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quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

“A Diplomacia Brasileira na Elaboração do Direito Internacional”: discurso lido pelo chanceler brasileiro na abertura de seminário MRE-STJ

Nota preliminar PRA: gostaria de conhecer os nomes dos autores que elaboraram este discurso para leitura do chanceler, na abertura deste seminário, para poder cumprimentá-los.


“A Diplomacia Brasileira na Elaboração do Direito Internacional”
Palavras do Ministro Mauro Vieira na abertura do Seminário MRE-STJ
Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro - 8/12/2025
Link: https://www.gov.br/mre/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/discursos-artigos-e-entrevistas/ministro-das-relacoes-exteriores/discursos-mre/mauro-vieira/palavras-do-ministro-mauro-vieira-na-abertura-do-seminario-201ca-diplomacia-brasileira-na-elaboracao-do-direito-internacional201d


É uma enorme satisfação para o Itamaraty unir esforços com o Superior Tribunal de Justiça na organização deste Seminário.

Com efeito, o vínculo entre o direito internacional e a diplomacia é fundamental. Pode-se dizer que estamos diante de duas formas de linguagem — distintas em suas funções, mas igualmente indispensáveis à convivência e à cooperação entre Estados.

Nessa metáfora, a diplomacia representa a linguagem falada cotidianamente pelos Estados, em seus múltiplos assuntos entre pares. É uma linguagem que precisa ser fluida, capaz de se adaptar a diferentes ocasiões, assuntos e intenções, pois a diplomacia serve tanto para construir pontes quanto para defender posições conflitantes.

A diplomacia, ademais, envolve, em regra, interlocutores que falam a partir de um “lugar de pronunciamento nacional”, já que o diplomata representa sua nação e se pronuncia em nome de seu Estado.

O direito internacional, por sua vez, funciona como uma espécie de gramática comum entre os Estados. Através da gradual codificação de diferentes modos de fala, chega-se à cristalização de normas que orientam interações futuras.

Essa gramática, ademais, tem, em regra, um caráter universal: não pertence a um Estado isolado, mas à comunidade das nações.

Para ilustrar essa interação entre diplomacia e direito, vale recordar um antigo aforisma francês: “todo argumento diplomático termina por transformar-se em um argumento jurídico, e todo argumento jurídico, um argumento diplomático”.

Essa descrição é tanto irônica quanto reveladora: Diplomacia e Direito são duas faces de uma mesma moeda. Verso e reverso, evidenciam uma articulação contínua entre vivência e estrutura; entre o diálogo e a norma; entre a negociação e a obrigação jurídica. Ao permitir que os Estados naveguem suas diferenças, modulem comportamentos e estabeleçam regulações para o espaço que compartilham, ambos contribuem para sustentar o edifício de uma ordem multilateral pacífica.

Senhoras e Senhores,

É justamente a partir da nossa vocação pacifista e multilateralista que podemos compreender por que tanto a diplomacia quanto o direito internacional ocupam lugares tão centrais na inserção internacional do Brasil: sem excedentes de poder, o Brasil, tradicionalmente, favorece o diálogo – e não a força – como o mecanismo por meio do qual mantém suas relações exteriores.

E como resultado, parece-nos impensável uma política externa brasileira que não esteja assentada no Direito.

Desde os bancos escolares, aprendemos como o próprio Estado brasileiro se estabeleceu com recurso à diplomacia e ao direito internacional; como nossas fronteiras internacionais foram fixadas não pela guerra, mas por meio de negociações diplomáticas e de princípios jurídicos como o do “uti possidetis, ita possideatis”.

Este é, cabe destacar, um princípio jurídico romano que ganhou contornos tropicais na história da formação do Estado brasileiro. Ao analisarmos seu uso no Brasil, encontraremos possivelmente uma das primeiras manifestações daquele que é o objeto de investigação deste Seminário – as contribuições da diplomacia brasileira para a elaboração do Direito Internacional.

Isso porque o princípio foi evocado, com variadas interpretações doutrinárias, pelos três grandes artífices da diplomacia territorial brasileira: Alexandre de Gusmão, Duarte da Ponte Ribeiro e o Barão do Rio Branco. Inovando com o direito internacional, esses três grandes diplomatas buscaram afastar tratados coloniais e prestigiar o princípio da posse como fundamento para a delimitação das fronteiras nacionais. No lugar de acordos celebrados por potências estrangeiras, o meio de vida de gerações de brasileiros que se lançaram sertão adentro foi o elemento fundamental para a consolidação pacífica de nosso território.

No caso do Barão do Rio Branco, ademais, vale recordar que a atuação do Patrono da Diplomacia Brasileira foi além do aspecto da negociação. Em virtude de suas vitórias decisivas nas arbitragens de Palmas e do Amapá, ele ganhou, popularmente, o carinhoso apelido de “Advogado do Brasil”, expressão que sintetiza sua reconhecida capacidade de defender juridicamente os interesses nacionais.

Naquele período, o apego ao Direito na ação externa cristalizou-se também no ordenamento jurídico doméstico. A Constituição republicana de 1891 passou a proibir, em qualquer hipótese, a guerra de conquista. Desde então, a vocação pacífica e legalista da política externa brasileira deixava de ser apenas uma tradição diplomática para adquirir a força de determinação constitucional.

Senhoras e senhores,

Em sua obra A diplomacia na construção do Brasil, o Embaixador Rubens Ricúpero apresenta um conceito instigante para descrever aquilo que identifica como parte da “doutrina diplomática brasileira desde a Independência”. Segundo ele, o peso constante dos conceitos jurídicos nos mecanismos usados pela diplomacia para solucionar problemas concretos revela um traço marcante de nossa tradição externa: um claro e persistente “pragmatismo jurídico”.

Ao longo do século XX, esse pragmatismo jurídico voltou-se para a defesa intransigente da diplomacia multilateral. E dessa interação surgem muitos exemplos de contribuições da diplomacia brasileira para a elaboração ou consolidação de normas e costumes internacionais. Cabe destacar, aqui, entre outros:

- o princípio da “igualdade soberana dos Estados”, defendido com grande vigor por Rui Barbosa na II Conferência de Paz da Haia, em 1907.
- o princípio da “não intervenção”, que esteve entre as principais orientações redigidas pelo diplomata e jurista Hildebrando Accioly nas instruções à delegação do Brasil à Conferência de São Francisco de 1945.
- o princípio do “patrimônio comum da humanidade”, destinado à repartição das riquezas do subsolo dos oceanos em áreas de alto mar, que foi apoiado ativamente pelo Brasil durante as negociações da Convenção sobre o Direito do Mar de 1982.
- o princípio das “responsabilidades comuns porém diferenciadas”, consagrado nesta cidade, durante a Cúpula da Terra, em 1992, por insistência da diplomacia brasileira, juntamente com outros países em desenvolvimento, como uma pedra basilar do regime de enfrentamento à mudança do clima.

Para além de normas universais, foram numerosos também os tratados regionais em que a diplomacia brasileira fez contribuições importantes. Não posso deixar de mencionar:

- o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), de 1947, por meio do qual o hemisfério americano se integra ao mecanismo de segurança coletiva que se estruturava pela Carta da ONU;
- a Convenção de Caracas sobre Asilo Diplomático, que encontra respaldo inclusive na Constituição Federal;
- o Tratado de Tlatelolco, que proscreve armas nucleares na América Latina e no Caribe;
- e o Tratado de Assunção, que estabeleceu o MERCOSUL, tornando-se um pilar para a paz e o desenvolvimento em nossa região.

Mais do que acordos transacionais entre países, esses tratados criam espaços de diálogo, prestigiam considerações humanitárias, asseguram a confiança recíproca, erguem instituições para que a diplomacia e o Direito internacional sigam cumprindo seus papeis na manutenção das relações internacionais.

Senhoras e senhores,

Estamos encerrando um ano que não poderia oferecer momento mais oportuno para as reflexões deste Seminário. Um ano em que o mundo veio à Amazônia para debater a elaboração de normas e regras ambientais; Um ano em que defendemos com vigor o direito do comércio internacional; Um ano em que recorremos a instâncias como a Corte Internacional de Justiça na defesa da dignidade humana.

Hoje, é inegável que a ordem internacional baseada no direito e na diplomacia está sob ameaça. Alguns importantes atores buscam ativamente desmontar o multilateralismo. Buscam, como prescreviam os realistas clássicos, “subordinar normas coletivas a seus interesses nacionais”. Buscam, dessa forma, substituir a justiça do bem comum pela lei do mais forte.

O Brasil, contudo, segue comprometido com a Diplomacia e com o Direito internacional. Seguiremos empenhados em defender o patrimônio jurídico que, desde a fundação das Nações Unidas, permitiu à humanidade evitar o flagelo da Guerra Global. O valor da atual ordem internacional está também nos altos princípios aos quais, em 1945, atribuímos força quase constitucional: a igualdade soberana das nações; a resolução pacífica de controvérsias; e a abstenção do uso da força.

Estamos falando, portanto, não das normas que asseguravam o direito de colonizar povos ou de impor tratados desiguais. Mas do direito internacional centrado na dignidade humana e no desenvolvimento sustentável.

Como disse o Presidente Lula na abertura da Assembleia Geral este ano, “o século 21 será cada vez mais multipolar; e para se manter pacífico, não pode deixar de ser multilateral”.

Nossa diplomacia tem-se dedicado a isto: salvar o multilateralismo, aperfeiçoando-o onde for necessário, para garantir a paz. E o multilateralismo do século 21 só funcionará com lastro em um “direito internacional humanizado”, para usar um termo do saudoso Professor Cançado Trindade.

Senhoras e senhores,

Não é mero “slogan” quando dizemos que o Brasil tem vocação multilateral. Nossa própria experiência histórica mostra a importância dos espaços de diplomacia e diálogo e o valor do Direito sobre a força. O Barão do Rio Branco, em discurso de 1911, enfatizava o caráter atemporal de nosso apego ao Direito ao declarar: “estou persuadido de que o Brasil do futuro há de continuar invariavelmente a confiar acima de tudo na força do Direito”.

Com essas palavras, felicito o Superior Tribunal de Justiça e a FUNAG pela iniciativa de organizar este Seminário. Estamos não apenas resgatando uma tradição diplomática que nos garantiu paz com nossos vizinhos e inserção ativa na cena internacional, mas também nos preparando ainda melhor para enfrentarmos os desafios que se avolumam no horizonte.

Que as reflexões de hoje possam contribuir para nosso compromisso de defender o multilateralismo e para a construção de uma ordem internacional mais pacífica e justa.

Muito obrigado.



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