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sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Quarenta anos do “momentum” Tancredo-Mitterrand - Daniel Afondo da Silva (Jornal da USP)

 Quarenta anos do “momentum” Tancredo-Mitterrand

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP

  Publicado: 30/01/2025 às 19:52

Fazia frio naquele fim de tarde-noite do dia 26 de janeiro de 1985 quando o presidente Tancredo Neves partiu de Roma para Bordéus para se encontrar com o presidente François Mitterrand no sudoeste da França. Uma garoa fina invadia a capital italiana que servia de ponto de partida da tournée de apresentação da nova República brasileira inaugurada na eleição de 15 de janeiro daquele ano. O céu francês seguia cinza e sem sol antecipando o anoitecer. Era um sábado de inverno europeu. Um dos mais rigorosos do século.

O presidente brasileiro eleito vinha de ter com sua santidade o papa João Paulo II no Vaticano. Tinha estado com o presidente Sandro Pertrini no palácio do Quirinal. Havia conversado com membros da comunidade brasileira na Itália no hall do hotel Excelsior Roma da via Vittorio Veneto, onde também recebera os jogadores Cerezo, Júnior, Dirceu, Batista e Sócrates, que atuavam no futebol italiano. Sua próxima parada seria a capital portuguesa onde o entusiasmado primeiro-ministro Mário Soares preparava um acolhimento digno das mais honrosas recepções a chefes de Estado. Mal sabia que também seria recebido com desvelo e lhaneza pelo monarca Juan Carlos da Espanha e pelo primeiro-ministro Felipe González antes de partir a Coimbra virar Doutor Honoris Causa.

O espírito da viagem era falar a todos para fazer mudar a imagem exterior do Brasil. Ir à França fazia parte desse propósito.

Nesse propósito, no dia 8 de janeiro de 1985, o embaixador francês em Brasília, Bernard Dorin, fez saber ao Élysée que o candidato Tancredo Neves, caso eleito presidente pelo Colégio Eleitoral, teria a intenção de promover uma excursão pela Europa. O secretário-geral da presidência François Mitterrand, Jean-Louis Bianco, considerou uma informação de importância e a fez chegar ao presidente.

Desde o início da gestão socialista, o “futuro do terceiro mundo” fazia parte das preocupações exteriores francesas. Jamais por piedade e sim por convicção, o presidente Mitterrand afirmaria o binômio “democracia-desenvolvimento” como núcleo de sua ação exterior vis-à-vis dos países pobres. Primeiro pela percepção da necessidade de certa igualdade para a interação. Segundo para impedir a extensão da influência soviética. Terceiro, diminuir a insurgência terrorista. E, por fim e mais importante, para ampliar a influência francesa no mundo.

Essa estratégia de solidariedade com os povos para se fazer notar e respeitar para além da tensão Leste-Oeste dava continuidade à estrutura de atuação exterior formulada pelo general De Gaulle desde o “Je vous ai compris” de 1958 e replicada por seus sucessores.

Na reunião do G7 de junho de 1981, em Ottawa, o presidente Mitterrand teria a oportunidade de apresentar as linhas gerais dessa solidariedade francesa gaullista ao encontro dos países “menos desenvolvidos” afirmando ser impossível a manutenção da “democracia sem desenvolvimento”. Mas sua formulação mais exata do problema apareceria em sua manifestação na conferência das Nações Unidas sobre países “menos desenvolvidos”, organizada em Paris em agosto de 1981, onde reconheceria que “aider les tiers-monde, c’est s’aider soi-même” [ajudar o terceiro mundo é ajudar-se].
O Brasil, certo, jamais compusera objeto de importância na estratégia exterior francesa contemporânea e a recíproca se confirmava verdadeira. Mas ambos os países nutriam afeição mútua e interação permanente.

Quando do retorno do general De Gaulle ao poder em maio de 1958, o presidente Juscelino Kubitschek (1955-1960) enviara ao novo mandatário francês uma missiva com votos de sucesso, um quadro do papel do Brasil na organização das Américas e um enfático convite para que viesse ao País. No argumento do presidente brasileiro, Brasil e França viviam um momento de renovação e esperança que reforçava os vínculos entre as duas nações fundadas em “valores comuns sobre o Ocidente”.

O herói da France libre aceitaria de bom grado o convite do presidente Kubitschek e mencionaria que um dos eixos de sua política exterior seria justamente “ajudar os países subdesenvolvidos”, entre os quais, o Brasil. Esse pilar da estratégia francesa em sua relação com o Brasil foi fragmentado e reduzido após 1964. Após a visita do general De Gaulle à América do Sul em setembro-outubro de 1964, o Brasil e toda a região voltaram a ser “lugares distantes”. A possível eleição de Tancredo Neves e a retomada da democracia eram vistas, portanto, pelo Quai d’Orsay e pelo Élysée, como a possibilidade de reaproximação. Essa concepção embasou a carta do embaixador francês no Brasil e a motivação do secretário-geral do Élysée em participá-la diretamente ao presidente Mitterrand.

Nesses termos, uma semana antes das eleições brasileiras ainda indiretas do dia 15 de janeiro de 1985, o enviado francês em Brasília creditava como certa a vitória de Tancredo Neves e sugeria aos seus superiores em Paris que iniciassem a organização de uma recepção. Pelos imperativos do protocolo do Élysée e do Quai d’Orsay seria difícil receber oficialmente. Mas isso não deveria inviabilizar uma sinalização amistosa indicando interesse em eventual encontro fosse como fosse e onde fosse. Como projeto de mensagem, ele propunha que o presidente Mitterrand dissesse ao candidato Tancredo “si le voyage que vous envisagez d’accomplir en Europe conduit à Paris, je serai très heureux de vous rencontrer à cette occasion” [se vossa viagem pela Europa lhe conduzir a Paris, ficarei muito feliz em encontrá-lo] e o presidente francês assentiu em assim sinalizar.
O último presidente brasileiro eleito recebido pelo mandatário do Élysée tinha sido Jânio Quadros em 1961. Naquela ocasião o presidente francês era o general De Gaulle e seu enviado no Brasil, André Malraux.

Das primeiras reações do general De Gaulle ao contato do presidente Juscelino Kubitschek em 1958 foi justamente enviar André Malraux ao Brasil em 1959 para averiguar a consistência da situação. Malraux causaria uma boa impressão nos mandatários brasileiros e seria um dos convidados de honra do presidente Kubitschek para a inauguração de Brasília em 1960 e diria ao presidente francês que a nova capital brasileira era “la capitale de l’espérance” [capital da esperança].

Esse entusiasmo de Malraux exerceria forte influência sobre as percepções francesas – ou ao menos do establishment francês – sobre o Brasil.

Quando da eleição de Jânio Quadros para suceder o presidente Juscelino Kubitschek, Malraux seria novamente enviado a Brasília com o objetivo de saber das intenções do novo inquilino do palácio da Alvorada. Em nota do dia 4 de novembro de 1960, ele diria ao general De Gaulle que Jânio Quadros visitaria as principais capitais do Ocidente – como também fizera Juscelino Kubitschek em 1955 – antes de assumir suas funções a 1º de fevereiro de 1961. Indicava que ele tinha afeição pelo regime de Cuba e Moscou mesmo tendo outrora recebido apoio da “direita paulista”. Malraux ainda informava o general-presidente que o presidente brasileiro eleito compreendia e aceitava o contencioso franco-argelino. E, que, o conjunto dessas impressões justificaria receber o brasileiro em Paris.

Necessitaria 24 anos para outro presidente brasileiro ser eleito e merecer atenção estratégica dos enviados franceses no Brasil.

O marechal Castello Branco e o marechal Costa e Silva seriam recebidos com honras de chefes de Estado no Élysée pelo general De Gaulle, a 22 de junho e 5 de dezembro de 1967 respectivamente, mas não como presidentes eleitos – o marechal Castello Branco inclusive já havia deixado o Palácio do Planalto. Tancredo Neves seria efetivamente o primeiro depois de Jânio Quadros.

Imbuído desse significado, o enviado francês em Brasília em 1985, certo da derrota do candidato Paulo Maluf, passou a insistir para que a França formalizasse um convite ao candidato Tancredo Neves.

No dia 14 de janeiro de 1985, véspera da votação no Colégio Eleitoral, o secretário-geral do Élysée lembrou ao presidente Mitterrand que o resultado das eleições brasileiras estava para sair e pediu permissão para, enfim, enviar a mensagem-convite ao potencial vencedor Tancredo Neves.
O presidente francês devolveria a nota ao secretário com um alusivo comentário feito a mão e em letra escorreita: “Oui, je l’ai déjà dis… même vivement dans ce sens” [sim: eu já disse que sim… e disse vivamente].

Do lado brasileiro, a votação do dia 15 de janeiro de 1985 confirmaria a previsão do enviado francês em Brasília: Tancredo Neves foi eleito presidente na “última eleição indireta do Brasil”. A agonia da derrota das Diretas Já! dava lugar ao ânimo diante do avanço da redemocratização brasileira.

Em muitos aspectos, esse 15 de janeiro de 1985 teria para os brasileiros o mesmo efeito que o 10 de maio de 1981 tivera para os franceses. Fora um momento de graça. Um êxtase tomou conta da população. Se milhares de pessoas invadiram a praça da Bastilha quando da eleição do presidente Mitterrand, as principais avenidas das principais capitais brasileiras ficariam abarrotadas de pessoas com símbolos pátrios e cantando o Hino Nacional após a notícia da eleição de Tancredo Neves presidente do Brasil.

Ainda naquele dia 15 de janeiro de 1985, o presidente eleito brasileiro receberia os cumprimentos do presidente francês e teria em mãos a mensagem-convite, desde muito formulada a várias mãos entre a Avenida das Nações em Brasília e o Quai d’Orsay-rua Faubourg-Saint-Honoré em Paris.

A partir de então tudo ganharia em aceleração.

Uma viagem diplomático-presidencial se prepara. E a viagem do presidente Tancredo Neves foi preparada em detalhes à exaustão.

Todos os envolvidos sabiam da importância histórica daquela tournée. E o presidente brasileiro era, por certo, de todos, o maior interessado. E não demorou a fazer saber ao responsável francês em Brasília da sua intenção em, sim, aceitar o “convite” do presidente François Mitterrand.

Nesse sentido, em menos 72 horas das eleições brasileiras, o conselheiro diplomático do Quai d’Orsay, Jean Musitelli, e o secretário geral do Élysée, Jean-Louis Bianco, estavam mobilizados na preparação da recepção do presidente brasileiro. O contato em Brasília, o embaixador Bernard Dorin, tinha acesso aos conselheiros diplomáticos do presidente Tancredo Neves e estava a par da formatação de todo o roteiro da viagem. Sabia que tudo teria início na Santa Sé, no Vaticano, na Itália, e que Lisboa era a próxima parada europeia confirmada.

Difícil saber de quem veio a ideia de fazer o encontro Tancredo-Mitterrand no dia 26 de janeiro, um sábado. Certo foi que no dia 19 de janeiro de 1985, o presidente Mitterrand estava ciente da visita do presidente brasileiro no sábado, 26.

O horário e o local estavam em aberto. Foi quanto então o presidente francês propôs ofertar um jantar privado ao presidente brasileiro. Sendo assim, o brasileiro poderia chegar no fim de tarde, início da noite. E como local se propôs sua casa de campo em Latche.

Na terça-feira, 22 de janeiro de 1985, o enviado francês em Brasília informava ao Quai d’Orsayem Paris que “M. Tancredo Neves est très sensible à votre invitation qu’il accepte” [o Senhor Tancredo Neves aceitou o vosso convite e segue muito sensibilizado pela oportunidade].

Difícil saber se a essa altura o presidente brasileiro estava totalmente envolvido nos preparativos da viagem. Ele parecia, em verdade, ainda imerso no ambiente político interno brasileiro do 15 de janeiro. Seu tempo parecia contemplar somente reuniões e entrevistas com seus correligionários e jornalistas. De modo que o embaixador Paulo de Tarso Flecha de Lima ou o jornalista Mauro Salles foi quem confirmou à Embaixada da França em Brasília que a presença do presente Tancredo no jantar privado ofertado pelo presidente Mitterrand no dia 26 de janeiro. E logo se enviou o roteiro: sair-se-ia de Roma às 16h30 sentido Latche com previsão de chegar 18h25-18h35 em Biarritz e 19h em Latche saindo às 21h30 e apanhando o trem de volta para Roma às 22h. 2h30 de encontro.

Uma vez em Roma, a delegação brasileira notificou ao Quai d’Orsay que comunicou ao Élysée que o presidente brasileiro seria acompanhado do embaixador Paulo de Tarso, do embaixador Rubens Ricupero e do jornalista Mauro Salles. Era desnecessário informar da presença dona Risoleta Neves que faria par com dona Danielle Mitterrand.

O embaixador Antonio Correa do Lago e o então senador Fernando Henrique Cardoso prometeram vir a Biarritz encontrar a delegação brasileira. Mas não era certo que seguiriam até Latche.

Data do dia 25 de janeiro de 1985 a mensagem de agradecimento do presidente Tancredo Neves aos votos de sucesso lançados pelo presidente francês quando da eleição no Colégio Eleitoral. Nessa mensagem, o presidente brasileiro sopesaria todas as palavras de modo a valorizar o encontro iminente entre eles dois ponderando:

“Eu desejo contribuir para o aperfeiçoamento constante dos laços que nos unem. Nessa tarefa, o diálogo pessoal, que espero possamos ter em breve, há, por certo, de constituir-se em elemento importante para o maior entendimento entre nossos povos e para o crescente dinamismo da cooperação entre nossos países”.

Quando esses dois homens de Estado trocaram os primeiros olhares naquela tarde fria do 26 de janeiro de 1985, na rústica, mas aconchegante casa de campo da família Mitterrand, que fazia lembrar do ambiente modesto, mas moderno da São João Del Rei dos Neves, ambos sabiam exatamente quem eram, o que queriam e o sentido histórico daquele momento: o momentumTancredo-Mitterrand.

Eles eram mais ou menos da mesma idade, da mesma geração e dispunham de experiência e trajetória política similar – mesmo em seus dramas – em seus países. Nesse sentido, cada qual ao seu modo entendia a política como um métier. Um palco de gladiadores, que não admite amadores. Apenas profissionais. Como eles dois. Daí a conexão instantânea.

Mais importante que a conversa foi, por claro, a presença.

Os problemas brasileiros e sul-americanos eram conhecidos. Mesmo assim o presidente francês insistiu em saber das impressões do brasileiro sobre as ditaduras na região. Sobre a Argentina; sobre o Chile. As limitações francesas eram também sabidas. Mesmo assim o presidente brasileiro realçou as dificuldades econômico-financeiras do Brasil. Foi um encontro simbólico, bonito e convivial.

Após o jantar, os presidentes se separariam. O brasileiro seguiria a sua tournée que tinha os Estados Unidos da América como escala principal. O francês passaria a repensar a posição francesa na América do Sul.

A França estava relativamente ausente da região desde o fim dos anos de 1960. Os projetos estruturais de longo prazo estavam, por certo, mantidos. Mas a influência e a presença francesa assistiam farto declínio – especialmente político – havia tempos. E a solidariedade do presidente francês aos ingleses quando do incidente nas Malvinas em 1982 contribuiria ainda mais para a rejeição sul-americana aos desígnios da França.

Desde o início da presidência socialista em 1981, a relação francesa com o dito “terceiro mundo” dispunha de três entradas. México para as Américas, Argel para a África e Deli para a Ásia. Essa cartografia diplomática fora arquitetada pelo chanceler Claude Cheysson, responsável pelo Quai d’Orsay de 1981 a 1984. Quando da troca de Cheysson por Roland Dumas, em dezembro de 1984, o lado americano dessa projeção fora definitivamente retirado devido o reconhecimento da força da influência dos Estados Unidos sobre o México.

Mesmo com a forte implicação francesa para o fim dos conflitos na Nicarágua e em El Salvador, assim como seu empenho como líder do Clube de Paris na rediscussão do endividamento exterior dos países da América Central e do Sul, seus interesses “terceiro-mundistas” estavam distantes dessa região.

Mas o momentum Tancredo-Mitterrand mudaria esse quadro.

Nos dias que sucederam esse encontro, o Quai d’Orsay e o Élysée mobilizariam esforços para ir à posse do presidente Tancredo Neves no dia 15 de março de 1985 e organizar uma visita de Estado ainda naquele ano. Com esse propósito, no dia 1º de fevereiro de 1985, o Quai d’Orsayfez saber à Embaixada Brasileira em Paris e ao Itamaraty em Brasília que o chanceler Roland Dumas conduziria em pessoa a delegação francesa para a posse do presidente Tancredo Neves no dia 15 de maço de 1985.

Como frustração, agonia e morte do presidente Tancredo Neves causaria forte impressão no presidente francês.

Do dia 14 de março ao dia 21 de abril de 1985, o presidente Mitterrand acompanhou com interesse toda a evolução do quadro de saúde de seu colega brasileiro. Semanas antes da morte de Tancredo Neves, o presidente José Sarney diria ao líder francês que “em nome do presidente Tancredo Neves, recebi e muito agradeço os amáveis votos de pronto restabelecimento que v. excelência a ele dirigiu”. E continuaria afirmando que “o apoio de v. excelência, em momento tão singular, constitui prova eloquente do sentimento de amizade que une nossos povos e servirá de estímulo e inspiração para o constante fortalecimento das relações entre nossos países”.

Quando da morte do presidente brasileiro, a primeira manifestação de condolências viria de Jacques Chirac. Em mensagem endereçada ao responsável brasileiro na França, o prefeito de Paris afirmaria que “c’est avec une réelle émotion que j’apprends le déces du Président Tancredo Neves” [é com real emoção que recebo a notícia da morte do presidente Tancredo Neves] E consideraria que “pour les hommes et les peuples attaches aux príncipes de la démocratie et de la liberté, l’élection du Président Neves a constitue un symbole et un espoir” [para homens e povos afiançados aos princípios da democracia e da liberdade, a eleição do presidente Neves constituiu um símbolo e uma esperança]. E ainda advertiria, “je ne doute cependant pas que la nation brésilienne savera conserver les acquis de cette présidence trop ephemère” [de toda sorte, não tenho dúvidas que a nação brasileira saberá conservar as conquistas dessa presidência tão efêmera].

Essa noção de “presidência efêmera” traduzia o sentimento do conjunto da classe política francesa que assimilou rapidamente o significado do presidente Tancredo Neves.

Mas o momento era de luto e o presidente Mitterrand enviou, no dia 22 de abril de 1985, um longo telegrama a dona Risoleta Neves onde afirmava:

J’avais eu le privilège de connaitre et d’apprecier votre mari, qui avait bien voulu me rendre visite a Latche peu après son élection à la République du Brésil. Sa disparition en ce moment crucial de l’histoire du Brésil est une perte immense pour votre pays et pour son peuple qui tout entier faisait confiance a Tancredo et a sés exceptionneles qualités humaines et professionnelles. Du fond du coeur, je compratis, madame, a votre douleur [tive o privilégio de conhecer a apreciar o vosso marido, que visitou-me em Latche logo após a sua eleição à República do Brasil. O seu falecimento nesse momento tão crucial para a históira do Brasil é uma perda imensa para o vosso país e para seu povo que tinha confiança em Tancredo e em suas qualidades humanas e profissionais excepcionais. Do fundo de meu coração, portanto, dona Risoleta, participo de vossa dor].

Evidenciando-se, assim, que o encontro em Latche realmente marcou. Tanto que a resposta de dona Risoleta Neves ao presidente Mitterrand fora também ambientada em Latche. “Meu marido guardava a melhor lembrança do encontro que manteve com vossa excelência em Latche e esperava poder revê-lo em breve no Brasil. Infelizmente, a vontade de deus assim não o quis”.

Nesses termos, para os funerais do colega brasileiro, o presidente francês faria questão de se fazer representar pela primeira-dama Danielle Mitterrand. Na Embaixada Brasileira em Paris seria aberto um livro de condolências que teria a assinatura de mais de 250 personalidades francesas e mundiais de passagem como o chanceler Dante Caputo da Argentina.

No dia 29 de abril de 1985, uma missa de sétimo dia seria rezada na Igreja Saint Germain l’Auxerrois pelo monsenhor Daniel Pezeril e pelos padres brasileiros Astor Salgado e Napoleão dos Anjos Fernandes. 450 pessoas se fariam presentes. Entre eles, o escritor Jorge Amado e a condessa de Paris, Isabel de Orléans e Bragança.

Essas circunstâncias trágicas e dramáticas não demoveram o Quai d’Orsay e o Élysée da visita do presidente Mitterrand ao Brasil que teria início no dia 14 de outubro de 1985. A delegação francesa foi composta pelos principais colaboradores do presidente francês. Roland Dumas – ministro do exterior. Edith Cresson – ministra da indústria e comércio. Jack Lang – ministro da cultura. Jean-Louis Bianco – secretário geral do Élysée. Jacques Attali – conselheiro especial da Presidência. E outras personalidades de importância, como o célebre Claude Lévi-Strauss, seriam incluídas.

O roteiro envolveu cinco dias de compromissos em Brasília, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em São João del Rey e em Recife-Olinda. Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo como lugares recorrentes. São João del Rey como deferência à memória do presidente Tancredo Neves. Recife-Olinda como objeto de curiosidade cultural e intelectual.

Essa visita do presidente francês ao Brasil foi o primeiro sinal de um país do “norte” à “Nova República” saída do 15 de janeiro de 1985.

Mesmo que impotente aos problemas econômicos e financeiros que assolavam o País, esse gesto permitiria a retomada da presença francesa no País e na região.

Desde outubro de 1985, portanto, a relação franco-brasileira voltaria a fluir.

O momento Tancredo-Mitterrand envolveu, portanto, o encontro de 26 de janeiro de 1985 em Latche, o envio do chanceler Roland Dumas à cerimônia de posse do dia 15 de março, a presença da primeira-dama francesa nos funerais de Tancredo Neves e a visita de Estado do presidente Mitterrand ao Brasil em outubro do mesmo ano.

As sinalizações de retorno à democracia no Brasil e a boa impressão causada pela visita em Latche conduziram o presidente francês a simplesmente retomar os princípios estruturais da política externa francesa com relação ao Brasil e à América do Sul. Instaurados pelo general De Gaulle, esses princípios determinavam à atuação exterior francesa o imperativo de independência sem isolamento e propunham o permanente recolocar da França no cenário mundial para além da tensão Leste-Oeste.

Desde janeiro de 1985, portanto, cenários da realidade brasileira eram mais intensamente auscultados no Élysée e no Quai d’Orsay. O retorno à democracia com a superação do fardo dos militares era observado e calculado desde Paris. Conselheiros como Régis Debray e enviados nas Américas como Alain Rouquié e o próprio Bernard Dorin eram absolutamente experimentados do fato latino-americano. Mas o imponderável da doença do presidente Tancredo Neves certamente os fez refazer suas fichas. O retorno dos militares era absolutamente plausível em seus cálculos e temores. Mesmo que a força das Diretas Já e sua significação democrática ainda se fizesse sentir.

Com o adeus ao presidente Tancredo Neves, o desconhecido vice-presidente José Sarney sairia de relativa sombra para assumir os rumos do País. Ele havia participado da situação no regime anterior. Por isso era rejeitado pela opinião pública. Tinha pouco acesso a grupos econômicos apoiadores da candidatura Tancredo Neves. Desconhecia a maior parte dos ministros escolhidos e a razão de suas indicações pelo presidente eleito a 15 de janeiro de 1985. Sabia pouco do programa de governo. Ele havia, verdadeiramente, ingressado na chapa para ser um vice-presidente fraco diante de um presidente forte. Mas os destinos da providência modificaram os planos e a sua legitimação no poder custaria esforços diários. O trunfo de maior importância era não ser deposto por militares ou populares. Os demais sucessos viriam como decorrência.

A ação exterior brasileira desse momento da transição ficou a cargo do Itamaraty e do chanceler Olavo Egydio Setúbal.

Empresário e banqueiro com passagem política pela prefeitura de São Paulo, o chanceler Setúbal, como os demais ministros, fora indicação do presidente Tancredo Neves e tinha por incumbência continuar a renovação da feição exterior brasileira iniciada pelo próprio presidente Tancredo Neves em sua tournée de janeiro-fevereiro de 1985.

No referente à França, ele manteria intenso contato com o chanceler Dumas. Sua extensa troca de correspondências seria intensificada após a morte do presidente Tancredo Neves. Pois do 15 de março ao 21 de abril de 1985, as relações exteriores brasileiras passaram por um momento de relativa suspensão. Os interesses nacionais seguiram irmanados no Hospital de Base de Brasília e depois no Hospital das Clínicas em São Paulo.

No dia 20 de maio de 1985, o chanceler brasileiro agradeceria ao chanceler francês pelas palavras de pêsames pela morte do presidente Tancredo Neves e reafirmaria o empenho do presidente José Sarney no estreitamento da relação entre os países, Brasil e França. Daí em diante, o seu diálogo seria conduzido pela preparação da visita de Estado do presidente Mitterrand ao Brasil que ocorreria em outubro daquele ano de 1985.

Malgrado as incertezas brasileiras, o presidente Mitterrand mantivera sua visita de Estado acordada com o presidente Tancredo Neves em Latche. Mas o encontro estratégico dos mais importantes e esperados ocorreria entre os chanceleres Setúbal e Dumas.

Havia semanas que esse encontro era preparado pelo Quai d’Orsay e pelo Itamaraty. No dia 8 de outubro imediatamente anterior se confirmou o local e horário do encontro deles. Seria no gabinete do chanceler brasileiro, às 17h40. O núcleo da discussão seria o projeto Brasil-França de autoria brasileira. Esse projeto havia sido despachado mês antes às autoridades francesas desde o gabinete do chanceler Setúbal. O projeto Brasil-França envolvia dois eixos de ação. O primeiro consistia na consolidação dos programas de intercâmbio franco-brasileiros existentes. O outro sugeria a promoção de um conjunto de eventos para realçar a reciprocidade e o reconhecimento mútuo dos dois países. Esses eventos incorporariam atividades e discussões no âmbito de cultura, educação, esporte, cooperação científica e industrial em níveis nacional, estaduais e municipais tendo por meta a) fazer convergir os elementos de união franco-brasileira, b) renovar o conhecimento das potencialidades atuais dos países e c) refletir em conjunto sobre os grandes problemas do mundo.

Os franceses se mostraram muitíssimo reticentes sobre essas atividades. No encontro do dia 14 de outubro elas foram tratadas marginalmente. Em sua manifestação, o chanceler francês as considerou interessantes enquanto iniciativa, mas apresentou a necessidade de maior atenção por trocas bilaterais no plano da biomedicina e da biotecnologia. Segundo ele, o interesse francês rumo ao Brasil naquele momento estava mais inclinado à cooperação na formação de pessoas e produção de produtos em áreas imunobiológicas. Entretanto, sob motivação do presidente Mitterrand, o projeto Brasil-França seria transformado em amplo programa de trocas culturais executado entre 1986 e 1989. E assim se daria o tímido recomeço das relações entre os dois países. Tudo em razão do momentum Tancredo-Mitterrand, daquele janeiro de 1985, que, agora, completa quarenta anos.

https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/146439


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