O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Jornal da USP. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Jornal da USP. Mostrar todas as postagens

domingo, 12 de novembro de 2023

Tempos estranhos construídos entre nós - Daniel Afonso da Silva (Jornal da USP)

Tempos estranhos construídos entre nós

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) da USP

  Jornal da USP: 10/11/2023 

https://jornal.usp.br/artigos/tempos-estranhos-construidos-entre-nos/


Virou criminoso ter ideias, tomar partidos, expressá-los. Ficou démodé tratar assuntos sérios, complexos e dinâmicos com a gravidade e o zelo que merecem. Está, como nunca, perigoso afirmar ponderações, convicções, avaliações. A sociedade brasileira – como todas as demais ocidentais e extremo-ocidentais – passou de sólida a líquida; e de líquida a mole. Sendo mole, perdeu a fluidez. Sem fluir, entrou em transe. Nesse transe, estancou a transição de melhoramentos. Sem melhorar, regrediu. Ao regredir, desesperou-se. Acelerou na curva e avançou em marcha à ré. Iniciou namoro desavergonhado com a obscuridade e com a desrazão. Questionando a civilização, reprimindo a civilidade, naturalizando o descontrole de pulsões. Quanta desonra. Sim: descivilização.

O incidente do 7 de outubro de 2023 no Oriente Médio mobilizou a atenção do mundo inteiro – o Brasil incluso. A brutalização das relações entre judeus e islamitas ganhou intensidade poucas vezes anotada. Centenas de pessoas foram assassinadas em instantes e outras tantas foram sequestradas a cativeiros sabe-se lá de qual salubridade. Como tudo hoje contém imediatidade, as imagens, os sons e os clamores médio-orientais inundaram rápido retinas e sentidos em todo o planeta. A indiferença virou instantaneamente impossível. Sucumbir a ela se firmou como sinônimo de covardia, desumanidade, indecência.

Autoridades israelitas se apressaram em classificar as atrocidades como o seu 11 de setembro em menção aos incidentes terroristas que abriram o novo século revelando a impotência da potência norte-americana em seu próprio território. A gravidade do simbolismo dessa comparação dispensa observações. Entusiastas da causa dos palestinos não titubearam em aplaudir a audácia dos ismaelitas radicais que na senda de Osama bin Laden continuam querendo islamizar o mundo inteiro. O impacto moral dessa louvação também dispensa análise demorada. Ausência de meio-termo. Pura e simplesmente isso. Uma ausência de meio-termo que inebriou qualquer ponderação. Avec Dieu, on ne discute pas! [Com Deus, não se discute], lembrou um politólogo argelino.

O extremismo da situação ostracizou as penúrias eslavas e as misérias africanas. O presidente ucraniano segue desesperado sem saber o que fazer. O clamor de Kiev, Kinshasa, Abuja, Bamako, Bangui foi retirado inteiramente dos focos de atenção. A guerra dos mundos saiu do itinerário de Washington, Paris, Londres, Berlim, Bruxelas, Moscou e Pequim para se imiscuir nas batalhas milenares intermináveis dos herdeiros abraâmicos em seus destinos médio-orientais.

Com Deus, por certo, não se discute. Mas as pessoas, de lado a lado, estão morrendo. E não somente islamitas e judeus. Mas também católicos, protestantes, agnósticos, hinduístas, animistas e toda a infinita variedade de abstêmios de fé. Que fazer?

Um alto funcionário do Estado de Israel classificou os palestinos – e não simplesmente os elementos do Hamas que tocaram o terror em Israel – de “animais” antes de endossar a supressão do fornecimento de gás, alimentos e medicamentos aos moradores de Gaza. Lideranças do Hamas em Doha, Teerã e Beirute prometeram reunir forças para, desta vez, eliminar até o último de seus oponentes infiéis.

Quanto ressentimento, quanto ódio, quanta dor.

Onde falta pão, vaticina o provérbio, todos brigam e ninguém tem razão. Todos ali, no Oriente Médio, islamitas, judeus ou não, desejam um simples seu lugar ao sol. Mas a Providência parece não cooperar. Tem mil e quinhentos anos que esse tormento dura. E vai seguir assim. E, por frigir assim, tudo exige imensa cautela, parcimônia, decência, honradez, civilidade e retidão. Não se deve, pois, jogar nem brincar com o sofrimento dos outros como informa um outro adágio conhecido e de valor.

No entanto, a professora Francirosy Campos Barbosa, em seu artigo Cantando al sol como la cigarra: enquanto o terror, publicado neste espaço, no dia 23 de outubro de 2023, evidenciou que por aqui, pelo Brasil, brasileiros não se cansam de jogar e brincar com o sofrimento alheio. E, pior, parecem, inclusive, gostar.

Pelo que ela reportou no artigo, após colaborar com órgãos de imprensa para o esclarecimento de aspectos da tormenta no Oriente Médio, ela começou “a receber inúmeros ataques, por e-mail e pelo Instagram”. E, diante do temor, obrigou-se a revelar aqui, no Jornal da USP: “Temo pela minha segurança e integridade física”.

Três dias depois, no 26 de outubro de 2023, a Comissão Arns, presidida pelo eminente advogado José Carlos Dias e pela digníssima Professora Emérita da USP Maria Victoria Benevides, enviou um ofício ao magnífico reitor da Universidade de São Paulo solicitando a “Defesa e proteção de docentes ameaçados pela manifestação sobre o conflito Israel e Hamas”.

Dispensa-se o cotejamento pessoal para se ter a convicção de que a professora Francirosy – com quem tenho a honra e o privilégio de figurar côte à côte neste espaço – expressa as qualidades de uma pessoa simpática, sensível, correta, inteligente e intelectualmente honesta. Basta que se leia o que ela escreve por aqui e alhures.

Ninguém, como se sabe, toca fundo no imaginário nem na alma de outro alguém – mesmo em divergência – sem praticar a nobreza desses predicados supramencionados. Ninguém desprovido desses predicados consegue adentrar em assuntos tão moralmente complexos, como esses da nova fase das agonias médio-orientais, de modo parcimonioso e tranquilo como a professora Francirosy aqui, ali e em toda parte o faz.

Constrange, porquanto, simular J’accuse sem ser Zola nem ter a ilusão de querer sê-lo. A professora Francirosy possui gente mais consistente para protegê-la. Mas, de toda sorte, constrange muito mais lembrar que a liberdade de expressão segue em vigor como um valor no âmbito da legislação brasileira e no interior de todas as convenções sobre garantias civilizacionais em todo o planeta. Constrange, assim, rememorar que gente civilizada conversa, persuade-se, reconhece-se, harmoniza tensões e elimina aporias. Mesmo com o silêncio. Muita vez com a ausência. Outras tantas somente com a retidão.

Nada disso reside exclusivamente em Hegel nem simplesmente nos iluministas obcecados pelo imperativo da razão. Um apóstolo primitivo, que renasceu no caminho de Damasco para depois morrer decapitado em fúrias romanas, já dizia “sede meus imitadores”, “amai-vos uns aos outros”. O budismo, o hinduísmo, o judaísmo, o espiritismo, todos os animismos e o islamismo comungam nessa métrica e forjaram civilizações mundo afora assentadas nessa convicção. Mas a agonia permanece, o dissenso reina e uma renovada selva selvagem transvestida de descivilização parece em toda parte se avizinhar. Infelizmente, desta vez agora, ao que tudo indica, sem Dante nem Virgílio tampouco Beatriz para algo salvar.

A professora Francirosy não ficou isolada nesse torvelinho da desrazão brasileira dos últimos dias. O professor Salem Hikmat Nasser, da Faculdade de Direto da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, foi ainda mais hostilizado devido às suas sinceras e embasadas avaliações sobre as decorrências do 7 de outubro de 2023 em terras médio-orientais. Os seus contraditores, audazes e cruéis, permitiram-se formular uma petição pública solicitando o seu degredo. Inicialmente de seu espaço laboral, a FGV-SP. Em seguida de seu país, o Brasil. E, por fim, da face esférica deste firmamento; por assim dizer, desta vida.

Sim: em pleno século XXI, vivendo num país onde os seus paladinos se vangloriam do funcionamento das instituições, da qualidade de um regime político pretensamente democrático e da graciosidade de uma sociedade supostamente civilizada, professores são ameaçados de morte simplesmente por cumprir dimensões deontologicamente impostas pela sua função de elucidar.

Tem três anos que o professor Samuel Paty foi degolado à luz do dia na França pelo simples fato de lecionar uma das disciplinas alma mater das elucidações que segue sendo a história. Dominique Bernard, outro professor de História, foi assassinado, também sob a luz do sol, em seu ambiente de trabalho, semanas atrás, depois do 7 de outubro de 2023, pelas mesmas motivações radicais daqueles que acreditam e militam nas bases de absolutos étnico-religiosos impermeáveis à contradição, à divergência e à elucidação.

Pelo Brasil, ainda não se mata professor por isso. Ainda.

Excetuando-se matar, exemplos de agressão, hostilização, importunação, intimidação e humilhação de todo tipo viraram recorrentes no Brasil e em todas as partes do Ocidente e do extremo Ocidente. Cretinos, covardes e canalhas tornaram corriqueiro fustigar professor. E, por mais doentio que possa parecer, esses miseráveis parecem nisso orgasticamente se alegrar.

Instâncias públicas e privadas de monitoramento e controle seguem impotentes e sem nada efetivamente consistente aportar. O presidente Emmanuel Macron, na França, por Samuel Paty fez discursos, mobilizou recursos e pessoal, sinalizou campanhas e projetou ações. O assassinato de Dominique Bernard semanas atrás veio indicar, no entanto, que foi tudo – ou quase tudo – em vão.

Seguindo no velho mundo e retroagindo no tempo, vale sempre lembrar que Raymond Aron foi incontestavelmente um dos luminares do século XX. Seguramente um dos maiores intelectuais de sua época. Mas cometeu delitos gravíssimos aos olhos de seus coevos. Os seus principais desvios foram: 1) surfar a contravento; 2) recusar-se à hemiplegia de se enquadrar cega e ideologicamente à direita ou à esquerda; e 3) explicitar as suas posições, avaliações e elucidações a quem quiser e vier. Os seus contemporâneos não o perdoaram. Os seus detratores chegaram a afirmar ser melhor errar com Sartre (maoísta, esquerdista e confuso) que acertar com Aron. O ápice da contenda veio com os eventos de maio de 68. Diante daqueles espetáculos, Raymond Aron, que desceu às trincheiras da resistência ao nazismo com o general De Gaulle em 1940 para depois se afastar dele após a liberação de 1944, afirmou categoricamente ser “inadmissível e insuportável que um país sério como a França se permitisse retirar do poder o presidente-general Charles de Gaulle em favor do agitador-universitário Daniel Cohn-Bendit”. As suas razões e elucidações nesse expediente eram diversas. Mas a sua convicção profunda e inamovível remetia à memória dos ovos de serpentes que ele vira germinar na Alemanha dos anos de 1930. Ovos e serpentes que marinaram a ascensão de Hitler, do nazismo, do sem-nome, da Shoah. Em síntese, Aron acreditava no trágico. Sabia que por pouco, muito pouco, o nazismo e os demais totalitarismos deixaram de vencer. Antevia, assim, naqueles eventos de 1968, um perigo iminente. Um namoro incestuoso com o trágico. O trágico na vida e o trágico na história. Um namoro que poucos viam. E aqueles que viam fingiam não ver. Por tudo isso ver e dizer, esse gigante do século XX de nome Raymond Aron recebeu um lugar permanente no index da intelligentsia francesa até a sua morte no 17 de outubro de 1983.

Perguntar-se-ia, sutilmente, um desavisado onde estaria a liberdade de cátedra, a liberdade de expressão e a liberdade tout court.

Melhor não perguntar nem imaginar tampouco procurar. Há index em toda parte, a todos os gostos, com variada motivação.

De toda sorte, o passar dos anos foi evidenciando que as preocupações de Raymond Aron estavam recheadas de sentido e de razão. A trama por detrás do mantra do é proibido proibir impulsionou uma horizontalização da sociedade que, com o tempo, começou a retirar a bússola de todas as relações humanas não somente na França, mas em todo o Ocidente e Ocidente extremo. Avant la lettre, portanto, o sociólogo francês avistou o que hoje nos carcome: um pós-modernismo desvairado de mistura identitária e fúria woke.

Focado no Brasil, Nelson Rodrigues, um dos maiores luminares brasileiros de todos os tempos, foi dos primeiros a sentir os sinais de perigo aludidos nas preocupações do sociólogo francês. Perdida em vários lugares de sua extensa obra existe o alerta insistente ao fato de os “idiotas estarem perdendo a modéstia. [Pois] outrora silenciosos e contidos, agora – nos tempos do mestre pernambucano – esses canalhas, cretinos e covardes já maiorais, cheios de si, seguem loucos para aparecer”.

Morto no 21 de dezembro de 1980, quase três anos antes de Raymond Aron, Nelson Rodrigues foi – como Aron – privado da contemplação dos infortúnios que ele próprio percebeu e anunciou para os brasileiros. A imbecilidade dos idiotas foi pouco a pouco tomando conta da pátria Brasilis que ele tanto amou – mesmo sendo ele, Nelson Rodrigues, um simpatizante da máxima de Samuel Johnson que informa: patriotism is the last refuge of a scoundrel [o patriotismo é o último refúgio de um canalha].

Três lustros antes, no dia 2 de abril de 1964, o mineiro Tancredo de Almeida Neves classificou de “canalhas, canalhas” aqueles senhores que surrupiavam o poder para apagar as luzes da Revolução de 1930. Vinte anos depois, o deputado Ulysses Guimarães considerava que os gestos autoritários, inconsequentes e descivilizados daqueles canalhas, canalhas, fardados e sem farda, com dinheiro e sem dinheiro, seguiam vivos, abundantes e contagiando e amealhando seguidores com roupagens libertárias. E não tido por contente na recepção de sua avaliação, o marido da dona Mora Guimarães ainda vaticinou aos céticos que aguardassem, “pois os próximos [canalhas] serão ainda piores”.

Quase trinta anos depois, a gravidade dessa profecia macabra do sábio da redemocratização somada à desesperação de Nelson Rodrigues subiu à superfície da compreensão todos com os protestos das noites de junho de 2013. A partir deles, os imbecis, os canalhas, os covardes, os cretinos e os idiotas, outrora soterrados no anonimato de sua irrelevância, começaram a dominar, barbarizar e terrorizar ineditamente o espaço público brasileiro com a fluidez da internet. Umberto Eco – mais que Olavo de Carvalho – tinha razão: as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis.

Se esses imbecis devem ou não se manifestar, trata-se de uma outra discussão. Entretanto, segue fora de parlamentação se esses incontestáveis pulhas – imbecis ou não; fardados ou não; parlamentares ou não; políticos ou não; empresários ou gente do comum – devem ou não importunar, intimidar, fustigar, ameaçar, humilhar professor em geral, professor universitário em particular ou qualquer concidadão brasileiro de qualquer matiz. Não. Mil vezes não.

Quem se dedicar a meditar sobre as tensões civilizacionais por detrás de toda essa delicada discussão vai notar que instituições escolares, academias e universidades não representam que uma porção periférica, limitada e reduzida do imenso sistema universal de transmissão de conhecimentos, saberes e valores que é a educação. A educação formal – diga-se assim para se referir a instituições formais de ensino – vive sabidamente hodiernamente estágios de miséria, pilhéria e regressão no mundo inteiro. Especialmente nos espaços ocidentais e extremo-ocidentais. A razão essencial dessa queda aos infernos dessa dimensão da educação se deve ao fato de que, salvo exceções, a educação formal deixou de funcionar como elevador social. Os seus frequentadores descobriram que o seu futuro econômico, social, intelectual e cultural pode independer de um diploma de uma instituição de ensino. Como consequência, salvo melhor demonstração, os seus frequentadores que ainda não totalmente desertaram começaram a se autoimpor a incultura como missão. Ou seja, estão virando incultos obstinados. E, infelizmente, nada indica que disponham de motivação para voltar a desejar se cultivar.

O fim da história (que não aconteceu) trouxe paradoxalmente consigo o fim do gosto pelo saber como um valor em si. As consequências civilizacionais gerais disso estão aí para quem quiser ver, entender e sentir. Mas no cadinho limitado da educação formal esses efeitos parecem ser vistos sem ser notados. Desditos sem ser ditos. Sublimados sem ser contraditos. Dito de modo direto: com a desvalorização do gosto pelo saber, o professor, intermediador desse saber, virou objeto da desconstrução e do escárnio de uma civilização em acelerada putrefação.

Em contrário, perceba-se que no Brasil desde as noites brasileiras de junho de 2013 que uma verdadeira chusma de canalhas defende e difunde impune e inadvertidamente o imperativo da necessidade da desconstrução e da destruição das instituições formais de ensino no País. Especialmente daquelas públicas. Notadamente das universidades. Conseguintemente de seus profissionais. Singularmente de seus docentes.

Chegou-se ao cúmulo de se inocular no imaginário da população brasileira hors les murs que as universidades seriam simplesmente um antro de doutrinação marxista, iniciação a psicotrópicos, conivência com imoralidades, além de espaço de deformação de caráter e bons costumes.

Muitos, claro, acreditaram e acreditam.

Como consequência, a integralidade das categorias dos profissionais universitários – e muito especialmente os segmentos docentes – passou a amargar perseguições morais e funcionais, dentro e fora de seus locais de trabalho, como jamais se viu.

Sim. É isto mesmo. A descivilização na sociedade brasileira parece que chegou aonde ela deveria terminar. Foi, assim, portanto, ficando, por evidente, perigoso ser docente, ter ideias, tomar partidos, expressá-los.

Quando se lê na petição da Comissão Arns que: “Por fim, solicitamos que nos sejam informadas as medidas tomadas pela Universidade de São Paulo para a defesa do direito à livre expressão da professora Dra. Francirosy. E ficaremos agradecidos com as providências administrativas tomadas pela Reitoria para a defesa dos princípios citados e para a proteção dos docentes ameaçados”, a perplexidade generalizada fica tão imensa que chega a obliterar a dramaticidade da situação da Francirosy Campos Barbosa, do professor Salem Hikmat Nasser e de tantos outros anônimos interpelados diuturnamente pela desrazão. Inicia-se outra reflexão. Menos amena, muito profunda e sem respostas seguras. Começa-se a, singelamente, meditar sobre que sociedade é esta, que país é este, onde foi que nos permitimos tanto errar.

Tempos estranhos construídos entre nós.

________________
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

A banalização de tragédias sem fim - Daniel Afonso da Silva (Jornal da USP)

A banalização de tragédias sem fim

Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) da USP

Jornal da USP,  16/10/2023: https://jornal.usp.br/?p=693695

Um famoso adágio latino informa que não se deve jogar nem brincar com o sofrimento dos outros. A face inquestionavelmente macabra na natureza humana que reemergiu com a agressão de altíssima intensidade perpetrada pelo Movimento de Resistência Islâmica, Hamas, ante a população do Estado hebreu de Israel assim como com a coalizão do Ocidente em apoio à investida de Israel na faixa de Gaza afirma que o conteúdo desse adágio foi simplesmente desprezado ao longo do tempo.

A tensão multimilenar desses povos judeus e ismaelitas remonta à legenda de Abraão, do Gênesis, nos mistérios da Bíblia. A materialização do ódio de parte a parte foi reforçada nas desventuras do imperador Nero nos anos de 60 da era cristã e, por mais de mil anos, em seguida, ambientou cruzadas intermináveis pelo domínio de lugares sagrados. O que acabou por enebriar os imaginários de todos os envolvidos.

Os descaminhos da reforma e da contrarreforma entre katholikós nos séculos XV e XVI provocaram uma carnificina tão letal quanto a peste dos tempos anteriores. O absolutismo europeu como instrumento de mediação para encerrar essas guerras civis religiosas implacáveis desembocou na famosa raison d’Était que forjou, inicialmente, a obliteração da presença de Deus no cotidiano corrente para depois retirar, integralmente, a convicção da fé cristã como princípio constitutivo da Europa e do Ocidente.

Os iluminismos ambientes nos séculos XVII e XVIII fizeram de tudo para acelerar essa degradação dos valores do cristianismo primitivo. Fomentaram numa crítica obstinada que produziu uma crise sem precedentes na natureza da própria realidade moderna dois para três séculos após ser iniciada. A decapitação do rei concretizou todo esse propósito de banalização da transcendência com a promoção de um desconjuntamento moral da vinculação entre sociedades, Estado e o divino. Os mandatários passaram a ter apenas um corpo em lugar de dois. Consequentemente, de súbito, como desejaram Voltaire, Kant e Hegel, “les enfants de la patrie” [crianças da pátria], também conhecidos por cidadãos – como, desde 1792, aduz La Marseillaise francesa – foram investidos das responsabilidades totais sobre a sua própria sorte terrena. A busca da felicidade, assim, virou um experimento da razão sendo a deferência ao divino relegada aos impérios de uma intermitente ilusão.

A Modernidade, planejada para rivalizar com o Deus presente, desse modo, parecia se confirmando de cabo a rabo. Com os dividendos da recente revolução industrial, demonstração mais eloquente da pujança dessa Modernidade, franceses, ingleses e afins, principais representantes desse novo paradigma, conquistaram um poder de gestão e arbitragem do mundo inteiro jamais vislumbrado desde os tempos do imperador Rômulo de Roma. Por consequência, após a Revolução Francesa, desde Paris, Londres e afins, trabalhou-se diuturnamente para esse mundo inteiro virar uma réplica ou duplicação em miniatura da Europa e do Ocidente. A europeização, ocidentalização, dessacralização e desencantamento do mundo estavam em curso. Tudo em nome da razão.

O primeiro grande choque dessa tentação da razão dos modernos veio do Caribe, de Saint Domingue, em 1804, das tropas de Toussaint L’Ouverture. Nesse momento, ficou evidente que na consciência de colonialidade – espelho de Próspero da Modernidade nos espaços coloniais – residia o antídoto para toda a prepotência da razão dos modernos. Começava-se, assim, a fase de afirmação da razão divergente, do reconhecimento dos outros e da emergência do resto.

Mesmo ignorando toda essa verdade paralela, Hegel viu na famosa batalha napoleônica d’Iena, em 1806, o início de uma viragem mental geral sem volta que parecia levar a história ao seu novo fim. Como no canto de Camões. Um fim da história que indicava novos começos. Onde “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Agora sem Deus, sem fé e com muita imanência.

Precisou Napoleão chegar à Campanha da Rússia, em 1812, para os hegelianos perceberem que, mesmo com a mudança de tempos e vontades, a razão dos modernos era impotente diante dos mistérios do divino. Os russos mobilizaram coragem onde eles próprios não a viam e resistências onde eles mesmos nunca foram capazes de perceber.

Basta se reler Tolstói para tudo isso se pressentir.

A força daqueles mujiques que enfrentaram – e venceram – a maior armada do planeta vinha do fundo dos anos, dos confins do tempo, de uma devoção sem fim. Não era algo terreno nem racional, tampouco moderno. Era a convicção atemporal de serem eleitos de Deus. Um Deus que lhes impingia a vontade para lutar até o seu último homem para defender o essencial da natureza de seu mundo eslavo.

Esse segundo choque de realidades, como o primeiro no Caribe, foi minimizado e rapidamente esquecido depois que o inglês William Pitty e o francês Talleyrand-Périgord tomaram as rédeas das tratativas de Viena de 1814-1815 e conduziram os europeus e os ocidentais às novas ilusões da razão moderna e iluminista que resistiram até o colapso geral de 1914.

Depois do que se viu e ainda se sente entre 1914 e 1918 – VerdunLa SommeLa MarneChemin des Dames e outras imitações de inferno terreno – virou natural também se minimizar o calvário da Guerra do Paraguai, as bestialidades da guerra civil norte-americana e os holocaustos coloniais pela África e pela Ásia entre Napoleão e o presidente Woodrow Wilson. Mas não teve jeito. A Grande Guerra de 1914-1918 desmascarou a Modernidade e pôs fim à ambição dos europeus de europeização, ocidentalização e miniaturização do mundo.

Quem duvidou de início, poucos anos depois, compreendeu tudo quando Paris, Londres, Washington e afins foram obrigadas a se aliançar com eslavos, africanos, médio-orientais e asiáticos para conter a sanha tétrica de Hitler e de suas inumeráveis reproduções em pequena escala em todas as partes do mundo. Mesmo assim, essa sanha sem graça nem Graça – desgraçada, portanto – acabou por ceifar a existência de mais de seis, sete ou oito milhões de judeus e conduzir à penúria, ao degredo e ao desespero mais de 50, 60 ou 80 milhões de seres humanos. Tudo simbolizado na Shoah, na raison d’Était e na razão iluminista tout court. Foi uma carnificina sem perdão. Que, por ser assim, justificou a criação de um Estado hebreu para os judeus e a privação dos muçulmanos aos seus espaços de reivindicação no Oriente Médio.

Esse terceiro choque de visões e razões do mundo dividiu ainda mais o mundo já dividido e reforçou a transcendência como fator de separação.

Ocidentais, europeus e norte-americanos, simularam não se tratar de nada disso. Seguiram minimizando o seu Deus em favor da sua democracia. Todo o mal-estar da civilização entre eles anunciava ruínas que ninguém queria ver. Sem Deus, mesmo que apenas um Dieu caché, a cultura do Ocidente ia se fragmentando. A fragmentação de culturas, em si, nunca representou um problema. A fragmentação de culturas pelo solapamento de seus fundamentos enseja um feito grave. Indica a aproximação de seu fim. Como notaram Nietzsche depois Auerbach. Com seu Deus ausente, o Ocidente não passava de um tipo de civilização que ia desaparecendo. Foi esse o recado dos 20 anos de crises, em longa noite escura, de 1914 a 1945. Um recado para o Ocidente. Não para os demais.

A gestão da dissuasão nuclear a seguir, ao longo da Guerra Fria, permitiu a minoração concreta dessa sensação de ruínas ocidentais e a contenção daquela percepção de separação entre os outros, notadamente os médio-orientais. Sempre que alguma pulsão se alterava por lá, a Otan, a URSS ou as Nações Unidas se mobilizavam para tudo arbitrar e estancar para nada se descarrilar. Foi assim em 1956 no Egito. Assim em 1967 na Guerra dos Seis Dias. Assim em 1973 no Yom Kippur, Grande Perdão, dos judeus.

Mas o fim da Guerra Fria alterou tudo. Um imenso vazio se instalou de fato entre os ocidentais, europeus e norte-americanos, especialmente em seu trato com os outros. Um novo fim da história foi propalado. Ares de triunfalismos rondaram, mais uma vez, os espíritos. A razão iluminista, anulada pelas guerras totais e pelo mal-estar da civilização, dava mostras de revivescência. Não surgia em chamas, mas suas brasas voltavam a crepitar. Só que agora transvestidas em conceitos mais novos. Globalização, democracia e consumo. Todos com pretensões universais.

Isso tudo levou ocidentais, europeus e norte-americanos, a voltar a querer europeizar e ocidentalizar o mundo. Como nos tempos de Hegel. Como nas tramas de Voltaire. Fizeram, assim, entender que o mundo, depois do ocaso da URSS, poderia, enfim, ser plano, unipolar e sem rugas. Uma verdadeira e integral miniatura do Ocidente. Um mundo condenado ao occidental way of life and meaning. Sem divergências mentais nem modificação de humores. Como num sonho comum, com amores, pudores e valores suspirando na mesma hora.

Mas nada durou sendo assim.

Os ataques do 11 de setembro de 2001, o 9/11, vieram anunciar as fraturas irreconciliáveis de um mundo inteiro com muita história e nenhuma salvação.

O notável historiador francês Robert Frank identificou nessas efemérides do 9/11 a revanche de quem foi historicamente retirado da história – a saber, a revanche dos fiéis e infiéis médio-orientais. Samuel P. Huntington, historiador e cientista político norte-americano, percebeu se tratar da revanche dos outros, novamente dos médio-orientais, impermeáveis às pretensões ocidentais. Já o búlgaro Tzevtan Todorov, de saudosa memória, permitiu-se anotar que tudo aquilo sinalizava o retorno dos bárbaros, o império das pulsões e os imponderáveis da desrazão.

O que se vê nessa recente afronta do Hamas aos hebreus de Israel demonstra a resultante de tudo isso. Fragmentação do Ocidente. Entropia da civilização. Mal-estar da Modernidade. Incontinências da Pós-Modernidade. Retorno dos bárbaros. Retorno da desrazão. Embate implacável entre civilizações. Revanche, sem perdão, de povos inteiros, historicamente, açoitados em sua cultura, fé e condição e obrigados a acreditar em globalização, democracia e consumo.

Não precisa muito se dizer que a reação norte-americana ao 9/11 foi a conhecida guerra terrorista ao terror que brutalizou todas as relações entre os eleitos de Deus médio-orientais. A pacificação entre judeus e ismaelitas ensejada desde Oslo desapareceu. A autoridade da Autoridade Palestina começou a esmaecer. A tentação do islamismo mundializado passou a tomar conta. Osama Bin Laden e o presidente George W. Bush ditaram a pauta de tudo. O nós e eles ficou instalado. Nunca mais se conseguiu entre todos algo acordar.

O presidente Barack H. Obama tentou minimizar as ilusões dos imperativos universais de globalização, democracia e consumo entre os médio-orientais. Foi, assim, ao Cairo em 2009. Ofertou uma reconciliação. Propôs um recomeço. Indicou empatia à alteridade. Mas tudo em vão. Não dava mais. O Cícero africano, que presidia a Costa do Marfim, decidiu, meses depois, desrespeitar o pleito eleitoral de seu país e, com isso, inaugurou a Primavera dos Árabes. Os marfinenses, de início, se rebelaram. Inundaram praças e ruas. Chamaram a atenção em protestos. Como resposta, o presidente Laurent Gbagbo, resistindo na função, decidiu reagir. Colocou tanques de verdade nas ruas. Autorizou o uso de munição de verdade nesses tanques. E permitiu que se alvejassem manifestantes de carne e osso – e, portanto, também de verdade – em protestos pelas ruas das cidades. Quanto horror! Ocidentais, europeus e norte-americanos, quiseram intervir. E intervieram. Mas a desgraceira já se anunciava sem fim. Mais uma distopia do 9/11. Mais um choque da desrazão. Agora infestando todo o Magreb e regiões médio-orientais.

A Primavera dos Árabes de braço com a guerra terrorista ao terror do presidente George W. Bush e à fúria islamista de Osama bin Laden promoveram, dessa maneira, a maior hecatombe humana desde as guerras totais de 1914-1945. Hecatombes essas que internacionalistas, de modo pomposo, denominam crises humanitárias. Cidades inteiras, neste início de século XXI, foram destruídas, pela África e pelo Oriente Médio, em nome dos barbarismos da desrazão. Países inteiros, africanos e médio-orientais, seguiram iludidos pelos mantras do consumo, da democracia e da globalização. Regiões inteiras foram conflagradas em nome do Deus Mercado que esses conceitos ensejam. Criou-se, assim e contudo, o maior contingente de miseráveis deste mundo, geralmente vagando por terras estranhas às suas e ansiando um singelo lugar ao sol.

Quem viu tudo isso desde as capitais do Ocidente – Paris, Londres, Nova York, Washington, Berlim – ficou perplexo e quis desconversar sobre uma responsabilidade que também era sua. O seu autoconsolo vinha já de tempo de todo o seu esforço silencioso em acolher partes de toda essa nova miséria do mundo desde o colapso das descolonizações. Mas esse seu tudo, neste conflagrado século XXI, virou pouco. Mas esse pouco mostrou a sua face adstringente nas capitais ocidentais depois que o Hamas voltou a brutalizar as interações médio-orientais nas semanas recentes.

Desde o 7 de outubro de 2023 que as grandes cidades europeias e norte-americanas vivenciam as tentações médio-orientais. Subitamente, as suas populações se descobriram majoritariamente não ocidentais e não sabem o que fazer. Eternos fiadores do Estado hebreu israelense, a Europa e os Estados Unidos foram surpreendidos por um apoio interno sem precedentes de seus concidadãos à causa dos palestinos e aos desvarios do Hamas. O presidente Emmanuel Macron se obrigou a baixar decretos censurando manifestações pró-islamistas na França. Os mandatários de Bruxelas, Berlim, Londres e Washington fizeram o mesmo. Ninguém no que restou do Ocidente presumia algo similar. Uma traição dentro de casa. Ninguém sabe se por Emma ou Capitu. Mas, simplesmente, um novo choque de desrazão sem precedentes simbólicos no coração desses ainda ocidentais, europeus e norte-americanos, e, portanto, bem ao fundo, cristãos.

Adicione-se aos fatos o reconhecimento de que esses desavergonhados apoiadores dos barbarismos islamistas do Hamas não são leninistas nem trotskistas, tampouco stalinistas ou afins. São os próprios islâmicos que passaram a povoar demograficamente a Europa e os Estados Unidos e conseguiram desmoralizar todos os apelos de laicidade e assimilação. O que um dia foi o debate sobre portar ou não um véu, agora virou a deliberação sobre permitir ou não o apoio a ações terroristas de macabra ventura em terras médio-orientais.

Voltaire nem Kant tampouco Hegel imaginaram uma tamanha transgressão de valores ocidentais pretendidos universais.

Se isso não bastasse, após a selvageria do Hamas, o reflexo legítimo do Estado hebreu seria, em nome de sua honra, contra-atacar. E o contra-ataque começou. Fechou-se um cerco à Faixa de Gaza. Privou-se a todos de água, gás e eletricidade. Bombardeou-se edifícios, praças e ruas. Tudo isso antecipando um confronto anunciado terrestre para caçar até o último homem dos radicais do Hamas.

Nessa incursão terrestre – se acontecer – as forças israelenses vão experimentar o que os oficiais brasileiros do Bope experienciam na Rocinha, no Jacarezinho, na Nova Brasília, na Vila do Vintém no Rio de Janeiro: uma guerrilha urbana sem regras nem solução onde as maiores baixas são colaterais e de inocentes. O problema é que esse tipo de investida foi – e continua sendo – imensamente condenado por ocidentais, europeus e norte-americanos, quando utilizado pelas tropas russas na Ucrânia. Será que no caso israelense se vai aprovar?

Muitos pesos e muitas medidas. Não tem como suportar.

E, justamente, por não se suportar que os africanos se rebelaram em cascata nos últimos meses e anos no Sahel e em seus arredores quando notaram que europeus e norte-americanos esboçaram um zelo pela democracia, pelo consumo e pelos direitos humanos dos ucranianos que nunca sinalizaram engendrar ao encontro dos africanos no Sudão, na Nigéria, no Mali, no Congo, no Burundi, no Burkina Faso nem no Gabão. Mesmo o cinismo, a mentira e a complacência, já forjava Shakespeare, um dia encontram o seu fim.

Muitos ainda se perguntam, nesse sentido e não em qualquer outro, a razão pela qual uma vastíssima quantidade de países, notadamente africanos, outrora subservientes aos ditames do Ocidente, dos europeus e dos norte-americanos, preferiu simplesmente ignorar os reclamos de Paris, Berlim, Londres e Washington para o fazimento de uma condenação internacional implacável de embargos e sanções contra o povo russo. A resposta desde muito vem evidente: os sonhos de diferentes são divergentes. Os ponteiros dos relógios do Ocidente e do resto não batem a mesma hora. Assim, quase ninguém dos divergentes apoiou a ofensiva europeia e norte-americana contra o presidente Vladmir Putin. E quem, desavisadamente, hesitou e apoiou, logo em seguida recuou e declarou neutralidade.

Nada disso quer dizer que o famigerado “Sul Global” seja uma realidade. Qualquer observador honesto e minimamente informado compreende que essa imagem meridionalista sugere uma simplificação extremamente perigosa das fraturas expostas de um mundo contemporâneo em dissolução. A China e a Rússia, por exemplo, vedetes de primeiro plano desse arranjo meridional, estão no hemisfério norte. A Austrália e a Nova Zelândia, inquestionáveis entrepostos extremo-ocidentais na Oceania, estão ao Sul. A Síria, o Irã e o Catar sonham sonhos eslavos, asiáticos, médio-orientais, mas jamais ocidentais. A Arábia Saudita ainda espera, um dia, se norte-americanizar. A Malásia se imagina virar uma Arábia Saudita. A Zâmbia namora vez a China vez a Rússia, desejando ser um grande da Eurásia. O Uruguai daria tudo para não pertencer ao Sul nem ao Mercosul. O Chile, nem se fale. O Sudão do Sul gostaria muito de estar no hemisfério norte. E o Brasil e a Argentina, que, por evidência, possuem bons corações, nunca conseguiram sincronizá-los para pulsar no mesmo tom.

Esse mosaico de uma realidade em decomposição pode ser ainda evidenciado pela dificuldade que todos esses países têm tido em se posicionar diante da inquestionável carnificina impetrada pelo Hamas. Ninguém dos isolados meridionais deu um apoio cerrado à Israel como a Argélia, a Síria, o Líbano, o Catar e o Irã deram à Palestina e ao Hamas. A Rússia nem a China, membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, preferiram se manifestar. Aprovaram em silêncio o regozijo de ver mais uma arquitetura ocidental – no caso, Israel – desmoronar. O presidente brasileiro, inquestionavelmente o chefe de Estado mais experiente, mais importante e mais expressivo entre os mandatários do Brics e do mundo de tinos meridionais, não soube o que dizer e ainda não se decidiu sobre como fazer para redizer o que não disse imaginando dizer.

Note-se a magnitude do problema.

E que ainda seja anotado que tudo fica mais grave quando se reconhece que o Egito alertou repedidas vezes aos israelenses – como de resto o fizera em 1973, nos ataques sobre o Yom Kippur – da iminência de um ataque islamista de gigantescas proporções. Por que se ignorou?

Uma primeira explicação poderia se aninhar no complexo de superioridade de um povo judeu que suportou as maiores perseguições registradas pela história da humanidade. Esse sentimento de superioridade confere aos mandatários israelenses níveis extremos de orgulho e desprezo frente aos demais. Especialmente ante aos seus vizinhos magrebinos. O orgulho precede a queda, já diziam os Provérbios de Salomão. As gentes de Telavive e Jerusalém sabem bem disso. Portanto, olhando mais de perto, existem outras razões mais tangíveis para essa sua indiferença e não ação. No recente alargamento dos Brics, o Cairo foi indicado com mais uma capital desse aglomerado de antagonistas meridionais. Virou, desse modo, razoável aos israelenses suspeitar das tramas dos mandatários do Egito.

Enfim, não se deve, de fato, jogar nem brincar com o sofrimento dos outros. Quem ainda não reconheceu a pugnacidade desse ensinamento, que volte a meditar sobre todas essas indeterminações destes tempos interessantes, desencantados e sem perdão que a Modernidade, a Pós-Modernidade e o século XXI apresentam.

O formidável diplomata francês Maurice Gourdant-Montagne, antigo secretário-geral do Quai d’Orsay [Itamaraty francês] e conselheiro especial do presidente Jacques Chirac, nesse sentido, vem de publicar um livro simplesmente extraordinário sob o título Les autres ne pensent pas comme nous [em tradução livre, Os outros não pensam como nós pensamos]. Desde o enunciado do título já vai evidente uma mudança de mentalidade sem precedentes no ideário franco-europeu-ocidental.

Desde os tempos de André Gide que os franceses, europeus e ocidentais acreditavam verdadeiramente que os médio-orientais, latino-americanos, asiáticos e afins eram europeus e ocidentais alfabetizados em outro idioma. Esse seu reflexo foi assim por praticamente todos os séculos do XVIII ao XX. Talvez uns e outros ainda o mantenham assim. Mas a ascensão da China, da Ásia e da Eurásia e a projeção de imensos oásis de prosperidade pela África, América Latina e América do Sul informam que o parêntese de cinco séculos de europeização e ocidentalização dos negócios do mundo está terminando. Tudo que se vivenciou depois de 1492 chegou ao século XXI integralmente estraçalhado. Nada disso consegue mais se sustentar. E isso tem implicações gravíssimas para o ordenamento internacional. Ou, como anunciava o presidente Ronald Reagan, para a new world order. Perceba-se que a mesma Organização das Nações Unidas que não consegue selar o destino da intempérie da Rússia versus a Ucrânia, desde 1948 também não consegue impor uma paz sustentável aos fiéis e infiéis médio-orientais. Do contrário, só pioram a situação. E, aqui, o caso do Irã, nesse intercurso, parece o mais ilustrativo.

Com o escalpelamento da Al Qaeda e, em seguida, do Estado Islâmico, a responsabilidade pela afirmação do islamismo mundial ficou a cargo de Teerã. Os promotores da revolução iraniana empunharam essa responsabilidade como a missão final de suas vidas. O aglomerado denominado irmandade muçulmana virou o seu principal aliado nessa mundialização. E tem muito que já deixou de ser enigma que essa irmandade encarna o Hamas na Palestina.

A Palestina continua um ambiente pobre, limitado e desprovido de recursos. Quem rever com vagar o que os integrantes do Hamas fizeram no dia 7 de outubro de 2023 poderá notar que seria impossível a um grupo local empobrecido pelas circunstâncias e amputado em sua razão possuir tamanha proeminência de materiais, inteligência e logística assim como tantos aparatos táticos e estratégicos para tamanha operação. Parece evidente que tudo veio do Irã e de suas coalizões africanas e médio-orientais pela causa islâmica. Isso quer dizer que um cessar-fogo entre os israelenses e o Hamas na Faixa de Gaza vai depender da arbitragem dos iranianos. Sim: vai ser necessária uma conversação com o diabo. Ou, melhor, com os outros.

Os ocidentais, europeus e norte-americanos, identitários, pós-modernos e de disposição woke, desde que começaram a matar o seu Deus no século XVII iniciaram a desprezar o diabo. Muitos nem sabem que ele existe. O diabo são, literalmente, os outros. Tal e qual o inferno que dizia Sartre. A prepotência moderna da razão iluminista retirou da consciência do Ocidente, dos europeus e norte-americanos, o compromisso de reconhecimento dos outrosOutros que, definitivamente, ne pensent pas comme nous.

Todos esses feitos e fatos recentes ao longo do século XXI indicam que os ocidentais começaram a, sem perceber, virar esses outros. O ocaso do Ocidente ainda figura num futuro incerto. Mas a sua perda de relevância vai se fazendo inquestionável e conduzindo os seus praticantes a uma considerável irrelevância. Irrelevantes viram os outros.

O 11 de setembro de 2008, a crise financeira mundial de 2008, a pandemia de covid-19, a nova fase da tensão russo-ucraniana e agora as escaramuças entre fiéis e infiéis médio-orientais evidenciam que um novo mundo já nasceu. Sem os controles antigos, sem os seus autoritarismos nem os seus constrangimentos. Ninguém consegue presumir o devir de tudo isso. Mas uma coisa é certa: se a superação das ilusões das certezas ocidentais não for, logo, realizada, seguir-se-á nessa onda de tragédias e estupefação sem fim. Como que se brincando com fogo, banalizando-se o mal. Sem um reposicionamento do Ocidente, dos ocidentais, europeus e norte-americanos, no cenário mundial, uma nova história vai ter fim. Mas, dessa vez, talvez, o seu último.