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sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Thomas Friedman sobre a tragédia da guerra Hamas- Israel (NYT, Estadão)

 Transcrvo a partir de Carmen Lícia Palazzo:

Há mais de 20 anos acompanho as análises de THOMAS FRIEDMAN. 

Ele é, na minha modesta opinião, mas também na opinião de muitos que são bem mais competentes do que eu no tema, um grande especialista, respeitado tanto no dito Ocidente quanto em vários meios do Oriente Médio. Por isso compartilho seus artigos e recomendo sempre a leitura. 

Sim, o atentado terrorista do Hamas foi de uma barbárie assustadora, o que não impede que seja hora de refletir sobre todo o contexto e sobre o que virá no futuro, dependendo da ação de muitos atores. É assim que e faz análise e é por isso que os especialistas são MUITO, MUITÍSSIMO NECESSÁRIOS.

CLP

Da Guerra dos Seis Dias à Guerra das Seis Frentes em Israel

"Por Thomas Friedman

26/10/2023 | 20h00


Quem se importa com Israel deveria estar mais preocupado agora do que em qualquer outro momento desde 1967. Naquele ano, Israel derrotou os Exércitos de três Estados árabes — Egito, Síria e Jordânia — no conflito que ficou conhecido como Guerra dos Seis Dias. Hoje, quem olha com atenção percebe que Israel trava a Guerra das Seis Frentes.


Esta guerra é travada diretamente e por intermédio de atores não estatais, Estados-nação, redes sociais, movimentos ideológicos, comunidades da Cisjordânia e facções políticas israelenses — e é a guerra mais complexa que já cobri. Mas uma coisa está clara para mim: os israelenses não são capazes de vencer esta guerra em seis frentes sozinhos; eles só serão capazes de vencer se Israel — e os Estados Unidos — conseguirem reunir uma aliança global.


Desafortunadamente, Israel tem hoje um primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, e uma coalizão de governo que não pretendem nem são capazes de construir o fundamento necessário para sustentar essa aliança global. Esse fundamento é declarar o fim da expansão dos assentamentos coloniais de Israel na Cisjordânia e reformular as relações de Israel com a Autoridade Palestina, para que a entidade se torne uma parceira palestina legítima e crível, capaz de governar a Faixa de Gaza pós-Hamas e forjar uma solução maior de dois Estados incluindo a Cisjordânia.

Tanques israelenses e veículos blindados montados perto da Faixa de Gaza, no sul de Israel, no sábado, 21 de outubro de 2023.

Tanques israelenses e veículos blindados montados perto da Faixa de Gaza, no sul de Israel, no sábado, 21 de outubro de 2023.  Foto: Sergey Ponomarev / NYT


É estrategicamente e moralmente incoerente Israel pedir aos seus melhores aliados ajuda para buscar justiça em Gaza e ao mesmo tempo pedir-lhes que façam vista grossa enquanto o Estado judaico constrói um reino colonial na Cisjordânia com objetivo expresso de anexação.


Isso não vai funcionar. Israel não será capaz de produzir o tempo, a assistência financeira, a legitimidade, o parceiro palestino e os aliados globais que precisa para vencer esta guerra em seis frentes.


E todas as seis frentes estão neste momento à vista de todos.


Na primeira, Israel trava uma guerra em escala total contra o Hamas dentro e no entorno de Gaza, na qual, conforme podemos ver agora, o Hamas ainda detém tanta capacidade residual que conseguiu lançar um ataque anfíbio contra os israelenses na terça-feira e na quarta disparou foguetes de longo alcance contra as cidades portuárias de Eilat, no sul de Israel, e Haifa, no norte.


    Neste mundo do ‘nunca antes’, mais de tudo está acontecendo, e mais rápido. A geopolítica fragmentada e um ecossistema global abalado representam riscos existenciais para a humanidade 


É assustador ver quantos recursos o Hamas desviou para construir armas em vez de capital humano em Gaza — e quão eficazmente o grupo escondeu isso de Israel e do mundo. De fato é difícil não notar o contraste entre a evidente pobreza humana em Gaza e a riqueza em armamentos que o Hamas construiu e tem acionado.


O Hamas sonha há muito tempo com a unificação dos fronts em torno de Israel, regionalmente e globalmente. A estratégia de Israel sempre foi agir de maneiras que evitem isso — até que a atual coalizão de Netanyahu, de judeus ultraortodoxos e supremacistas, chegou ao poder em dezembro e começou a se comportar de maneiras que de fato ajudaram a fomentar a unificação de todos os inimigos de Israel.

De que maneiras? Os supremacistas judeus no gabinete de Netanyahu começaram imediatamente a desafiar o status quo do Monte do Templo, em Jerusalém, reverenciado por muçulmanos, que se referem ao local como Nobre Santuário, onde fica a Mesquita de Al-Aqsa.


O governo Netanyahu começou a movimentar-se para impor condições muito mais duras aos palestinos da Cisjordânia e de Gaza presos nas penitenciárias israelenses. E estabeleceu planos para uma enorme expansão nos assentamentos de Israel na Cisjordânia para impedir que um Estado palestino contíguo possa existir algum dia por lá. É a primeira vez que um governo israelense torna a anexação da Cisjordânia um objetivo declarado em seu pacto de coalizão.


Além disso tudo, os EUA pareciam próximos de forjar um acordo para a normalização das relações diplomáticas e comerciais entre Arábia Saudita e Israel — realização que coroaria o esforço de Netanyahu no sentido de provar que Israel pode ter relações normais com Estados árabes e muçulmanos sem ter de ceder nenhum centímetro aos palestinos.


O que nos leva à segunda frente: Israel contra o Irã e seus apoiadores — ou seja, o Hezbollah no Líbano e na Síria, milícias islamistas na Síria e no Iraque e a milícia houthi no Iêmen.


Todos os grupos lançaram, nos dias recentes, drones e foguetes contra Israel e forças dos EUA no Iraque e na Síria. Eu creio que o Irã — assim como o Hamas — considerou o esforço americano-israelense de normalização de relações entre Israel e Estados árabes-muçulmanos uma ameaça estratégica que teria isolado Teerã e seus aliados na região. Ao mesmo tempo, acredito que o Hezbollah passou a perceber que, se Israel aniquilar o Hamas, conforme declarou que fará, o grupo xiita libanês será o próximo. Portanto, o Hezbollah decidiu que, no mínimo, precisa abrir um segundo front de baixa intensidade contra Israel.

Uma foto tirada da cidade de Sderot, no sul de Israel, em 26 de outubro de 2023, mostra foguetes disparados da Faixa de Gaza em direção a Israel, em meio às contínuas batalhas entre Israel e o movimento palestino Hamas.

Uma foto tirada da cidade de Sderot, no sul de Israel, em 26 de outubro de 2023, mostra foguetes disparados da Faixa de Gaza em direção a Israel, em meio às contínuas batalhas entre Israel e o movimento palestino Hamas. Foto: JACK GUEZ / AFP


Como resultado, Israel foi forçado a retirar cerca de 130 mil civis das proximidades da fronteira norte, assim como dezenas de milhares de pessoas da região próxima à fronteira sudoeste, com Gaza. Esses deslocamentos colocam uma pressão enorme por moradia sobre o tesouro israelense.


A terceira frente é o universo das redes sociais e outras narrativas digitais sobre quem é bom ou mau. Quando o mundo torna-se interdependente, quando — graças a smartphones e redes sociais — nada permanece oculto e nós conseguimos ouvir uns aos outros sussurrar, a narrativa dominante adquire um valor estratégico verdadeiro.


Essa rede social ser manipulada com tanta facilidade pelo Hamas ao ponto do episódio de um míssil palestino que falhou e atingiu um hospital em Gaza ter tido a culpa atribuída a Israel é profundamente perturbador, porque essas narrativas moldam decisões de governos e políticos tanto quanto relações entre diretores-executivos e seus funcionários. Estejam avisados: se Israel invadir Gaza, corporações do mundo inteiro se verão diante de demandas em competição de seus empregados para denunciar Israel ou o Hamas.


    Por que Israel está agindo desta forma? Leia artigo de Thomas Friedman


    Essa guerra entre Israel e Hamas faz parte de uma escalada de loucura que vem ocorrendo nessa vizinhança, mas que se torna cada vez mais perigosa a cada ano 


A quarta frente é a luta intelectual-filosófica entre o movimento progressista internacional e Israel. Creio que alguns elementos desse movimento progressista, que, bem sei, é grande e diverso, perderam suas estribeiras morais sobre este tema. Por exemplo, eu vi numerosas manifestações em universidades americanas que essencialmente culpam Israel pela invasão horrenda do Hamas, argumentando que o grupo travou uma “luta anticolonial” legítima.


Esses manifestantes progressistas parecem acreditar que o Estado de Israel inteiro é uma empresa colonial — não apenas os assentamentos na Cisjordânia — e portanto o povo judeu não tem direito à autodeterminação nem à autodefesa em sua terra ancestral, seja dentro ou fora das fronteiras pré-1967.


E para uma comunidade intelectual aparentemente preocupada com nações que ocupam outras nações e lhes nega direito ao autogoverno, nós não vemos muitas manifestações progressistas contra a maior potência opressora no Oriente Médio hoje: o Irã.

O presidente iraniano, Ebrahim Raisi, ao centro, ouve o comandante da Guarda Revolucionária, general Hossein Salami, ao centro, à esquerda, enquanto analisa um desfile militar anual que marca o aniversário do início da guerra contra o Irã pelo ex-ditador iraquiano Saddam Hussein, em frente ao santuário do falecido fundador revolucionário Ayatollah Khomeini, nos arredores de Teerã, Irã, sexta-feira, 22 de setembro de 2023.

O presidente iraniano, Ebrahim Raisi, ao centro, ouve o comandante da Guarda Revolucionária, general Hossein Salami, ao centro, à esquerda, enquanto analisa um desfile militar anual que marca o aniversário do início da guerra contra o Irã pelo ex-ditador iraquiano Saddam Hussein, em frente ao santuário do falecido fundador revolucionário Ayatollah Khomeini, nos arredores de Teerã, Irã, sexta-feira, 22 de setembro de 2023.  Foto: Vahid Salemi / AP


Além de reprimir suas próprias mulheres em busca de mais liberdade de pensamento e vestimenta, Teerã controla efetivamente quatro Estados árabes — Líbano, Síria, Iêmen e Iraque — por meio de seus aliados. O Líbano, um país que conheço bem, há um ano não consegue eleger um novo presidente que não se curve constantemente aos desejos e interesses de Teerã. Infelizmente, libaneses independentes são incapazes de remover a influência do Irã de seu Parlamento e Executivo, que é exercida em grande medida através dos canos das armas do Hezbollah. O site Middle East Eye noticiou que, em 2014, o representante da cidade de Teerã no Parlamento iraniano Ali Reza Zakani gabou-se sobre a maneira que o Irã passou a controlar quatro capitais árabes: Bagdá, Damasco, Beirute e Sanaa, Iêmen.


Reduzir essa luta incrivelmente complexa de dois povos por uma mesma terra a uma guerra colonial é uma desonestidade intelectual. Ou, conforme afirmou o escritor israelense Yossi Klein Halevi no jornal Times of Israel na quarta-feira: “Colocar a culpa da ocupação e suas consequências totalmente em Israel é desprezar o histórico das ofertas de paz israelenses e da rejeição palestina. Rotular Israel como mais uma criação colonialista é distorcer a história singular do retorno de um povo arrancado de sua terra, em sua maioria refugiados de comunidades judaicas destruídas no Oriente Médio”.


Mas vejam o que mais é desonesto intelectualmente: comprar a narrativa da direita israelense favorável aos assentamentos, neste momento disseminada amplamente dentro de Israel, de que a violência de Hamas é tão selvagem que claramente não tem nada a ver com nada que os colonos tenham feito — portanto, não há problemas em erguer mais assentamentos.


Minha visão: trata-se de uma disputa territorial entre dois povos que reivindicam a mesma terra, que precisa ser dividida da maneira mais equitativa possível. Essa concessão mútua é o fundamento de qualquer sucesso contra o Hamas. Portanto, se você é favorável a uma solução de dois Estados, você é meu amigo e se você é contra uma solução de dois Estados, você não é meu amigo.


A quinta frente é dentro de Israel e dos territórios ocupados. Na Cisjordânia, colonos judeus de direita estão atacando palestinos e perturbando os esforços do Exército de Israel de manter o controle em colaboração com as forças de segurança da Autoridade Palestina (AP), liderada por Mahmoud Abbas. Nós temos de lembrar que a AP reconheceu o direito de Israel existir como parte dos Acordos de Oslo. Seria terrível que essa frente exploda em um confronto entre a AP e Israel, porque desse modo haveria pouca esperança para se obter ajuda da autoridade para governar Gaza.

A fumaça preta surge do leste da Cidade de Gaza, quinta-feira, 26 de outubro de 2023, após os ataques aéreos israelenses.

A fumaça preta surge do leste da Cidade de Gaza, quinta-feira, 26 de outubro de 2023, após os ataques aéreos israelenses.  Foto: Abed Khaled / AP


Mas também não haverá nenhuma esperança para isso se os palestinos na Cisjordânia e espalhados pelo mundo não insistirem na construção de uma Autoridade Palestina mais eficaz e sem corrupção. Faz tempo que isso é necessário — e não é apenas culpa de Israel isso não ter acontecido; os palestinos também colaboraram.


A sexta frente é dentro de Israel, principalmente entre seus cidadãos judeus. Essa frente está oculta momentaneamente, mas à espreita logo abaixo da superfície. É o confronto ocasionado pela estratégia permanente de Netanyahu na política doméstica: dividir para conquistar. Netanyahu construiu toda sua carreira política colocando grupos da sociedade israelense uns contra os outros, erodindo o tipo de coesão social que é essencial para vencer a guerra.


Seu governo levou essa estratégia ao extremo logo que assumiu, em dezembro, movimentando-se imediatamente para furtar da Suprema Corte israelense seu poder de revisar decisões do Executivo e do Legislativo. Nesse processo, Netanyahu levou dezenas de milhares de israelenses às ruas todos os sábados para proteger sua democracia e fez com que pilotos da Força Aérea e outros combatentes de elite suspendessem seus plantões de reservistas afirmando que não serviriam a um país que ruma para a ditadura. Seu governo dividiu e distraiu Israel e suas Forças Armadas exatamente na hora errada — se é que já houve uma hora boa.


    Os erros de cálculo dos líderes de Israel e de Gaza estão sendo revelados 


Como você vence uma guerra em seis frentes? Repito: somente com uma aliança de pessoas e nações que acreditam em valores democráticos e no direito de todos os povos à autodeterminação. Enquanto não produzir um governo capaz de gerar essa aliança, e a não ser que o faça, Israel não terá o tempo, os recursos, o parceiro palestino e a legitimidade que precisa para derrubar o Hamas em Gaza, estará lutando principalmente ao lado dos EUA como seu único aliado verdadeiro e sustentável.


E muito da força dessa aliança reside hoje em Joe Biden e no fato de que ele traz para esta crise um conjunto de princípios centrais e fundamentais a respeito do papel dos EUA no mundo: o certo contra o errado, a democracia contra a autocracia. Poderá demorar para termos novamente um presidente com esses instintos.


Em outras palavras, Biden criou capital de giro diplomático — que vem com um prazo limite — tanto para os israelenses quanto para a Autoridade Palestina. Ambos devem usá-lo sabiamente. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO"

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Quatro líderes e um mundo virado ao revés Israel , EUA, Rússia e China - Thomas L. Friedman (NYT, Estadão)

 Quatro líderes e um mundo virado ao revés

Israel EUA, Rússia e China

Thomas L. Friedman
The New York Times É colunista e ganhador de três prêmios Pulitzer
O Estado de S. Paulo, 6/10/2023

Desde o dia em que aprendí que, em 1947, Walter Lippmann popularizou o termo Guerra Fria para definir o conflito que emergia entre EUA e União Soviética, achei que seria legal poder batizar um período histórico. Agora que o pós-Guerra Fria acabou, o pós-pós-Guerra em que entramos tem de ganhar um nome. Então, aqui vai: é a era do "Isso não estava nos planos".

Eu sei, não é uma expressão fácil de articular - e não espero que cole. Mas ela é certeira. Eu tropecei nela na minha viagem recente à Ucrânia. Estava conversando com uma mãe ucraniana que me contava que sua vida social tinha se reduzido a jantares ocasionais com amigos, festas de aniversário "e funerais".

Depois de digitar a citação na minha coluna, acrescentei meu próprio comentário: "Isso não estava nos planos". Antes do ano passado, jovens ucranianos vinham desfrutando de acesso facilitado à União Européia, entrando em startups de tecnologia, pensando sobre fazer faculdade e decidindo se passavam férias na Itália ou na Espanha. Então, como um meteoro, a invasão russa virou as vidas deles de ponta cabeça da noite para o dia.

Aquela ucraniana não está só. Muitos planos de muita gente - e de muitos países - saíram completamente dos trilhos. Entramos na era do pós-pós-Guerra Fria, que tem pouco a prometer em comparação à prosperidade, à previsibilidade e às novas possibilidades do período pós-Guerra Fria, que abrangeu os 30 anos desde a queda do Muro de Berlim.

Há muitas razões para isso, mas nenhuma é mais importante do que o trabalho de quatro líderes cruciais com uma coisa em comum: acreditam que sua liderança é indispensável e estão dispostos a adotar medidas extremas para se manter no poder o máximo que puderem.

PODER. Estou falando de Vladimir Putin, Xi Jinping, Donald Trump e Binyamin Netanyahu. Esses quatro - cada um à sua maneira - criaram perturbações dentro e fora de seus países com base em seu interesse particular, em vez dos interesses de seus povos, e dificultaram a capacidade de suas nações funcionarem normalmente no presente e se planejarem sabiamente para o futuro.

Veja Putin. Ele começou a carreira como um tipo de reformador que estabilizou a Rússia pós-Yeltsin e coordenou um boom econômico graças aos preços do petróleo em elevação. Mas a renda com o petróleo começou a cair e, conforme descreve o acadêmico russo Leon Aron em seu próximo livro, Ridingthe Tiger: Vladimir Putirís Rússia and the Uses ofWar, Putin deu uma grande virada no começo de seu terceiro mandato como presidente, em 2012, após os maiores protestos contra seu governo irromperem em 100 cidades russas e sua economia empacar.

A solução de Putin? "Mudar a fundação da legitimidade de seu regime do progresso econômico para o patriotismo militarizado", disse Aron, colocando a culpa de todas as dificuldades no Ocidente e na expansão da Otan. No processo, o presidente russo transformou seu país em um forte sitiado, que, em sua mentalidade e propaganda, somente Putin é capaz de defender. Ele ter invadido a Ucrânia para restaurar a mítica Mãe-Pátria russa foi inevitável.

Os acontecimentos na China também têm se desdobrado de maneira bastante inesperada. Depois de se abrir e afrouxar controles internos constantemente desde 1978, tornando-se mais previsível, estável e próspera que em qualquer outro momento da história moderna, a China experimentou uma virada de quase 180 graus sob o presidente Xi: ele suprimiu o limite de mandatos - respeitado por seus antecessores para evitar a ascensão de um novo Mao Tsé-tung - e fez-se presidente indefinidamente.

Xi, aparentemente, acreditou que o Partido Comunista estava perdendo o controle e, portanto, reafirmou seu poder em todos os níveis sociais e empresariais ao mesmo tempo, o que eliminou qualquer rival.

Isso tomou a China um país mais fechado do que em qualquer momento desde os dias de Mao e desencadeou comentários de que o mundo pode já ter visto o auge da China em relação a potencial econômico, o que equivalería a um terremoto na economia global.

Certamente não estava nos meus planos acabar escrevendo, depois de quase uma vida inteira acompanhando conflitos de Israel com inimigos externos, que a maior ameaça à democracia judaica hoje é um inimigo interno - um golpe no Judiciário liderado por Netanyahu que está fragmentando a sociedade e as Forças Armadas de Israel.

O ex-diretor-geral do ministério israelense da Defesa Dan Harel afirmou, em um comício pró-democracia em Tel-Aviv, na semana passada: "Eu nunca vi nossa segurança nacional num estado tão ruim" e houve "dano às unidades da reserva de formações essenciais das Forças Armadas, o que reduziu prontidão e capacidade operacional".

E este problema não é pequeno para os EUA. Ao longo dos últimos 50 anos, o Estado de Israel tem sido tanto um aliado crucial quanto, de fato, uma base avançada na região em que Washington projetou poder sem usar tropas americanas.

Israel destruiu tentativas incipientes de Iraque e Síria se tornarem potências nucleares e é o maior contrapeso atualmente à expansão do poder do Irã sobre toda a região. Mas, se tivermos mais três anos desse governo extremista de Netanyahu, com sua pretensão de anexar a Cisjordânia e governar os palestinos que habitam o território com um sistema à la apartheid, o Estado judaico poderá se tornar uma grande fonte de instabilidade, não de estabilidade.

E por quê? Em um recente perfil de Bibi no Times, Ruth Margalit citou Ze'ev Elkin, um ex-ministro do gabinete de Netanyahu, do Likud, descrevendo o primeiro-ministro da seguinte forma: "Ele começou com uma visão de mundo que dizia: 'Eu sou o melhor líder para Israel neste momento', que gradualmente se transformou numa visão de mundo que diz: 'A pior coisa que pode acontecer para Israel é eu parar de liderar o país, e portanto minha sobrevivência justifica qualquer coisa'."

PILAR. Nem é preciso dizer, depois de testemunhar o esforço de Trump para reverter a eleição de 2020 inspirando uma turba a invadir o Capitólio e ver esse mesmo homem se tomar o principal pré-candidato republicano à presidência em 2024, que a nossa próxima eleição será uma das mais importantes de todos os tempos - para que não seja a última. Isso não estava nos planos.

O denominador comum que une esses quatro líderes é que todos eles quebraram as regras do jogo em seus países por uma razão bastante familiar: permanecer no poder. Putin também iniciou uma guerra no exterior com o mesmo objetivo. E seus sistemas locais - a elite russa, o Partido Comunista Chinês, o eleitorado israelense e o Partido Republicano - não foram capazes de refreá-los.

Mas também existem diferenças importantes entre eles. Netanyahu e Trump enfrentam resistência em suas democracias, onde os eleitores ainda podem expulsar ou impedir ambos - e nenhum deles começou uma guerra.

Xi é um autocrata, mas tem uma agenda para melhorar a vida de seu povo e planeja dominar grandes indústrias do século 21, da biotecnologia à inteligência artificial. Mas seu governo, cada vez mais linha-dura, poderá ser exatamente o que impedirá a China de chegar lá, principalmente porque esse punho de ferro ocasiona fuga de cérebros.

Putin não passa de um chefão mafioso disfarçado de presidente. Ele será lembrado por transformar a Rússia da potência científica, que colocou o primeiro satélite em órbita, em 1957, em um país incapaz de fabricar um carro, um relógio ou uma torradeira que qualquer pessoa fora do país compraria. Putin teve de recorrer à Coréia do Norte para mendigar ajuda para seu Exército arrasado na Ucrânia.

Trump, em última instância, é o mais perigoso - e por uma simples razão: quando o mundo fica tão caótico assim e países tão importantes contrariam os planos, o restante depende dos EUA para assumir a liderança, conter os problemas e opor-se aos causadores de problemas. Mas Trump prefere ignorar problemas e louvar os criadores de problemas. É isso que torna a perspectiva de outra presidência sua tão assustadora, insensata e inconcebível.

Porque os EUA ainda são o pilar do mundo. Nem sempre fazem isso sabiamente, mas se parar completamente de fazê-lo, cuidado. Dado o que já está acontecendo nesses três outros importantes países, se os EUA vacilarem, nascerá um mundo no qual ninguém será capaz de fazer nenhum plano. Haverá um nome fácil para esse período: "Era da Desordem".

TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Se os EUA vacilarem, nascerá um mundo incapaz de fazer planos. Será a 'Era da desordem'

sábado, 23 de setembro de 2023

Tom Friedman visita a Ucrânia (NYT)

 EM VISITA A KIEV 

Thomas Friedman

The New York Times,18/09/2023

Em visita a Kiev, semana passada, na minha primeira viagem à Ucrânia desde a invasão de Vladimir Putin, em fevereiro de 2022, eu tentei fazer meus exercícios de todas as manhãs caminhando nos arredores do Mosteiro de São Miguel das Cúpulas Douradas. Sua serenidade, porém, tem sido perturbada pela exibição destoante de blindados de transporte de tropas e tanques russos destruídos. Durante minhas caminhadas, eu meti a cabeça e olhei dentro desses cascos arrebentados por foguetes imaginando a morte terrível que os soldados russos que operavam os veículos tiveram.

Mas o choque dessa massa retorcida de aço enferrujando ao redor desse grandioso e esbranquiçado edifício evocou-me uma imagem diferente à mente: de um meteoro.

Parecia que um meteoro gigante tinha caído do céu, desfazendo a vida com a conhecíamos — quase oito décadas sem uma guerra entre “grandes potências” na Europa, um continente no qual séculos de invasões e conquistas cederam caminho para segurança e prosperidade. Agora esses escombros feiosos estão entre nós, fumegando — e nós, tanto na Ucrânia quanto na comunidade internacional, estamos com dificuldades para encontrar uma maneira de lidar com isso.

Quase todos os ucranianos com que conversei em Kiev estão ao mesmo tempo exaustos com a guerra e apaixonadamente determinados a recuperar cada centímetro de território ocupado pela Rússia — mas ninguém tem respostas claras a respeito do caminho adiante nem sobre as dolorosas contrapartidas à espera, apenas certeza de que a derrota significaria o fim do sonho democrático da Ucrânia e o fim da era pós-2.ª Guerra que produziu uma Europa mais integrada e livre do que jamais havia ocorrido em sua história.

O que Putin está fazendo na Ucrânia não é apenas irresponsável, não é apenas uma guerra de escolha, não é apenas uma invasão que se distingue pelo exagero, desonestidade, imoralidade e incompetência que lhe é peculiar, tudo isso envolto num emaranhado de mentiras. O que Putin está fazendo é perverso. Ele vomitou uma variedade de justificativas — um dia estava removendo um regime nazista no poder em Kiev, depois impedindo uma expansão da Otan e então repelindo uma invasão cultural do Ocidente — para o que foi, em última instância, um devaneio pessoal que requer neste momento que seu Exército de superpotência peça ajuda à Coreia do Norte. É como se o maior banco da cidade fosse pedir empréstimo em uma casa de penhores local. Eis no que deu aquela virilidade descamisada de Putin.

O que é tão perverso — além da morte, da dor, do trauma e da destruição que ele infligiu sobre tantos ucranianos — é que num momento em que mudanças climáticas, fome, crises sanitárias e tantas outras aflições acometem o Planeta Terra, a última coisa que a humanidade precisava era destinar tanta atenção, tanta energia colaborativa, tanto dinheiro e tantas vidas para responder à guerra de Putin com intenção de transformar a Ucrânia novamente uma colônia russa.

Ultimamente Putin nem sequer tem se incomodado em justificar a guerra — talvez por até ele mesmo estar constrangido demais para pronunciar em voz alta o niilismo que suas ações transparecem: já que eu não consigo possuir a Ucrânia, farei o que puder para que ninguém mais possa tê-la.

“Não se trata de uma guerra em que o agressor tem alguma visão, algum projeto para o futuro. Em vez disso, ao contrário, para eles tudo é obscuro, sem forma, e a única coisa que importa é a força”, notou o historiador Timothy Snyder, de Yale, em um painel do qual participamos em uma conferência em Kiev, no fim de semana passado.

Estar na cidade foi esclarecedor para mim em três aspectos. Eu entendi ainda melhor o quão doentia e perturbadora esta invasão russa é. Entendi ainda melhor como será difícil — talvez até impossível — para os ucranianos expulsarem o Exército de Putin de cada centímetro de seu território. Acima de tudo, talvez, eu entendi ainda melhor algo que o ex-conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos Zbigniew Brzezinski observou quase 30 anos atrás: “Sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império; mas com a Ucrânia cooptada e então subordinada, a Rússia torna-se automaticamente um império”.

O comandante da unidade de assalto da 3ª Brigada de Assalto, que atende pelo nome de "Fedia", passa por corpos de soldados russos mortos na linha de frente a caminho de Andriivka, região de Donetsk, Ucrânia

O comandante da unidade de assalto da 3ª Brigada de Assalto, que atende pelo nome de "Fedia", passa por corpos de soldados russos mortos na linha de frente a caminho de Andriivka, região de Donetsk, Ucrânia Foto: Alex Babenko / AP

Estados Unidos

A maioria dos americanos não sabe muita coisa a respeito da Ucrânia, mas eu afirmo o seguinte sem nenhuma hipérbole: a Ucrânia é um país decisivo para o Ocidente dependendo do desfecho desta guerra, para o bem ou para o mal. A integração da Ucrânia à União Europeia e à Otan algum dia constituirá uma mudança de equilíbrio de poder que poderá se equiparar à queda do Muro de Berlim e à unificação da Alemanha. A Ucrânia é um país com capital humano, recursos agrícolas e recursos naturais impressionantes — “mãos, cérebros e grãos”, conforme costumam dizer investidores ocidentais em Kiev. Sua integração plena à segurança democrática da Europa e sua arquitetura econômica seria sentida em Moscou e Pequim.

Putin sabe disso. Sua guerra, na minha visão, nunca foi primeiramente sobre combater a expansão da Otan, sempre foi muito mais sobre impedir a Ucrânia eslava de aderir à União Europeia e se tornar um exemplo bem-sucedido de contraposição à eslava e criminosa autocracia de Putin. A expansão da Otan é amiga de Putin — permite-lhe justificar uma militarização da sociedade russa e apresentar a si mesmo como guardião indispensável da força russa. A expansão da UE para a Ucrânia é uma ameaça mortal — expõe o putinismo como fonte da fraqueza russa. E todos os ucranianos com que conversei, unanimemente, parecem entender que seu povo e a Europa estão unidos em um momento histórico contra o putinismo — um momento, contudo, que não pode ser fortuito sem a firmeza dos EUA. Por este motivo, as perguntas mais frequentes — e afitas — que ouvi durante minha visita foram variações de, “Você acha que Trump, o amigo de Putin, pode virar presidente outra vez?”.

Basta olhar nos olhos dos soldados ucranianos que voltam do front ou conversar com pais e mães nas ruas de Kiev para despir-se de qualquer ilusão a respeito do equilíbrio moral desta guerra. Eu estive somente três dias na Ucrânia — muito menos que meus colegas do Times e outros correspondentes de guerra que têm narrado testemunhos marcantes dos combates e sofrimentos. Mas minhas interações relativamente breves fizeram ressuscitar em mim as imagens que nós vemos de cidades e vilarejos arruinados por bombas no leste da Ucrânia e as constatações horripilantes sobre as quais lemos das Nações Unidas documentando casos em que crianças foram “estupradas, torturadas e confinadas ilegalmente” pelos invasores russos.

Trata-se do caso mais óbvio do certo contra o errado, do bem contra o mal em relações internacionais desde o fim da 2.ª Guerra.

Quanto mais nos aproximamos do atual conflito, porém, e pensamos sobre como resolvê-lo, aquele balancete preto e branco, nu e cru de equilíbrio moral não oferece nenhum mapa do caminho suave para alguma solução.

O que define um desfecho justo é claro como o dia. É uma Ucrânia inteira e livre — com reparações pagas pela Rússia. Mas não é completamente claro quanto dessa justiça é alcançável — e a que preço — ou se algum acordo sujo será a opção menos pior. E se assim suceder, que tipo de acordo, quão sujo, quando e garantido por quem?

Em outras palavras, no instante que abandonarmos o ordenamento jurídico nesta guerra — e entrarmos no campo da realpolitik diplomática — todo o quadro deixa de ser preto ou branco e se funde em diferentes tons de cinza. Porque o criminoso ainda é poderoso e tem amigos — e, portanto, voz. A Ucrânia também tem bastante amigos comprometidos a ajudar sua luta por quanto tempo ela quiser — até o “tempo que ela quiser” se tornar longo demais em Washington e outras capitais ocidentais.

É muito difícil impedir um líder desavergonhado e sem consciência. Na terça-feira, Putin afirmou que as 91 acusações criminais registradas contra Donald Trump em quatro jurisdições diferentes dos EUA representam a “perseguição de um rival político por motivos políticos” e evidenciam “a podridão do sistema político americano, que não pode ter a pretensão de ensinar democracia para os outros”. O salão desatou em aplausos para um líder reconhecido por colocar veneno na cueca de um opositor, explodir um avião com um rival dentro e “ensinar democracia” a dissidentes presos em campos de trabalho na Sibéria.

A falta de vergonha é de tirar o fôlego. E ainda que sua súplica à Coreia do Norte por ajuda militar seja patética, o fato dele estar disposto a pedir enfatiza que ele tem intenção de continuar sua guerra até conseguir um pedaço da Ucrânia que possa ostentar como um sucesso que lhe guarde as aparências."


quarta-feira, 30 de agosto de 2023

O tamanho da crise econômica da China - Paul Krugman (NYT, OESP)

O Brasil seria mais impactado por uma crise chinesa do que os EUA (pouco) ou o Japão e a Alemanha, que vendem muito para a China. Ou seja, o Brasil é um perdedor se a China entrar em recessão. 

O tamanho da crise econômica da China
Paul Krugman

O Estado de S. Paulo | Internacional
30 de agosto de 2023
Paul Krugman 
É colunista e ganhador do prêmio Nobel de Economia de 2008
The New York Times

Graças à baixa exposição da economia dos EUA, é difícil que problemas chineses se tornem globais

O efeito da crise seria maior em países que vendem mais para a China, como Alemanha e Japão

A s agruras econômicas dos anos pós-pandêmicos têm ocasionado intensos debates intelectuais e sobre políticas. Algo com que quase todos concordam, porém, é que a crise póscovid se assemelha pouco à crise financeira de 2008. Mas a China – segunda maior economia do planeta – parece balançar à beira de uma crise muito parecida.

Eu não confio no meu próprio entendimento sobre a China para julgar se o país vive seu momento Minsky, o ponto em que todos de repente se dão conta de que uma dívida insustentável é, de fato, insustentável. E, de fato, duvido que alguém ? incluindo as autoridades chinesas ? saiba responder a essa questão.

Mas acho que somos capazes de responder a uma pergunta mais condicional: se a China realmente passa por uma crise em estilo 2008, ela transbordará para o restante do mundo? E a resposta é clara: não. Por maior que seja a economia chinesa, os EUA estão pouco expostos aos problemas chineses. Antes de chegar aí, contudo, falemos sobre por que a China de 2023 se assemelha às economias americana e europeia de 2008.

BOLHA. A crise de 2008 foi ocasionada pelo estouro de uma bolha imobiliária transatlântica. Os efeitos foram amplificados por perturbações financeiras, especialmente o colapso dos ditos "shadow banks" – instituições que agiam clandestinamente como bancos, criando riscos de uma corrida bancária, mas prescindindo de regulamentações e de redes de segurança.

E agora chega a China, com um setor imobiliário ainda mais inchado que o dos países ocidentais em 2008. A China também tem um atribulado setor de "shadow banking", além de problemas peculiares, como dívidas enormes de governos locais.

A boa notícia é que a China não é a Argentina ou a Grécia, que deviam quantias imensas a credores estrangeiros. A dívida em questão aqui é de dinheiro que a China deve para si mesma. E deveria ser possível, em princípio, para o governo nacional resolver a crise por meio de alguma combinação entre resgates de devedores e abatimentos para credores.

Mas o governo da China tem competência para gerir o tipo de reestruturação financeira? As autoridades chinesas têm determinação ou clareza intelectual para fazer o que é necessário? Eu me preocupo especialmente com a segunda questão.

A China precisa substituir o investimento imobiliário insustentável por maior demanda de consumo. Mas alguns relatos sugerem que autoridades chinesas mais graduadas continuam suspeitas em relação a gastos de consumo "supérfluos" e resistem à ideia de "dar poder para os indivíduos tomarem mais decisões a respeito de como gastar seu dinheiro".

E não é nada tranquilizador o fato de as autoridades chinesas estarem respondendo à possível crise pressionando os bancos para emprestar mais, basicamente continuando a política que levou a China à situação em que ela se encontra.

EXPOSIÇÃO. Portanto, a China poderá entrar em crise. Se entrar, como isso afetará os EUA? A resposta, até onde eu consigo perceber, é que a exposição dos americanos a uma possível crise chinesa é surpreendentemente pequena.

Quanto os EUA têm investido na China? O investimento direto é de US$ 215 bilhões. Investimentos em carteira – ações e obrigações –, pouco mais de US$ 300 bilhões. Então, estamos falando de um total de US$ 515 bilhões.

Este número pode parecer grande, mas, para uma economia enorme, não é. Considerem uma comparação. Neste momento, há muitas preocupações a respeito do setor imobiliário comercial dos EUA, especialmente em relação aos prédios de escritórios ? que provavelmente encaram uma redução permanente na demanda em virtude do aumento do trabalho remoto. Os prédios de escritórios dos EUA valem hoje US$ 2,6 trilhões, aproximadamente cinco vezes mais que o nosso investimento total na China.

Por que uma economia tão grande atraiu tão pouco investimento dos EUA? Basicamente, porque, dadas as arbitrariedades das políticas chinesas, muitos possíveis investidores temem a possibilidade de a China se tornar uma armadilha: você consegue entrar, mas não consegue sair.

Mas o que dizer da China enquanto mercado? A China é uma importante jogadora no comércio mundial, mas não compra muito dos EUA – apenas US$ 150 bilhões, em 2022, menos de 1% do nosso PIB. Portanto, uma crise não surtiria muito efeito direto na demanda por produtos americanos.

O efeito seria maior em países que vendem mais para a China, como Alemanha e Japão, e algo poderia ricochetear nos EUA por meio das vendas a esses países. Mas o efeito geral ainda seria pequeno.

DIFERENÇAS
Uma crise poderia até surtir um pequeno efeito positivo nos EUA, porque reduziria a demanda por matérias-primas, especialmente petróleo, o que reduziria a inflação. Nada disso significa que devamos aplaudir a possibilidade de uma recessão chinesa ou tripudiar sobre os problemas de outro país.

Mesmo que por razões puramente egoístas, devemos nos preocupar com o que o regime chinês poderá fazer para distrair a atenção de seus cidadãos dos problemas domésticos. Mas, em termos econômicos, parece que estamos diante de uma possível crise interna na China, não de um evento global em estilo 2008. 

TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSS


sábado, 19 de agosto de 2023

China financia publicações de esquerda do Brasil (Gazeta do Povo, NYT)

 Os americanos costumavam fazer isso antigamente. Agora, os chineses são os novos americanos, a sort of…

New York Times: China financia publicações de esquerda do Brasil

Uma reportagem do The New York Times desvendou uma rede de influência internacional bancada pela ditadura chinesa. Alguns desses braços estão no Brasil. 

A investigação do jornal americano joga luz sobre a atuação de Neville Roy Singham, empresário de origem indiana ligado ao Partido Comunista da China. Singham mora em Xangai e produz, dentre outras coisas, um programa para o YouTube financiado pela cidade — leia-se o partido. 

Mas a sua atuação vai muito além disso. Segundo o jornal, ele está na linha de frente de uma guerra silenciosa iniciada pelo Partido Comunista da China para influenciar a opinião pública fora do país. Em outras palavras: propaganda política apresentada como se não fosse. 

Em 2017, Singham vendeu sua empresa do ramo da tecnologia, a Thoughtworks, por US$ 785 milhões (o equivalente a R$2,5 bilhões à época). Agora, o ativismo pró-ditadura chinesa é a sua principal ocupação. A rede movimentada por ele distribuiu pelo menos US$ 275 milhões nos últimos anos, de acordo com o jornal americano. O repasse do dinheiro é feito por manobras que dificultam o seu rastreio e utiliza quatro organizações não-governamentais de fachada com sede nos Estados Unidos. A única presença real dessas entidades são caixas postais. A legislação americana não exige que organizações sem fins lucrativos divulguem quem são os seus doadores. 

Think tank marxista Singham financia uma teia de organizações que têm como objetivo divulgar propaganda (ou desinformação) sobre a ditadura chinesa. Um dos pontos centrais dessa teia é um think tank chamado Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. O instituto se apresenta como "uma instituição internacional orientada por movimentos e organizações populares do mundo, focada em ser um ponto de apoio e elo entre a produção acadêmica e os movimentos políticos e sociais". 

Brasil, Índia, Argentina e África são o foco da organização, que cita Karl Marx e Antonio Gramsci como suas referências. Uma das sedes da organização fica no Brasil. Na página de apresentação do instituto, a palavra “China” simplesmente não aparece. O conselho consultivo não tem chineses — mas inclui Neuri Rossetto, do Movimento dos Sem-Terra

Porta-voz da China no Brasil 

A reportagem do jornal americano menciona especificamente um veículo brasileiro financiado pela rede de Singham: o Brasil de Fato, publicação de extrema-esquerda que faz apologia ao regime chinês. Entre ataques ácidos aos Estados Unidos, ao "neoliberalismo" e a políticos conservadores, a página publica notícias chapa-branca sobre o regime chinês. "China combate desertificação para garantir segurança alimentar e qualidade do ar", diz uma reportagem publicada em 15 de agosto. Pouco sutil, um artigo publicado em 30 de junho ganhou o seguinte título: "China cresceu e erradicou a pobreza porque fez tudo ao contrário do que pregam os neoliberais." 

O Brasil de Fato é um veículo influente na esquerda brasileira. Em 2019, por exemplo, a publicação entrevistou Luiz Inácio Lula da Silva dentro da cadeia. O vídeo reúne quase 800 mil visualizações no YouTube. O grupo também já publicou entrevistas exclusivas com o ator Wagner Moura e o ex-presidente do MST, João Pedro Stédile. Mais recentemente, o canal passou a produzir conteúdo em inglês. 

Em seu canal no YouTube, o Brasil de Fato publica semanalmente um programa chamado "Notícias da China", que traz uma versão pró-chinesa dos acontecimentos. O conteúdo é apresentado por Marco Fernandes. Ele, por sua vez, trabalha para um site chamado Donsheng News. A página apresenta-se apenas como “coletivo internacional de pesquisadores interessados pela política e sociedade chinesas”. Marco também se apresenta como pesquisador do Instituto Tricontinental e organizador do "No Cold War" — outra publicação pró-ditadura chinesa de perfil nebuloso e ligada a Singham. "Uma nova Guerra Fria contra a China vai contra o interesse da humanidade", proclama a página. 

O fundador do site Spotniks, Rodrigo da Silva, também mostrou que outros sites brasileiros, como o Brasil 247 e o Opera Mundi, publicam artigos de Vijay Prashad, diretor do Instituto Tricontinental

Além disso, o Brasil de Fato, o No Cold War e o Instituto Tricontinental realizaram um seminário online que teve a participação da ex-presidente Dilma Rousseff e de João Pedro Stédile, além do ex-chanceler Celso Amorim e do professor Elias Jabbour, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O evento aconteceu em 2021. 

A influência chinesa mundo afora também se dá nos círculos acadêmicos. Como a Gazeta do Povo mostrou, o regime de Pequim utiliza os Institutos Confúcio para espalhar seus tentáculos. 

No Brasil, onze universidades mantêm filiais do centro chinês. 



sexta-feira, 21 de julho de 2023

Uruguai aprende sobre perigos do comércio ao negociar com a China (NYT, Estadão)

 Uruguai aprende sobre perigos do comércio ao negociar com a China


THE NEW YORK TIMES, MONTEVIDÉU – A notícia de que o Uruguai estava em busca de um acordo comercial com a China provocou entusiasmo no rancho El Álamo, uma imensidão exuberante de pasto entremeado com cactos e rebanhos de gado nas planícies do leste do Uruguai.

A maior parte do gado tem como destino compradores na China, onde encara tarifas de 12% — mais do que o dobro da alíquota aplicada à carne da Austrália, o maior exportador de carne bovina para a China. Os criadores de gado na Nova Zelândia, o segundo maior exportador, usufruem da isenção de impostos na China.

“Consigam o acordo comercial”, disse Jasja Kotterman, que administra o rancho da família. “Isso igualaria as condições para nós.”

O presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, apostou seu legado econômico na realização de um acordo comercial com a China. “Temos toda a intenção de alcançá-lo”, disse ele em julho do ano passado, ao anunciar o início das negociações formais. A China estava disposta a conversar sobre um acordo bilateral com o Uruguai.

Mas as aspirações do Uruguai provocaram a ira e acusações dos vizinhos Brasil e Argentina, assim como o que foi visto como retaliação econômica. Em conjunto com o Uruguai e o Paraguai, os dois países pertencem ao Mercosul, uma aliança formada há mais de três décadas para promover o comércio na região.

Nos últimos meses, o Brasil passou por cima do Uruguai enquanto tentava conseguir um acordo mais amplo com a China em nome do bloco.

Queremos sentar à mesa (como Mercosul) e discutir com nossos amigos chineses um acordo Mercosul-China”, disse o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, durante uma visita em janeiro à capital uruguaia, Montevidéu.

Em abril, Lula viajou para a China, onde foi recebido com tratamento especial, e participou de uma reunião com o principal líder do país, Xi Jinping.

“Ninguém vai proibir que o Brasil aprimore a sua relação com a China”, disse Lula.

Qualquer interesse que o governo chinês tenha tido em fechar um acordo com o Uruguai logo foi substituído pelo foco no Brasil, uma decisão explicada por um cálculo básico de matemática: o Uruguai é um país com 3,4 milhões de pessoas, enquanto o Brasil é a maior economia da América do Sul e tem 214 milhões de habitantes.

Entretanto, apesar do presidente do Brasil ter declarado interesse em intermediar um acordo comercial, a probabilidade de um acordo entre Mercosul e China parece ser mínima ou inexistente.

O Mercosul, uma organização notoriamente lenta, repleta de discórdias internas, passou mais de 20 anos tentando concluir as negociações de um acordo comercial com a União Europeia. Um dos seus membros, o Paraguai, não tem qualquer relação com Pequim. Em vez disso, mantém relações com Taiwan. Só isso tornaria quase inimaginável a possibilidade de um acordo entre o Mercosul e a China.

Tudo isso aumentou a probabilidade do Uruguai acabar prejudicando suas relações com os vizinhos e não alcançar conquistas econômicas.

“O Uruguai está sendo usado como moeda de troca para a China negociar com o Brasil”, disse Kotterman, supervisor do rancho Álamo, enquanto uma lua cheia iluminava o pasto.

Reconfigurando o mapa
O alcance de um acordo comercial do Uruguai com a China ia além do destino de seu gado. O governo do país estava tentando redefinir as regras de relacionamento com o restante do mundo, enquanto desassociava a nação do legado do protecionismo comercial que tem prevalecido nas maiores economias da América do Sul.

O governo estava claramente recorrendo à China como um contrapeso ao domínio dos Estados Unidos no hemisfério sul.

[Industriais uruguaios se opõem ao] acordo por considerarem isso uma ameaça aos empregos com salários maiores nas fábricas, enquanto os políticos — alguns dentro da coalizão do governo — condenaram a aliança do presidente com a China dizendo que ela colocava em risco a segurança nacional.

Mas a maior fonte de preocupação se concentra nas consequências de uma possível ruptura dentro do Mercosul, formado em 1991.

O Mercosul opera como um coletivo para estabelecer tarifas com o resto do mundo. Ao tentar um acordo com a China, o Uruguai estava violando a unidade do grupo. O país abriria seus mercados aos produtos fabricados na China em troca de tarifas mais baixas sobre a carne bovina exportada para Pequim. As vendas extras para os ranchos do Uruguai aconteceriam às custas dos produtores de carne de bovina no Brasil e na Argentina.

Para muitos, o Mercosul tem ficado muito aquém no seu objetivo de catalisar um mercado comum na América do Sul. Seu suposto plano de promoção do comércio tem sido frequentemente impedido pelos interesses de setores politicamente poderosos no Brasil e na Argentina. Os dois países conseguiram obter dezenas de isenções que evitaram a concorrência de suas empresas com outras do bloco.

Entretanto, muitos líderes na região confiam na cooperação como solução para alcançar a prosperidade e libertar o continente de sua dependência desmedida da exploração de matérias-primas e cultivo de commodities como a soja.

“O Mercosul é importante, e deveria ser mais importante”, disse Martin Guzmán, ex-ministro da Economia da Argentina. “Não vejo uma saída para o problema da estagnação do continente sem ser por meio de uma maior integração.”

Ele criticou a busca do Uruguai por um acordo comercial com a China por ser uma ameaça ao bloco.

“Se todos se comportarem assim, haverá um preço a longo prazo”, afirmou.

Mais gado que pessoas
O Uruguai exporta aproximadamente 80% de sua carne bovina, ganhando cerca de US$ 3 bilhões por ano, de acordo com o Instituto Nacional de Carnes, uma agência governamental em Montevidéu. Mas os produtores de carne bovina do país encaram impostos de 26% nos EUA e acima de 45% na União Europeia, depois de esgotar uma pequena cota tarifária.

Isso torna a China um objetivo óbvio, ao mesmo tempo que leva a conversas amargas, como a da recusa de Washington a negociar um acordo comercial para abrir os mercados do país às exportações de carne bovina do Uruguai.

“Os EUA falam muito de como valorizam a democracia e os direitos humanos do Uruguai, mas, no fim, dão as costas para nós”, disse Conrado Ferber, presidente do Instituto Nacional das Carnes. “É por isso que estamos negociando com a China.”

Jorge González, que dirige um matadouro na pequena cidade de Lavalleja, tem interesse principalmente nos compradores chineses porque eles compram a vaca inteira. Os compradores europeus costumam se interessar apenas pelas partes mais nobres que correspondem a menos da metade da vaca. Os americanos compram um pouco mais, transformando os cortes menos nobres em carne de hambúrguer.

Mas na China, uma variedade de pratos gastronômicos, como o hot pot (uma espécie de fondue chinês), gera demanda por até mesmo porções de carne menos nobres em fatias finas.

González, 56 anos, compra gado dos ranchos nas imediações e envia a carne para uma linha de produção onde os trabalhadores realizam os cortes e distribuem o produto em caixas. Ele exporta a maior parte de sua produção para o mundo em navios porta-contêineres, 70% deles vão para a China.

Sua fábrica tem capacidade suficiente para abater cerca de cem mil animais por ano, quase o dobro do número atual. Um acordo comercial com a China levaria os donos de ranchos locais a produzir mais, disse ele.

González tem esperança de que algum tipo de acordo com a China ainda possa ser alcançado devido às virtudes do Uruguai como produtor de alimentos. O país tem espaços livres enormes e aproximadamente quatro vezes mais vacas do que habitantes, o que o torna um lugar útil para a produção de carne para exportação.

“Os chineses estão em busca de um fornecimento garantido de alimentos”, disse González./Tradução de Romina Cácia


quinta-feira, 20 de julho de 2023

Conflito na Ucrânia revive batalhas da Segunda Guerra, 80 anos depois - Andrew E, Kramer (NYT, OESP)

 Conflito na Ucrânia revive batalhas da Segunda Guerra, 80 anos depois 

Andrew E. Kramer
THE NEW YORK TIMES, 19/07/2023

 Em meio a rochas enormes, pneus usados e restos de lata-velha, Oleksandr Shkalikov aventurou-se no leito seco do vasto reservatório. Um lembrete perturbador, de batalhas sucedidas há muito neste mesmo local no sul da Ucrânia, jazia na paisagem desolada: uma suástica esculpida em pedra apareceu no fundo do lago depois que as águas baixaram. O ano de “1942′', indicando o momento do entalhe, estava escrito ao lado.

“É a história se repetindo”, afirmou o piloto de tanques Shkalikov, que estava de licença do Exército ucraniano, a respeito do entalhe da época da Segunda Guerra. Ele notou a coincidência: a suástica ficou visível em razão de um ato de guerra mais recente; a explosão da Represa de Kakhovka, em junho, drenou um reservatório do tamanho do Grande Lago Salgado de Utah.


“Nós estamos travando esta guerra no mesmo local e com as mesmas armas” da Segunda Guerra, afirmou ele, evocando a artilharia pesada e os tanques que ainda forjam o curso dos combates.

A Segunda Guerra tem constituído um campo de batalha ideológico no atual conflito na Ucrânia, com a Rússia acusando falsamente o governo em Kiev de neofascismo e citando essa mentira como justificativa para sua invasão. O histórico de guerra no território ucraniano também brota no campo de batalha — e não apenas na forma de artefatos encontrados no solo, mas também nas lições que a Ucrânia aprendeu com uma guerra travada muito tempo atrás.

Um monumento em homenagem aos soldados que morreram na Segunda Guerra Mundial perto da linha de frente na região de Zaporizhzhia, Ucrânia, em 6 de julho de 2023.
Um monumento em homenagem aos soldados que morreram na Segunda Guerra Mundial perto da linha de frente na região de Zaporizhzhia, Ucrânia, em 6 de julho de 2023.  Foto: David Guttenfelder / NYT

Contornos do terreno e leitos de rios com frequência direcionam os Exércitos de hoje para os mesmos locais em que algumas das mais ferozes batalhas da Segunda Guerra ocorreram quando tropas nazistas e soviéticas varreram vales e vastidões de planícies abertas na Ucrânia.

De fato, os locais de algumas batalhas cruciais da guerra atual coincidiram tanto com áreas de batalhas da Segunda Guerra, afirma o Exército da Ucrânia, que seus soldados chegaram a buscar abrigo em bunkers de concreto construídos 80 anos atrás no entorno de Kiev. E descobriram ossos de soldados alemães e cápsulas de projéteis usados pelos nazistas enterrados quando cavaram trincheiras no sul do país.

O começo da Segunda Guerra foi em 1939 em território que pertence atualmente à Ucrânia, quando a União Soviética invadiu uma região então controlada pela Polônia, no oeste ucraniano, num momento em que os soviéticos e a Alemanha nazista compunham uma aliança. Quando seu pacto se rompeu, em 1941, os alemães atacaram a União Soviética de oeste para leste através da Ucrânia. A maré da guerra mudou em 1943, quando a Alemanha foi derrotada na Batalha de Stalingrado; e o Exército Vermelho atacou, então, os nazistas de leste para oeste, novamente atravessando a Ucrânia.

Um dos primeiros sucessos dos alemães no início da guerra ocorreu na Batalha do Mar de Azov, em 1941, quando as tropas nazistas avançaram de Zaporizhzhia para Melitopol. Ao longo de três semanas, as forças alemãs atravessaram esse terreno para se posicionar para atacar a Crimeia e cercar os soldados do Exército Vermelho na região de Kherson.

A Ucrânia ecoa atualmente aquela ofensiva da Segunda Guerra, combatendo em linhas a sudeste de Zaporizhzhia num trajeto que os militares ucranianos chamam de “direção Melitopol”. O objetivo estratégico é o mesmo de oito décadas atrás: isolar os soldados inimigos na região de Kherson e ameaçar a Crimeia; mas as tropas ucranianas estão se movimentando muito mais vagarosamente, ganhando poucos quilômetros em mais de um mês de operações.

“Paralelos históricos, infelizmente ou felizmente, não param de emergir”, afirmou conselheiro do generalato ucraniano Vasil Pavlov, que estuda em profundidade as semelhanças entre as duas guerras. Estrategicamente, afirmou ele, os generais da Ucrânia tiveram como exemplo direto a história da Segunda Guerra ao definir a defesa da capital, Kiev, no ano passado.

Dos primeiros dias da guerra atual, o Exército russo avançou por Belarus na direção das várzeas do Rio Irpin — mas logo as forças russas souberam que os ucranianos tinham explodido uma represa e inundado uma vasta área de planícies, bloqueando seu avanço. Foi uma reprise de um truque soviético de 1941, quando Moscou explodiu uma represa no Rio Irpin para bloquear um ataque de tanques alemão, afirmou Pavlov.

Uma granada da época da Segunda Guerra Mundial no rio Dnipro foi revelada quando as águas baixaram após a destruição da barragem de Kakhovka, na região de Zaporizhzhia, Ucrânia, em 11 de julho de 2023.
Uma granada da época da Segunda Guerra Mundial no rio Dnipro foi revelada quando as águas baixaram após a destruição da barragem de Kakhovka, na região de Zaporizhzhia, Ucrânia, em 11 de julho de 2023.  Foto: David Guttenfelder / NYT
“Os generais sempre se preparam para combater a guerra anterior”, afirmou ele. “Mas os generais russos nem isso fizeram.” As forças alemãs conseguiram capturar Kiev em 1941; os russos combateram um mês nos subúrbios da capital na primavera (Hemisfério Norte) do ano passado e bateram em retirada.

Quando a guerra atual mudou de direção, de Kiev para o leste, suas batalhas percorreram os mesmos caminhos dos combates da Segunda Guerra. Naquela época, assim como hoje, o curso sinuoso do Rio Siverski Donets tornou-se linha de frente — com suas margens elevadas e várzeas lamacentas servindo de barreira natural enquanto Exércitos rivais lutaram por cidades e vilarejos ao longo de sua extensão.

Na Segunda Guerra, o rio formou uma porção da chamada Linha Mius, uma posição defensiva que os nazistas construíram para conter contra-ataques soviéticos após a Batalha de Stalingrado.

Na guerra atual, várias cidades e vilarejos ao longo do Siverski Donets entraram em disputa. As forças ucranianas usaram as ribanceiras altas do rio e suas planícies alagadiças, por exemplo, tentando defender a cidade de Lisichansk, o que não conseguiram, e para evitar que os russos atravessassem nas proximidades de Bilohorivka.

Ambas as guerras deixaram cidades e vilarejos às margens de rios em ruínas. Os atuais combates também danificaram com estilhaços monumentos erguidos para marcar batalhas da Segunda Guerra.

O vilarejo de Starii Saltiv, na região de Kharkiv, foi castigado por ambas as guerras; e acabou gravemente destruído nas duas ocasiões.

Lidiia Pechenizka, de 92 anos, que viveu sua vida inteira no vilarejo, recordou que em ambos os conflitos os combates foram definidos principalmente por projéteis de artilharia disparados do outro lado do rio contra soldados abrigados no vilarejo. Para os civis, as experiências foram similares: esconder-se em porões de casas e adegas subterrâneas. “É horrível”, disse Pechenizka em entrevista nesta primavera.

A contraofensiva ucraniana ao sul da cidade de Zaporizhzhia é, segundo Pavlov, “uma analogia direta” da ofensiva alemã de setembro de 1941. Os objetivos foram similares: atravessar as planícies, cortar linhas de abastecimento das tropas russas na margem oriental do Rio Dnipro e alcançar posição para ameaçar o istmo da Península da Crimeia.

Mas os paralelos não passam daí.

Na Segunda Guerra, o Exército Vermelho não teve tempo de fortificar linhas defensivas nas planícies; os alemães avançaram rapidamente até o Mar de Azov, cercando dezenas de milhares de soldados soviéticos em um bolsão no norte.

Na guerra atual, os russos tiveram meses para se entrincheirar. Como resultado, a contraofensiva da Ucrânia empacou diante das formidáveis fortificações, que contam com campos minados, redes de trincheiras e bunkers.

Os combates de hoje também se distinguem de outra maneira. Os Exércitos nazista e soviético se enfrentaram na Ucrânia movendo-se perpendicularmente ao fluxo norte-sul dos principais rios. Em sua contraofensiva, Kiev está movendo suas forças principalmente em paralelo aos cursos dos rios, o que lhes proporciona uma vantagem militar: suas tropas não têm de cruzar águas com tanta frequência.

Um soldado ucraniano em cima de um tanque russo abandonado no rio Siversky Donets, em Bilohorivka, Ucrânia, em 24 de maio de 2022. (Ivor Prickett/The New York Times)
Um soldado ucraniano em cima de um tanque russo abandonado no rio Siversky Donets, em Bilohorivka, Ucrânia, em 24 de maio de 2022. (Ivor Prickett/The New York Times) Foto: Ivor Prickett / NYT

No inverno de 1943-44, a União Soviética perdeu torrentes de soldados cruzando o Rio Dnipro de leste a oeste. Alguns corpos foram encontrados décadas depois pela ONG ucraniana Memória e Glória, que localiza cadáveres de ambos os lados para lhes oferecer sepultamentos dignos. Desde sua fundação, em 2007, o grupo afirma ter encontrado na Ucrânia mais de 500 corpos de soldados que lutaram na Segunda Guerra.

No ano passado, membros da ONG se juntaram ao Exército ucraniano para vasculhar campos de batalha em busca de soldados desaparecidos em combate e encontraram mais de 200 corpos de militares mortos na guerra atual — com frequência nos mesmos locais que cadáveres da Segunda Guerra tinham sido encontrados, afirmou o diretor da entidade, Leonid Ignatiev.

“Quando nós cavamos” à procura de corpos de soldados mortos recentemente, afirmou ele, “nós encontramos trincheiras da Segunda Guerra”.

Próximo à cidade de Novi Kamenki, na região de Kherson, o grupo procurava recentemente um soldado ucraniano desaparecido em combate, mas acabou encontrando a ossada de um soldado alemão, afirmou Ignatiev. Os ossos foram enviados para sepultamento em um cemitério destinado a alemães mortos em combate na Ucrânia.

“Os terrenos elevados e as posições para instalação de defesas são os mesmos”, afirmou Ignatiev.

Zaporizhzhia, uma grande cidade industrial à margem do Reservatório de Kakhovka, que se esvazia, foi ocupada por forças nazistas na Segunda Guerra é uma das atuais linhas de frente, onde sirenes de alerta para ataques aéreos soam várias vezes ao dia e mísseis russos explodem ocasionalmente.

Mas quando a água retrocedeu após o rompimento da represa em relação às margens originais, diante da cidade, foram projéteis não detonados que representaram a pior ameaça. O serviço de emergência da Ucrânia afirmou que os bancos de areia e as novas ilhas que emergiram no leito do reservatório “se revelaram surpreendentemente abarrotados de artefatos explosivos da  Segunda Guerra”, informou a agência.

Shkalikov, o piloto de tanques, que vive a uma curta caminhada de distância do leito exposto da represa, combateu no início da contraofensiva ucraniana em campos a sudeste da cidade. Depois que seu tanque atingiu uma mina, ele foi dispensado da unidade, voltou para casa e começou a explorar o fundo do lago seco. Encontrar a suástica emergindo da água, afirmou ele, “não me surpreendeu absolutamente”. Décadas separam as guerras, mas “a paisagem natural não mudou”, afirmou ele. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL