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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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domingo, 16 de março de 2025

Marcelo Guterman revisita o calote de Collor

 

35 anos do confisco

16 de março de 1990. Há exatos 35 anos, após a posse festiva do primeiro presidente eleito por voto popular desde a eleição de Jânio Quadros, em 1960, todos aguardavam a “bala de prata” que Collor tinha na agulha para matar o “tigre da inflação”.

Escaldados por nada menos do que 4 planos de estabilização de preços nos 4 anos anteriores (Cruzado, Cruzado 2, Bresser e Verão), os brasileiros sabiam que viria algum tipo de congelamento de preços. Por isso, os empresários correram para se proteger, remarcando os preços preventivamente. A inflação, que já vinha alta durante o melancólico fim do governo Sarney, explodiu no início de 1990 (vide gráfico). Atenção crianças, os números se referem à inflação MENSAL, não anual.

No final, o congelamento de preços veio, mas foi o de menos: durou apenas 45 dias, só para dar tempo de organizar a bagunça. Ao contrário do Cruzado, o Plano Collor tinha outra coluna vertebral: o confisco do dinheiro.

A ideia é um entendimento literal do monetarismo: a inflação é causada pelo excesso de dinheiro perseguindo poucos bens e serviços disponíveis. Assim, se não houver meio circulante suficiente, a inflação morre por asfixia. É mais ou menos como acreditar que Deus literalmente fez o mundo em 6 dias, e descansou no sétimo: entende-se a alegoria como uma descrição literal da realidade.

No caso do monetarismo tupiniquim, os idealizadores do Plano Collor viam o meio circulante como uma realidade em si, e não como a tradução de fenômenos micro e macroeconômicos. Acabar com a disponibilidade de moeda sem acabar com o fenômeno que, no final, exige a criação de mais moeda, é o equivalente a esvaziar a bacia e colocá-la de volta debaixo da torneira: será uma questão de tempo para que encha e transborde novamente. No Plano Collor, a alegoria trocou de lugar com a realidade.

O principal problema do Plano Collor, no entanto, não foi o diagnóstico incorreto do fenômeno inflacionário. Os sucessivos congelamentos anteriores também erraram no diagnóstico, mas seus efeitos no tempo desapareceram, restando apenas o folclore de um tempo ingênuo em que acreditávamos que as maquininhas de etiqueta de preços eram as grandes responsáveis pela carestia. Na verdade, se algum efeito de longo prazo houve, foi benéfico: depois dessas experiências, poucos brasileiros ainda acreditam que congelamento de preços resolve alguma coisa. Este foi, sem dúvida, um avanço civilizatório.

O grande problema do Plano Collor foi demonstrar que o governo pode fazer qualquer coisa impensável, inclusive confiscar a sua poupança. Fernando Collor, ao aprovar o plano, certamente não pensou no tipo de mensagem que estaria deixando para as gerações seguintes. Uma parte do prêmio que o governo é obrigado a pagar para emitir a sua dívida é justamente o receio de que, no futuro, alguém poderá fazer o mesmo. Afinal, por que não?

O Plano Collor tinha como objetivo “enxugar a liquidez” da economia. No entanto, indiretamente, significou um calote da dívida pública. 80% de todo o dinheiro aplicado no overnight e fundos de investimentos (que financiava o déficit público) ficou retido, e seria devolvido 18 meses depois, em 12 suaves prestações, corrigidas pela inflação mais 6% ao ano de juros. Tratava-se de um alongamento do prazo da dívida e mudança na remuneração, uma forma clássica de dar um calote.

Os que defendem a tese de que a dívida pública doméstica não pode ser objeto de calote, esquecem-se do Plano Collor, que fez exatamente isso. Collor decidiu trocar uma hiperinflação (que é o resultado de finanças públicas completamente fora de controle) por um calote. Ambos têm o mesmo efeito, reduzir a dívida pública impagável.

O Plano Collor foi acompanhado de medidas louváveis, eclipsadas que foram pelo confisco: extinção de 24 estatais, redução ou eliminação de impostos de importação, liberalização do câmbio, medidas gerais de redução do Estado. Collor foi um Milei on stereoids: além de adotar a mesma agenda liberalizante do argentino, fez o confisco. Talvez se tivesse começado somente pelo lado liberalizante, seu governo tivesse alguma chance de ter dado certo. Seu voluntarismo além de todas as medidas o derrotou.

É simbólico que o primeiro dia do primeiro presidente democraticamente eleito no Brasil em 30 anos tenha sido marcado por um calote. Nada representa mais a nossa atávica dificuldade em respeitar instituições.

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terça-feira, 4 de março de 2025

Um plebiscito resolve a questão do Donbas? - Marcelo Guterman

 Um plebiscito resolve a questão do Donbas?

Fronteiras entre os países sempre foram algo disputável. Afinal, o que define uma fronteira?

Durante séculos, fronteiras entre reinos e países foram estabelecidas e reestabelecidas, seja na base da negociação comercial, seja na base da guerra. Aqui mesmo na América do Sul, ainda temos disputas territoriais entre Venezuela e Suriname, entre Chile e Bolívia, entre Argentina e Grã-Bretanha e entre a Argentina e o Chile. Com exceção do área do Essequibo, todas as outras disputas envolvem pequenas áreas ou rios. Mas não deixam de ser disputas.

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O último grande redesenho de fronteiras se deu após a queda do muro de Berlim, quando as ex-repúblicas soviéticas se separaram da mãe Rússia e se tornaram países independentes. O desenho das fronteiras atuais da Ucrânia foram estabelecidas em seu decreto de independência, de agosto de 1991, e não foram contestados, à época, pela Rússia. Um referendo popular, em dezembro do mesmo ano, aprovou a independência. O mapa abaixo mostra o apoio à independência, que ganhou em todos as regiões, inclusive no Donbas e na Crimeia. Nesta última, o apoio foi mais apertado, com 54% de aprovação e baixo comparecimento às urnas, mas, mesmo assim, houve aprovação. Na região do Donbas, o apoio foi superior a 80%.

Há quem defenda que se faça um referendo na região do Donbas para que a população se manifeste. São duas questões aqui. A primeira se refere às condições objetivas para a realização de um referendo justo, em um território ocupado por forças russas. Efetivamente foi realizado um em 2014 e outro em 2022, mas seus resultados, como pode se imaginar, foram fortemente influenciados pela pressão dos rebeldes separatistas e das forças militares e paramilitares russas estacionadas na região.

A segunda questão, no entanto, é mais importante. Todo país tem suas divisões internas. As regiões se distinguem umas das outras de vários modos. Imagine se, a cada discordância, as regiões resolvessem se separar do país. Por exemplo, não seria surpreendente se a separação do São Paulo do restante do País fosse aprovada em um plebiscito no Estado. Seria legal? Ou tal tentativa de separação seria combatida militarmente pelo governo federal? Em 1932 não houve tentativa de separação, mas as forças federais entraram em guerra civil contra as forças paulistas por muito menos.

No caso da Ucrânia, houve um referendo fundacional, que estabeleceu as suas fronteiras. A partir daí, não pode haver mais discussão sobre este assunto, a não ser na base da força, como ocorreu na região da Crimeia e ocorre agora na região do Donbas. Os cidadãos do Donbas aprovaram a sua incorporação à Ucrânia na sua fundação, e agora fazem parte da unidade territorial ucraniana. Colocar em dúvida de maneira permanente as fronteiras de um país não é compatível com qualquer estabilidade institucional. Ainda mais, como sabemos, quando o grupo rebelde é alimentado pela força estrangeira que deseja incorporar o território.

Assim, a solução simplista "vamos fazer um plebiscito e seguir a vontade da população" já foi adotada em 1991, e não há motivo para que seja feito novamente. Ainda mais sob a mira de fuzis.

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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

A aristocracia do Judiciário defende os penduricalhos milionários e ataca a imprensa livre - Marcelo Guterman

 Barroso faz escola


Luís Roberto Barroso fez escola. Seguindo o exemplo do presidente do STF, que escreveu artigo rebatendo o editorial do Estadão, um desembargador usa o mesmo espaço para desancar a imprensa como um todo quanto ao uso de “fake news” para achincalhar o judiciário. O efeito, por sinal, foi o mesmo: demonstrar, com suas próprias palavras, que os magistrados vivem no mundo de Nárnia.

O desembargador começa por se insurgir contra o termo “penduricalhos”. A imprensa deveria usar, em seu lugar, “diferenças remuneratórias não satisfeitas no momento oportuno”, como se uma reportagem fosse uma peça jurídica, e como se a mudança da palavra mudasse a natureza da coisa. Trata-se de remuneração que faz com que os salários ultrapassem o teto do funcionalismo. O fato de terem amparo legal, como enfatiza o magistrado, só piora a situação. Afinal, como uma lei pode contrapor uma determinação constitucional?

Depois, o articulista quer nos convencer que os juízes trabalham tanto quanto um pedreiro debaixo de um sol de 40 graus. Deu até dó imaginar os magistrados largando suas famílias para decidir sobre os destinos dos brasileiros em suas lides legais. Dois meses de férias é pouco.

Além disso, os magistrados precisam ganhar tanto quanto os seus pares na iniciativa privada. Os seus pares bem-sucedidos, naturalmente, não os milhares de advogados de porta de cadeia que mal ganham para o seu próprio sustento. Afinal, entraram através de uma porta muito estreita, o concurso da magistratura, e só isso já lhes dá o direito quase divino de serem remunerados como os melhores. Como se a estabilidade no emprego não fizesse diferença alguma em termos de remuneração.

A seguir, na melhor linha de quebrar o termômetro, o articulista se insurge contra pesquisa que aponta a ineficiência do nosso judiciário. Somos tão maravilhosos, os métodos usados pela pesquisa e as pessoas ouvidas é que estão errados. Lembra as críticas ao índice de corrupção da Transparência Internacional.

Mas o desembargador guarda para o fim da festa o melhor vinho da sua defesa: uma ameaça de processo contra os jornais. Fico cá imaginando os magistrados julgando os jornais por críticas aos magistrados. Seria a cereja desse bolo indigesto.

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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

A grande ilusão do bitcoin: Bitcoin, a nova religião - Marcelo Guterman

 Bitcoin, a nova religião

A eleição de Donald Trump, entre outras consequências, mexeu com o mercado de criptomoedas. O recém-empossado presidente criou um grupo de trabalho de ativos digitais, e há expectativa de que o Tesouro americano possa, de alguma forma, dar suporte a este mercado.

Ao mesmo tempo, El Salvador, primeiro (e até o momento, único) país a adotar o bitcoin como moeda oficial, voltou atrás como parte de um acordo com o FMI. A partir deste mês, o bitcoin não terá mais curso forçado na república centro-americana.

O bitcoin tornou-se uma espécie de religião, com seus sacerdotes (os donos das corretoras) e seus seguidores fanáticos. Qualquer crítica que se faça à criptomoeda é encarada como uma heresia, uma tentativa de defesa da velha e falida ordem monetária internacional, que gira em torno das moedas “fiat”, manipuladas pelos bancos centrais. As criptomoedas seriam, por construção, imunes à inflação e, portanto, a solução pura e perfeita para manter íntegro o poder de compra da humanidade. Como toda religião, o objetivo é a purificação. No caso, do sistema monetário.

As criptomoedas são a materialização do sonho de John Lennon. Em sua mais famosa canção “Imagine”, o ex-Beatle pede para imaginar um mundo sem países. As criptos pretendem ser exatamente isso, uma moeda sem fronteiras, sem um Estado nacional por trás.

A moeda de Lennon é o esperanto das moedas. O esperanto foi uma língua criada para substituir todas as línguas, e acabar com o domínio que uma língua nacional opera sobre outras culturas. Não há cultura sem linguagem, e quem domina o idioma domina a cultura. O inglês e o dólar são instrumentos de poder, ainda que não seja um fenômeno unidirecional: o inglês e o dólar somente alcançaram o status atual porque os EUA detém o status de país mais poderoso do planeta. São realidades que se retroalimentam.

Mas, assim como o esperanto, o bitcoin não passa de uma construção artificial. Da mesma forma que o esperanto não tem o suporte de uma cultura, o bitcoin não tem o suporte de uma economia. Acima, afirmei que não há cultura sem uma linguagem. Da mesma forma, não há linguagem sem uma cultura. O esperanto pretendia ser a linguagem universal através de uma engenharia social artificial. Da mesma forma, não existe moeda sem o suporte de um sistema econômico.

Relembremos as três funções de uma moeda: 1) meio de troca, 2) unidade de conta (expressão dos preços das mercadorias na unidade monetária) e 3) reserva de valor. O bitcoin, assim como o ouro, tem somente a terceira função, reserva de valor. Mas isso não é o suficiente para que seja uma moeda. Imóveis também são reserva de valor, e nem por isso são moedas, a não ser em uma economia baseada em escambo, em que qualquer mercadoria se torna moeda. Quando chegamos neste ponto de maneira generalizada, é sinal de que o sistema econômico está disfuncional.

O sonho é que essa moeda sem Estados nacionais possa, algum dia, assumir as duas outras funções. Teríamos, então, um “mundo sem países”, como sonhado por Lennon, pelo menos no que se refere ao sistema monetário. Há alguma chance?

El Salvador voltou atrás em seu experimento. Não foi por falta de tentar. O governo criou uma carteira própria (um app) para facilitar a adoção da moeda, doou US$ 30 em bitcoins para cada habitante do país, e o Tesouro Nacional adquiriu 6.000 bitcoins ao longo do tempo para servir como lastro. Não foi o suficiente. As pessoas não adotaram a nova moeda, preferindo o bom e velho dólar. Por quê? Provavelmente porque, sendo um país pequeno e muito dependente dos Estados Unidos (as receitas em dólar remetidas por imigrantes que vivem no vizinho do Norte são uma parte relevante da renda do país), o valor do câmbio entre dólar e bitcoin é um fator determinante para a adoção da moeda. O problema é que a volatilidade deste câmbio é muito alta, impedindo que se use o bitcoin como meio de troca e unidade de conta. Por isso, a baixa adesão da população do país à inovação. A pá de cal foi a exigência do FMI de que o Tesouro Nacional se desfizesse dos bitcoins como condição para uma nova linha de crédito para o país. Os adeptos da religião bitconiana dirão que se tratou de uma reação do sistema. Assim é se assim lhe parece.

Mas, será que algum dia poderemos ter o bitcoin como moeda universal, suplantando as moedas nacionais? Façamos um exercício mental para entender como seria este mundo.

Como sabemos, há um número limitado de bitcoins, 21 milhões. Aliás, esta é a grande virtude apregoada pelos defensores da criptomoeda, a característica que evitaria o mal da inflação, instrumento utilizado para queimar dívida de governos perdulários. Pois bem. Temos 21 milhões de dinheiros, que irão atrás de um conjunto crescente de bens e serviços. Sim, porque o crescimento econômico nada mais é do que mais bens e serviços disponíveis ao longo do tempo. Como a base monetária em bitcoins é constante, só há uma direção para os preços desses bens e serviços: para baixo. Esta seria uma economia em permanente deflação, pois teríamos cada vez mais produtos e serviços para a mesma quantidade de dinheiro. Mesmo as taxas de juros precisariam ser negativas. Taxas positivas exigiriam o aumento da base monetária para pagar os juros.

E o que aconteceria com uma economia em eterna deflação? Recessão. A dinâmica do crescimento econômico exige aumento da base monetária, e sem este aumento, a única saída é a estagnação do crescimento. Como a população continua crescendo, haveria um empobrecimento geral. Talvez, com o início da queda da população global a partir da segunda metade desse século, essa experiência poderia dar certo. Seríamos um imenso Japão.

De qualquer modo, esse experimento mental não toca no principal problema da adoção do bitcoin como moeda, que é justamente aquilo que os adeptos da religião bitconiana mais condenam: a falta da discricionariedade dos Estados nacionais na administração de suas próprias moedas. Esse é um problema? Certamente. Mas a discricionariedade também é A virtude que torna possível o sistema monetário tal qual o conhecemos hoje. Para entender, precisamos voltar um pouco no tempo, mais precisamente para Bretton Woods.

Fim da Segunda Guerra, os vitoriosos se reúnem em um hotel na pequena cidade de Bretton Woods, New Hampshire, para desenhar um novo sistema financeiro internacional que evitasse os vícios que, supostamente, haviam levado o mundo para o buraco da Grande Recessão e, consequentemente, para uma nova guerra. Concluíram que os países não podiam ter liberdade para manipular suas moedas, e estabeleceram um sistema de câmbio fixo com lastro no ouro. Grosso modo, funcionava como se todas as moedas nacionais fossem lastreadas no bitcoin, com câmbio fixo.

Ao longo do tempo, obviamente, distorções começaram a surgir, dado que os países cresciam e se desenvolviam de maneira muito diferente entre si. Ao longo dos anos, os países foram desvalorizando as suas moedas para adequá-las às suas necessidades nacionais, até que, em 1971, Richard Nixon decidiu retirar os EUA do acordo de Bretton Woods, suspendendo a conversão automática dos dólares em ouro por um câmbio fixo. Era o fim do sistema monetário com lastro em ouro e o início da era das moedas fiduciárias, cujo único lastro é a confiança nos governos emissores. Um ponto fraco, obviamente.

Resta saber por que, afinal, os países decidiram trocar um sistema supostamente superior, que coordenava o caos das moedas nacionais, por um que depende da discricionariedade dos governos. A resposta é auto evidente: justamente porque as moedas nacionais respondem às necessidades e idiossincrasias únicas de cada país e seu povo. A moeda não é uma realidade estanque, divorciada da realidade política do país por onde circula. Na verdade, a moeda é a representação simbólica da atividade econômica do povo de um país. Esta atividade econômica responde a uma miríade de decisões políticas, tomadas nas instâncias de poder pactuadas pela sociedade e informadas pela cultura única de cada país. Em seu livro A Moeda e a Lei, o ex-presidente do Banco Central e um dos pais do Real, Gustavo Franco, faz um monumental apanhado da legislação que embasou os sistemas monetário e cambial ao longo da história brasileira. Parece papo de jurista, mas Franco consegue relacionar a lei com a realidade econômica de cada época, demonstrando como a moeda é expressão dos pactos políticos ao longo do tempo.

Assim, abrir mão da própria moeda significa abrir mão da soberania nacional, não no sentido patriótico e gasto do termo, mas no sentido mais profundo de autodeterminação de cada povo. A moeda é reflexo das decisões políticas de cada sociedade, para o bem e para o mal.

A ideia de ter uma moeda “perfeita”, imune a este tipo de influência, tem sua origem no desejo de um mundo tecnocraticamente perfeito, em que as decisões humanas não possam “estragar tudo”. Sociedades deste tipo são abstrações que costumam descambar para o totalitarismo quando descem para a realidade dos problemas humanos práticos.

Mas não seria possível um meio-termo? O Euro, por exemplo, é uma experiência interessante nesse sentido. A moeda europeia substituiu várias moedas nacionais, com uma instância tecnocrática independente e livre de pressões políticas, o Banco Central Europeu, que controla a base monetária por meio de uma taxa de juros única. Para que esse esquema funcione, uma premissa fundamental é que todos os países que adotam o Euro devem ter um determinado comportamento fiscal. O Euro funciona como um espartilho, que limita graus de liberdade política dos países. A Grécia, no início dos anos 2010, enfrentou justamente essa escolha: continuar com seu pacto político que exigia gastos muito superiores às suas receitas, ou enquadrar a sociedade grega nos moldes do Euro? A economia grega encolheu 25% ao optar pela segunda alternativa.

O bitcoin como moeda global seria como um grande Euro global, submetendo países com culturas completamente diferentes. Se o Euro, em uma região rica e homogênea como a Europa Ocidental, já enfrenta dificuldades, imagine uma moeda global. Não à toa, o Reino Unido, que nem do Euro fazia parte, decidiu sair da União Europeia, que também funciona como um espartilho que limita graus de liberdade da sociedade.

Mas o uso global do bitcoin nunca foi o objetivo da moeda, dizem os seguidores da religião bitconiana. A ideia é que sirva como uma moeda alternativa imune à inflação, que as pessoas possam usar tal como usam o dólar em países de moeda mais fraca. O problema dessa leitura do uso do bitcoin é evidente: voltamos à primeira casa do jogo, em que temos uma “moeda” cujo câmbio em relação às moedas fiduciárias é função somente dos loucos fluxos de compra e venda que vão e vêm sem nenhuma lógica fundamental, o que causa uma volatilidade que inibe o seu uso nas funções de meio de troca e unidade de conta. Em outras palavras, um bitcoin usado como moeda alternativa é uma contradição em termos, pois a própria volatilidade inerente à sua natureza descolada de qualquer realidade política e econômica impede o seu uso como moeda. A única alternativa teórica possível para que o bitcoin torne-se uma verdadeira moeda é a sua adoção universal, com as consequências vistas acima.

É bom esclarecer que este racional se aplica às criptomoedas, não à tecnologia blockchain na qual se baseiam. O blockchain é uma revolução que proporcionará vários avanços na tecnologia financeira, transformando as moedas nacionais em contratos inteligentes sem a necessidade de custodiantes centrais, o que deve proporcionar ganhos de produtividade e confiabilidade do sistema. Mas isso é muito diferente de criar uma nova moeda, pura e imaculada.

Três grandes razões sustentam as cotações do bitcoin e de outras criptomoedas: 1) a esperança de que sirva, assim como o ouro e imóveis, como uma reserva de valor para tempos difíceis, 2) a esperança de que, algum dia, a criptomoeda torne-se uma moeda de verdade, com o múnus de meio de troca e de unidade de conta e 3) a esperança de poder vender a criptomoeda mais à frente por um preço maior. A esperança #1 é bastante incerta. Não sabemos como as criptomoedas se comportariam em tempos realmente difíceis, como guerras, mas concedo que pode eventualmente funcionar. Com relação à esperança #2, do que vimos acima, espero ter deixado claro que se trata de uma esperança vã. Resta a esperança #3, que segue a lógica do jogo do mico preto.

Aproveitando o hype das criptomoedas que criou com a sua eleição, Donald Trump lançou uma criptomoeda, a $Trump, que chegou a atingir US$ 15 bi de valor de mercado no dia de sua posse, e depois perdeu dois terços do seu valor até o momento em que escrevo este artigo. Segundo empresas de análises de blockchain, estas negociações geraram US$ 100 milhões de comissões para as empresas que negociaram a criptomoeda. Os sacerdotes da nova religião são os únicos que podem ter certeza de que ganharão dinheiro com criptomoedas. Em dólares, que fique claro.

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terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

A tragédia do Centro Democrático: não existe, pois está esmagado pelo PT e pela caricatura da Direita - Marcelo Guterman

 O verdadeiro adversário do centro democrático

Sem palavras para descrever o artigo “A hora do centro democrático é agora”. Não tanto pelo conteúdo em si, mas pelos seus autores.

- Roberto Freire: presidente do PCB (depois PPS, depois Cidadania) desde 1992.

- Eduardo Jorge: um dos fundadores do PT, saiu do partido em 2005, após o escândalo do mensalão. Hoje está no PV.

- Gilberto Natalini: foi do PC do B até 1987, quando saiu para fundar o PSDB. Saiu em 2011 para o PV.

- Augusto de Franco: um dos fundadores do PT, foi seu dirigente até 1994.

Agora que você tem um mini CV dos autores, leia os trechos em destaque. Sim, tem um pequeno parágrafo sobre Bolsonaro, que parece mais um cumprimento de tabela para não dizerem que nada foi falado. Mas o grosso das invectivas que pretendem contrastar o tal “centro democrático” com os extremos é contra o PT.

Não sobrou pedra sobre pedra. Tem desde a falta de convicções democráticas do PT e de Lula da Silva, que usam o STF para compensar o fato de serem minoria e querem cercear a liberdade de expressão no país, passando pelo alinhamento com autocracias até a condenação pela falta de um programa econômico verdadeiramente liberal, o que inclui privatizações e disciplina fiscal. Sobrou até para o Poder Judiciário (a.k.a. STF), que estaria usurpando poderes e precisando de um “controle externo”.

A origem desses políticos está firmemente plantado na esquerda. Talvez por isso saibam, com um saber prático, que a verdadeira ameaça à democracia está no PT. Sim, Bolsonaro também é uma ameaça, está lá um parágrafo pró-forma, mas eles sabem que o ex-capitão é uma caricatura de golpista. A verdadeira ameaça está hoje aboletada em dois dos três edifícios da Praça dos 3 Poderes. Não à toa, os articulistas afirmam que “o regime político brasileiro não é uma democracia liberal ou plena”.

Quem quer que empunhe a bandeira do centro democrático deve ler com cuidado esse manifesto escrito por quem conhece a esquerda por dentro. Na eleição de 2022, cansei de escrever aqui que atacar Bolsonaro era uma estratégia fadada ao fracasso para romper a polarização, porque o campo da esquerda é do PT. O centro democrático precisa atacar o PT com muito mais contundência se quiser uma das vagas no 2o turno. Os petistas, obviamente, irão taxar genericamente quem o fizer de “bolsonarista” ou “fascista”. Foi o truque que usaram para construir a tal “Aliança Democrática”. Por isso, é preciso atacar também Bolsonaro, mas com muito menos foco. Esse artigo dá a medida correta.


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quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Falta de credibilidade de quem? A crise do IBGE e a perda de credibilidade do governo - Marcelo Guterman

 Falta de credibilidade de quem?

Editorial do Valor chama a atenção para uma novela que vem se desenvolvendo há meses, e que já ameaça se transformar na próxima grande crise do governo Lula: a credibilidade do IPCA junto à população.

Não que isso seja propriamente uma novidade. Alguns anos atrás, negociando um contrato de aluguel, pedi a troca do índice de reajuste de IGPM para IPCA. O corretor externou a sua desconfiança em relação a um índice “calculado pelo governo”, mas seguiu com o meu pedido junto ao proprietário, e o índice acabou sendo modificado. Nessa ocasião, pude perceber o custo de termos governos com pouca credibilidade ao longo de anos.

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Há uma falta generalizada de conhecimento de como os índices de inflação são calculados. Trata-se de médias calculadas em várias cidades do país, considerando uma cesta de consumo de referência. Só por muita coincidência o índice medirá a nossa inflação pessoal. Além disso, tendemos a prestar mais atenção aos preços que sobem do que aos preços que caem, reforçando a ideia de que a nossa inflação é maior do que a “oficial”.

Por tudo isso, quanto menos o IBGE estiver na ribalta, melhor. Trata-se de tema sensível, em que discussões públicas dificilmente resultam em boa coisa. Mas Lula, fiel à ideologia petista, apontou o tarefeiro Márcio Pochmann para liderar o instituto. Sua passagem pelo IPEA, entre 2007 e 2012, foi marcado pelas mesmas polêmicas que agora vemos no IBGE. Pode-se argumentar que a revolta dos técnicos é mero corporativismo contra iniciativas que podem fazer com que se reduza o escopo de seu trabalho, o que é verdade. Pouco importa. O fato é que tem barulho, uma especialidade de Pochmann, a última coisa de que o IBGE precisa, neste ou em qualquer momento.

Pessoalmente não tenho nenhuma desconfiança sobre o cálculo do IPCA. Trata-se de algo facilmente verificável, pois há vários outros índices sendo calculados por entidades privadas e que servem como checagem do índice oficial. Além disso, os próprios funcionários do IBGE denunciariam qualquer tentativa de manipulação, o que não ocorreu até o momento, apesar da desinteligência envolvendo Pochmann.

A questão, no entanto, não é essa. A questão é de percepção. O governo não tinha a intenção de impor um imposto sobre o PIX, mas um aperto do torniquete sobre essas transações foi o suficiente para que a história da “taxação do PIX” pegasse. Da mesma forma, não creio que o governo tenha a intenção de manipular índices. Mas o ruído em torno do IBGE é prato feito para esse tipo de especulação. Nesse sentido, acho que o título do editorial está errado. O correto seria dizer “Falta de credibilidade do governo traz risco para o IBGE”. Seria mais conforme à realidade do atual governo.

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