A eleição de Donald Trump, entre outras consequências, mexeu com o mercado de criptomoedas. O recém-empossado presidente criou um grupo de trabalho de ativos digitais, e há expectativa de que o Tesouro americano possa, de alguma forma, dar suporte a este mercado.
Ao mesmo tempo, El Salvador, primeiro (e até o momento, único) país a adotar o bitcoin como moeda oficial, voltou atrás como parte de um acordo com o FMI. A partir deste mês, o bitcoin não terá mais curso forçado na república centro-americana.
O bitcoin tornou-se uma espécie de religião, com seus sacerdotes (os donos das corretoras) e seus seguidores fanáticos. Qualquer crítica que se faça à criptomoeda é encarada como uma heresia, uma tentativa de defesa da velha e falida ordem monetária internacional, que gira em torno das moedas “fiat”, manipuladas pelos bancos centrais. As criptomoedas seriam, por construção, imunes à inflação e, portanto, a solução pura e perfeita para manter íntegro o poder de compra da humanidade. Como toda religião, o objetivo é a purificação. No caso, do sistema monetário.
As criptomoedas são a materialização do sonho de John Lennon. Em sua mais famosa canção “Imagine”, o ex-Beatle pede para imaginar um mundo sem países. As criptos pretendem ser exatamente isso, uma moeda sem fronteiras, sem um Estado nacional por trás.
A moeda de Lennon é o esperanto das moedas. O esperanto foi uma língua criada para substituir todas as línguas, e acabar com o domínio que uma língua nacional opera sobre outras culturas. Não há cultura sem linguagem, e quem domina o idioma domina a cultura. O inglês e o dólar são instrumentos de poder, ainda que não seja um fenômeno unidirecional: o inglês e o dólar somente alcançaram o status atual porque os EUA detém o status de país mais poderoso do planeta. São realidades que se retroalimentam.
Mas, assim como o esperanto, o bitcoin não passa de uma construção artificial. Da mesma forma que o esperanto não tem o suporte de uma cultura, o bitcoin não tem o suporte de uma economia. Acima, afirmei que não há cultura sem uma linguagem. Da mesma forma, não há linguagem sem uma cultura. O esperanto pretendia ser a linguagem universal através de uma engenharia social artificial. Da mesma forma, não existe moeda sem o suporte de um sistema econômico.
Relembremos as três funções de uma moeda: 1) meio de troca, 2) unidade de conta (expressão dos preços das mercadorias na unidade monetária) e 3) reserva de valor. O bitcoin, assim como o ouro, tem somente a terceira função, reserva de valor. Mas isso não é o suficiente para que seja uma moeda. Imóveis também são reserva de valor, e nem por isso são moedas, a não ser em uma economia baseada em escambo, em que qualquer mercadoria se torna moeda. Quando chegamos neste ponto de maneira generalizada, é sinal de que o sistema econômico está disfuncional.
O sonho é que essa moeda sem Estados nacionais possa, algum dia, assumir as duas outras funções. Teríamos, então, um “mundo sem países”, como sonhado por Lennon, pelo menos no que se refere ao sistema monetário. Há alguma chance?
El Salvador voltou atrás em seu experimento. Não foi por falta de tentar. O governo criou uma carteira própria (um app) para facilitar a adoção da moeda, doou US$ 30 em bitcoins para cada habitante do país, e o Tesouro Nacional adquiriu 6.000 bitcoins ao longo do tempo para servir como lastro. Não foi o suficiente. As pessoas não adotaram a nova moeda, preferindo o bom e velho dólar. Por quê? Provavelmente porque, sendo um país pequeno e muito dependente dos Estados Unidos (as receitas em dólar remetidas por imigrantes que vivem no vizinho do Norte são uma parte relevante da renda do país), o valor do câmbio entre dólar e bitcoin é um fator determinante para a adoção da moeda. O problema é que a volatilidade deste câmbio é muito alta, impedindo que se use o bitcoin como meio de troca e unidade de conta. Por isso, a baixa adesão da população do país à inovação. A pá de cal foi a exigência do FMI de que o Tesouro Nacional se desfizesse dos bitcoins como condição para uma nova linha de crédito para o país. Os adeptos da religião bitconiana dirão que se tratou de uma reação do sistema. Assim é se assim lhe parece.
Mas, será que algum dia poderemos ter o bitcoin como moeda universal, suplantando as moedas nacionais? Façamos um exercício mental para entender como seria este mundo.
Como sabemos, há um número limitado de bitcoins, 21 milhões. Aliás, esta é a grande virtude apregoada pelos defensores da criptomoeda, a característica que evitaria o mal da inflação, instrumento utilizado para queimar dívida de governos perdulários. Pois bem. Temos 21 milhões de dinheiros, que irão atrás de um conjunto crescente de bens e serviços. Sim, porque o crescimento econômico nada mais é do que mais bens e serviços disponíveis ao longo do tempo. Como a base monetária em bitcoins é constante, só há uma direção para os preços desses bens e serviços: para baixo. Esta seria uma economia em permanente deflação, pois teríamos cada vez mais produtos e serviços para a mesma quantidade de dinheiro. Mesmo as taxas de juros precisariam ser negativas. Taxas positivas exigiriam o aumento da base monetária para pagar os juros.
E o que aconteceria com uma economia em eterna deflação? Recessão. A dinâmica do crescimento econômico exige aumento da base monetária, e sem este aumento, a única saída é a estagnação do crescimento. Como a população continua crescendo, haveria um empobrecimento geral. Talvez, com o início da queda da população global a partir da segunda metade desse século, essa experiência poderia dar certo. Seríamos um imenso Japão.
De qualquer modo, esse experimento mental não toca no principal problema da adoção do bitcoin como moeda, que é justamente aquilo que os adeptos da religião bitconiana mais condenam: a falta da discricionariedade dos Estados nacionais na administração de suas próprias moedas. Esse é um problema? Certamente. Mas a discricionariedade também é A virtude que torna possível o sistema monetário tal qual o conhecemos hoje. Para entender, precisamos voltar um pouco no tempo, mais precisamente para Bretton Woods.
Fim da Segunda Guerra, os vitoriosos se reúnem em um hotel na pequena cidade de Bretton Woods, New Hampshire, para desenhar um novo sistema financeiro internacional que evitasse os vícios que, supostamente, haviam levado o mundo para o buraco da Grande Recessão e, consequentemente, para uma nova guerra. Concluíram que os países não podiam ter liberdade para manipular suas moedas, e estabeleceram um sistema de câmbio fixo com lastro no ouro. Grosso modo, funcionava como se todas as moedas nacionais fossem lastreadas no bitcoin, com câmbio fixo.
Ao longo do tempo, obviamente, distorções começaram a surgir, dado que os países cresciam e se desenvolviam de maneira muito diferente entre si. Ao longo dos anos, os países foram desvalorizando as suas moedas para adequá-las às suas necessidades nacionais, até que, em 1971, Richard Nixon decidiu retirar os EUA do acordo de Bretton Woods, suspendendo a conversão automática dos dólares em ouro por um câmbio fixo. Era o fim do sistema monetário com lastro em ouro e o início da era das moedas fiduciárias, cujo único lastro é a confiança nos governos emissores. Um ponto fraco, obviamente.
Resta saber por que, afinal, os países decidiram trocar um sistema supostamente superior, que coordenava o caos das moedas nacionais, por um que depende da discricionariedade dos governos. A resposta é auto evidente: justamente porque as moedas nacionais respondem às necessidades e idiossincrasias únicas de cada país e seu povo. A moeda não é uma realidade estanque, divorciada da realidade política do país por onde circula. Na verdade, a moeda é a representação simbólica da atividade econômica do povo de um país. Esta atividade econômica responde a uma miríade de decisões políticas, tomadas nas instâncias de poder pactuadas pela sociedade e informadas pela cultura única de cada país. Em seu livro A Moeda e a Lei, o ex-presidente do Banco Central e um dos pais do Real, Gustavo Franco, faz um monumental apanhado da legislação que embasou os sistemas monetário e cambial ao longo da história brasileira. Parece papo de jurista, mas Franco consegue relacionar a lei com a realidade econômica de cada época, demonstrando como a moeda é expressão dos pactos políticos ao longo do tempo.
Assim, abrir mão da própria moeda significa abrir mão da soberania nacional, não no sentido patriótico e gasto do termo, mas no sentido mais profundo de autodeterminação de cada povo. A moeda é reflexo das decisões políticas de cada sociedade, para o bem e para o mal.
A ideia de ter uma moeda “perfeita”, imune a este tipo de influência, tem sua origem no desejo de um mundo tecnocraticamente perfeito, em que as decisões humanas não possam “estragar tudo”. Sociedades deste tipo são abstrações que costumam descambar para o totalitarismo quando descem para a realidade dos problemas humanos práticos.
Mas não seria possível um meio-termo? O Euro, por exemplo, é uma experiência interessante nesse sentido. A moeda europeia substituiu várias moedas nacionais, com uma instância tecnocrática independente e livre de pressões políticas, o Banco Central Europeu, que controla a base monetária por meio de uma taxa de juros única. Para que esse esquema funcione, uma premissa fundamental é que todos os países que adotam o Euro devem ter um determinado comportamento fiscal. O Euro funciona como um espartilho, que limita graus de liberdade política dos países. A Grécia, no início dos anos 2010, enfrentou justamente essa escolha: continuar com seu pacto político que exigia gastos muito superiores às suas receitas, ou enquadrar a sociedade grega nos moldes do Euro? A economia grega encolheu 25% ao optar pela segunda alternativa.
O bitcoin como moeda global seria como um grande Euro global, submetendo países com culturas completamente diferentes. Se o Euro, em uma região rica e homogênea como a Europa Ocidental, já enfrenta dificuldades, imagine uma moeda global. Não à toa, o Reino Unido, que nem do Euro fazia parte, decidiu sair da União Europeia, que também funciona como um espartilho que limita graus de liberdade da sociedade.
Mas o uso global do bitcoin nunca foi o objetivo da moeda, dizem os seguidores da religião bitconiana. A ideia é que sirva como uma moeda alternativa imune à inflação, que as pessoas possam usar tal como usam o dólar em países de moeda mais fraca. O problema dessa leitura do uso do bitcoin é evidente: voltamos à primeira casa do jogo, em que temos uma “moeda” cujo câmbio em relação às moedas fiduciárias é função somente dos loucos fluxos de compra e venda que vão e vêm sem nenhuma lógica fundamental, o que causa uma volatilidade que inibe o seu uso nas funções de meio de troca e unidade de conta. Em outras palavras, um bitcoin usado como moeda alternativa é uma contradição em termos, pois a própria volatilidade inerente à sua natureza descolada de qualquer realidade política e econômica impede o seu uso como moeda. A única alternativa teórica possível para que o bitcoin torne-se uma verdadeira moeda é a sua adoção universal, com as consequências vistas acima.
É bom esclarecer que este racional se aplica às criptomoedas, não à tecnologia blockchain na qual se baseiam. O blockchain é uma revolução que proporcionará vários avanços na tecnologia financeira, transformando as moedas nacionais em contratos inteligentes sem a necessidade de custodiantes centrais, o que deve proporcionar ganhos de produtividade e confiabilidade do sistema. Mas isso é muito diferente de criar uma nova moeda, pura e imaculada.
Três grandes razões sustentam as cotações do bitcoin e de outras criptomoedas: 1) a esperança de que sirva, assim como o ouro e imóveis, como uma reserva de valor para tempos difíceis, 2) a esperança de que, algum dia, a criptomoeda torne-se uma moeda de verdade, com o múnus de meio de troca e de unidade de conta e 3) a esperança de poder vender a criptomoeda mais à frente por um preço maior. A esperança #1 é bastante incerta. Não sabemos como as criptomoedas se comportariam em tempos realmente difíceis, como guerras, mas concedo que pode eventualmente funcionar. Com relação à esperança #2, do que vimos acima, espero ter deixado claro que se trata de uma esperança vã. Resta a esperança #3, que segue a lógica do jogo do mico preto.
Aproveitando o hype das criptomoedas que criou com a sua eleição, Donald Trump lançou uma criptomoeda, a $Trump, que chegou a atingir US$ 15 bi de valor de mercado no dia de sua posse, e depois perdeu dois terços do seu valor até o momento em que escrevo este artigo. Segundo empresas de análises de blockchain, estas negociações geraram US$ 100 milhões de comissões para as empresas que negociaram a criptomoeda. Os sacerdotes da nova religião são os únicos que podem ter certeza de que ganharão dinheiro com criptomoedas. Em dólares, que fique claro.