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segunda-feira, 29 de maio de 2023

Hesitações diplomáticas de Lula 3: O Brasil faz parte das democracias? - Lourdes Sola, Eduardo Viola (Estadão)

Fundamental convergência com as democracias

Emergência clara das dimensões políticas e ideológicas do alinhamento com Rússia e China erodiu dramaticamente o capital político de Lula no Ocidente coletivo

Por Lourdes Sola e Eduardo Viola

O Estado de S. Paulo, 27/05/2023 

Na avaliação da política externa, a tradição dominante entre analistas brasileiros é dar pouca relevância à questão dos regime políticos. Seguem uma abordagem neorrealista, conforme a qual os Estados têm interesses permanentes derivados de sua geografia, história e identidade cultural. Sem negar a relevância dessas dimensões, nosso argumento vai na direção oposta: os interesses dos Estados variam segundo os regimes políticos e os governos, e segundo as transformações da economia política mundial.

A invasão russa da Ucrânia consolidou um forte componente de guerra fria entre as democracias do “Ocidente coletivo” (que inclui Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Austrália e Nova Zelândia) e o bloco autocrático (com China, Rússia, Irã e Coreia do Norte). Esse confronto delineia-se desde 2015, mas o traço que define a guerra fria é mais recente: cada bloco vê o outro como ameaça existencial. Está em pleno curso o desacoplamento entre ambos no referente à alta tecnologia e, particularmente, à tecnologia de uso dual (civil e militar).

Isso aponta para um sistema internacional bipolar, e não multipolar, embora com características inéditas em relação à guerra fria no século 20. Primeira: alta interdependência econômica entre os dois blocos, embora menor entre Ocidente e Rússia desde a invasão. Segunda: à diferença da União Soviética, a China é uma superpotência econômica. Terceiro: há desafios globais, de ordem existencial, que só serão equacionados por meio da cooperação e, portanto, de regras e instituições acordadas: mudança climática, pandemias, regulação da inteligência artificial.

Os países do “Sul Global” estão em posição intermediária. Mas qual o valor analítico dessa noção? Inclui países de rendas média alta, média baixa e baixa; e regimes políticos numa escala que vai do democrático liberal, como Chile, Uruguai e Costa Rica, ao autocrático fechado da Arábia Saudita, dos Emirados, do Egito e do Vietnã (seguimos, aqui, a classificação do V-Dem 2023).

Apesar de ter perdido o status de democracia com traços liberais a partir de 2017, o Brasil é uma democracia eleitoral. Tem fortes convergências com o bloco do Ocidente coletivo: a proteção da democracia e de direitos humanos; o suprimento de equipamentos militares fabricados em países da Otan; o treino de altos oficiais se faz nesses redutos e as doutrinas de defesa são as ocidentais. Ao mesmo tempo, o desejável fortalecimento da interdependência comercial com China revelou-se, até aqui, compatível com a que estabelecemos com países do Ocidente – nas áreas financeira e de investimentos diretos.

Na viagem à China e na subsequente visita de Sergei Lavrov ao Brasil, no entanto, foram as dimensões políticas e ideológicas do alinhamento com a Rússia e com a China que emergiram com clareza. Isso erodiu dramaticamente o capital político de Lula no Ocidente coletivo.

Está claro que a estratégia de Lula/Celso Amorim apoia-se em supostos cujo teor exige reflexão crítica. O principal é a convicção de que estamos num sistema multipolar, quando na verdade a invasão da Ucrânia representa um ponto de virada macrohistórico, porque consolidou alinhamentos em torno de um confronto típico de sistema bipolar – embora mais complexo e desafiador.

Além disso, suas prioridades têm por foco o Brics, o que é questionável. Não só por incluir os dois líderes do bloco autocrático, mas principalmente pela suposição implícita de que esse clube constitui um território neutro. Como assim, se ele inclui a Índia? Um poder nuclear cujo conflito (existencial) com a China o fez integrar o grupo Quad – ao lado de Japão, Austrália e Estados Unidos?

A história política de Lula e do PT mostra uma visão política que inclui muitas reticências em relação às democracias liberais, um antiamericanismo light e admiração pela esquerda autoritária latino-americana. A campanha eleitoral, porém, foi pautada por acenos que apontavam para uma mudança de perspectiva – que, por sua vez, foram legitimados internacionalmente pelo empenho das democracias ocidentais em garantir a integridade do sistema eleitoral e dissuadir setores militares da tentação golpista.

Quatro meses depois da posse, está claro que a ambição de Lula é projetar-se como uma liderança mundial, com seus efeitos multiplicadores no doméstico. Neste caso, definitivamente, o caminho deve ser outro, pois o Brasil não tem excedente de poder para mediar numa região que conhece pouco e com a qual tem vínculos limitados. As áreas nas quais tem condições de protagonismo mundial são as políticas climática e de transição energética. Justamente aquelas que são decisivas para equacionar alguns dos desafios globais de ordem existencial mencionados. Para tanto, há que reduzir drasticamente o desmatamento, evitar as tentações do nacionalismo petroleiro e investir nas oportunidades abertas para exercer protagonismo ambiental – a presidência do G20 e a COP 30.

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COORDENADORES DO GRUPO DE PESQUISA DO INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS (IEA) DA USP ‘ECONOMIA POLÍTICA INTERNACIONAL, VARIEDADES DE DEMOCRACIA E DESCARBONIZAÇÃO’, SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA SÊNIOR DO IEA/USP E PROFESSOR VISITANTE DO IEA/USP E DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV