma pandemia única em um século, a eclosão de conflitos geopolíticos e eventos climáticos extremos desestabilizaram as cadeias produtivas, provocaram crises alimentares e energéticas e levaram os governos a tomar ações inéditas para proteger as vidas e os meios de subsistência”. É assim que o mais novo Panorama Econômico Mundial (WEO) do Fundo Monetário Internacional (FMI) descreve os eventos econômicos ocorridos desde o início de 2020.

Ainda assim, vista como um todo, a economia mundial tem mostrado resiliência. Infelizmente, os países em desenvolvimento têm mostrado menos do que os países de alta renda - beneficiados por uma maior margem de manobra em suas políticas públicas. Em suma, enquanto os de alta renda “voltaram aos níveis de atividade e de inflação que se projetavam antes da pandemia”, os países em desenvolvimento “estão mostrando cicatrizes mais permanentes”.

Um fato notável, contudo, é que o aumento da inflação, em grande medida inesperado, dissipou-se a um custo baixo em termos de produção e de emprego. Por outro lado, o núcleo da inflação também tem mostrado persistência, observa o FMI. Um ponto crucial é que “o núcleo da inflação dos preços dos serviços essenciais, em 4,2%, está cerca de 50% maior do que antes da pandemia em importantes economias avançadas e emergentes (excluindo os EUA)”. A pressão para que os ritmos dos salários e preços voltem à é o principal motivo para isso. No entanto, como os hiatos dos produtos estão se fechando, o FMI tem a esperança de que essa pressão salarial também diminua.

Os riscos são abundantes. A política monetária do passado pode ter mais impactos do que o previsto, talvez provocando recessões. Se a inflação for mais forte, o aperto monetário será maior do que o imaginado, o que poderia afetar a estabilidade financeira

Tanto o salto da inflação quanto seu notavelmente indolor declínio precisam de explicações. Entre elas, argumenta o WEO, está a queda mais rápida do que o esperado nos preços das fontes de energia e a forte recuperação da oferta de trabalho, impulsionada por surtos inesperados (e impopulares) na imigração.

Uma explicação mais sutil para o comportamento da inflação é que a interação entre o aumento da demanda pós-pandemia e as restrições de oferta tornaram a relação entre a ociosidade na economia e a inflação mais acentuada. Dessa forma, a inflação subiu acima do previsto quando a demanda aumentou, mas caiu mais rápido do que o esperado à medida que a oferta e a demanda se equilibraram. A política monetária desempenhou um papel em ambas as direções, ao estimular e depois restringir a demanda, mas também (quando os juros subiram) ao reforçar a credibilidade das metas de inflação.

Uma característica digna de nota desde 2020 tem sido a mudança na relação entre política monetária e fiscal. Durante a pandemia, ambas foram ultraexpansionistas. No entanto, após 2021, a política monetária foi apertada, enquanto a política fiscal permaneceu expansionista, em especial nos EUA. Os juros mais altos, então, elevam os déficits fiscais. Existe, entretanto, uma grande divergência entre os EUA e a região do euro nas perspectivas fiscais: pelas projeções do FMI, a dívida pública dos EUA subirá para quase 134% do PIB em 2029; na região do euro, por outro lado, a proporção da dívida pública em relação ao PIB deve se estabilizar em cerca de 88% em 2024, embora com grandes diferenças entre os países que a compõem.

Outra recente característica importante da economia mundial é que, desde o ataque da Rússia à Ucrânia em 2022, a taxa de crescimento do comércio exterior entre “blocos” desacelerou-se mais do que dentro deles, sendo que um “bloco” está centrado nos EUA e na Europa e o outro, na China e na Rússia.

O FMI não mudou muito suas estimativas e projeta um crescimento mundial próximo de 3%. Isso, pressupondo que não haja grandes choques negativos, que o crescimento do comércio exterior acompanhe o da produção, que a inflação se estabilize, que as políticas monetárias sejam apertadas e que as políticas fiscais sejam afrouxadas. As projeções do FMI mostram que o crescimento dos EUA, na comparação entre os quartos trimestres, cairá de 2,5% em 2024 para 1,9% em 2025, e que o da zona do euro terá leve aceleração, para 1,3%. Para a Ásia em desenvolvimento projeta-se um crescimento de 5% em 2025, para a China, de 4,7%, e para a Índia, de 6,5%.

Os riscos, infelizmente, são abundantes. A política monetária do passado pode ter impactos mais fortes do que os agora previstos, talvez provocando recessões. Se a inflação for mais forte do que a projetada, a política monetária ficaria mais apertada do que a imaginada, o que poderia afetar a estabilidade financeira. O impacto dos juros mais altos sobre a sustentabilidade da dívida pode ser maior do que o esperado, em particular nos países emergentes e em desenvolvimento. Os problemas macroeconômicos da China podem ser maiores do que o previsto, à medida que seu setor imobiliário se retrai e as medidas econômicas compensatórias permanecem limitadas. Caso Donald Trump se torne presidente dos EUA e lance suas medidas comerciais, as chances de uma guerra comercial total seriam consideráveis, com consequências imprevisíveis para a economia mundial e as relações internacionais.

Além disso, a eleição dos EUA será decidida pacificamente? Também há a chance de intensificação das guerras existentes ou do surgimento de novas. Tais eventos poderiam levar a novos saltos nas cotações das commodities, possivelmente (ou provavelmente) agravados por rápidas mudanças climáticas.

Tudo isso é assustador. Também vale a pena citar, porém, os possíveis lados positivos. Reformas e uma retomada da confiança poderiam levar ao aumento dos investimentos. A inteligência artificial e a revolução energética poderiam impulsionar os investimentos e o crescimento. É até possível que a humanidade decida ter coisas melhores a fazer do que intensificar a hostilidade e a estupidez a níveis cada vez mais altos.

O FMI ressalta a necessidade de garantir um pouso suave para a inflação e a política monetária. Também ressalta a necessidade mais imediata de estabilizar as contas públicas, ao mesmo tempo em que se promove o crescimento e se reduz a desigualdade. No médio prazo, torce por reformas estruturais mais fortes, como a melhoria do acesso à educação, a redução dos elementos de rigidez no mercado de trabalho, o aumento da taxa de participação na força de trabalho, a redução das barreiras à concorrência, o apoio a startups e o avanço da digitalização. Não menos importante, deseja a aceleração da transição verde e uma maior cooperação multilateral.

Se ao menos alguma divindade pudesse forçar a humanidade a ser assim sensata. Na prática, como sempre, isso caberá a nós.

 

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Por que a indústria brasileira encolheu tanto? - Edmar Bacha (Valor)

 Por que a indústria brasileira encolheu tanto?

De Edmar Bacha

Valor, 27/07/2024

 

Desindustrialização precoce e doença holandesa não explicam o fenômeno: é necessário buscar uma explicação alternativa

 

Entre 1995 e 2022, a participação da indústria de transformação na economia brasileira desabou. Em preços constantes, em 1995 ela respondia por 14,5% do PIB, mas em 2022 somente por 9,3%, uma queda maior do que cinco pontos de percentagem (pp). O que explica esse enorme encolhimento?

A literatura econômica brasileira oferece basicamente duas explicações. No jargão dos economistas, elas têm os apelidos de desindustrialização precoce e doença holandesa.

Desindustrialização precoce origina-se na observação de economistas que a parcela da indústria no PIB tem a forma de um U-invertido à medida que a economia se desenvolve. Em países pobres, essa parcela é pequena, devido à preponderância de atividades agrícolas. Em países de renda média, ela cresce à medida que ocorre a industrialização. Em países de renda alta, a parcela da indústria volta a se reduzir pois, com a urbanização, os serviços de modo geral ganham peso.

O que se observa desde o último quartel do século XX, e não somente no Brasil, é que muitos países tendem a se desindustrializar precocemente, ou seja, mais cedo do que antes. As explicações variam, mas em geral têm a ver com a importância que a terceirização adquiriu, mais o desenvolvimento de serviços de alta tecnologia, e a globalização que tendeu a concentrar as atividades manufatureiras na China.

Como avaliar a importância da hipótese da desindustrialização precoce como explicação para a desindustrialização brasileira entre 1995 e 2022? Uma possibilidade é comparar sua evolução com a que ocorreu nos países da OECD. Esses países têm uma renda per capita em média três vezes maior do que a do Brasil. Portanto, são países ricos que deveriam estar se desindustrializando, digamos assim, naturalmente — de acordo com a hipótese do U invertido entretida pelos economistas. Se o Brasil os acompanha, é porque estaria tendo uma desindustrialização precoce.

A surpresa, entretanto, é que a desindustrialização dos países da OECD foi muito pequena. Em 1995, em preços constantes, a parcela da indústria no PIB da OECD era 14,3%. Em 2022 ela caiu apenas para 13,8%. Portanto, uma desindustrialização de 0,5 pp, dez vezes menor do que os cinco pp observados no caso brasileiro.

Estatisticamente, calculamos que para cada 1 pp de desindustrialização na OECD ocorre uma desindustrialização de 1,6 pp no Brasil. Como a OECD se desindustrializou em 0,5 pp, ela consegue explicar apenas 0,8 pp da desindustrialização brasileira entre 1995 e 2022.

De acordo com este teste, a tese da desindustrialização precoce não parece explicar grande coisa da desindustrialização brasileira.

O que dizer sobre a doença holandesa? A expressão foi popularizada pela “The Economist” em 1977, para retratar o encolhimento da indústria da Holanda como consequência da descoberta de ricos depósitos de gás natural naquele país. Transplantada para o contexto brasileiro, a ideia é que um aumento das receitas provenientes de recursos naturais gera um auge exportador que fortalece o real face ao dólar. Esse fortalecimento reduz os preços em reais dos produtos manufaturados importados e dificulta a exportação dos produtos manufaturados locais. Em consequência, a indústria de transformação se encolhe.

Esse fenômeno foi sem dúvida importante entre 2005 e 2011, quando houve um enorme aumento dos preços dos produtos agrícolas e minerais exportados pelo Brasil, acrescido do efeito da descoberta do pré-sal que, antes mesmo de se materializar em novas exportações, provocou um grande influxo de capitais externos para o país. Em artigo de 2013, calculei que essa bonança externa, por seu efeito sobre a valorização do real face ao dólar, poderia explicar inteiramente a desindustrialização brasileira entre 2005 e 2011. Ou seja, nesses anos, a doença holandesa foi um fator importante para a desindustrialização. Mas é isso também válido para o período inteiro, entre 1995 e 2022? A resposta é negativa.

Para chegar a essa conclusão, utilizamos como indicador da doença holandesa a evolução das relações de troca do país — os preços das exportações em relação aos preços das importações —, já que o grosso das exportações brasileiras são bens primários, enquanto o grosso das importações são bens manufaturados.

Medida pelas relações de troca, a doença holandesa aparece com força entre 2005 e 2011, mas, fora desse intervalo, as relações de troca flutuam: para baixo entre 1995 e 1999,

constantes entre 1999 e 2005, para baixo de novo entre 2011 e 2016 e com tendência de alta a partir de então. Calculamos que, entre 1995 e 2022, as relações de troca aumentaram em cerca de 30%. Quanto essa melhoria poderia explicar da desindustrialização no período?

Estatisticamente, estimamos que para cada 10% de aumento das relações de troca ocorre uma desindustrialização de 0,27 pp. Ou seja, os 30% de melhoria das relações de troca entre 1995 e 2022 explicariam não mais do que 0,8 pp da desindustrialização no período. Assim, a doença holandesa também não dá conta de parcela relevante da desindustrialização brasileira.

Precisamos, portanto, buscar uma explicação alternativa para o encolhimento da indústria brasileira.

Observe-se inicialmente que podemos escrever a parcela da indústria no PIB em preços constantes como o produto de duas variáveis: produtividade relativa da indústria (valor adicionado por trabalhador na indústria como proporção do PIB por trabalhador) e parcela do emprego industrial no emprego total. Trata-se de mera identidade. Mas traz em si a possibilidade de uma explicação alternativa para a desindustrialização.

É que a parcela do emprego industrial no emprego total pouco varia entre 1995 e 2022. Assim, estatisticamente, a evolução da parcela da indústria no PIB está intimamente associada à da produtividade relativa da indústria.

Então, a próxima pergunta é: o que ocorreu com a produtividade relativa da indústria? A resposta, a esta altura não surpreendente, é que ela desabou! Em 1995, a produtividade da indústria era 84% maior do que a da média da economia. Em 2023, após sucessivas quedas, esse excedente se reduziu para apenas 12%. Ao invés de ser o motor da economia como outrora, a produtividade da indústria foi a que menos cresceu entre os 12 setores das contas nacionais; na verdade nem crescer ela cresceu, pois a produtividade da indústria foi mais baixa em 2022 do que em 1995!

Então, esqueçam-se de desindustrialização prematura, doença holandesa ou que mais seja, o problema a ser desvendado não é porque a parcela da indústria do PIB caiu, mas sim porque a produtividade relativa da indústria desabou. O problema é esse, mais complexo.

Ainda não temos uma resposta completa para essa evolução: as análises disponíveis na literatura somente dão pistas sobre o que ocorreu, que não convergem para uma conclusão definitiva.

Mas é pertinente observar que a imagem espelhada da enorme queda da produtividade relativa da indústria entre 1995 e 2022 foi um extraordinário aumento da produtividade relativa da agricultura. Em 1995, a produtividade relativa da agricultura era apenas 22% da produtividade média da economia; desde então, não parou de crescer: em 2023, já era igual a 94% da média.

O que a indústria perdeu em produtividade relativa, a agricultura ganhou (pois, tomada em conjunto, a produtividade relativa dos demais setores da economia ficou praticamente a mesma). Como a indústria convergiu de cima para a média, a agricultura convergiu de baixo para a média, e a média pouco saiu do lugar, uma hipótese é que, num quadro de relativa estagnação produtiva, o país teria apenas presenciado um processo de catch-up da agricultura em relação à produtividade da indústria. A agricultura se modernizou e a indústria ficou parada. Mas, então, por que a agricultura conseguiu se modernizar, mas a indústria não? Boa pergunta.

Pode ser que parte da resposta esteja no mercado em que uma e outra miraram. A agricultura mirou o mercado internacional e hoje concorre com sucesso com as potências agrícolas mundiais. Para um país que exporta pouco como o Brasil, o mercado mundial é meio sem limites, portanto, oferece amplo escopo para a adoção de tecnologias de última geração e o desenvolvimento de tecnologias nativas. Oferece não só o escopo, mas também impõe a necessidade, pois se trata de competir mundialmente com os gigantes do setor.

Já a indústria continua a mirar o próprio umbigo, ou seja, limita-se a vender com preços surreais seus produtos quase que exclusivamente para o mercado interno, e só consegue exportar alguma coisa com valor adicionado significativo para a Argentina. E sempre com muita proteção contra a entrada de produtos estrangeiros — basta ver a gritaria que a importação das “blusinhas” chinesas provocou entre os empresários.

Limitada ao mercado interno, pequeno para os padrões mundiais, a indústria não alcança a escala necessária para a adoção de tecnologias de última geração, nem sofre pressão para o desenvolvimento de novas tecnologias. O pouco que ela produz, ela vende — porque o mercado é protegido.

Essa parece ser uma explicação plausível de por que a produtividade da indústria brasileira permanece estagnada, enquanto a da agricultura continua a crescer.

 

Edmar Bacha é economista. As relações estatísticas citadas são desenvolvidas em E. Bacha, V. Terziani, C. Considera e E. Guimarães, “Why did Brazil deindustrialize so much? An empirical investigation”. Texto para Discussão n. 83, IEPE/Casa das Garças, julho 2024(*)

(*) https://cdpp.org.br/wp-content/uploads/2024/07/20240712WHY-DID-BRAZIL-DEINDUSTRALIZE-SO-MUCH.pdf

 

 

sexta-feira, 10 de maio de 2024

O que Macron quer é mais do mesmo - Assis Moreira (Valor)


 Um discurso importante de Macron. Resumo: ele quer mais subvenções estatais e mais protecionismo. Não se sabe se ambas as medidas são sustentáveis na ausência de maior produtividade europeia. Um cul-de-sac como diriam os franceses.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

"Ideal é privatizar a Petrobras", diz Marcelo Mesquita, conselheiro mais antigo da Petrobras (Valor)

"Ideal é privatizar a Petrobras", diz Mesquita

Governança - Conselheiro mais longevo afirma que crises sucessivas ocorrem pelo modelo estatal

Kariny Leal, Fábio Couto e Francisco Góes - Do Rio

Valor, 11/04/2024


Mais antigo conselheiro da Petrobras, cargo que ocupa há oito anos, o economista Marcelo Mesquita entende que a privatização é a melhor saída para as contínuas crises vividas pela empresa, governo após governo. "Se um governo do PT faz isso, ficaria no poder 20 anos", diz. Um modelo possível, segundo ele, seria o de "Corporation", empresa sem controle acionário definido, com atuação focada em exploração e produção de petróleo no Brasil. No formato atual de empresa de economia mista, Mesquita identifica vários problemas. Entre os quais aponta as tentativas de ingerência política, incluindo a formação de preços dos combustíveis, e retrocessos na governança, que vai sendo minada gradualmente: "É uma barragem que vai criando rachaduras", compara.

No tempo em que está no colegiado da Petrobras, Mesquita conviveu com sete diferentes presidentes da empresa. Ele deixará o conselho depois da assembleia de acionistas do dia 25, uma vez que não pode se candidatar a uma terceira reeleição, vedada pelo estatuto. O economista não quis opinar sobre tuna possível permanência do atual CEO da estatal, Jean Paul Prates. Mas reconheceu que o debate sobre o comando da estatal paralisa a companhia. Diz ainda nunca ter visto situação como a atual em que conselheiros do governo e diretoria não se entendem, como ocorreu no caso dos dividendos extraordinários: "É como se não fosse bom estar dando lucro e pagando dividendo." A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor: Valor: Que avaliação faz do momento da Petrobras?

Marcelo Mesquita Em crises anteriores, a empresa estava em momento ruim. Em 2018, a Petrobras tinha dívida e custos altos. A lucratividade não era elevada, a empresa não pagava dividendos e a cotação do petróleo estava baixa. A empresa estava fragilizada. Hoje, anos depois, é diferente porque se fez uma reestruturação da governança. A empresa chegou a ter 120 mil funcionários, hoje tem 60 mil e produz mais. Quando se vê que a empresa está indo bem, não tem a "desculpa" para Brasília de que [a Petrobras] não pode atender os pedidos.

Valor: Porque dá lucro?

Mesquita: A empresa é muito lucrativa. Do ponto de vista do país, deveríamos olhar isso [o lucro] com felicidade, e não com o estranhamento que algumas pessoas olham, como se ter muito lucro fosse errado. É como se não fosse bom estar dando lucro e pagando dividendo, essa é a insanidade do atual momento.

Valor: Qual é a razão disso?  

Mesquita: A visão de que a Petrobras é uma galinha de ovos de ouro para o país precisa ser um consenso. O debate deveria ser o seguinte: vai haver uma transição energética, vamos fazer com a Petrobras ou não? É um debate complexo e saudável que o Ministério de Minas e Energia (MME) devia ter com o país. A empresa tem que dar lucro e pagar o máximo de dividendo que puder. Isso não deveria ser debatido. As pessoas acham que está sobrando dinheiro porque a Petrobras não está investindo o suficiente. É uma falácia. Esse é o ponto de partida da conversa do dividendo e do lucro. A Petrobras tem um plano de investimento que é o maior do Brasil, da América Latina e do hemisfério sul. É quase o tamanho da Exxon Mobil, a maior empresa de petróleo americana. Óbvio que a Petrobras gostaria de investir mais, mas precisa ter projeto.

Valor: Se a empresa está tão bem operacionalmente, por que não se construiu um consenso para evitar a crise dos dividendos?

Mesquita: Pois é, eu não entendo. Não sou do governo, não entendo o que acontece entre os políticos em Brasília. O sindicato não querer maior distribuição de dividendos até entendo, porque eles acham que dinheiro na empresa é melhor para ter mais emprego. Mas, de novo, isso é uma falácia porque não gera mais emprego sem as condições [econômicas] para sustentar essas vagas. Se tem dinheiro sobrando e compra ativo na Bolívia, na Venezuela ou na África só para dar destinação ao recurso, não faz sentido. Eu também gostaria que o país fosse autossuficiente em fertilizantes, mas não existe país rico que faça tudo. Se somos bons em fazer poços profundos, vamos focar nisso. Vamos debater como aumentar o investimento em exploração no Brasil.

Valor: Há risco de retrocesso na governança da Petrobras depois dos avanços dos últimos anos?

Mesquita: O risco é a empresa estar muito lucrativa, pagando dividendos e as pessoas quererem fazer coisas que no passado já se viu que não dão retomo. Esse risco é potencializado pela incerteza da transição energética. Mesmo empresas de petróleo privadas, sem as amarras da Petrobras, estão vivendo esse dilema [de diversificar o portfólio].

Valor: Qual é o melhor uso do dinheiro da Petrobras?

Mesquita: O ideal é privatizar a Petrobras, ter uma empresa menor e mais focada em exploração e produção de petróleo no Brasil. E deixar o país usar os recursos [da privatização] para fazer o que precisa, como infraestrutura, escolas, hospitais e abater a dívida pública para ter uma taxa de juros mais baixa. Isso permite ter um custo de capital menor. É saudável para o país usar esse dinheiro que a Petrobras gera. A Noruega e o Chile, por exemplo, têm fundos criados para pegar o excedente de dinheiro em momento de bonança, investir e guardar. No Brasil, não temos maturidade política para guardar porque todo mundo quer gastar quando está no poder e não deixar para quem vem depois. Se pudesse, esse seria o caminho: colocar o dinheiro em um fundo e usar quando precisar. Mas isso é tão sofisticado que não estamos nesse ponto do debate no Brasil.

Valor: O senhor defende a privatização da Petrobras há tempos, mas nunca houve condições reais de avançar nessa discussão...

Mesquita: A sociedade evoluiu. Agora seria o momento de ser magnânimo, de ser estadista. Se um governo do PT faz isso, ficaria no poder 20 anos. Deveriam ter a grandeza de entender isso. Se as forças políticas entendessem que têm que ser pragmáticas e não ideológicas em certas questões, alcançaríamos o consenso para nos desenvolvermos como nação. Cada vez que entra um grupo, fala que vai fazer tudo diferente do anterior. Não se acha uma convergência para que haja avanço.

Valor: Por que nunca ninguém conseguiu privatizar a Petrobras?

Mesquita: Porque ela ficou por último, depois de outros setores como celulose, siderurgia e mineração. A Petrobras, talvez por ser a maior e mais rentável, de um setor que muitos países têm estatais, ficou para o fim. E tem um debate polêmico [em torno ao tema], então vai indo pelas beiradas.

Valor Seu modelo para a privatização seria o de uma "Corporation"?

Mesquita: Privatização pode ser feita em vários modelos, o país tem que debater. Como permitir que a Petrobras se livre das interferências políticas privatizando, mas sem que fique desnacionalizada e aumentando investimentos, pagando impostos e gerando mais lucro. Se faz uma operação eficiente e lucrativa, o país ganha com isso, como ganha com a Vale. Quem é contra privatização por hipocrisia, deveria se obrigar a usar escola e hospital públicos em vez de ir no privado. O governo nem precisaria ter participação acionária, mas poderia influenciar, via "golden share", para não desnacionalizar. O governo recebe impostos da Petrobras, que são brutais. O [valor] que vai para funcionários e acionistas também é brutal.

Valor: Mas para privatizar teria que ter apoio do Congresso, mudar a Lei do Petróleo...

Mesquita: Estamos ficando para trás no mundo. A urgência da privatização da Petrobras tem a ver com a transição energética global. O petróleo vai deixar de ser uma riqueza, então precisamos usá-lo de forma correta.

Valor: Em que prazo?

Mesquita: Ninguém sabe. Mas está determinado que o planeta não quer mais usar petróleo, quer outras fontes de energias renováveis. Não sabemos em que velocidade. Uma empresa privada e ágil vai ter mais condições de tomar riscos do que uma estatal que muda a direção a cada quatro anos com a troca de governo. Qualquer governo de direita ou de esquerda quer mudar o presidente [da Petrobras] a cada ano. Em oito anos, eu vi sete conselhos, sete presidentes, sete diretorias. O Prates entrou, ainda está mudando as pessoas e a estrutura, e já estão falando que ele vai sair.

Valor: A dificuldade de Prates parece ser se equilibrar entre os interesses do governo e do mercado.

Mesquita: Esse embate existe porque tem minoritários que colocaram dinheiro e estão ali brigando. A empresa de economia mista [caso da Petrobras] funciona melhor do que quando não é, mas no Brasil não funciona bem como poderia. Porque não tem esse consenso político de que tem que ter vida de empresa e que não é uma autarquia federal. Com a "class action" [ação movida por investidores contra a Petrobras nos EUA, em 2015] e o acordo com a SEC [a CVM americana], a Petrobras se comprometeu a melhorar a governança e criar regras para evitar ataques e interferências. Graças a isso nos últimos oito anos a empresa melhorou muito. O ataque de Brasília é o mais difícil. Bolsonaro [o ex-presidente Jair Bolsonaro] ligava e achava que podia fazer o que queria. Mas não pode porque as pessoas que estão ali respondem com o CPE É resistência diária, mas a empresa vai sendo minada. É uma barragem que vai criando rachaduras. A flexibilização da Lei das Estatais foi uma delas.

Valor: Faltam duas semanas para a assembleia que vai eleger o conselho. Qual é a sua expectativa?

Mesquita: É um assunto difícil de falar, melhor comentar depois.

Valor: Tem elementos para dizer se Prates fica no cargo?

Mesquita: Nenhum, mas ficar 15 dias aparecendo supostos nomes que vão entrar [como CEO] é péssimo. A empresa para, os diretores começam a procurar emprego porque sabem que vão ficar desempregados. O presidente para de tomar decisão, as empresas que queriam parcerias também param.

Valor: O clima no conselho não parecer ser bom. É isso mesmo?

Mesquita: Onde tem alguma polêmica é quando se define o plano estratégico, ao definir o longo prazo da empresa. Eu votei contra o plano estratégico porque acredito numa Petrobras focada em exploração e produção, vendendo campos maduros, não entrando em coisas que não sabe fazer. Essa gestão, orientada por Brasília, aposta no outro caminho [de diversificar investimentos]. Tem que ter responsabilidade de votar com o CPE Às vezes tem consenso e outras vezes não.
Valor: Um caso em que não houve consenso foi na votação do dividendo extraordinário, quando Prates se absteve na votação.

Mesquita: Nunca vi isso em oito anos. Nos governos Temer e Bolsonaro, mesmo com todas as mudanças, havia coordenação entre CEO e o chairman da empresa, entre conselheiros colocados pelo governo e o que o presidente da empresa estava querendo fazer, sempre houve coordenação forte. Não entendo o que acontece, também não pergunto e não quero saber. É muito estranho a diretoria ter uma proposta e os conselheiros que a indicaram não terem uma atuação coordenada. É surpreendente como minoritário. E não sei explicar, não sei porque é assim. Eu acho que tem que ser distribuído 100% de tudo o que sobra. Por definição, se sobrou dinheiro e a empresa está com dívida resolvida, investindo o máximo que pode, tem que distribuir.

Valor: Então o senhor foi contrário à criação da reserva de capital.

Mesquita: Claro! Porque não tem que ter reserva de procrastinação. Eu até brinco internamente que essa não é uma reserva de capital, é uma reserva de atraso, porque esse dinheiro, um dia, ou vai ter que ser dado ao acionista ou vai ser investido em maluquice. Ou pode queimar [o recurso] caso faça retenção de preço de combustíveis.

Valor: Há algum ativo que a Petrobras não deveria ter vendido?

Mesquita: Foi ótimo [vendera distribuição de combustíveis] porque cria mais concorrência, mais players. Também não houve problema em vender refinarias. Quando se tem uma fatia de mercado monopolista e o dono da empresa é o governo, a mão pesada é sempre para vender barato e fazer politicagem. Historicamente, o capital aplicado em refino nunca deu retorno porque sempre se tentou represar preços para segurar a inflação.

Val

"Ideal é privatizar a Petrobras", diz Mesquita

Governança - Conselheiro mais longevo afirma que crises sucessivas ocorrem pelo modelo estatal

Kariny Leal, Fábio Couto e Francisco Góes - Do Rio

Mais antigo conselheiro da Petrobras, cargo que ocupa há oito anos, o economista Marcelo Mesquita entende que a privatização é a melhor saída para as contínuas crises vividas pela empresa, governo após governo. "Se um governo do PT faz isso, ficaria no poder 20 anos", diz. Um modelo possível, segundo ele, seria o de "Corporation", empresa sem controle acionário definido, com atuação focada em exploração e produção de petróleo no Brasil. No formato atual de empresa de economia mista, Mesquita identifica vários problemas. Entre os quais aponta as tentativas de ingerência política, incluindo a formação de preços dos combustíveis, e retrocessos na governança, que vai sendo minada gradualmente: "É uma barragem que vai criando rachaduras", compara.

No tempo em que está no colegiado da Petrobras, Mesquita conviveu com sete diferentes presidentes da empresa. Ele deixará o conselho depois da assembleia de acionistas do dia 25, uma vez que não pode se candidatar a uma terceira reeleição, vedada pelo estatuto. O economista não quis opinar sobre tuna possível permanência do atual CEO da estatal, Jean Paul Prates. Mas reconheceu que o debate sobre o comando da estatal paralisa a companhia. Diz ainda nunca ter visto situação como a atual em que conselheiros do governo e diretoria não se entendem, como ocorreu no caso dos dividendos extraordinários: "É como se não fosse bom estar dando lucro e pagando dividendo." A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor: Valor: Que avaliação faz do momento da Petrobras?

Marcelo Mesquita Em crises anteriores, a empresa estava em momento ruim. Em 2018, a Petrobras tinha dívida e custos altos. A lucratividade não era elevada, a empresa não pagava dividendos e a cotação do petróleo estava baixa. A empresa estava fragilizada. Hoje, anos depois, é diferente porque se fez uma reestruturação da governança. A empresa chegou a ter 120 mil funcionários, hoje tem 60 mil e produz mais. Quando se vê que a empresa está indo bem, não tem a "desculpa" para Brasília de que [a Petrobras] não pode atender os pedidos.

Valor: Porque dá lucro?

Mesquita: A empresa é muito lucrativa. Do ponto de vista do país, deveríamos olhar isso [o lucro] com felicidade, e não com o estranhamento que algumas pessoas olham, como se ter muito lucro fosse errado. É como se não fosse bom estar dando lucro e pagando dividendo, essa é a insanidade do atual momento.

Valor: Qual é a razão disso?  

Mesquita: A visão de que a Petrobras é uma galinha de ovos de ouro para o país precisa ser um consenso. O debate deveria ser o seguinte: vai haver uma transição energética, vamos fazer com a Petrobras ou não? É um debate complexo e saudável que o Ministério de Minas e Energia (MME) devia ter com o país. A empresa tem que dar lucro e pagar o máximo de dividendo que puder. Isso não deveria ser debatido. As pessoas acham que está sobrando dinheiro porque a Petrobras não está investindo o suficiente. É uma falácia. Esse é o ponto de partida da conversa do dividendo e do lucro. A Petrobras tem um plano de investimento que é o maior do Brasil, da América Latina e do hemisfério sul. É quase o tamanho da Exxon Mobil, a maior empresa de petróleo americana. Óbvio que a Petrobras gostaria de investir mais, mas precisa ter projeto.

Valor: Se a empresa está tão bem operacionalmente, por que não se construiu um consenso para evitar a crise dos dividendos?

Mesquita: Pois é, eu não entendo. Não sou do governo, não entendo o que acontece entre os políticos em Brasília. O sindicato não querer maior distribuição de dividendos até entendo, porque eles acham que dinheiro na empresa é melhor para ter mais emprego. Mas, de novo, isso é uma falácia porque não gera mais emprego sem as condições [econômicas] para sustentar essas vagas. Se tem dinheiro sobrando e compra ativo na Bolívia, na Venezuela ou na África só para dar destinação ao recurso, não faz sentido. Eu também gostaria que o país fosse autossuficiente em fertilizantes, mas não existe país rico que faça tudo. Se somos bons em fazer poços profundos, vamos focar nisso. Vamos debater como aumentar o investimento em exploração no Brasil.

Valor: Há risco de retrocesso na governança da Petrobras depois dos avanços dos últimos anos?

Mesquita: O risco é a empresa estar muito lucrativa, pagando dividendos e as pessoas quererem fazer coisas que no passado já se viu que não dão retomo. Esse risco é potencializado pela incerteza da transição energética. Mesmo empresas de petróleo privadas, sem as amarras da Petrobras, estão vivendo esse dilema [de diversificar o portfólio].

Valor: Qual é o melhor uso do dinheiro da Petrobras?

Mesquita: O ideal é privatizar a Petrobras, ter uma empresa menor e mais focada em exploração e produção de petróleo no Brasil. E deixar o país usar os recursos [da privatização] para fazer o que precisa, como infraestrutura, escolas, hospitais e abater a dívida pública para ter uma taxa de juros mais baixa. Isso permite ter um custo de capital menor. É saudável para o país usar esse dinheiro que a Petrobras gera. A Noruega e o Chile, por exemplo, têm fundos criados para pegar o excedente de dinheiro em momento de bonança, investir e guardar. No Brasil, não temos maturidade política para guardar porque todo mundo quer gastar quando está no poder e não deixar para quem vem depois. Se pudesse, esse seria o caminho: colocar o dinheiro em um fundo e usar quando precisar. Mas isso é tão sofisticado que não estamos nesse ponto do debate no Brasil.

Valor: O senhor defende a privatização da Petrobras há tempos, mas nunca houve condições reais de avançar nessa discussão...

Mesquita: A sociedade evoluiu. Agora seria o momento de ser magnânimo, de ser estadista. Se um governo do PT faz isso, ficaria no poder 20 anos. Deveriam ter a grandeza de entender isso. Se as forças políticas entendessem que têm que ser pragmáticas e não ideológicas em certas questões, alcançaríamos o consenso para nos desenvolvermos como nação. Cada vez que entra um grupo, fala que vai fazer tudo diferente do anterior. Não se acha uma convergência para que haja avanço.

Valor: Por que nunca ninguém conseguiu privatizar a Petrobras?

Mesquita: Porque ela ficou por último, depois de outros setores como celulose, siderurgia e mineração. A Petrobras, talvez por ser a maior e mais rentável, de um setor que muitos países têm estatais, ficou para o fim. E tem um debate polêmico [em torno ao tema], então vai indo pelas beiradas.

Valor Seu modelo para a privatização seria o de uma "Corporation"?

Mesquita: Privatização pode ser feita em vários modelos, o país tem que debater. Como permitir que a Petrobras se livre das interferências políticas privatizando, mas sem que fique desnacionalizada e aumentando investimentos, pagando impostos e gerando mais lucro. Se faz uma operação eficiente e lucrativa, o país ganha com isso, como ganha com a Vale. Quem é contra privatização por hipocrisia, deveria se obrigar a usar escola e hospital públicos em vez de ir no privado. O governo nem precisaria ter participação acionária, mas poderia influenciar, via "golden share", para não desnacionalizar. O governo recebe impostos da Petrobras, que são brutais. O [valor] que vai para funcionários e acionistas também é brutal.

Valor: Mas para privatizar teria que ter apoio do Congresso, mudar a Lei do Petróleo...

Mesquita: Estamos ficando para trás no mundo. A urgência da privatização da Petrobras tem a ver com a transição energética global. O petróleo vai deixar de ser uma riqueza, então precisamos usá-lo de forma correta.

Valor: Em que prazo?

Mesquita: Ninguém sabe. Mas está determinado que o planeta não quer mais usar petróleo, quer outras fontes de energias renováveis. Não sabemos em que velocidade. Uma empresa privada e ágil vai ter mais condições de tomar riscos do que uma estatal que muda a direção a cada quatro anos com a troca de governo. Qualquer governo de direita ou de esquerda quer mudar o presidente [da Petrobras] a cada ano. Em oito anos, eu vi sete conselhos, sete presidentes, sete diretorias. O Prates entrou, ainda está mudando as pessoas e a estrutura, e já estão falando que ele vai sair.

Valor: A dificuldade de Prates parece ser se equilibrar entre os interesses do governo e do mercado.

Mesquita: Esse embate existe porque tem minoritários que colocaram dinheiro e estão ali brigando. A empresa de economia mista [caso da Petrobras] funciona melhor do que quando não é, mas no Brasil não funciona bem como poderia. Porque não tem esse consenso político de que tem que ter vida de empresa e que não é uma autarquia federal. Com a "class action" [ação movida por investidores contra a Petrobras nos EUA, em 2015] e o acordo com a SEC [a CVM americana], a Petrobras se comprometeu a melhorar a governança e criar regras para evitar ataques e interferências. Graças a isso nos últimos oito anos a empresa melhorou muito. O ataque de Brasília é o mais difícil. Bolsonaro [o ex-presidente Jair Bolsonaro] ligava e achava que podia fazer o que queria. Mas não pode porque as pessoas que estão ali respondem com o CPE É resistência diária, mas a empresa vai sendo minada. É uma barragem que vai criando rachaduras. A flexibilização da Lei das Estatais foi uma delas.

Valor: Faltam duas semanas para a assembleia que vai eleger o conselho. Qual é a sua expectativa?

Mesquita: É um assunto difícil de falar, melhor comentar depois.

Valor: Tem elementos para dizer se Prates fica no cargo?

Mesquita: Nenhum, mas ficar 15 dias aparecendo supostos nomes que vão entrar [como CEO] é péssimo. A empresa para, os diretores começam a procurar emprego porque sabem que vão ficar desempregados. O presidente para de tomar decisão, as empresas que queriam parcerias também param.

Valor: O clima no conselho não parecer ser bom. É isso mesmo?

Mesquita: Onde tem alguma polêmica é quando se define o plano estratégico, ao definir o longo prazo da empresa. Eu votei contra o plano estratégico porque acredito numa Petrobras focada em exploração e produção, vendendo campos maduros, não entrando em coisas que não sabe fazer. Essa gestão, orientada por Brasília, aposta no outro caminho [de diversificar investimentos]. Tem que ter responsabilidade de votar com o CPE Às vezes tem consenso e outras vezes não.
Valor: Um caso em que não houve consenso foi na votação do dividendo extraordinário, quando Prates se absteve na votação.

Mesquita: Nunca vi isso em oito anos. Nos governos Temer e Bolsonaro, mesmo com todas as mudanças, havia coordenação entre CEO e o chairman da empresa, entre conselheiros colocados pelo governo e o que o presidente da empresa estava querendo fazer, sempre houve coordenação forte. Não entendo o que acontece, também não pergunto e não quero saber. É muito estranho a diretoria ter uma proposta e os conselheiros que a indicaram não terem uma atuação coordenada. É surpreendente como minoritário. E não sei explicar, não sei porque é assim. Eu acho que tem que ser distribuído 100% de tudo o que sobra. Por definição, se sobrou dinheiro e a empresa está com dívida resolvida, investindo o máximo que pode, tem que distribuir.

Valor: Então o senhor foi contrário à criação da reserva de capital.

Mesquita: Claro! Porque não tem que ter reserva de procrastinação. Eu até brinco internamente que essa não é uma reserva de capital, é uma reserva de atraso, porque esse dinheiro, um dia, ou vai ter que ser dado ao acionista ou vai ser investido em maluquice. Ou pode queimar [o recurso] caso faça retenção de preço de combustíveis.

Valor: Há algum ativo que a Petrobras não deveria ter vendido?

Mesquita: Foi ótimo [vendera distribuição de combustíveis] porque cria mais concorrência, mais players. Também não houve problema em vender refinarias. Quando se tem uma fatia de mercado monopolista e o dono da empresa é o governo, a mão pesada é sempre para vender barato e fazer politicagem. Historicamente, o capital aplicado em refino nunca deu retorno porque sempre se tentou represar preços para segurar a inflação.

Valor: Faz sentido econômico ter lançado o segundo trem da Rnest [Refinaria Abreu e Lima]?

Mesquita: Faz porque o investimento foi feito. O ganho é grande ao se terminar o que começou. Votei a favor. Apesar de ter sido um investimento mal-feito, com preços absurdos, que demorou à beça [para ser implantado], a pior obra é a inacabada. Não é uma questão ideológica, é prática, específica.

Valor: Há defasagem nos preços dos combustíveis desde o início do ano. Como é o debate no conselho?

Mesquita: Não se pode olhar a defasagem apenas a curto prazo. Todo mês o conselho monitora a política de preços, a equipe de vendas explica o que está acontecendo com dados e gráficos. Na gestão de Prates, a política foi correta, não se vendeu gasolina com subsídios. Quando precisou, [a Petrobras] aumentou [os preços]. Agora é difícil [aumentar preços], porque quando se fala em derrubar o presidente e é preciso reajustar, é difícil acreditar que ele vá fazer. Entram as pressões políticas. Eu já vi esse filme antes. Por isso tem que privatizar.

Valor E se Prates reajustasse os preços dos combustíveis hoje?

Mesquita: Seria corajoso ao extremo. Eu, se fosse ele, até tentaria, para mostrar que é forte e que não vai sair. Se o Lula não quer tirá-lo [da presidência da Petrobras] de fato, é um ótimo momento para aumentar os combustíveis, mostrar que está tudo normal.


or: Faz sentido econômico ter lançado o segundo trem da Rnest [Refinaria Abreu e Lima]?

Mesquita: Faz porque o investimento foi feito. O ganho é grande ao se terminar o que começou. Votei a favor. Apesar de ter sido um investimento mal-feito, com preços absurdos, que demorou à beça [para ser implantado], a pior obra é a inacabada. Não é uma questão ideológica, é prática, específica.

Valor: Há defasagem nos preços dos combustíveis desde o início do ano. Como é o debate no conselho?

Mesquita: Não se pode olhar a defasagem apenas a curto prazo. Todo mês o conselho monitora a política de preços, a equipe de vendas explica o que está acontecendo com dados e gráficos. Na gestão de Prates, a política foi correta, não se vendeu gasolina com subsídios. Quando precisou, [a Petrobras] aumentou [os preços]. Agora é difícil [aumentar preços], porque quando se fala em derrubar o presidente e é preciso reajustar, é difícil acreditar que ele vá fazer. Entram as pressões políticas. Eu já vi esse filme antes. Por isso tem que privatizar.

Valor E se Prates reajustasse os preços dos combustíveis hoje?

Mesquita: Seria corajoso ao extremo. Eu, se fosse ele, até tentaria, para mostrar que é forte e que não vai sair. Se o Lula não quer tirá-lo [da presidência da Petrobras] de fato, é um ótimo momento para aumentar os combustíveis, mostrar que está tudo normal.


sábado, 23 de março de 2024

Por que o Plano Real funcionou? - Tony Volpon (Valor)

 

Por que o Plano Real funcionou? 

Nunca houve na história saída tão indolor de um processo de quase hiperinflação crônica.

Por Tony Volpon*

Como já defendi várias vezes nas redes sociais, os idealizadores e gestores do Plano Real merecem um prêmio Nobel de Economia e, se não fosse o viés americano/europeu nas escolhas, não duvido que ganhariam. Nunca houve uma saída tão indolor de um processo de quase hiperinflação crônica na história econômica.

Acho que não deve haver dúvidas ou questionamentos que o plano também teve enorme importância social, dado que o acesso a "tecnologias de indexação" dependia do nível de renda, com os mais ricos ganhando - e bastante - com a "ciranda financeira" e os mais pobres pagando a conta. Realmente nunca houve, de uma vez só, um ato que distribuiu tanta renda.

Também não devemos debater (como aconteceu nas redes) "quem merece" os louros do sucesso do plano. Houve personagens centrais - como obviamente Fernando Henrique Cardoso e Itamar Franco - e personagens mais periféricas, mas que deram sua contribuição, como Marcílio Marques Moreira. Também tivemos vários que lutaram contra o plano. O Real foi uma obra coletiva.

Queria aqui endereçar um ponto consensual na narrativa sobre o Plano Real que eu acho exatamente ao contrário da verdade: que o Real elegeu FHC presidente.

A tese parece óbvia: o Real foi um sucesso, houve um "boom" inicial de consumo (não tão intenso ou insustentável como no Cruzado, mas ainda assim um "boom"), e assim FHC facilmente venceu Lula.

Enquanto cronologicamente isso foi verdade, olhando a lógica econômica do plano, vemos que foi exatamente o contrário.

O ponto chave - e mais crítico e frágil - do Plano Real era a passagem do "inflacionado" indexador URV para o que se desejava, uma estável nova moeda.

A instituição da URV resolvia um dos grandes problemas dos planos de estabilização anteriores: o desequilíbrio de preços relativos quando se tentou congelar os preços para frear a inflação inercial.

Se, por exemplo, no momento do congelamento o valor dos salários estivesse "no pico", quando houvesse o eventual descongelamento haveria uma inflação "residual" para ajustar a relação salários/preços. Apesar de ser um ajuste de preços relativos, o ajuste apareceria como inflação, recomeçando tudo de novo (com novo agravante: as remarcações preventivas devido aos temores de futuros congelamentos).

A URV permitiu a negociação e coordenação via mecanismo de mercado (e não "tablitas" e outros mecanismos de controle central) dos preços relativos. Esse problema já era reconhecido em uma publicação conjunta de 1986 de Pérsio Arida e André Lara Resende, a contribuição teórica mais importante para o Plano.

Mas a URV não resolvia o problema do "lastro" da nova moeda, um problema grave, especialmente quando era óbvio que a arrecadação do governo deveria cair com o fim do imposto inflacionário (a despeito do "Fundo Social de Emergência"), piorando o déficit fiscal, o que de fato aconteceu - até o segundo mandato o governo FHC teve déficits primários.

Enquanto hoje muitos lembram as críticas ao plano pela esquerda (por exemplo, Maria da Conceição Tavares), houve várias críticas ortodoxas antevendo o fracasso do Real pela falta de um ajuste fiscal estrutural prévio. Exemplo: Sérgio Werlang e Rubens Cysne publicaram artigo na "Folha de S. Paulo", em janeiro de 1994, intitulado "Esqueçam a URV", no qual escreveram: "O governo errou... por ter desperdiçado os últimos sete meses sem o necessário detalhamento dessas reformas...se o governo não foi capaz de conter a inflação com uma moeda, como poderia combatê-la com duas?".

A equipe econômica sabia disso. Foi a razão para que no lançamento do Real houvesse a tentativa de impor várias âncoras ao mesmo tempo: alta de juros com apreciação cambial (o Real nasceu flutuante) e metas de crescimento da oferta monetária.

Mas é óbvio que, como se viu em planos anteriores, tais âncoras "nominais" deveriam fracassar se não houvesse mudanças estruturais na política econômica.

Como vimos, grande parte do debate foi sobre a natureza dessas mudanças. Muitos - até aqueles da equipe econômica - argumentaram que elas deveriam acontecer antes do lançamento do Real - que sem um ajuste fiscal/estrutural prévio, a inflação voltaria. O que FHC apostou foi que a expectativa de mudanças em um momento de desordem política pós-impeachment seria o suficiente para lastrear o Real.

Veja o que FHC disse em 1998: "Ninguém acreditava que fosse possível acabar com a inflação num governo de transição... Só eu achava... Começou a discussão, entre nós, e a equipe achava que não dava... Diziam que era preciso ter controle sobre o Banco do Brasil, a Caixa Econômica... eu achava o contrário.... Dizia: "vocês estão rigorosamente equivocados. A única possibilidade de pôr ordem no orçamento é aproveitar que o Congresso está uma desordem... Portanto, só pode passar numa situação caótica, em que não haja força política organizada".

FHC, estudante de Maquiavel, entendeu que não era nenhum utópico "pacto político" - muito defendido na época pela esquerda - que levaria à estabilização, mas sim a rápida implementação do plano em um momento de desordem do establishment político, gerando a expectativa de eleição de um governo reformista dando lastro ao Real.

E a aposta - genial e perigosa - deu certo! A perspectiva de reformas lastreou o Real, o que levou a um "boom" inicial, que ajudou a eleger FHC. O Plano Real foi um perfeito exemplo de uma "profecia autorrealizável".

 

*Tony Volpon foi diretor do Banco Central do Brasil e é atualmente professor-visitante da George Washington University, em Washington D.C.

 

segunda-feira, 18 de março de 2024

A boquinha e a fome: as estatais e seus conselhos - Bruno Carazza (Valor)

A boquinha e a fome: as estatais e seus conselhos 

Bruno Carazza*

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Valor Econômico, segunda-feira, 18 de março de 2024

Conselhos de administração de empresas atendem a diversos interesses no governo

A semana passada foi repleta de episódios envolvendo a governança corporativa de estatais e de empresas privadas nas quais a União ainda detém algum tipo de ingerência, mesmo que indiretamente.

O retorno de Lula ao poder representou a retomada da visão de que as estatais têm um papel estratégico na promoção do desenvolvimento nacional. Nesse sentido, a nova administração da Petrobras tem sinalizado com a ampliação de seu plano de investimentos e novas diretrizes a respeito de refino, distribuição de combustíveis e transição energética. O episódio mais recente dessa história se deu na atual crise sobre os dividendos.

Se uma mudança de rumos em relação à administração anterior é válida e legítima, ela não deve ser feita à revelia dos demais sócios privados da empresa. Assim, todas as decisões da Petrobras que possam afetar a distribuição de dividendos aos acionistas precisam ser comunicadas com muita transparência, para se evitar as turbulências que vimos no preço das suas ações na última semana.

Em resposta à crise do Petrolão, o governo aprovou a Lei nº 13.303/2016, para reforçar a estrutura corporativa das estatais e torná-las mais resistentes à interferência política. No entanto, num de seus últimos atos no Supremo Tribunal Federal, o atual ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, suspendeu muitas das suas determinações numa canetada. Quem semeia vento colhe tempestade, como estamos vendo agora.

Situações ainda mais graves, porém, são as insinuações de interferência política do processo sucessório na Vale, apresentadas na carta de renúncia do conselheiro independente José Luciano Penido, e as pressões de Lula para emplacar Guido Mantega primeiro na própria Vale e, mais recentemente, na Braskem.

Por se tratar de empresas privadas, nas quais a União não detém o controle direto, a intromissão do governo nas suas decisões extrapola os limites da opção estratégica desenvolvimentista.

Em 2011, o pesquisador Sérgio Lazzarini publicou um livro demonstrando, com fartura de dados, as relações umbilicais entre as grandes empresas brasileiras e o Estado. “Capitalismo de Laços” explicita como o BNDES e outros bancos oficiais, as maiores estatais e os fundos de pensão de seus empregados constituem uma teia de participações societárias cruzadas que se espalha pelo tecido dos maiores símbolos do setor privado nacional.

A se pautar pelas manchetes da última semana, o governo Lula está mais do que disposto a estender seus laços sobre o mercado brasileiro.

**********

Embora pouco se comente a respeito, a distribuição de vagas nos conselhos de estatais também está no centro da crise envolvendo a diretoria e o sindicato dos servidores do Banco Central e o governo Lula.

Os pagamentos feitos pelas estatais aos membros de seus conselhos (os famosos jetons) sempre foram uma forma de complemento salarial bastante generosa que atende a diversos fins: atração de profissionais do mercado para colaborarem por um tempo no governo, premiação à dedicação de alguns servidores públicos e remuneração extra para quadros partidários do governo de plantão.

Segundo dados do Portal da Transparência, durante o exercício financeiro de 2023, 76 empresas estatais distribuíram R$ 16.572.796,30 para 590 servidores públicos e ocupantes de cargos comissionados a título de jetons.

Para ficar apenas nas indicações técnicas, diversos integrantes da cúpula do Ministério da Fazenda fizeram jus ao recebimento de jetons de estatais no ano passado: o chefe de gabinete, Laio Morais (R$ 65.075,34), o secretário de Política Econômica, Guilherme Mello (R$ 47.390,78), o secretário do Tesouro, Rogério Ceron (R$ 47.295,88), e o secretário-executivo adjunto, Rafael Dubeux (R$ 42.404,88).

Os pagamentos de jetons também agraciaram dezenas de servidores de carreiras dos ministérios da Fazenda e do Planejamento - alguns deles chegaram a engordar seus contracheques em até R$ 106.842,97 em 2023.

Não há nada de errado e muito menos de ilegal nesses pagamentos. O problema é que, no contexto de tratamentos diferenciados dispensados pelo governo federal na política salarial, essa questão dos jetons gera ainda mais distorções entre as carreiras.

No caso específico do Banco Central, em função da legislação sobre conflitos de interesses, diretores e servidores da instituição não podem integrar o conselho de instituições públicas ou privadas. A regra faz todo o sentido, pois decisões sobre crédito ou taxas de juros afetam as estratégias de empresas que atuam no mercado, e por isso não seria salutar que um integrante do Bacen fizesse parte de seu corpo de aconselhamento.

A norma, contudo, gera um efeito colateral. Os diretores e técnicos do Banco Central não deixam nada a desejar em preparo técnico a um alto dirigente do Ministério da Fazenda ou um servidor qualificado do Tesouro Nacional ou da Receita Federal. No entanto, por não poderem ser contemplados com os jetons das estatais, os integrantes do Bacen acabam se sentindo preteridos em relação a seus pares.

Na elite do funcionalismo, quanto mais o governo procura agraciar uma carreira com penduricalhos como honorários, bônus e jetons, mais desagrada às demais.

*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 


quinta-feira, 14 de março de 2024

O futuro econômico da China - Martin Wolf (FT, Valor)

VALOR

13mar24

 

O futuro econômico da China 

Há dúvidas se Xi está matando o "capitalismo comunista" de Deng Xiaoping.

 

Por Martin Wolf 


Qual o futuro econômico da China? 
Essa pergunta levanta muitas questões específicas, mais ente os persistentes desequilíbrios macroeconômicos do país, a ameaça representada pela queda do tamanho da população e a piora no relacionamento com partes importantes do resto do mundo, acima de tudo um EUA cada vez mais hostil. No entanto, por baixo de tudo isso há uma questão ainda mais profunda: será que o "capitalismo comunista", a invenção aparentemente autocontraditória de Deng Xiaoping, está inexoravelmente desaparecendo sob o comando de Xi Jinping? Será que o governo da China vai se fossilizar e, no fim, entrar em colapso, como a União Soviética?

Abordei algumas dessas questões em uma série de colunas publicadas em 2023. Na semana passada, pouco depois de retornar de uma visita a Pequim e Xangai, minha primeira desde 2019, reexaminei os desafios macroeconômicos estruturais da China e levantei preocupações sobre o possível ressurgimento de desequilíbrios mundiais desestabilizadores. Pretendo agora abordar essa questão muito maior: será que Xi está matando o sistema de Deng? Muitas pessoas bem informadas com as quais me encontrei estavam extremamente pessimistas, em especial quanto às perspectivas para o setor privado. No entanto, será que em algum momento esses problemas serão resolvidos, ou não?

Essa questão é bastante esclarecida pelo livro "China"s World View", recém-publicado de David Daokui Li, um ilustre professor de economia formado em Harvard, que leciona na Universidade de Tsinghua. Pessoas interessadas na China, sejam linha-dura ou moderadas, deveriam ler cuidadosamente o valioso livro de Li.

Talvez sua observação mais surpreendente seja que "de 980 até 1840, o início da história moderna da China", a renda per capita do país caiu. A China antiga estava presa em uma armadilha malthusiana. Tal quadro é ainda pior do que o retratado no trabalho do falecido Angus Maddison. Mesmo depois de 1840, essa realidade sombria não se tornou muito mais brilhante. Somente após a "reforma e abertura" de Deng Xiaoping é que ela mudou.

 

Ao liberar as rédeas da economia privada, confiar nas forças de mercado e abrir-se para a economia mundial, Deng criou as condições para uma transformação extraordinária. Por outro lado, ao reprimir as demandas por democracia na Praça da Paz Celestial, em 1989, ele também reforçou o controle do partido comunista. Ele inventou uma nova economia política: a China de hoje é o resultado.

Se ela também é sustentável? O livro de Li responde com um claro "sim". Em essência, ele argumenta que o sistema político da China deveria ser visto não como o soviético, mas como uma forma modernizada do Estado imperial tradicional chinês. Esse Estado é paternalista. Ele é responsável pelo povo, mas não presta contas a ele, exceto em um aspecto fundamental: se perder o apoio da massa, será derrubado. O trabalho desse Estado é proporcionar estabilidade e prosperidade. No entanto, ao fazê-lo, não tenta controlar tudo a partir do centro. Isso seria loucura em um país tão vasto: ele descentraliza o controle para as esferas locais. O Partido Comunista deveria ser visto fundamentalmente como o partido nacional da China, argumenta Li.

Sob esse ponto de vista, o governo de Xi não representa um abandono dos objetivos da era Deng Xiaoping, mas sim uma tentativa de remediar problemas criados por sua dependência do "capitalismo total", a saber, a corrupção generalizada, a desigualdade cada vez maior e os danos ambientais. Os problemas também incluem críticas dos novos plutocratas, em especial Jack Ma, do Alibaba, sobre as áreas protegidas da política e da economia. As autoridades chinesas estão tão preocupadas com os monopólios das plataformas tecnológicas e a instabilidade das finanças quanto as ocidentais. Acima de tudo, argumenta Li, o desenvolvimento econômico continua sendo um objetivo fundamental. A diferença apenas é que agora existem outros objetivos também, em particular, o fortalecimento do controle do partido, a assistência social, o desenvolvimento cultural e a proteção ambiental.

A era Deng Xiaoping, de fato, legou muitos problemas. Parte da culpa disso recai sobre a relativa passividade das eras Hu Jintao e Wen Jiabao. Grande parte da culpa, porém, recai sobre a tendência inerente à corrupção de uma economia de mercado dependente do arbítrio administrativo. No entanto, a tendência de Xi de centralizar a tomada de decisões não melhorou nitidamente a situação. Ela ameaça criar uma paralisia ou uma reação excessiva: o fracasso em promover uma reorientação rápida para deixar de depender do setor imobiliário é um exemplo de um caso de paralisia; o erro em não ter abrandado a tempo os lockdowns contra a covid-19 é um exemplo de reação excessiva. A gestão de uma economia guiada politicamente por múltiplos objetivos só pode ser mais difícil do que a de uma que tenha como único objetivo crescer. As políticas assertivas de Xi também pioraram as relações com as autoridades políticas ocidentais.

É bem possível, portanto, interpretar o que está ocorrendo como, em grande medida, uma tentativa de solucionar os complicados legados da era Deng Xiaoping em um cenário mundial que é muito mais complexo. Também é possível argumentar que a reafirmação do controle do partido por Xi é perfeitamente racional. A alternativa, de avançar para um sistema legal independente, com direitos de propriedade arraigados, e um sistema político mais democrático, era arriscada demais. Em um país do tamanho e nível de desenvolvimento da China, isso poderia ter criado o caos. A alternativa conservadora de Xi deve ter parecido muito mais segura, mesmo que possa ter matado a galinha dos ovos de ouro que vinha trazendo tanta prosperidade. Mesmo assim, parecia muitíssimo mais segura.

Quando consideramos as perspectivas para a China, não devemos ter principalmente como foco a lista de problemas óbvios - a queda nos preços dos imóveis, a dívida excessiva, a poupança excessiva, o envelhecimento da população e a hostilidade ocidental. Ainda que com dificuldade, um país com os recursos humanos e o potencial de crescimento da China é capaz de lidar com todos eles.

A questão maior é se na era centralizadora, cautelosa e conservadora de Xi, a passagem da estagnação para o crescimento explosivo vista na era Deng Xiaoping está condenada a reverter-se, e voltar para a estagnação. Se as pessoas começarem a acreditar que o dinamismo do passado recente foi perdido para sempre, então há o risco de que caiam em uma espiral descendente de decepção das esperanças. Ainda assim, a força de 1,4 bilhão de pessoas que almejam uma vida melhor é extremamente poderosa. Será que algo conseguirá detê-la? A resposta, suspeito, ainda é "não". 

 

Martin Wolf é editor e principal comentarista econômico do Financial Times


quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Por que o Brasil não cresce? - Pedro Ferreira e Renato Fragelli (Valor)

As razões são óbvias, menos para os companheiros... 

Por que o Brasil não cresce?

Mesmo na melhor das últimas quatro décadas, o país cresceu muito pouco

Por Pedro Ferreira e Renato Fragelli 

Os principais canais de crescimento no Brasil, aumento da eficiência e investimento em capita humano, não têm entregado os resultados desejados. Mesmo investimentos em capital físico estão muito abaixo do necessário. As políticas que o governo tem anunciado não vão corrigir esses problemas. Ao contrário, podem agravá-los.

A transição de uma economia de baixa renda per capita (RPC) para uma de alta se dá por meio três canais principais. O primeiro é a transferência de fatores de produção existentes de setores tradicionais - agricultura de baixa produtividade, indústria artesanal, serviços básicos-em direção a setores mais modernos em que os fatores são empregados de forma mais produtiva. O segundo canal é a acumulação de mais fatores - capital humano via aumento da escolaridade, infraestrutura via investimento público, e capital físico via investimento privado. O terceiro canal é o aumento da produtividade total dos fatores (PTF) - isto é, a forma de interação dos fatores no processo produtivo - que reflete as regras do jogo econômico em vigor. É uma medida de eficiência econômica.

Um país que tenha já implantado plenamente esses três canais passará a ter como teto de crescimento o ritmo médio do progresso tecnológico mundial, que se confundirá internamente com o crescimento da PTF. O exemplo clássico é os EUA cuja RPC cresce, há décadas, em média 1,5% ao ano. Em anos de crise, a taxa pode ser até negativa, mas sempre retorna a esse padrão. No jargão dos economistas, diz-se que os EUA encontra-se sobre a fronteira de possibilidades de produção.

Em 1980, após o Brasil percorrer parcialmente os três canais descritos anteriormente, a RPC brasileira atingiu 29,5% da RPC americana. Mas entre 1981 e 2020, a taxa média de crescimento da RPC brasileira foi de apenas 0,9% ao ano. Como os EUA cresceram mais rápido do que o Brasil, em termos relativos a RPC brasileira caiu a apenas 23,3% da americana. Nesses 40 anos, a década de mais rápido crescimento foi a de 2000-2010, quando a RPC brasileira aumentou 2,5% ao ano.

A RPC relativa de Portugal, por exemplo, é igual a 55,2% da americana. Mesmo se o Brasil conseguisse manter permanentemente o crescimento de 2,5% ao ano, para que atingisse a mesma posição relativa aos EUA seriam precisos 88 anos! A conclusão é imediata: o Brasil cresceu muito pouco, mesmo na melhor das quatro últimas décadas.

As causas do baixo crescimento estão ligadas aos dois últimos canais listados acima. Na educação, houve aumento do número médio de anos de escolaridade, mas a qualidade do ensino pouco melhorou, conforme atestam os testes internacionais como o Pisa. O investimento em capital físico, que entre 1960 e 1980 situava em torno de 22% do PIB, hoje está na faixa de 17%. O investimento público, que no mesmo período manteve-se acima de 6% do PIB, atualmente encontra-se em torno de 2,5% apenas.

O baixo investimento decorre da percepção dos empresários de que investir não vale a pena, afinal o risco empresarial no país é elevado quando confrontado com o alto custo de capital. Além das incertezas inerentes a qualquer empreendimento implantado em outros países, aqui se enfrentam dificuldades adicionais inexistentes em países com melhores instituições. O sistema tributário caótico cria custos gerenciais enormes e favorece a corrupção. Uma legislação que estimula conflitos gera lentidão da Justiça. A criminalidade impune impõe custos com segurança. Más regulações e barreiras comerciais permitem a sobrevivência de firmas pouco produtivas e impede o crescimento das mais eficientes. Esses são apenas alguns exemplos que explicam por que a TFP brasileira é baixa.

Nesse ambiente hostil ao empreendedorismo, os empresários que prosperam não são os mais eficientes na produção, mas aqueles que melhor conseguem contornar as dificuldades que inexistem em outros países. São aqueles que, organizados em lobbies, vão a Brasília a fim de extorquir exceções às regras aplicáveis aos seus concorrentes, como visto recentemente na prorrogação da desoneração da folha salarial de setores bem articulados politicamente. Ou aqueles que compram facilidades vendidas por agentes públicos que as criam. Ou ainda aquelas empresas que, protegidas da concorrência e com acesso à fundos públicos subsidiados, não necessitam se modernizar para sobreviver. Vence quem segue a lei de Gerson.

Neste momento, a taxa de juro paga pelo Tesouro Nacional numa NTN-B de dez anos de prazo está em 5,6% ao ano acima da inflação. Poucos são os investimentos produtivos que, frente a um confronto objetivo entre retorno esperado e risco corrido, se revelam mais atraentes que o título público. Os juros são altos porque o governo precisa emitir muitos títulos a fim de financiar gastos muito elevados para o nível de RPC nacional.

Após a adoção do Teto de Gastos em 2016, a mesma taxa de juros chegou a apenas 3% ao ano acima da inflação, o que mostra que a percepção de equilíbrio fiscal sustentável derruba os juros de longo prazo. Nesse ambiente, conseguir um financiamento a juros subsidiados num banco público é uma estratégia mais eficaz do que esforçar-se para aumentar a eficiência produtiva.

O país não está estagnado à toa. Encarar a realidade resumida acima é o caminho. Alguns no governo já entenderam isso. Mas como o recentemente divulgado programa Nova Indústria Brasileira, o diagnóstico dominante é outro: mais proteção e mais subsídio. Consequentemente, menos eficiência e produtividade e crescimento no futuro.

Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGVe diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento.

Renato Fragelli Cardoso é professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (EPGE-FGV).

 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Democracia mantém a economia nos trilhos desde o Real, diz Persio Arida - entrevista (Valor)

Democracia mantém a economia nos trilhos desde o Real, diz Arida

Estabilidade perdura mesmo com políticas pouco responsáveis, afirma economista

Lu Aiko Otta/ Valor Econômico/27 de fevereiro de 2004

Com um ou outro momento preocupante, a estabilização de preços possibilitada pelo Plano Real perdura há 30 anos. Isso ocorre a despeito de políticas pouco responsáveis ocasionalmente adotadas no país, sobretudo nos anos anteriores às eleições.

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A força que mantém a economia nos trilhos é a democracia, na visão de Pérsio Arida - que, junto com André Lara Resende, foi autor do paper que deu origem ao Real, o chamado "Plano Larida". A estabilidade de preços tornou-se um bem da sociedade brasileira e os políticos que ousam ameaçá-la são punidos nas urnas, explica ele nesta entrevista ao Valor.

Arida também faz uma comparação entre o Real e os seis planos de estabilização fracassados.

Avaliando os dias de hoje, ele considera que o tripé macroeconômico implantado com o Real (câmbio flutuante, taxa de juros voltada a combater a inflação e superávit primário) está "um pouco manco", por causa dos recentes resultados negativos nas contas federais. No entanto, confia que o problema será resolvido. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Qual a importância da Unidade Real de Valor (URV)?

Pérsio Arida: A URV teve extraordinária importância porque foi o que possibilitou que o Plano Real fizesse uma transição relativamente suave de uma inflação muito alta, que beirava 30% ao mês, para uma inflação muito baixa. Mas o papel dela se esgotou nessa transição.

Valor: E qual a importância do Plano Real?

Arida: Eu acho que se desdobra em dois aspectos. Primeiro, foi um impulso inicial para uma série de reformas modernizantes. Ao longo dos oito anos seguintes, que foi o período do presidente Fernando Henrique Cardoso, acabaram os monopólios na exploração do petróleo e telecomunicações, foi aprovada Lei de Responsabilidade Fiscal, o novo regramento para concessões, a criação de agências reguladoras, as grandes privatizações. Tudo isso aconteceu naquele período. As bases de funcionamento do Brasil moderno, do ponto de vista econômico, foram plantadas durante os oito anos que se seguiram ao Plano Real. E sempre com a justificativa, correta, de que o Real, se não fosse acompanhado de reformas modernizantes, poderia ser posto a risco.

Valor: E o segundo significado?

Arida: É reforçar a autoestima do país. Mostra que quando há uma liderança política que entenda da natureza dos problemas e um bom time técnico, o Brasil faz coisas que não se imaginava serem possíveis. O Real é um plano que nunca havia sido feito antes, inteiramente original. E a liderança do Fernando Henrique também foi única. Era um político - portanto, capaz de conversar bem com o Senado, com a Câmara. Era um bom comunicador em termos de opinião pública e também era um intelectual, o que possibilitou que ele entendesse a dinâmica cio Plano Real, que não é simples, é revolucionária.

Valor: Qual a importância da Unidade Real de Valor (URV)?

Pérsio Arida: A URV teve extraordinária importância porque foi o que possibilitou que o Plano Real fizesse uma transição relativamente suave de uma inflação muito alta, que beirava 30% ao mês, para uma inflação muito baixa. Mas o papel dela se esgotou nessa transição.

Valor: E qual a importância do Plano Real?

Arida: Eu acho que se desdobra em dois aspectos. Primeiro, foi um impulso inicial para uma série de reformas modernizantes. Ao longo dos oito anos seguintes, que foi o período do presidente Fernando Henrique Cardoso, acabaram os monopólios na exploração do petróleo e telecomunicações, foi aprovada Lei de Responsabilidade Fiscal, o novo regramento para concessões, a criação de agências reguladoras, as grandes privatizações. Tudo isso aconteceu naquele período. As bases de funcionamento do Brasil moderno, do ponto de vista econômico, foram plantadas durante os oito anos que se seguiram ao Plano Real. E sempre com a justificativa, correta, de que o Real, se não fosse acompanhado de reformas modernizantes, poderia ser posto a risco.

Valor: E o segundo significado?

Arida: É reforçar a autoestima do país. Mostra que quando há uma liderança política que entenda da natureza dos problemas e um bom time técnico, o Brasil faz coisas que não se imaginava serem possíveis. O Real é um plano que nunca havia sido feito antes, inteiramente original. E a liderança do Fernando Henrique também foi única. Era um político - portanto, capaz de conversar bem com o Senado, com a Câmara. Era um bom comunicador em termos de opinião pública e também era um intelectual, o que possibilitou que ele entendesse a dinâmica cio Plano Real, que não é simples, é revolucionária.

Valor: O Real deu certo depois de seis tentativas fracassadas de estabilização da economia. Por quê?

Arida: Eu acho que tem uma diferença importante entre o primeiro plano [Cruzado, 1986], os planos seguintes e o último plano, o Real. O Plano Cruzado, que era um congelamento temporário de preços e salários, foi anunciado de surpresa e foi desvirtuado politicamente, porque deveria ter sido acompanhado por uma redução do déficit público, uma política monetária restritiva, mas na verdade nada disso pôde ser feito, porque tinha eleições à frente, em outubro. Foi um plano que teve uma popularidade instantânea, até porque vinha do sistema democrático.

Valor: Como assim?

Arida: A inflação foi de 12% a 200% ao ano sem que não tivesse nenhum plano de estabilização, porque estávamos na ditadura. Num governo democrático, quem consegue estabilizar preços será bem-sucedido nas umas. O Cruzado foi extraordinariamente popular, mas acabou virando um plano eleitoreiro, que falhou como plano, mas ficou como possibilidade no imaginário coletivo. Se olharmos os vários planos subsequentes até o Real, foram sempre motivados pela ideia de fazer um Cruzado que desse certo. Cruzado tinha gatilho salarial, vamos tirar o gatilho salarial. O Cruzado tinha liquidez excessiva, vamos tirar a liquidez excessiva. O Cruzado tinha taxa de juros baixas, vamos fazer plano de taxas juro muito altas. Juros altos foram o foco do Plano Verão, tirar a liquidez excessiva, o foco do plano Collor. Cada plano ia sendo feito buscando corrigir o que deu errado no Cruzado. Acontece que a partir do Cruzado houve uma dinâmica de preços muito diferente da que prevalecia antes.

Valor: O que aconteceu?

Arida: Antes, a dinâmica de preço era assim: se não acontecesse nada, a inflação deste mês era mais ou menos a inflação do mês anterior. Depois do Plano Cruzado, passou-se a uma dinâmica de expectativas. Todo mundo sabia que o Cruzado era popular. Os empresários também sabiam e achavam que era questão de tempo até haver outro plano semelhante. Então, começavam a subir os seus preços para que, quando esses fossem congelados, tivessem um lucro acumulado que lhes permitisse passar bem pelo congelamento. Fomos assim de congelamento em congelamento, quase como profecias que se autorrealizavam. Depois da última tentativa de ajuste dessa forma, que foi o Plano Collor 2, o país se cansou. Ficou claro que não iria haver um outro congelamento de preços, e nós, no Plano Real, deixamos isso muito claro o tempo todo. Então, essa dinâmica expectacional desapareceu, o que criou as condições para fazer o Plano Real.

Valor: O sucesso, depois de tantos fracassos. 

Arida: Sem dúvida. Mas não podemos ter uma visão ingênua sobre o sucesso. O sucesso de um plano de estabilização não pode ser julgado por três ou seis meses, mas por um período prolongado. O Real passou por vários momentos de risco. Por exemplo, a flutuação cambial em 1999, o déficit público crescente na época lulista. Mas passou bem por esses momentos.

Valor: Como resistiu?

Arida: Eu acho que o segredo aqui, de novo, é a dinâmica democrática. Uma estabilidade de preços é um valor do povo brasileiro. O governante sabe que, se der inflação, ele estará politicamente morto. Então, os políticos, toda vez que a inflação ameaça subir, deixam de lado os planos, digamos, eleitoreiros ou populistas, e tratam de fazer o necessário para combater a inflação. Isso faz com que exista, devido às eleições, um sistema de pressão sobre a casta política. O Brasil entrou em uma outra fase com a independência do Banco Central, mas, se olharmos historicamente, o Banco Central, desde o Plano Real, foi, de fato, independente, exceto por um ou outro momento. É mais um aspecto que mostra que os governantes sabiam que, se interferissem no Banco Central e a taxa de inflação subisse, seria muito oneroso politicamente.

Valor: É possível dizer que o Plano Real está consolidado?

Arida: Eu diria que, com o sistema democrático em funcionamento, existe o incentivo para os políticos manterem a inflação baixa. Então, eu hoje não vejo uma ameaça ao Real, porque o Banco Central é independente, e os políticos, se por algum motivo houver erros ou desvios de política econômica, vão tratar de fazer as correções necessárias até mesmo por autossobrevivência. É claro que sempre há o risco dos ciclos eleitorais, do governante fazer políticas irresponsáveis no ano da eleição porque a inflação demora um pouco para subir e, quando estiver mais alta, ele já estará eleito. Esse risco, como eu falei, tende a se autocorrigir: se o governo gastar demais no seu último ano para se reeleger, vai ter que gastar de menos no ano seguinte, porque se não a inflação o prejudicará, politicamente falando.

Valor: O sr. mencionou um conjunto de reformas que foram feitas no governo Fernando Henrique. Como avalia o quadro hoje?

Arida: O governo Fernando Henrique, ainda que não na partida, conseguiu implementar o chamado tripé macroeconômico, que é câmbio flutuante, taxa de juros voltada para combater a inflação e superávit fiscal. Nos primeiros anos lulistas, o tripé foi mantido. Mas depois, gradativamente, o superávit fiscal foi minguando. Hoje, temos déficit. O tripé está um pouco manco, porque tem dois pés no lugar, e o terceiro, mais ou menos. Mas eu creio que isso vai ser corrigido.