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quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

A ilusão de ótica de que uma meta de inflação mais alta traria os juros para patamares nais baixos - Marcelo Guterman

 Marcelo Guterman é um DEMOLIDOR de ilusões econômicas, não apenas entre jornalistas, mas entre os próprios economistas...

Ilusão de ótica

A jornalista Maria Clara do Prado, do Valor, junta-se ao coro daqueles que pensam que uma meta de 3% para a inflação é exageradamente baixa para o Brasil. Até o gestor Luís Stuhlberger, uma das estrelas da Faria Lima, afirmou outro dia que a maioria dos emergentes tem meta maior do que 3%, no que ele está redondamente enganado. Na verdade, a maioria dos emergentes tem meta igual ou menor que 3%, sendo as únicas exceções relevantes a África do Sul, a Índia, a Rússia e a Turquia. Nem preciso dizer que, desses quatro, dois não têm economias funcionais.

Mas voltemos ao artigo da jornalista. Confesso que fiquei confuso, porque ora Maria Clara parece defender uma meta maior, ora parece defender uma reforma de todo o sistema de metas, sem especificar o que seria colocado no lugar. Como essa segunda hipótese parece só um devaneio, vou concentrar-me na primeira, que é mais prática.

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Maria Clara afirma que o sistema de metas só teve sucesso 6 vezes ao longo da sua vigência no Brasil. Deve estar se referindo aos anos em que a inflação ficou abaixo da meta. De fato, isso aconteceu somente nos anos 2000, 2006, 2007, 2009, 2017 e 2018. Aqui, ela parece criticar o próprio sistema de metas, porque o nível da meta, em grande parte do tempo em que não foi cumprida, era acima dos 3% atuais. Se o sistema não conseguiu entregar inflação na meta com a meta em 4,50% ou acima, então o sistema não presta, não é mesmo?

Mas vamos, como disse acima, nos ater à hipótese de que a jornalista esteja defendendo uma meta mais alta. Ora, em todo esse tempo até 2019, quando a meta começou a ser lentamente reduzida, a inflação ficou acima da meta na maior parte do tempo. É o que podemos observar no gráfico 1.

Neste gráfico, mostro o IPCA, a meta, e uma média da diferença observada entre os dois. Essa média é calculada em três períodos: julho/2003 a junho/2011, julho/2011 a dezembro/2016 e janeiro/2017 a outubro/2024. O primeiro período refere-se ao mandato de Henrique Meirelles no BC, o segundo ao mandato de Alexandre Tombini e o terceiro aos mandatos de Ilan Goldfajn e Campos Neto. Defasei em 6 meses o início de cada período em relação à tomada de posse no BC de cada presidente porque a mudança de política monetária leva algum tempo para ter efeito.

A média da inflação no período Meirelles foi de 1,3% acima da meta, no período do Tombini foi de 2,6% e no período Goldfajn/Campos Neto, foi de 1,1%, mesmo com uma pandemia no meio. Note que a política monetária de Alexandre Tombini produziu uma inflação muito acima da meta MESMO COM UMA META MAIS ALTA, DE 4,5%. Ou seja, uma meta mais alta não serviu de nada para que o sistema tivesse mais sucesso.

Mas será que, pelo menos, Tombini conseguiu praticar uma taxa de juros mais baixa, sonho de consumo daqueles que clamam por uma meta mais baixa? É o que podemos observar no gráfico 2, em que mostro a taxa de juros real observada (Selic média menos o IPCA de 12 meses) calculada nos mesmos períodos do gráfico 1.

A média da taxa de juros real no período Meirelles foi de 10,7%, no período Tombini foi de 6,5% e no período Goldfajn/Campos Neto foi de 4,5%. Ou seja, tivemos menor inflação com menor taxa de juros real nesse último período. Ok, a taxa agora está mais alta, mas acho que já fiz meu ponto: Tombini, afinal de contas, não conseguiu praticar uma taxa de juros real mais baixa somente porque a meta era mais alta.

O argumento mais comum de quem defende uma revisão da meta é o alto grau de rigidez da economia (os salários, por exemplo, não podem ser reduzidos e o mercado de trabalho é muito engessado), os problemas fiscais e o grande grau de indexação da economia brasileira. Com relação a este último ponto, uma inflação maior perpetua o problema. Há quem tenha esperança de que uma mudança legislativa poderia, em uma canetada, acabar com a indexação de contratos. Trata-se de uma ilusão, porque os agentes econômicos vão arrumar uma forma de se defender da inflação. A única forma de acabar com a indexação é ter uma inflação decente por muito tempo. E 6,5% (topo da meta anterior) não é uma inflação decente.

Com relação à rigidez e aos problemas fiscais, a meta não tem nada a ver com isso. Vimos no gráfico 1 que, não importa qual seja a meta, não conseguimos cumpri-la. E esse não cumprimento é tanto pior quanto pior for a qualidade da política monetária. Aumentar a meta só fará com que a inflação nominal aumente, não conseguiremos cumpri-la de qualquer forma, exatamente por causa dos problemas estruturais apontados. No final do dia, teremos uma taxa nominal de juros e uma inflação maiores, com o mesmo nível de taxa de juros reais. O aumento da meta é só uma ilusão de ótica.

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sábado, 23 de novembro de 2024

O Euro não é o Real: a auteridade imposta à Grécia - Marcelo Guterman


 O Euro não é o Real

Fernando Gabeira defende, em seu artigo de hoje, que os cortes de gastos devem ser feitos no “andar de cima”, basicamente supersalários do funcionalismo público e subsídios a grandes empresas. Sem entrar no mérito da proposta do jornalista, em si boa e justa, atacar esses problemas proporcionaria um alívio de curto prazo e traria uma bem-vinda sensação de justiça, mas seria uma questão de tempo para termos o mesmo problema de volta, dado que as despesas obrigatórias e as vinculações constitucionais referem-se, basicamente, aos “gastos sociais”. Ou seja, sem mexer nisso, é questão de tempo para que tenhamos, novamente, o mesmo problema, qual seja, gastos obrigatórios crescendo acima da capacidade do PIB.

Gabeira relembra a saga da Grécia, e alega que os programas de austeridade fiscal foram colocados em cheque depois daquilo que o mercado financeiro, através do FMI e União Europeia, obrigou a Grécia a fazer. Não por outro motivo, um partido de esquerda radical, o Syriza, foi eleito em 2015 e reviu todas as políticas de austeridade, segundo o jornalista. O único problema dessa história contada por Fernando Gabeira é que ela não é verdadeira.

Eu detalho a saga da Grécia em um dos capítulos de meu livro Descomplicando o Economês. O problema da Grécia, em primeiro lugar, foi o de ter escondido sua real situação financeira através de subterfúgios contábeis. Sim, eles também tiveram suas “pedaladas contábeis”. Quando ocorreu a Grande Crise Financeira, com a quebra do setor de imóveis nos EUA em 2008, a água da piscina baixou e descobriu-se quem estava nadando pelado. Revelou-se, então, que a Grécia estava rodando um déficit fiscal da ordem de 14% do PIB, muito mais do que os 3% de limite imposto pelo tratado de Maastricht, que estabeleceu as bases do Euro. A Grécia havia adotado o Euro no ano 2000, e aderido às regras do tratado.

Em 2011, o país tinha duas alternativas à sua frente: ou levava a cabo um ajuste brutal de suas contas públicas para permanecer no Euro, ou voltava ao Dracma, que se desvalorizaria também de maneira brutal, queimando todas as suas dívidas e provocando uma inflação monstruosa para os gregos. Ambas as alternativas envolviam sofrimento para os cidadãos, não havia saída fácil. O governo grego optou por continuar no Euro, provocando uma recessão de 25% em 4 anos. Alguns vão dizer que os gregos ficaram 25% mais pobres. Eu digo que os gregos estavam artificialmente 25% mais ricos, e o corte do cheque especial só mostrou a realidade.

Do jeito que Gabeira coloca, parece que a austeridade foi adotada por uma espécie de sadismo do mercado financeiro. Não, foi uma imposição da realidade econômica. A Grécia aproveitou-se, durante uma década, para se endividar com as taxas de juros baixas proporcionadas pelo fato de emitir dívidas em Euro, uma moeda não inflacionária. Agiu como o playboy, filho do magnata, que usa o cartão de crédito do pai para viver loucamente. No caso, o pai da Grécia era a Alemanha. Como era um país pequeno, passou debaixo do radar durante vários anos, até ser descoberto. Se a Grécia tivesse que pagar suas próprias contas desde o início, o espaço para o déficit fiscal seria bem menor e bem mais caro.

Gabeira afirma que o Syriza foi eleito em 2015 como uma resposta a essa política de austeridade. Só esqueceu de dizer que o partido de esquerda manteve a disciplina fiscal e, talvez por isso, tenha perdido as eleições de 2019 para o Nova Democracia, o mesmo partido que havia implantado as medidas de austeridade em 2012. Afinal, se é para fazer a mesma coisa, pra que mudar, não é mesmo?

O jornalista diz que a situação do Brasil não é a mesma. Fato. Aqui temos o Real, não o Euro, e o nosso banco central fica em Brasília, não em Frankfurt. Aqui não temos que obedecer o duro Tratado de Maastricht, mas o muito mais malemolente Novo Arcabouço Fiscal. Essas diferenças fazem com que a pressão para adotar políticas austeras sejam muito menores. Afinal, a nossa moeda pode desvalorizar-se e a inflação decorrente vai fazer o serviço, o que não era uma alternativa para os gregos dentro do Euro. Temos a licença poética para discutirmos os males da austeridade, pois, no final, a inflação “resolverá” o problema da dívida.

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domingo, 29 de setembro de 2024

Marcelo Guterman ajuda a diplomacia brasileira resumindo o discurso de Netanyahu na AGNU

Marcelo Guterman dá uma ajudinha à diplomacia brasileira resumindo o discurso de Netanyahu na AGNU, quando a delegação do Brasil se retirou. Suponho que tenha sido para demonstrar insatisfação. Então, pode-se concluir que tenha experimentado satisfação com o discurso do presidente iraniano, e aceitará tranquilamente ouvir o discurso mentiroso dos russos, que estão massacrando civis inocentes da Ucrânia. PRA

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, discursou ontem na ONU. A delegação brasileira boicotou o discurso, retirando-se do plenário. Ou seja, não quis ouvir o que o chefe do Estado israelense tinha a dizer.

Vou aqui prestar um serviço aos diplomatas brasileiros, e resumir o discurso de Netanyahu que vocês perderam. Depois poderão dizer o que há de errado.

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Além de obviamente lembrar o atentado de 07/10, podemos resumir o discurso em uma ideia chave: Israel está lutando contra o Irã. Netanyahu lista as ofensivas que tiveram o apoio logístico do país dos aiatolás contra Israel:

- O ataque do Hamas em 07/10

- Os mais de 8 mil foguetes lançados pelo Hezbollah no norte do país desde 07/10

- Os mais de 250 ataques com drones dos houthis do Yemen

- Dúzias de ataques das milícias xiitas da Síria e do Iraque

- Os mais de 300 drones e mísseis lançados pelo próprio Irã

Netanyahu colocou a questão como uma luta entre dois polos, que ele chamou de “mapa da benção” e “mapa da maldição”. O mapa da benção inclui Israel e os países árabes dispostos a cooperar entre si para construir. O mapa da maldição inclui o Irã, Iraque, Síria e Yemen, que estão dispostos a ameaçar e destruir.

Sobre Gaza especificamente, Netanyahu não aceitará um governo do Hamas. Afirmou que está disposto a trabalhar por uma administração local civil em Gaza, desmilitarizada e desradicalizada. E avisou que a guerra contra o Hamas não terminará enquanto os reféns não forem libertados. Não acho que qualquer país do mundo faria diferente.

Com relação ao Hezbollah, Netanyahu perguntou qual país não reagiria se uma milícia forçasse 60 mil de seus cidadãos para fora de suas casas. Isso equivaleria a 1,2 milhão de brasileiros, uma cidade como Porto Alegre. Além disso, o fantasma do ataque de 07/10 ainda está muito fresco na memória, e Israel não tem porque ficar exposto a outro ataque como aquele, agora vindo do norte.

Por fim, Netanyahu reafirma o direito de Israel de existir e de se defender, o que, como ele mesmo diz, é a mesma coisa.

A única falha nesse discurso, ao meu ver, é a falta de alguma sinalização no sentido do estabelecimento de um estado palestino. O máximo que ele se permitiu foi a admissão de uma “administração civil” em Gaza. Nada sobre a Cisjordânia, onde colonos israelenses muitas vezes espalham o terror. Sem isso, o discurso de Netanyahu perde força, ao não endereçar uma aspiração legítima dos árabes da região.

De qualquer modo, a escolha que ele coloca entre o Irã e Israel é real. Os diplomatas brasileiros, ao se retirarem do plenário, deixaram clara a sua opção. O Irã foi aceito no BRICs e Lula sempre foi parceirão dos aiatolás. Diga-me com quem andas, e eu te direi quem és.

sábado, 9 de julho de 2022

O insustentável aumento do endividamento público no Brasil - Marcelo Guterman (OESP)

 O Brasil está se suicidando lentamente, com a ativa colaboração da sua classe política e uma conivência inacreditável das elites econômicas.

Paulo Roberto de Almeida 

Marcelo Guterman

O Estado de S. Paulo, 9/07/2022

Quando taxa de título público alcança o status de manchete principal de jornal não especializado em finanças, é que a coisa já passou do ponto faz tempo.

Para quem labuta no mercado financeiro, isso não é novidade. Venho falando do problema do financiamento da dívida pública há já algum tempo. É que essas coisas funcionam como a história do sapo na panela. Pra quem não conhece: para matar um sapo, não adianta colocá-lo em uma frigideira. O sapo sente a mudança de temperatura imediatamente e pula fora da panela. Mas se você colocar o sapo em uma panela em banho maria em fogo baixo, a temperatura vai aumentando aos poucos. O sapo vai se acostumando com as novas temperaturas até que chega em um determinado momento em que morre cozido sem reação. É o que podemos constatar no gráfico abaixo, que mostra a evolução da taxa real de juros dos títulos brasileiros mais longos: a taxa vai subindo, subindo, e vamos nos acostumando aos novos níveis, até que chegará um momento em que o sapo vai morrer, ou seja, faltará quem queira continuar a financiar a dívida a prazos longos, qualquer que seja a taxa. A manchete do Estadão é só um sinal de que o sapo está incomodado com a situação.

Apenas para ter uma ideia da situação: estamos hoje pagando 6% ao ano além da inflação para financiar nossa dívida em prazos mais longos. Considerando que nossa relação dívida/PIB é de 80%, a dívida nos custa quase 5% do PIB todo ano para ser rolada, além da inflação. Considerando um crescimento do PIB de 2% ao ano em termos reais, precisaríamos de um superávit primário de 3% ao ano somente para manter a relação dívida/PIB estável.

Como comparação, os títulos americanos pagam 1% acima da inflação. Com uma relação dívida/PIB de 130%, o custo de carregamento da dívida é de 1,3% do PIB. No Chile, os títulos pagam 3% acima da inflação. Com uma relação dívida/PIB de 35%, o carregamento da dívida custa aos chilenos cerca de 1% do PIB. Ou seja, se Estados Unidos e Chile crescerem 2% ao ano, sua relação dívida/PIB fica estável mesmo que façam déficits de 1% do PIB.

E por que chegamos neste ponto? Porque a regra do teto de gastos, que foi feita justamente para garantir que a dívida pública não entre em trajetória explosiva ao longo do tempo, foi, na prática, destruída por este governo, abrindo caminho para que o próximo também ignore qualquer regra de disciplina fiscal. Bastou a produção de um superávit primário no ano passado, em grande parte por conta da surpresa inflacionária, para que políticos de todas as cores achassem que já poderiam soltar o cinto, gastando o “dinheiro que sobrou”. O problema é que não sobrou nada, na verdade está faltando muito para controlar o crescimento da dívida pública. O resultado é taxa de juros mais alta, mais despesa financeira, menor crescimento econômico e maior dificuldade para trazer a inflação a níveis civilizados.

Muitos acusam essa visão de ser “financista”, de não olhar para as necessidades dos mais pobres. Não é verdade. Essa visão se preocupa não somente com os pobres de hoje, mas com todos os pobres do futuro. Se existe o nível de pobreza que vemos hoje, é porque, no passado, os que têm visão humanitária, não “financista”, não se preocuparam com os pobres do futuro. Na verdade, os grandes responsáveis pela pobreza de amanhã são justamente os que se dizem muito preocupados com os pobres de hoje. Com suas políticas imediatistas, estão fabricando a pobreza do amanhã. “Pobres, sempre os tereis”, diz Jesus em uma passagem. Aqui no Brasil, isso soa como uma profecia.