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domingo, 8 de dezembro de 2024

A França se lança ao desconhecido - Daniel Afonso da Silva A Terra é Redonda,

A França se lança ao desconhecido

Daniel Afonso da Silva

A Terra é Redonda, 6/12/2024

https://aterraeredonda.com.br/a-franca-se-lanca-ao-desconhecido/ 

 

A classe política francesa e suas elites econômicas e culturais conseguiram, finalmente, lançar o país ao desconhecido, tornando a integralidade do regime disfuncional


Era previsível: um país – a França – ingovernável. Foi premonitório: o término das Olimpíadas de Paris com Tom Cruise e Missão Impossível. O primeiro-ministro francês, Michel Barnier, vem de ser demitido pelo Parlamento após 91 dias na função. Os parlamentares reuniram 331 votos – bem mais que os 289 necessários – para censurá-lo e ejetá-lo do cargo.

Jean-Luc Mélenchon foi o mentor e o tenor da manobra. Marine Le Pen, sua coadjuvante em convicção e apoio. As duas maiores forças político-partidárias da França, malgrado as suas diferenças, uniram-se em alma, em princípio, contra a proposta de orçamento apresentada pelo primeiro-ministro. Mas, em verdade, o seu objetivo indisfarçável sempre foi fragilizar o presidente Emmanuel Macron.

Que, doravante, precisa reconhecer a derrota, acatar a decisão do legislativo, acolher a demissão de Michel Barnier e de seu brevíssimo governo de três meses, nomear um outro primeiro-ministro e vistoriar a escolha de novos ministros, novas táticas e novas estratégias para superação da variedade de sinistros franceses momentâneos, conjunturais e estruturais extraordinariamente profundos. Sendo o colapso econômico muito grave. O constrangimento partidário gravíssimo. A entropia política sem precedentes. E a crise de regime, matizado pela Quinta República, perto de terminal.

Sem meias palavras, a classe política francesa e suas elites econômicas e culturais conseguiram, finalmente, lançar o país ao desconhecido, tornando a integralidade do regime disfuncional. Por claro, que em decorrência de operações sorrateiras. Que não vêm de hoje nem de ontem. Mas de tempos. Anos e mais anos com a embarcação fazendo água. E, agora, enfim, com furos aumentados, casco estourado e leme inteiramente avariado. Sendo improvável a solução por reparos. Restando apenas reconhecer-se a abertura de uma nova temporada de caos.

Forjada pelo general Charles de Gaulle, a partir de 1958, a Quinta República, enquanto regime político francês, foi, sim, uma resposta à instabilidade política e moral da Quarta República. Mas, também e fundamentalmente, um esforço de superação da “república de partidos”. Um cancro insistente permanente na vida política da França.

Como cotidianamente notada, a tensão no interior da classe política francesa jamais abdicou a sua condição efervescente. Desde a Revolução, passando pela Restauração, avançando pelo golpe – farsa ou não – de Napoleão III, chegando ao colapso de 1870-1871, amargando o após 1918 e 1929, vivenciando o cataclismo de 1940, entorpecendo-se com a resistência ao nazismo até 1944, juntando os cacos da humilhação de Vichy depois e tentando superar o tropismo da France Éternelle versus a vulgaridade da gestão do imediato. Um imediato que envolvia (i) a reconciliação nacional, (ii) a reconstrução do país e (iii) a definição do destino das colônias africanas.

O general De Gaulle fora retirado dessas incumbências desde 1946. Ele parecia controverso demais. Conduzira a resistência francesa desde 1940. Era herói inequívoco das guerras totais de 1914 a 1945. Mas – talvez também por isso – granjeou suspeição de todas as partes. Notadamente do primeiro-ministro Winston Churchill, que sempre lhe aplicou votos de desconfiança, e particularmente do presidente Roosevelt e todo o establishment norte-americano, que nutriam por ele um complexo sentimento de admiração e repulsa. Especialmente porque o general De Gaulle, no fundo, era a quintessência do marquês de La Fayette – “herói de dois mundos”, combatente da Guerra de Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa – com todo o seu estigma de ser admirado em bravura e menosprezado em reconhecimento.

Como todos podiam vivamente se lembrar, a étrange défaite francesa de 1940 tinha sido um choque planetário. Malgrado o extraordinário empenho do general francês na superação dessa situação, após a liberação de Paris e da França em 1944-1945, ele foi percebido como corpo estranho em seu próprio país quando a situação serenou. E, com isso, foi obrigado a retirar-se da vida pública e reduzir-se a singelo e silencioso observador distante. Longe de tudo, mas perto de todos. Especialmente com o avanço da Guerra Fria.

Contrário a todas as aparências, a Guerra Fria sempre foi um problema essencialmente europeu cujo impasse se devia ao destino da Alemanha. Que desde Yalta e Potsdam fora partilhada entre norte-americanos e soviéticos. Deixando bem claro o imperativo da tensão Leste-Oeste entre liberais e anti-liberais forjando um espaço de rivalidades sem perdão interiorizadas e simbolizadas pela ocupação de Berlim. Ainda não existia muro. Mas a cortina de ferro já era uma realidade inconteste.

Assim, desde 1945, a possibilidade de avanço vermelho causava apreensão. Especialmente entre os franceses. Que, por sua vez, suplicaram pelo apoio permanente e estrutural dos norte-americanos. Que, como resposta, retornaram ao Velho Mundo com o Plano Marshall e a Otan. Dois projetos que permitiram a efetiva reconstrução da França e a decisiva internalização notas de pacificação os franceses.

Mas, apenas, entre os metropolitanos. Pois, nas colônias, notadamente, africanas, desde 1944-1945, em lugar de fim da guerra e dos conflitos, acelerava-se o verdadeiro começo de uma guerra sem fim por independência e liberdade. E por razões plausíveis: os colonos franceses haviam participado dos esforços de guerra sob a aura da resistência implementada pelo general De Gaulle a partir de 1943 e, com o fim do embate ante o nazismo em 1944-1945, a sua demanda geral moveu-se ao encontro da supressão do sistema, do regime e do mando coloniais franceses. Lutava-se pela descolonização. Mas a gente de Paris seguia aturdida e indiferente. Especialmente após 1946, com a partida do general.

Nesse embate, a classe política francesa voltou rapidamente a viver entropias após 1946. Era, de uma só vez, impossível de se ignorar as demandas africanas como eles ignoravam e inconsequente ignorar o peso das colônias para o orçamento francês como os menos experimentados nunca conseguiram se dar conta. Frente a isso, a junção de insensibilidades, ignorância e indiferença acabou por conduzir o país à beira do precipício. Gerando um cenário de franca anomia. Onde a Quarta República deixou de se fazer funcional.

Isso porque a pressão parlamentar contrária à concessão de independências aos africanos conduziu – para ficar num simples exemplo – pressões orçamentárias insuportáveis para a manutenção de integridades territoriais coloniais e, por outro lado, a redução de impostos advindos das colônias. E se isso não bastasse, o francês metropolitano francês – leia-se: a sociedade civil – estava demasiado cansado de aventuras e guerra.

Para superar a situação, pôs pressão em sua classe política que, por não suportar, sucumbiu a uma imensa instabilidade partidária. Que contaminou o Parlamento. Que, por timorato, passou a padecer de convulsões sucessivas. Produzindo 24 governos e 12 primeiros-ministros nas legislaturas 1946 e 1958, e levando o regime político a uma disfuncionalidade total. Sem continuidade nem credibilidade na condução de seus destinos. O que impôs a reabilitação do general De Gaulle. Essencialmente para solucionar a problemática colonial. Mas, fundamentalmente, para superar essa guerra infindável de partidos.

Convocado em 1958, o general foi imediatamente tornado plenipotenciário. E, nessa condição, compôs às pressas uma Constituição. Foi à Argélia – principal e mais conturbada colônia. Apresentou aos argelinos o seu ambíguo “je vous ai compris” [eu lhes compreendi]. Iniciou a distensão com todas as colônias. Negociou com praticamente todas as lideranças metropolitanas e coloniais. Conduziu – ora tranquilamente, ora menos tranquilamente – a descolonização/independência.

Reposicionou o lugar da França no mundo. Forjou uma nova projeção interior e exteriori do país. Eliminou a possibilidade de alinhamentos automáticos com liberais ou comunistas. Passou a construir-se como terceira via e terceira voz no mundo. Falando a todos e tentando ser ouvido por todos. Em nome do presente, pensando no futuro e em louvor aos tempos em que o mundo venerava a França. Mesmo assim, a pressão interna seguiu imensa.

Especialmente porque, tecnicamente, o general havia sido entronizado no poder indiretamente por um colégio de notáveis. Sem, portanto, a participação nem a legitimidade popular. E, desse modo, gostando-se ou não, mais ou menos, refém do sistema e dos partidos. Que, por claro, poderiam amputar os seus meios de ação e ejetá-lo do poder a qualquer momento, tão logo a sua tarefa principal que era solucionar a problemática colonial fosse concluída.

Para, então, inibir essa possibilidade, o general convocou um referemdum para a instalação do sufrágio universal para a escolha de presidentes da República a começar por ele próprio. Como reação, o aglomerado de partidos do colégio de notáveis impetrou uma moção de censura contra o governo de George Pompidou, primeiro-ministro do general, com o propósito de acoimar o general. O ano era 1962. O mês, outubro. O dia, 5.

E, portanto, em atenção ao artigo 50 da Constituição de 1958, nesse dia 5 de outubro de 1962, pela primeira vez na Quinta República, um primeiro-ministro foi demitido pela vontade parlamentar.

Mas o general não se intimidou. Vendo que o propósito era fragilizá-lo, ele dissolveu o Parlamento, convocou novas eleições parlamentares, conseguiu constituir maioria parlamentar a seu favor, renomeou George Pompidou como seu primeiro-ministro e conseguiu o referendum favorável ao sufrágio presidencial universal. E, com isso, conduziu a querela de partidos à irrelevância. Vitalizando o espírito do novo regime ancorado na Constituição de 1958. Que fazia do presidente da um verdadeiro monarca, com amplos poderes e robusta legitimidade. Advindos diretamente do povo. Sem nenhum – ou quase nenhum – compromisso com partidos. Eis a essência da Quinta República.

O que acaba de ocorrer na França nesta primeira semana de dezembro de 2024 vai integralmente diferente daquele feito de 1962. Michel Barnier vem de ser demitido pelos parlamentares e o presidente Macron não possui nenhum mecanismo para “punir” os parlamentares. Vê-se, assim, um evidente retorno à odienta querela de partidos. Esterilizando o regime político da Quinta República e lançando o destino do país – da Quinta República e do presidente Macron – ao desconhecido.

Pois um retorno à Quarta República virou impossível e a implementação de uma Sexta, a partir de uma reforma política, também parece improvável. De modo que 1958 e 1962 foram, agora, tornados anacrônicos e 2024 ganhou a pecha de annus horribiblis francês. Ou melhor, o ano que em o empilhamento de crises chegou ao limite do suportável. Pois a crises são múltiplas e variadas. Para ficar apenas nas mais decisivas, olhando bem de perto, o cursor pode ser posicionado naquela fatídica decisão de dissolução do Parlamento na noite do 9 de junho de 2024 após a vitória acachapante do partido de Marine Le Pen nas eleições para deputação na União Europeia em Bruxelas.

Olhando mais ao longe, o 2 de dezembro de 2020, 26 de setembro de 2019 e o 8 de janeiro de 1996 – datas respectivas da morte dos presidentes Vallery Giscard d’Estaing, Jacques Chirac e François Mitterrand – sepultaram os últimos presidentes franceses capazes de suportar o fardo de sucessores do general De Gaulle. E olhando bem longe, a Quinta República talvez tenha começado a terminar com a resignação do general naquele terrível 28 de abril de 1969.

Voltando ao início e recompondo com calma seis meses, dia após dia, daquela fatídica decisão do 9 de junho de 2024, ninguém entendeu completamente as motivações do presidente Macron na dissolução do Parlamento. As eleições eram europeias. O partido de Marine Le Pen – e de seus similares radicais e extremistas na Europa e mundo afora – amplia a sua capilaridade de maneira profunda e estrutural desde a crise financeira de 2008. Tanto que chegou ao segundo turno das presidenciais francesas em 2017 e 2022 – nas duas ocasiões, contra Emmanuel Macron.

De maneira que já virou tácito que a sua ascensão vai constante, impressionante e irresistível. E, claramente, poderá – mais dia, menos dia – conduzir Marine Le Pen ou afins para a presidência em 2027 ou adiante. De modo que dissolver o Parlamento francês sob o pretexto de conter a ramificação do partido de Marine Le Pen continua sendo um argumento intelectualmente frágil, moralmente inconsequente e politicamente irresponsável. Assim como a tese da clarificação, mobilizada pelo presidente Macron.

Sem ser demasiado contundente ao encontro do nobre presidente francês, a defesa dessa tese beira o cinismo. Todo o macronismo entrou em crise terminal ao longo do primeiro mandato do presidente Macron. Após a sua reeleição em 2022, os despojos dessa crise só fizeram aumentar. De modo que impor ao povo “pensar melhor” e “rever” o sobre o seu ampliado apoio no partido de Marine Le Pen chega bem perto de ignomínia. Ou, dito de outro modo, parece brincadeira de péssimo gosto com a inteligência alheia. Tanto que o resultado dos dois para o legislativo deixou ainda mais clara a força de Marine Le Pen.

Em contrário, observe-se que esse resultado coloriu o Parlamento com a França Insubmissa (LFI) de Jean-Luc Mélenchou conquistando 78 cadeiras; o Partido Comunista Francês (PCF), 8; os Ecologistas (LE), 28; o Partido Socialista (PS), 69; os partidos esquerdistas diversos, 10; os partidos centristas diversos, 5; o Movimento Democrático (Modem) de François Bayrou, 33; Ensemble – reunindo Renascimento e outros aliados do presidente Macron – 99; o Horizontes do antigo primeiro-ministro Édouard Phillipe da presidência Macron, 26; a União Democrática e Independente, 3; o Os Republicanos (LR) do antigo presidente Nicolas Sarkozy, 39; partidos direitistas diversos, 26; a união LR-RN – aliança entre Éric Ciotti e Marine Le Pen –, 17; o RN de Marine Le Pen, 125; o partido de extrema direita, à direita do RN, 1; e o partido regionalista, 9.

Mirando tudo através de alianças, a Nova Frente Popular (NFP), liderada por Mélenchon aquinhoou 182 assentos. A Maioria Presidencial (MP) de Macron conseguiu 168. A Reunião Nacional (RN) de Marine Le Pen de braço com parcelas de LR de Éric Ciotti conseguiu 143. O grupo dos Republicanos levou 46. Enquanto a variedade independente à direita conseguiu 14, a à esquerda, 13, a ao centro, 6. Ao passo que o partido dos regionalistas levou 4 e outras agremiações nanicas unidas, 1.

Baralhando mais uma vez os números e vendo-os em perspectiva, o RN aparece como o único partido com ascensão constante, consistente e acelerada na ampliação de sua representação parlamentar nos últimos vinte e cinco anos. Essa força política sob a liderança dos Le Pen não tinha conseguido nenhuma cadeira em 2002 nem em 2007. Mas conquistou duas em 2012, nove em 2017, 89 em 2022 e às 125 – ou, em aliança, 143 – em 2024.

O conjunto dos partidos ancorados no agrupamento Ensemble conquistou 350 após a primeira eleição do presidente Macron em 2017, 249 após a sua reeleição em 2022, e desceu para 156 – ou 168 – cadeiras em 2024. Enquanto o agrupamento de Mélenchon – que também envolve, a contragosto de todos, frações do PS – variou de 162 em 2002 para 205 em 2007, 307 após a eleição do presidente François Hollande em 2012 para 58 em 2017, 131 em 2022 e 178 – ou 182 – em 2024.

Parece mais que claro que esses números não são números. Fitando apenas a realidade de 2024, após a dissolução e recomposição do Parlamento, existem 143 cadeiras a favor de Le Pen, 168 para Macron e 182 para Mélenchon. Constituindo-se três forças parlamentares disformes e dissonantes. Como jamais se viu sob a Quinta República.

Pois, voltando-se à essência, a Quinta República supõe a governabilidade através de uma maioria parlamentar. Qualquer que seja.

O general De Gaulle e todos os seus sucessores – exceto o presidente Jacques Chirac, em 1997 – supuseram dissolver o Parlamento como mecanismo de afirmação dessa maioria. E conseguiram.

O presidente Macron poderia até intuir e pode seguir imaginando que isso seria possível em junho de 2024. Mas nenhum dado da realidade corrobora a sua tese.

De modo que, sem mancar com o respeito ao encontro do distinto presidente francês afeiçoado em saltitar com o presidente Lula da Silva na Amazônia, a sua intempestividade na dissolução do Parlamento foi, sim, uma ação temerária e desprovida de pouco ou nenhum cálculo político revestido de interesse nacional francês.

Daí a perplexidade rumo ao desconhecido. Pois nesse cenário, qualquer primeiro-ministro tende a transitar por um Parlamento hostil. Que só poderá ser novamente dissolvido em junho de 2025. Tarde demais para um regime político que, sinceramente, claudica.

E claudica porque, de fato, “ninguém ganhou” as legislativas. Ou seja, nenhum partido conseguiu número suficiente de cadeiras para afirmar-se majoritário. O número mínimo seriam 289 cadeiras. Como ninguém chegou nem perto, o caos se instalou. Pois o grupo de Mélenchon conseguiu 182 e se acredita majoritário. O entorno de Marine Le Pen com suas 143 também se sente empoderado. E os 168 deputados fieis ao presidente sabem que não possuem nada a comemorar.

Nesse ambiente, a singela escolha de um primeiro-ministro tornou-se um risco ao regime. O presidente Macron escolheu Michel Barnier sabendo disso.

Michel Barnier é tido como experimentado quadro político francês. De seus variados serviços prestados, o mais recente, complexo e relevante foi a negociação do Brexit. Que demonstrou os seus predicados de portador de nervos de aço, paciência chinesa e sapiência carioca. Por isso, ele entrou no radar do presidente Macron para Matignon. Mas para aceder ao posto ele precisaria atar alianças. Essencialmente com Mélenchon e fundamentalmente com Marine Le Pen.

Com o primeiro, a resposta foi “não”. Com a segunda, conversou-se. E dessa conversa emergiu a perspectiva de integração das 143 cadeiras do RN às 168 do Ensemble como uma frente parlamentar para fazer passar projetos essenciais. Sendo o orçamento, o mais importante. Sob um custo moral, sinceramente, inacreditavelmente imperdoável da naturalização de Marine Le Pen e de seu RN na paisagem política francesa.

Tudo parecia bem. Bem mesmo. Malgrado os solavancos de Mélenchon. Até que o judiciário francês iniciou um procedimento de inviabilização política de Marine Le Pen. Denunciando-a de crimes políticos – “empregos fictícios” – no Parlamento europeu.

Michel Barnier havia sido empossado primeiro-ministro em setembro de 2024 e essa ofensiva jurídica ante Marine Le Pen começou em outubro. Quando durante duas ou três semanas não se falou de outra coisa que a possibilidade de a principal liderança da principal força política do país sob o risco de ser suprimida da competição eleitoral francesa.

Esse mal-estar causou desconforto de natureza física e espiritual em toda parte. Especialmente sobre Marine Le Pen, em seu partido e em seus eleitores.

Coetaneamente, Michel Barnier iniciou a apresentação do orçamento a ser votado pelo Parlamento. Uma operação complexa, decorrente da deterioração fiscal estrutural do país.

A situação fiscal francesa vem gravemente deficitária há quarenta ou cinquenta anos. O após pandemia e o “quoi qu’il en coûte” [custe o que custar] do presidente Macron simplesmente tornou a situação mais desafiadora. Com a eclosão da nova fase da tensão russo-ucraniana e o seu impacto direto sobre o fornecimento de energia, o que era desafiador ganhou ares de desespero. Diante a situação israelo-palestina, o desespero virou insuportável. E, se nada disso bastasse, a expectativa de retorno e o retorno de Donald J. Trump à Casa Branca transformaram o pesadelo em pandemônio. De maneira que o projeto orçamentário de Michel Barnier nasceu inviável e impossível de ser aprovado.

Sem adentrar em tecnicalidades, diante de todos esses vetores, o projeto propunha, simplesmente, o aumento de perto de 40 bilhões de euros em impostos ao contribuinte francês.

Entre os franceses, como se sabe, tudo: menos apreciação de impostos. Notadamente após 2008, a crise do euro, o Brexit, os Coletes Amarelos e a pandemia.

 

De toda sorte, era necessário tentar. E tentar por vias legislativas. Nesse sentido, do lado de Mélenchon, o apoio – independente da proposta – seria nulo, e foi. Ao passo que lado de Marine Le Pen apoiar projeto desse tipo seria uma traição aos seus 11 milhões de eleitores. Porquanto, essas duas forças parlamentares – o NFP e o RN, de Mélenchon e Marine Le Pen – bloquearam a proposta.

Diante disso, o primeiro-ministro lançou mão do artigo 49, alínea 3, da Constituição para fazer passar sem o aval do Parlamento. Frente à gravidade da manobra, Mélenchon formalizou uma proposição de censura. Que foi imediatamente aceita por Marine Le Pen e variados parlamentares de outros partidos. Concretizando-se nos 331 votos de censura ante Michel Barnier no último dia 04 de dezembro.

Como primeiro-ministro do presidente Macron, Michel Barnier foi lançado a feras. Todos sabiam disso. Mas, agora, com ares históricos. Não simplesmente por ser a primeira demissão após 1962 e a segunda no interior da Quinta República Francesa. Mas porque, essencialmente, o evento sugere novos tempos. Tempos de tormentas. Onde as estabilidades viraram voláteis. E ninguém parece saber o que fazer.

Fitando simplesmente o caso francês, quando Nicolas Sarkozy chegou à presidência da República em 2007, a intelligentsia francesa, europeia e mundial começou a sinalizar que um mundo umbilicalmente integrado às agruras do século XX começava a desaparecer. Nicolas Sarkozy era o primeiro presidente da Quinta República nascido após 1945 e, portanto, desprovido da imagem do trágico nas retinas.

Mas antes a situação já não ia bem. 2005, o “não” francês à Constituição europeia, sob a presidência de Jacques Chirac, foi um baque importante. 1992, o “quase não” francês a ingressar no sistema de Maastricht foi outro momento constrangedor. 1981, o “não” francês à reeleição do presidente Valery Giscard d’Estaing também segue complexo. Pois a disputa Giscard versus Mitterrand produziu duas narrativas que merecem meditação.

Giscard propôs ser Mitterrand um “homem do passado” ao passo que Mitterrand propôs ser Giscard um “homem do passivo”.

Observando-se com calma, esse “passivo” remetia a problemas fiscais, aumento de desemprego, da carga de impostos e afins. Todos problemas persistentes e anteriores a 1981. Para não dizer bem antes. Desde, ao menos, o fim dos Trinta Anos Gloriosos, que, de fato, terminaram em maio de 1968.

Maio de 1968 como outubro de 1962 levaram a autoridade do fundador da Quinta República ao descrédito. Da primeira vez, em 1962, o general conseguiu suportar e superar. Da segunda, em 1968, não. Como resultado, ele renunciaria onze meses depois sem deixar nenhum sucessor.

E por razões profundas que podem ser apreendidas na meditação atenta das concepções do general De Gaulle reportadas nesse fabuloso C’était de Gaulle de Alain Peyrefitte (Paris: Fayard, 1994).

Sob todos os seus aspectos, a Quinta República foi feita sob medita para o general. Essencialmente ao subentender que o exercício da presidência deveria ser, acima de tudo, um fato retórico e um fato moral. Onde a grandeur [grandiosidade] da França, tangida por sua história e por sua cultura, serviria de objetivo e obsessão. E a distinção de seu líder máximo conduziria o país acima dos arranjos do estado, do direito e dos partidos.

O presidente Mitterrand – único presidente francês a cumprir quatorze anos ininterruptos de presidência sob a Quinta República – levou esses preceitos às últimas consequências. Sendo a “quase” imposição de Maastricht a marca mais evidente dessa perspectiva estrutural e estruturante.

O presidente Chirac, por sua vez, tentou de tudo – e conseguiu – para seguir a senda do general. Sendo o “não” francês à invasão do Iraque a melhor mostra disso.

O presidente Macron chegou ao poder em 2017 ignorando De Gaulle, Mitterrand e Chirac e querendo ser Júpiter, o maior planeta do sistema solar. Mas, agora, por razões obtusas, após a dissolução de junho e moção de censura de dezembro, corre forte risco de terminar como Ícaro: singrando pelo desconhecido até ser definitivamente estraçalhado pelo seu misto de arrogância e ilusão.

 

*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ). [https://amzn.to/3ZJcVdk]

 

sábado, 13 de julho de 2024

Rubens Ricupero: as memórias lidas extensivamente e com muito intensidade, por Daniel Afonso da Silva (Jornal da USP)

Rubens Ricupero:
 Memórias 
São Paulo: Editora da UNESP, 2024
Por Daniel Afonso da Silva 
Jornal da USP, 12/07/2024

https://jornal.usp.br/articulistas/daniel-afonso-da-silva/as-voltas-com-os-mundos-de-rubens-ricupero/

Às voltas com os mundos de Rubens Ricupero

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP

O polegar e o indicador esquerdos em riste simulando um ângulo de quase noventa graus acompanhados dos demais dedos flexionados amparam um rosto pequeno, bem recortado, de lábios finos, cenho marcado, nariz parelho e olhos puídos de vida. Um rosto conhecido e, por muitos, admirado. Um rosto agradável e delicado. Mas feito esfinge. Que espanta pela imponência e intimida pelo mistério. Um rosto que, agora, aparece, assim, como estampa. Numa capa de livro. Permeado por um fundo distante de luz bem gris. Tendo logo abaixo a identificação: Rubens Ricupero. E mais abaixo ainda a verdadeira intenção: memórias.

Quem, por alguma razão, ignorar o rosto, a identificação e a insofismável relevância da intenção, vai tomar o grosso volume encerrado em mais de setecentas páginas e iniciar decifrar, namorar, perfilar.

Vindo-o ao dorso, vai perceber a quarta capa. Uma capa dividida em mensagens. Uma na ressunta e outra nas costas de uma silhueta.

Mirando a ressunta, o leitor então ignaro vai descobrir se tratar de alguém que foi Ministro da Fazenda, protagonista do Plano Real, alto funcionário do estado brasileiro, diplomata, embaixador, responsável em muitas áreas e partes do mundo, alto funcionário de burocracias internacionais, descendente de imigrantes, oriundo do bairro permanentemente pobre do Brás e crescido na atmosfera operária da cidade de São Paulo dos anos de 1930.

Apreciando com calma a silhueta, o leitor vai perceber um homem de boa idade, cabelos restantes ruçados, meio-calvo, mas puro, traje fino e austero, mão esquerda escondida à frente do corpo, mão direita à mostra e tranquila e pé esquerdo fixado no chão dando o impulso e o movimento naturais à perna e ao pé direitos no caminhar. Diante de si, alameda. Plantas e árvores.

E, sobre elas, quem sabe, bichos e pássaros a conversar.

Símbolos. Muitos símbolos. Símbolos que convidam qualquer leitor a adentrar o jardim secreto da vida completa do diplomata, embaixador, Ministro de Estado e Subsecretário-Geral das Nações Unidas Rubens Ricupero, doravante, Ricupero.

Caso, por alguma razão, ainda se hesite em adentrar, restará abrir as outras capas para firmar convicção.

Na segunda – também tida por “orelha”, que alonga a primeira com o rosto do autor –, o leitor vai se deparar com um excerto assinado pela afamada jornalista Maria Clara R. M. do Prado que aduz que “Itamar chamava [Ricupero] de ‘Apóstolo do Real’, por passar bom tempo a peregrinar pelo país, buscando adesões à causa da estabilidade”.

Na outra, a terceira capa – “orelha” que antecede a capa dorsal com a silhueta do homem –, ele vai apreender que a vida de Ricupero remonta ao Estado Novo de Getúlio Vargas, espraia-se anônima pelos anos da Segunda Guerra Mundial e imediatamente depois, torna-se pública a partir de 1958-1961 quando ingressa no Instituto Rio Branco, depois segue ao Itamaraty e, desde então, passa à condição de progressivamente notória, notável e digna de reconhecimento e nota como testemunho vivo dos mais marcantes e relevantes momentos do Brasil e do mundo da presidência Jânio Quadros à terceira presidência Lula da Silva, da revolução cubana aos constrangimentos planetários da pandemia de Covid-19, da crise dos mísseis à crise da iminência de um segundo mandato presidencial de Donald J. Trump nos Estados Unidos, da crise brasileira da renúncia de agosto de 1961 à crise brasileira dos desgostos de 2018-2022, da esperança da Nova República ao seu vacilar anos depois.

Feito assim, explorando todas as capas, o leitor vai sucumbir arrebatado pelo desejo de querer, agora, saber mais e mais e muito mais. Pois vendo assim, ele já percebeu ser impossível ignorar a presença daquele rosto, a relevância de sua identificação e a importância de sua intenção: memórias.

Não tem jeito.

Ele, agora, sabe que vai ter que entrar de verdade no livro.

Mas são mais de setecentas páginas. 712 para ser exato. E talvez se hesite em começar.

Se isso ocorrer, o seu recurso inicial vai ser folhear. Folhear até superar a indecisão e a preguiça. Folhear para, de fato, começar.

Assim, então, agora, avante: folhear.

Seguindo assim, depois da capa, da contracapa e das folhas de rosto após a capa, o indeciso leitor vai encontrar uma singela dedicação/dedicatória, onde se lê “À minha mãe, Assumpta Jovine. Seu amor à vida e curiosidade pelos outros, o prazer com que contava e escrevia as histórias preservadas em sua prodigiosa memória, estão na origem deste livro que, comovidamente, dedico à sua lembrança” (p. 5).

Lendo e relendo apenas essa dedicação/dedicatória ele, o leitor, vai parar, pensar, ler de novo, meditar e concluir: sim, vale a pena avançar.

E avançando ele vai notar que a obra tem fotos. Muitas fotos. E, como qualquer ser humano revestido de anonimato e segredo, com ou sem o seu anel de Giges, ele vai dar uma de voyeur. E vai querer ver todas as fotos por primeiro.

Avante, então, às fotos.

A primeira aparece depois da dedicação/dedicatória e do sumário e antes do primeiro texto e apresenta homens joviais. Homens elegantes. Homens em terno, casaca e gravata. Homens diante de um bonde da São Paulo Tramway, Light and Power Company – antiga Light, empresa de geração e distribuição de energia elétrica e transporte público no Brasil de antanho. Numa ambiência tipo vitoriana. Quase em moldura. Claramente belle époque. Seguramente fin de siècle. Com uma descrição, abaixo, para a precisão: “Pietro Jovine, avô materno de Rubens Ricupero” (p. 10).

Seguindo o folheio e a perquirição por mais sensação nas fotos – quem sabe, em leitura dinâmica, com o polegar e o indicador direitos movendo as páginas bem rápido e os seus congêneres da mão esquerda as contendo –, as passagens com textos e notas vão fincado todas pra trás. Procura-se, agora, maiores impressões. Impressões visuais. Fotos. A vida congelada num flash. E as fotos – umas com outras sem flash – vão surgindo. São todas antigas. Umas, muito antigas. Históricas. Coisas de família. Relíquias. Verdadeiras preciosidades em si. Viagem no tempo.


Reencontros com sentidos. Tempo e sentidos que, claramente, não existem mais. E, segue-se, assim, folheando, saboreando, pensando e, sim, um pouco xeretando até que se chega à foto da página 47, onde tem-se um choque.

Para-se. Respira-se. Olha de novo.

Contempla.

Segue-se no choque.

Paralisante, paralisado, prende-se o ar.

Inspira-se e expira-se, fortemente, novamente.

Revê-se a foto. Novo choque.

Volta-se a olhar.

Vê-se uma mulher esguia. Em pose de estúdio. Sentada à moda antiga. Com delicadeza e elegância sem par. Pernas finas, entrecruzadas e bem colocadas. Colares discretos – um curto, outro mais longo. Todos os dois envolvendo o pescoço, e um avançando até o peito. Como convenção. Algo tipo um livro apoiado sobre colo. Mãos de dedos finos adentrados pelo livro. Um par de olhos bem lançados que adornam o rosto. Um olhar penetrante. Incandescente, mas sem expressão. Por conta disso, difícil de decifrar. Chocante por isso. Marcante por razão similar. Mas também chocante e marcante por parecer familiar. Próximo. Humano, demasiado humano.

Novamente, para-se. Respira-se fundo mais uma vez. Olha de novo.

Sai-se dos olhos. Sai-se da foto. Mira-se ao redor. Até ocorrer, pela primeira vez, de se ler a legenda. E se lê e vê: “Assumpta Jovine, em foto de estúdio. São Paulo, 1931. Fotógrafo não identificado. Acervo do autor” (p. 47).

Para-se tudo. Pensa-se. Contempla-se o vazio e confidencia-se em silêncio uma vacilação contida numa locução: será?

Fecha-se o livro e vai-se conferir. Confere-se. Meu Deus, é, são!

Chega-se à compreensão.

Os olhos de Assumpta Jovine seguem vivos nos olhos de Rubens Ricupero.

E, com isso, pensa-se, medita-se, suspeita-se e conclui-se que esse livro não é bem nem só um livro. Mas, antes, uma encarnação. A encarnação dos legados de toda uma família alimentada pela chama viva desse olhar. O olhar – que tanto comove – de Assumpta Jovine vivo – agora, sabe-se – no olhar de Rubens Ricupero.

Pronto. O livro vai ser lido. Já se sabe. Precisa ser lido. Também se quer. Virou decisão.

Mas segue-se o folheio. Querendo mais fotos. E elas vêm.

À página 50 se encontra a próxima. Onde se vê um menino. Um menino bem menino. Sorriso fácil, alegre e matreiro. Feito menino. Olhar interessado. Trajando marinheiro. Vestindo jaquetão. Farto em adereços e preenchido em botão. Não precisa nem ler a legenda para se saber da identificação. Mesmo assim, lê-se e vê-se “Rubens Ricupero com 7 anos e meio, São Paulo, 1944” (p. 50).

Para-se novamente. Precisa-se, por instantes, mais uma vez, meditar. Fecha-se o livro. Vira-o ao dorso. Revê-se a silhueta das costas do homem já crescido, já vivido e bem formado.

Retorna-se à foto do menino. Destaca-se na legenda: “São Paulo, 1944” (p. 50). Volta-se a meditar e a conjecturar. Oitenta anos exatos separam um do outro. O menino da silhueta.

Pensamentos ao vento. O que a vida fez desse menino?

Volta-se ao folheio.

Página atrás de página. Foto depois de foto. Responde-se um pouco a indagação. Vê-se logo e rápido a transformação. O movimento. A história viva quase ao alcance das mãos. O menino de 1944 virando moço, homem.

Lê-se, nesse entremeio, às rápidas e quase sem querer, “Guimarães Rosa, examinador de cultura”/“Amizades inesquecíveis: Maria Werneck, João Cabral, Clarice Lispector, padre Júlio Vitte”/“A perseguição do Golpe de 1964”/“Tuni e Wladmir Murtinho: a vida como obra de arte”/“O dia em que jantei com Frank Sinatra”.

Segue-se o escrutínio das fotos.

Vê-se Ricupero, quase adulto, nas Arcadas da Faculdade de Direito em São Paulo e, depois, já adulto, no majestoso palácio do Itamaraty no Rio de Janeiro. Fotos e mais fotos e a sua fisionomia vai mudando. O tempo vai passando. Até se chegar às fotos da página 187. Outro quase choque. Só quase.

Nessa página 187 têm-se fotos. Vê-se as quatro. Vê-se de novo. Procura-se a palavra. E encontra-se. Graça. Quanta graça. É Marisa. Feita em sorriso. Outra palavra. Candura. Quanta candura.

É o seu casamento, diz a descrição.


Casamento de Marisa e Rubens Ricupero, cerimônia civil e religiosa. São Paulo, dias 1 e 2 de setembro de 1961” (p. 187).

Segue-se a viagem em fotos. Mais fotos e mais fotos. Até se chegar a um momento, “Instantâneos de alegria”, feito só de fotos. Onde se vê Marisa e Ricupero “posando, flanando, rindo e até dançando”. Sensacional. E surge aqui uma pergunta: não seria o caso de Marisa e Ricupero fazerem também um livro só de fotos? Não restam dúvidas que eles muitas outras fotos têm. E não restam dúvidas de que todos vão gostar. Pergunta. Singela pergunta.

Avante.

Agora, ler.

Fecha-se o livro. Volta-se à capa. Mira-se Ricupero. Sabe-se ser ele na foto da capa. Mas, vendo direito, agora, parece, que mudou. Quem sabe, moveu-se. Talvez sim. Talvez não. Impressão.

Coisas da imaginação. Quem sabe, uma elucubração para retardar o início da leitura.

Avante sobre o texto.

Vai-se ao Sumário. Lê-se “11 A memória dos pobres”, “31 Brás, Bexiga e Barra Funda”, “51…”.

Para-se.

Para-se de novo, vê-se melhor e nota-se que os capítulos não são capítulos, mas, antes, entradas, chamadas, tomadas. Feito um roteiro. Tipo um filme. Não existe, assim, entre eles, a costumeira sequência marcialmente hierarquizada da numeração. À esquerda – e não à direita – vão os números de página. E, logo a seguir, as chamadas/títulos/entradas.

Alguém vai dizer não ser novidade. E, dizendo assim, vai ter razão. Mas, nesse tipo de livro – livro sério e de alguém sério –, trata-se de trato de estilo. Novação. Quase subversão. E, só por isso, merece, aqui, marcação. E, quem sabe, uma pergunta em forma de sugestão.

Quem, entre os grandes – Carlos (Cacá) Diegues, talvez, na falta do Glauber Rocha, do Eduardo Coutinho e do Nelson Pereira dos Santos – poderia, por favor, enviar esse livro, Memórias, de Ricupero, ao querido e notável Silvio Tendler com um bilhete, escrito à mão, com o dizer: “Querido e notável Silvio Tendler, aqui tens em mãos o livro Memórias, de autoria de Rubens Ricupero. Um livro – como todos sabem – de um brasileiro notável. Que retraça, agora, a sua longa e rica vida. Uma vida de cinema. Você vai ver. Que precisa virar logo filme. E ninguém melhor que Você, Silvio Tendler, para fazer. Medite. Por favor. Medite. E, por favor, aceite. Faça. Consulte-me se quiser. Tem muita gente para apoiar. Com o apreço de sempre, Alguém entre os grandes.” ?

Feita a sugestão.

Adeus ao Sumário.

Chegou a hora. Dá-se a largada. Toma-se o livro. E vai.

O leitor que, no começo, tudo ignorava, agora, não ignora mais. Tanto que, como se viu, agora, até dá sugestão. Está entusiasmado. Vai ler o livro. E rápido. Quer, logo, saber mais. Joga-se.

De capa a capa, assim, avalia e percebe, então, possível ler tudo – as 712 páginas, mais as quatro capas – em dois ou três dias. Pode-se fazer assim. O texto flui. Tem qualidade.

Profundidade. Fazendo a curiosidade aumentar. Tem muitas histórias, lembranças, memórias. O que aguça o desejo de avançar. Pode-se, sim, ler tudo bem rápido assim.

E, fazendo-se assim, vai-se se descobrir que Ricupero nasceu no 1º de março de 1937. Descende dos avós italianos Pietro e Cristina Jovine com Pasquale Ricupero e Mariangela Gesini, que, em 1895, migraram para o Brasil, a bordo do vapor Rio Grande e do vapor Maranhão, chegaram em São Paulo, instalaram-se no bairro do Brás, deram à luz a Assumpta Jovine, em 1907, e a João Ricupero, em 1908, que, adiante, encontraram-se e se casaram e trouxeram à luz, além de Ricupero, em 1937, Romeu, em 1942 e Renê, em 1945. Mesmo lendo-se tudo rápido assim, vai-se sentir e notar a dureza da infância de Ricupero. Ler-se-á como ênfase quase palpável que “Éramos todos muito pobres, uns mais que outros” (p. 39). Fixar-se-á, inicialmente, tudo e todos à rua Claudino Pinto. Tudo e todos no bairro do Brás. Mas vai também se apreender a aplicação dos pais de Ricupero em oferecer a melhor educação possível aos filhos. Seguindo-se, vai-se, assim, saber que, por isso, no terceiro ano do primário, Ricupero foi transferido da escola pública para estudar com os irmãos maristas, no Colégio Nossa Senhora do Carmo, em 1947 e, em 1951, migraria para o Mackenzie. Notar-se-á, também, que, a partir de 1954, aos seus 17 anos, ele seria acometido pelo mal-estar das definições, escolhas e dilemas iniciais da vida.

Perceber-se-á que esse mal-estar o conduziu a profunda depressão, variadas decisões e numerosas idas e vindas. Até, por fim, decidir-se pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco.

Decepcionar-se, quase instantaneamente, com ela. Ser convencido a prestar o concurso de acesso ao Instituto Rio Branco. Ter êxito em 1958 – ingressando em primeira colocação sob o escrutínio de Guimarães Rosa, examinador de cultura e celebrado autor de Grande Sertão: Veredas. Mudar-se para o Rio de Janeiro em 1959. Cursar o Instituto. Integrar o Itamaraty.

Voluntariar-se a servir em Brasília. Seguir para lá em 1961. Desbravar a nova capital. Conviver com os maiorais da política nacional. Apender com eles. Apreender suas virtudes e observar seus vícios. Amargar – pessoalmente – o impacto duradouro da renúncia do presidente Jânio Quadros. Interagir com os lendários Afonso Arinos e San Tiago Dantas. Aprender os meandros do ofício diplomático com João Augusto de Araújo Castro, Mario Gibson Barboza, Ramiro Saraiva Guerreiro e tantos outros. Iniciar as suas funções exteriores na embaixada brasileira em Viena em 1963. Ser movido para Buenos Aires de 1966 a 1969. Adiante para Quito de 1969 a 1971. Voltando a Brasília de 1971 a 1974. Partir para Washington de 1974 a 1977. Retornar, novamente, a Brasília de 1977 a 1987, para, agora, ser chefe da prestigiosa Divisão da América Meridional II do Itamaraty até 1984. Virar assessor diplomático do candidato Tancredo de Almeida Neves. Inaugurar – na embarcação dos vencedores – a Nova República em 1985. Organizar e participar do momentum presidencial de Tancredo de Almeida Neves – quando e onde o Brasil mostrou-se novo, vivaz e frequentável ao mundo em janeiro-fevereiro de 1985. Ser assessor especial da presidência José Sarney. Seguir para Genebra, em 1987, como embaixador.

Ser movido para os Estados Unidos, como embaixador do Brasil em Washington, em 1991. Retornar ao Brasil, em 1993, para inaugurar o Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal.


Virar Ministro da Fazenda, guardião e “apóstolo” do Plano Real em 1994. Voltar a ser embaixador do Brasil no exterior, agora, em Roma, em 1995. Receber um convite pessoal do elegante, determinado e inesquecível secretário-geral das Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali, para dirigir a UNCTAD – Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.

Aceitar. Aposentar-se do Itamaraty, em dezembro de 1995, aos 58 anos. Tornar-se alto funcionário das Nações Unidas, secretário-geral da UNCTAD. Ficar por lá – baseado em Genebra e girando, girando mundo – por quase dez anos. Atuar mundialmente com o saudoso determinado secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan. Aposentar-se, pela segunda vez, agora da ONU, em 2004. Regressar ao Brasil, agora pra ficar, em 2004-2005. Tentar, em vão, reencontrar a São Paulo de sua infância, da rua Claudino Pinto, à Barão de Itapetininga, à várzea do Glicério, da antiga praça da República ao marcante bairro do Brás. Renascer profissionalmente como Diretor da prestigiosa Faculdade de Economia e Relações Internacionais da FAAP.

Reencarnar na Paulicéia como morador do discreto bairro de Higienópolis. Rever amigos. Voltar a congraçar-se com eles – Fábio Konder Comparato à dianteira. Renovar situações.

Vivenciar o retrocesso lento, gradual, seguro e catastrófico da realidade política, econômicas e social brasileira do Mensalão ao Petrolão. Testemunhar a inequívoca frustração, desde a estreia, da presidência Dilma Rousseff. Observar as tormentas de junho de 2013. Anotar a agonia do impeachment de 2016. Participar da ofensiva contra o mal maior em 2018. E auxiliar na recomposição do mal menor a partir de 2022.

Ufa.

Chega-se, assim, rápido, ao fim.

Resume-se assim.

Mas nesse assim, claramente, não vai tudo. Sabe-se que não. E sabe-se mais. Sabe-se que lendo tudo rápido assim corre-se o risco de se confundir, passar mal ou até se entorpecer.

Resta-se, então, por tudo isso, ter-se mais calma. Fechar o livro. Respirar fundo. Voltar ao começo. Sem pressa. Apenas com o desejo genuíno de se deleitar. Agora, já se está inteiramente familiarizado. Sabe-se muito. Sabe-se bem. Sabe-se tudo do que se trata.

O leitor, outrora, ignaro, agora, não existe mais. Ele é outra pessoa. Outro leitor. E, quem sabe, até mais orgulhoso de ser, como Ricupero, brasileiro.

Por ser bem assim, uma vez mais, avante. Respira-se fundo. Volta-se à capa. Mira-se, novamente, a estampa. Fita-se, mais uma vez, a sua feição. Sabe-se ser Ricupero. Sobre quem, agora, confidencia-se em silêncio: Quantas vidas. Vidas importantes. Vidas paralelas.

Volta-se ao livro. Quer-se recomeçar. Está-se na capa. Move-se, novamente, o olhar sobre ela. Para-se. Sente-se arrepios. Algo mudou. Não, não. Não era impressão. Algo mudou.

Ricupero, na foto estática da capa, sim, se moveu e moveu-se. No mínimo, sorriu. Seus olhos dizem. Feito Borges. “Si, soy yo, soy Borges”. Seus lábios sugerem. Como Neruda. Sim, foi verdade. “Confesso que vivi”. E foi verdade que o que viveu por que, ao fim das contas, tem verdade Calderón, “la vida es sueño, y los sueños, sueños son.”

Avante.

Agora, ler. Ler de novo. Rever.

Volta-se ao começo. À dedicatória, à dedicação.

“À minha mãe, Assumpta Jovine”.

E vai-se em frente. Mais uma vez. De capa a capa. 712 páginas, mais as quatro capas. Mas, agora, com um bom guia. Uma certeza e uma convicção. A certeza e a convicção de que Ricupero, muito além de diplomata, embaixador, alto funcionário, Ministro de Estado, parece ser, acima de tudo, a sua família, os seus amigos e a sua devoção.

Com isso em mente assim, retorna-se ao texto.

E, desse modo, avançando, apreende-se e, agora, fixa-se que, nascido em 1º de março de 1937, Ricupero foi batizado in extremis, na Igreja Bom Jesus do Brás, no 19 de março, dia de São José, sob a condução de sua nonna e madrinha, Mariangela. Temia-se pela sua morte prematura. Ricupero não morreu. Viveu – vive. [Nota-se, gosta-se, louva-se e se vê. Vida longa, Ricupero]. E, tão logo consciente, tomou São José e a fé cristã por sacerdócio e vocação reconhecendo, logo mais, que “Meu ideal de vida é encarnar o Cristo em minha família e atividades profissionais; é viver o Evangelho em todas as situações; é construir o Reino de Deus e servir sua Igreja” (p. 229). Graças, quem sabe, à presença da mãe, das avós e tias. Mas também os irmãos maristas, no Colégio do Carmo, e, depois, aos confrades do Mackenzie, e, por que não, aos amigos do Dom Vital.

Avançando, o leitor agora integralmente compenetrado, vai aprendendo que essa fé permitiu a Ricupero, desde cedo, desenvolver seus traços de caráter, seu senso de compromisso, disciplina, perseverança, persistência, responsabilidade. Tudo isso muito jovem, menino. Ainda em 1940. E, como consequência, ainda menino, esse menino aferrou-se à leitura, ao mundo dos livros, à cultura.

Seu tio Ignácio Giovine – intelectual e comunista, protagonista do movimento conhecido por Intentona de 1935 – teve muita participação em tudo nisso. “Foi a primeira pessoa que encarnou a meus olhos o ideal da busca da cultura por meio do estudo como autodidata, da autossuperação a fim de atingir do aprimoramento moral” (p. 57). Dona Guilhermina – que ensinou Ricupero a ler –, o professor Dante Moreira Leite no curso científico e o professor Nilo Scalzo, de português e literatura, adiante, também.
Monteiro Lobato, claro, não dá pra esquecer.

Benjamin Franklin também não.

Ricupero leu bem novo a Autobiografia de Benjamin Franklin. Que bateu fundo, marcou e ficou. Como também bateu, marcou e ficou o ano de 1947. As férias no Rio. Na casa dos tios. No Grajaú. Quanta lembrança.

Segue-se lendo e se apreende o seu retorno a São Paulo. Seu adentrar nos anos de 1950. Suas crises de transição de menino a adulto. Suas escolhas. Suas decisões. Escolhas e decisões em momentos de indeterminações que “ninguém sabe se vai ser feliz, se encontrará amor, se será capaz de escolher o trabalho que lhe dará sustento e alegria” (p. 83). Sua passagem do colegial ao ensino superior. O pré-vestibular. O seu abandono do cursinho da Politécnica. A sua convicção de que não seria engenheiro. O seu desengano no teste vocacional da doutora Aniela Ginsberg. O seu ingressar – desiludir-se e abandonar – nos cursos de Letras, Ciências Contábeis e Ciências Econômicas da USP. O seu seguir, sem nenhum entusiasmo, o curso de Direito do Largo de São Francisco também na USP. Até – por Deus – o seu começar a encontrar rumo.

Primeiro com os colegas – depois amigos da vida inteira – Celso Lafer e Fábio Konder Comparato. Depois com Raduan Nassar e José Celso Martinez Corrêa. Adiante, frequentando a Congregação Mariana, liderada pelo padre Luigi Gargione – abrasileirado Luis. Conseguinte, na visitação às favelas nascentes em São Paulo daquele então meados de 1950. Concomitante, na adesão não à politizada Juventude Universitária Católica (JUC), mas, juntamente com seu já amigo Fábio Konder Comparato, à Conferência Vicentina São Basílio Magno, dos estudantes das Arcadas, voltada ao trabalho com famílias pobres. Nesse entremeio, na visão da bela visão: Marisa, amor-ágape, amor da vida inteira. Adiante, no topar Arrhenius Fábio Machado de Freitas, que o convenceu a prestar o concurso de acesso ao Instituto Rio Branco.

Continua-se lendo. O livro, agora, virou, literalmente, uma aventura e os seus movimentos cativam e entusiasmam mais e mais.

O ano era 1958. O seu regresso ao Rio. O seu êxito no concurso. A aprovação em primeira colocação. Guimarães Rosa, examinador de Cultura. De resto, vão impressões.

Avançando, avançando.

O ano era 1959. Ricupero no Rio. Estudando no Instituto Rio Branco. Mas, no geral, sozinho e só. Frequentava seus tios. Cujos nomes, sabe-se agora: Ida e Trajano. Os mesmos de 1947.

Mas, agora, morando na Ilha do Governador. Ricupero vai lá. Gosta de ir. Até passar, também, a frequentar o Centro Dom Vital – um quase congênere carioca da ambiência da Congregação Mariana e da Conferência Vicentina de São Paulo –, um recanto de adoração e fé. E, claro, afinidades eletivas. Onde as almas se encontram. E onde Ricupero encontra – ou é encontrado – Antonio Carlos Villaça e Rui Octavio Domingues.


Continua-se lendo – relendo – e depreende-se que, anos depois, o primeiro, Antonio Carlos Villaça, antigo frade dominicano, já conhecido e afamado em 1959, rememoraria o momento do encontro com Ricupero dizendo que “[n]uma tarde, em 1959, estava eu no Centro Dom Vital […], quando apareceu um rapaz muito claro, cara de anjo, e me disse que desejava frequentar o Dom Vital. Chamava-se Rubens Ricupero. Parecia uma figura de Giotto ou de Fra Angelico. Tão puro. Tão inteligente” (apud p. 139).

Seguindo a leitura, logo vem o depoimento do outro, Rui Octavio Domingues, que iria reportar que “entre as amizades mais preciosas que fiz, na época em que frequentava o Centro Dom Vital, estava um rapaz paulista, o Rubens Ricupero, que me impressionava não só pela inteligência, pela conversação repleta de informações de uma grande variedade. […] uma grande e bela e comovente pureza de alma, e me edificava a mim, que era mais velho, ver o seu exemplo de católico de comunhão diária” (apud p. 143).

Seguindo o relato, nota-se que tudo parecia seguir muito bem. Ricupero parecia refeito no Rio de Janeiro. Instituto Rio Branco. Familiares. Novos amigos. Muita devoção. Fé. Deus. Mas faltava algo. Um elo, talvez, perdido. Sua outra parte. Quem sabe, a sua alma gêmea. Que a amiga Mirthes, desde São Paulo, daria jeito de reparar, reatando o contato de Ricupero com Marisa. Aquela menina, moça de meias soquete, da Congregação Mariana, do padre Luigi Gargione e das incursões pelas favelas de São Paulo. Aquela que Ricupero sempre carregou, em espírito e memória, consigo e jamais esqueceu.

Tudo parece ter sido rápido e ter sido bom.

Mirthes, anjo em anunciação.

Lê-se que o reencontro físico de Ricupero e Marisa se deu em São Paulo. No 26 de março de 1959. Uma Quinta-Feira Santa. No Mosteiro de São Bento. Depois da missa. Marisa e Ricupero. Conversações, declarações, confissões, decisões. Virando, agora, testamento: “Foi minha primeira e única namorada e fui também o primeiro e único para ela” (p. 133).

Emoção. Comoção. Mas não se para. Segue-se lendo.

E lê-se que Ricupero, 1959-1961, seguia no Rio. Completaria seu curso no Instituto Rio Branco. Seguiria seu êxito. Seria o orador da sua turma. Veria, de perto, a exaustão da presidência Juscelino Kubitschek. Notaria a ascensão de Jânio Quadros. Perceberia que ser diplomata não eram bem rosas. Notaria que gente, diplomata, jovem, tipo João Augusto de Araújo Castro, Paulo Nogueira Batista, Ovídio Melo e Ítalo Zappa, buscava meios de “conspirar”. Fazer diferente. Inovar. Fazer o melhor. Pois, ao que tudo indicava, o Brasil vibrava e dançava – vivendo em Bossa Nova – e o Itamaraty parecia querer vibrar nem saber dançar.

Segue-se a leitura. Lê-se em choque: “Ganhava-se uma miséria naquele tempo” (p. 162). Lê-se a seguir: a saída foi ir para Brasília. Ir desbravar. Pagava-se melhor. E Ricupero precisava.

Queria se casar.

Decisão tomada. Malas fechadas. Ricupero chegou em Brasília no 10 de março de 1961. Nove dias depois de seu aniversário de 24 anos e mês e meio depois da posse de Jânio Quadros, o presidente pantaneiro que gostava de inovar no uso do português. Chegou e foi compor, com quatro ou cinco diplomatas, a subchefia de Gabinete do Ministro de Estado. Desde o Rio de Janeiro, Ricupero já vinha lotado na prestigiosa Divisão Política (DPO) do Itamaraty. Agora, em Brasília, as suas responsabilidades iriam aumentar.

O chanceler, 1961, lembram-se todos, era Afonso Arinos. Antigo senador. Que, sobre os assuntos do Itamaraty, despachava desde o Rio.

Os eminentes diplomatas eram muitos. Todos ancorados nas tradições do Rio da Prata ou nas novas instituições multilaterais da ONU. Passado e futuro. Permanência e ruptura.

Continuação e construção. Colunas da diplomacia brasileira desde o Barão. Que era, assim, notavelmente praticada pelos hors concours, João Augusto de Araújo Castro, Mario Gibson Barboza, Vasco Leitão da Cunha, Roberto Campos, Edmundo Barbosa da Silva, Miguel Ozório de Almeida e tantos outros.

Segue-se a leitura. Agora densa. Anota-se. 1961. Tudo ia bem. O mês era agosto. Ricupero, em Brasília, apreciava o serviço. Era assessor para relações do Itamaraty com o Congresso. Possuía um gabinete. Dava expediente no edifício anexo da Câmara dos Deputados. Tinha marcado o casamento, em São Paulo, com ela, só ela, Marisa. Seria para setembro. Seguia feliz. Marisa também. O presidente Jânio Quadros abusava. Recebia e condecorava Che Guevara. Era agosto. Mês de angústia. Lembrava-se Vargas. Getúlio Vargas. O dia era 19. Ricupero viu o Che, falou com ele e, quem sabe, até gostou dele. O Che. Mas no Rio, Carlos Lacerda, governador da Guanabara, não. Não mesmo. E, como protesto, entregou as chaves da cidade para um líder simbólico da oposição ao regime de Havana e ao Che. A tensão era grande. Vivia-se a Guerra Fria. O Muro em Berlim já se erguia. A revolução cubana era um fato. Os norte-americanos já tinham se comprometido na Coreia. Os europeus se recuperavam. Viviam os seus anos gloriosos. Na França, o general de Gaulle retornara. Voltara em 1958. Refundara a república. A Quinta República. Mas perdera a colônia. Argélia, nunca mais. Os africanos em polvorosa. Na África do Sul, o apartheid. No Senegal, toda a graça de Léopold Sédar Senghor. Noutras partes, as imagens penetrantes de Aimé Césaire. No Brasil, era Jânio Quadros. Presidente “vassourinha”. Histriônico. O homem dos bilhetinhos. Ricupero via tudo. “Testemunha ocular da História”.

Mesmo sem trabalhar pro Repórter Esso. Vivia ali bem perto. Brasília. Boatos cresciam. Conspiração também. Coisas de Brasília. Coisas do Rio. Coisas do poder. Carlos Lacerda, desde o Rio, dizia que Jânio Quadros iria asfixiar o Legislativo dando um golpe na Constituição. Aquela. Depois do Estado Novo. Em vigência desde 1946. Deputados acreditaram. Senadores também. A tensão crescia. E Ricupero observava. Anotava também. Até que chegou o dia. 25 de agosto.

O ano ainda era 1961. Ricupero almoçava em casa de Armando Braga Ruy Barbosa. Diplomata mais antigo, mais vivido e de muito valor. Beirava às 13 horas. Toca o telefone. Era para Ricupero. Do outro lado, Arrhenius. Aquele Arrhenius, goiano, amigo, confrade, irmão desde as Arcadas e desde São Paulo. Mas, agora, diplomata desde o Rio. A conversação foi bem franca. [Ricupero] “Você está sentado? Não? Então senta porque a notícia é de derrubar qualquer um! O presidente renunciou, ministros militares formaram uma junta de governo, há rumores de grupos que se armam para resistir.” (p. 178).

Adeus, refeição. Correr ao Congresso. Ricupero vai. Vai correndo. Era a sua função. Jornalistas à espera. Curiosos também. Ricupero adentra. Presencia Almino. Almino Affonso. Colega e conhecido também desde as Arcadas do Largo São Francisco. Agora Deputado Federal pelo estado do Amazonas. Almino Affonso toma a palavra. Experimentado, brada ser golpe. Golpe sobre Jânio Quadros. Golpe sobre a nação. Ainda de muito não se sabia. Ricupero sempre lá. No Congresso. Atento. Vê o Ministro da Justiça chegar. Vê-o, às rápidas, passar. Vê-o feito um raio. Destinação: gabinete do presidente do Congresso. Destinatário: senador Auro de Moura Andrade. As conversas refluíam. Ricupero tudo delas retraía. Soube que o Ministro trazia cartas de Jânio Quadros. Seguramente as cartas com a sua resignação. Eram duas. Uma curta. Com – quem sabe – “vou partir”. Outra longa. Com a declinação.

Eram 15 horas. Horário de Brasília. Ricupero lá. Sem arredar pé. Moura Andrade convoca os congressistas. Chama-os para sessão extraordinária. Marca-a para 16h30. Afonso Arinos – chanceler, mas também senador – toma parte. Estava no Rio, no Itamaraty que permanecia lá, à beira mar. Mas quer/precisa influir em Brasília. Escreve uma mensagem. Quer fazê-la chegar aos seus pares. Os congressistas. Envia por telex. Alguém do Itamaraty em Brasília recebe. Manda multiplicar, envelopar e endereçar aos respectivos líderes do Congresso. Enquanto isso, Ricupero, no Congresso, aguarda. Mas já sabe que caberá a ele receber os envelopes, os respectivos destinatários – leia-se: congressistas – e entregar.

Servo bom e fiel, Ricupero vai, faz. Mas é bloqueado. Interditado. Impedido. Detido. O Repórter Esso, onipresente, noticia. Diz ao Brasil inteiro. Informa ser prisão. Diz ser Ricupero, diplomata, em Brasília, na prisão. Marisa, em São Paulo, escuta. Entende e desentende. Prefere não entender. Mas precisa. E, por isso, vive, de sua parte, a tensão, a apreensão, a aflição.

Que fazer?

Ricupero, em Brasília, vai “relaxado”. Findou-se a “detenção”. Mas o Repórter Esso não avisou. Seguia-se, então, a contrição. Era muita a confusão. Marisa em São Paulo. Ricupero em Brasília. Afonso Arinos no Rio. João Goulart, o vice-presidente, do outro lado do mundo, na China Popular. Eis a estreia de Ricupero.

Sim: aventura. Quase coisas da imaginação. Um desavisado veria nisso tudo reinações de narizinho. Coisas de Lobato. Não parecem verdade. Ou quem sabe, coisa de Hergé. Tintim.

Aventuras de Tintim. Mas, não. Era tudo verdade. Ricupero, Marisa e o Brasil.

Segue-se lendo.

Ricupero em Brasília. Marisa em São Paulo. Casamento marcado. Convites distribuídos. Convidados confirmados. O padre Luigi – por charme, Luis; aquele da Congregação Mariana, que viu o amor de Marisa e Ricupero, no primeiro encontro e olhar, nascer – mais que confirmado, convocado. A Igreja Nossa Senhora da Paz, na várzea do Glicério, quem sabe, já pronta. Vasta em ornamentos. Aguardando os bonitos noivos chegar. Toda preparada para logo os sacramentar.

A data ia marcada: 1 e 2 de setembro. Antevéspera, agosto, dias finais. Ricupero em Brasília. Marisa em São Paulo. Muita apreensão. Forte pressão. No Rio, cogitava-se, guerra civil. Noutras partes também. Tramava-se até mais. Cercar-se Brasília. O retorno das fardas. República dos militares. Demissão de funcionários. Quem sabe, até de Ricupero. Muita dúvida. Indecisão. Ricupero em Brasília. Marisa em São Paulo.

Casar-se agora ou não?

Ricupero hesitou.

Marisa resolveu: “agora ou nunca!” (p. 185).

Fim da hesitação: “agora”.

Para-se a leitura.

O nobre leitor, agora, muito interessa, precisa respirar.

Fecha-se o livro. Meditação. Medita-se.

Surge uma dúvida. Nada singela.

Continuar, assim, lendo ou retornar ao começo e tudo recomeçar para ampliar em sabor, aroma e sensação essa penetrante degustação?

Vai-se ler. Ou melhor, reler. Reler tudo. Mas agora ou depois?

Dissipa-se a dúvida. Agora. Avante.

E, ao avançar, o querido leitor vai encontrar, à página 188, uma foto que já se tinha visto. Uma foto, portanto, marcante e familiar. Mas que, agora, parece se renovar para marcar ainda mais.

Vê-se nela, na foto, o inconfundível San Tiago Dantas. Marca-se bem: página 188.

Lê-se na legenda que era dezembro de 1961. Lê-se também que foi feita em Buenos Aires.

Espanta a estampa do novo chanceler.


Malgrado mineiro – gentílico de gente costumeiramente sábia em esconder emoções –, ele, San Tiago Dantas, parece envelhecido, abatido, cansado. Logo atrás dele, Ricupero. Apreensivo. Observador. Admirando em silêncio o homem de quem diria: “Jamais encontrei, antes ou depois, alguém que se comparasse a San Tiago na formulação imediata, irretocável na espontaneidade, como se tivesse sido retrabalhada até à perfeição e, não, como contemplávamos deslumbrados, fruto de reação daquele instante” (p. 193). Observando, Ricupero, ainda em silêncio, nesse homem, San Tiago Dantas, uma “inteligência de terrível lucidez” (p. 195). E apreendendo dele cenários tenebrosos para o Brasil, compreendidos em percepções como “A Constituição sofreu abalo provavelmente irreparável, a não ser que todos disponham a jogar sinceramente o jogo parlamentarista” (apud p. 194).

Os meses seguiriam. Vai-se lendo. O ano era 1962. Ricupero e Marisa, casados, viviam juntos em Brasília. San Tiago Dantas – mais que chefe de Ricupero, agora, amigo dos dois, Marisa e Ricupero – causava impressão. “Derrotado por suas qualidades, não pelos defeitos” (p. 198), forjou aflição. Todos sentiram. Ricupero também. Era forte a desolação. Que, como saída e opção, levou Ricupero a aceitar o convite de Mario Gibson Barboza para servir em Viena. Mesmo que lá, na Áustria, ele viesse a se sentir muito longe daqui. O fato era que, aqui, Brasília não dava mais.

Pausa de leitura.

Continuação.

Agora em epopeias internacionais. Viena, Buenos Aires e Quito. Ricupero documenta e diz. Fica claro: foram experiências excepcionais. E, pelo visto, foram mesmo.
Lendo o texto e vendo as fotos, o leitor agora quase enfeitiçado vai notando a fisionomia de Marisa e de Ricupero conjuntamente mudar. Agradáveis, como sempre. Mas, agora, eles dois têm feições mais graves. Serão os filhos, as conjunturas, as perseguições, os novos amigos, as novas paisagens, as infinitas leituras, os concertos, as saudades do Rio, de São Paulo, do Brás, dos Jardins, da rua Oscar Freire de Marisa? Tudo junto?

Veja-se 1961. Veja-se 1963. Depois 1967, 1969, 1971.

Ricupero e Marisa são outros. Não mais meninos. Mudaram-se os tempos.

Para-se aqui. Lê-se uma vez, duas, três tudo que vai dito nas páginas 205 a 302.

Trata-se do relato sobre os amigos. Maria Werneck do Carmo, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, Maury Gurgel Valente, Tuni e Wladmir Murtinho. Amigos. Poucas vezes o leitor vai encontrar – em escritos nacionais ou estrangeiros – tão clara demonstração de verdade, admiração e devoção a amizades como se vê nessas páginas. Páginas 205 a 302. Páginas de Memórias. Páginas de vida. Páginas vivas das memórias de vida de Marisa e Ricupero.

Emoção. Respiração. Agora, sim: volta-se ao livro. Que depois dessas páginas – as indizíveis, emotivas e intraduzíveis páginas 205 a 302 –, volta-se à política, ao Itamaraty, ao diplomata.
No exterior – Viena, Buenos Aires e Quito –, restou a Ricupero cuidar da cultura. Adeus, política. Adeus à Divisão Política do Itamaraty, onde, em 1961, para Ricupero, em Brasília, tudo começou. Adeus à influência. Adeus à onipresença. Agora, doravante, o setor de cultura. Não que esse setor, o da cultura, desimportasse. Mas, sob o prisma do novo regime, após 1964, seguir nele era quase punição. Punição àqueles que estiveram muito perto do sol tempos atrás. Punição ao ostracismo. Para ter-se em mente Ícaro. E, quem sabe, jamais desejar sonhar seus sonhos. Sonhos de Ícaro.

Tudo para se comprovar que, no Brasil, nunca se deve brincar nem subestimar os militares.

Conclusão brutal. Mas parece correta. E, pior, parece ser, no real, assim. Vai saber.

Segue-se a leitura e apreende-se que Ricupero voltou ao Brasil em 1971 e foi, novamente, designado para o setor de cultura. Mas, agora, o caldeirão com feitiço entornou. A sacola de maldades furou. E a cultura lhe sorriu. E sorriu da melhor forma: apresentando-lhe a África e o Brasil, o Brasil e a África, fluxo e refluxo, brasileiros e africanos.

Lê-se bem: o ano era 1971.

Antes teve maio de 1968. Mais atrás teve 1950-1960.

Nisso tudo, a problemática africana se acentuou. E os militares, no Brasil, perceberam. E quiseram interagir. Vivia-se o período Médici. Presidência de Emílio Garrastazu Médici. O chanceler era Mario Gibson Barboza. Decidiu-se, na presidência e no Itamaraty, pela aproximação. Brasil da África. África e Brasil. Notadamente pela cultura. Cultura da qual cuidava Ricupero. Preparou-se, então, a viagem. A viagem do chanceler. Encarregou-se Ricupero da preparação e condução. Visitou-se – visitaram, Ricupero, a delegação e o Ministro – Senegal, Costa do Marfim, Gana, Nigéria, Camarões, Congo (Zaire), Togo, Daomé e Gabão.

Foi – pra ele, Ricupero – inesquecível.

Foi o início de seu vício pela África. Do seu apreço pela compreensão da problemática dos africanos na África e dos negros no Brasil. Da sua interação profunda com Alberto da Costa e Silva. Outro amigo que o Itamaraty lhe deu. Outro espécime que enche de vida as suas memórias.

Depois de 1971, vieram 1972 e 1973. E, para Ricupero, mais cultura, mais África e mais Brasil. Agora na Bahia. Onde ele, Ricupero, seria plenamente feliz. Como inegavelmente feliz ele aparece na foto da página 338. Em nenhuma outra foto do livro o seu sorriso vai tão espontâneo, tão loquaz, tão cheio de Brasil. Um sorriso, seguramente, produzido pela sua interação com gente da qualidade cultural, moral e espiritual de Anthony Enahoro, Clarival do Prado Valladares, Vivaldo da Costa Lima, Ieda Pessoa, Pierre Verger. Pela sua tentativa primeva de se criar o Museu Afro-Brasileiro em Salvador. Pelos seus contatos com Emanoel Araújo, quem faria esse Museu, tempos depois – pela África, pela Bahia e pelo Brasil –, em São Paulo. Pela sua aproximação a Aloísio Magalhães e a tantos outros.

Reveja-se a linda foto à página 338. E avante. Segue-se a leitura.

Chega-se ao ano de 1974. Novos tempos. Presidência Geisel. Ernesto Geisel. Início da “lenta, gradual e segura”. Ricupero vai movido, pela primeira vez, para os Estados Unidos, para Washington, para a embaixada brasileira naquela capital. A mesma embaixada onde um dia estiveram Joaquim Nabuco, Oliveira Lima, Domício da Gama. Agora, Ricupero. Que vai, para lá, cumprir as ordens do embaixador João Augusto de Araújo Castro.

Ricupero chega em Washington, com Marisa, no mês de maio daquele ano. Vai, como sina, novamente, responder pela cultura. Sempre com pouco ou pouquíssimo relevo. Mas sempre agindo e fazendo coisas. Lendo tudo e sobre tudo. Rememorando Benjamim Franklin e os Founding Fathers. Fazendo o que dá, o que pedem e o que pode. Até que dia 7 de dezembro de 1975 veio triste e forte para mudar tudo.

Fazia frio naquele dia em Washington. O outono anunciava o inverno. Passava-se do meio-dia. Recomeçava-se, após o almoço, o trabalho. Ricupero numa sala e o embaixador Araújo Castro em outra. Escuta-se um barulho. Parecia surdo. Ricupero percebe. Ensimesma-se. Pressente o mal. Mas não tem tempo de reação. Recebe de súbito a voz da secretária em chamado. Pedindo ajuda e querendo alguém para acudir. Ricupero atende. Corre lá ver. Sobe rápido as escadas. Vai ter com a secretária. Mas não era ela. Era Araújo Castro. Morrendo. Fulminado por um infarto. Agonizando ao lado da mesa. Seu coração não aguentou. Deu a sua hora. Fim da partida. Adeus, embaixador. Adeus, Araújo Castro. De quem Ricupero diria com apreço, reconhecimento e valor que “ninguém no Itamaraty jamais chegou perto […] na capacidade poderosa de formular política exterior original” (p. 347).

Essa partida de Araújo Castro, segue-se lendo e apreendendo do texto, desfalcou o serviço exterior brasileiro no pior momento. O momento da complexa transição da presidência Richard Nixon para a presidência Gerald Ford. Um desfalque que motivou a transferência de Ricupero do setor de cultura para o setor de política. Um, portanto, retorno. Até quem fim.

Outros tempos. Outro ar. Outra vida.

Que, segue-se lendo, não duraram tanto assim. Pois na primeira metade de 1977, Ricupero foi, novamente, movido ao Brasil. Agora, seguindo na área da política, para chefiar a prestigiosa Divisão da América Meridional II, participar da consagração do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) e conviver com o notável embaixador João Hermes Pereira de Araújo – em seu entender, “modelo de linguagem e estilo”, “paciência”, “benignidade” e “realismo de longo prazo” adicionados a “retidão, cultura, equilíbrio, graça e beleza” (pp. 365-369 passim).
Ainda era a presidência Geisel. Mas não tardaria a anistia nem a aceleração da abertura. Golbery tramava. Ricupero, no Brasil, voltava, assim, ao centro de gravidade das decisões num momento de ponto ótimo. O ponto ótimo da redemocratização.

Seguindo-se a leitura, vai-se notando que Ricupero fez e participou de muitas iniciativas nesse seu retorno ao Brasil. Tudo que – para quem, como o nosso nobre leitor, conhece o seu depois – parecia conduzir para 1985, a Nova República e ao momentum Tancredo de Almeida Neves. por isso, continua-se lendo e aguardando ele dizer muito sobre isso. Sobre 1985, a Nova República e o momentum presidencial de Tancredo de Almeida Neves. Quando se chega lá, recebe-se água fria. Lê-se um lacônico: “Não vou repetir o que saiu em livro de 450 páginas com o texto do diário, fotos e documentação” (p. 386).

Nesse instante, o leitor, agora, convertido em fã de Ricupero, não vai hesitar. Vai parar a leitura, fechar Memórias e começar a pesquisar do que se trata esse outro livro que Ricupero vem de mencionar. E sem muito procurar, vai logo achar. Diário de Bordo: a viagem presidencial de Tancredo Neves (São Paulo: Imprensa Oficial, 2010). E vai logo, também, perceber ser outro livro formidável. Feito, também, com intenção memórias. Mas com formato diário. Quase Verbatim. Tudo bem. Guarda esse livro para ler depois. Logo em seguida. Agora, Memórias.Volta exatamente onde parou. E segue. Segue a leitura e a apreciação. Mas sente, agora, algo curioso. As histórias que Ricupero começa a contar parecem todas frescas, visitadas, saber sabido.

Como se alguém já lhe tivesse contado.

A proximidade de Ricupero com o presidente Sarney. A cumplicidade de Sarney com o jornalista Castelinho. A pacificação total da relação do Brasil com a Argentina. A Constituinte de 1986-1988. A acomodação dos militares. O “conter” Brizola, da parte dos militares.

Mas, não.

Surpreende-se, em seguida, com uma informação que não parece detalhe. Diz respeito à ida de Ricupero para Genebra em 1987. A sua primeira experiência como embaixador de uma Delegação do Brasil junto aos organismos da ONU. Onde se lê (…) “para Marisa e para mim, era a primeira vez que iríamos servir no exterior não como subordinados, e sim como os principais responsáveis pelo posto, cada um na sua esfera” (p. 400).

Nota-se: nada trivial. Por isso, atenção. E avante na leitura até se realizar que foi de Genebra que Ricupero viu Ulysses Guimarães sacramentar a Constituição, o povo ir às urnas para as presidenciais depois 1960, o momento Collor versus Lula com a vitória do primeiro, a formação do novo governo, a movimentação no Itamaraty, a indicação do novo chanceler, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, José Francisco Rezek, e, ao final, o convite irrecusável.

Suspense.

Segue-se o texto para ver o que conta Ricupero. E ele conta que, confirmado no cargo, o novo chanceler ligou para ele, Ricupero, em Genebra. Queria que ele, Ricupero, voltasse ao Brasil. E voltasse como secretário-geral do Itamaraty. Ao que Ricupero prontamente aceitou. Mas teve que voltar atrás. E por uma razão nada trivial. O fato-verdade que rememora que, desde o 1-2 de setembro de 1961, ele, Ricupero, não era mais um. Mas dois. E a parte dois, Marisa, era terminantemente contra a subordinação de seu marido, Ricupero, aos desígnios do afamado playboy, Fernando Affonso Collor de Mello, tornado presidente. Ricupero teve que recusar. Seguir Marisa e ficar em Genebra. Em seu lugar, para o nobre posto do Itamaraty, foi Marcos Azambuja.

Ricupero seguiu, sim, em Genebra. Mas não por muito tempo. Poucos meses depois, foi movido para Washington. Agora, como embaixador.

Daí em diante, o leitor, sempre rente ao texto, nota que detalhes, eventos e responsabilidades se avolumam e a história de Ricupero parece em tudo se acelerar.


Teve a Rio-92. A troca de Rezek por Celso Lafer. O martírio de Collor. A ascensão de Itamar. E uma nova história que começa a começar.

O ano era 1992. O mês era outubro. O dia, o segundo.

2 de outubro de 1992.

Chovia frio em Washington. Ricupero e Marisa recebiam Ruth Escobar e Shirley MacLaine na embaixada. Alguma descontração encantava o lugar. Ruth era amiga de Ricupero desde a juventude. Desde 1957. Desde os tempos em que não sabiam nem queriam saber o que viriam a ser. Shirley MacLaine, todos sabiam. Além de linda, era uma musa. Estrela de cinema.

Literalmente. Premiada em todas as partes. Monumento sagrado da sétima arte. Agora ali. Acompanhada de sua amiga Ruth. Diante de Marisa e de Ricupero.

Risadas, diversão, trivialidades.

O dia prometia. Iriam todos – Ricupero e Marisa inclusos – contemplar o show de Frank Sinatra ao anoitecer. Tudo ia bem.

Diversão, trivialidades, risadas.

Mas, pelas tantas, o telefone toca. Era para o embaixador. Era para o Ricupero. Ricupero atende. A ligação vinha do Brasil. Talvez de São Paulo ou do Rio. Quem sabe, Brasília. Era o chanceler do outro lado. Era Fernando Henrique Cardoso querendo falar. Antigo senador que virou chanceler da presidência Itamar. Trazia um recado de Itamar. Um recado quase pessoal, direcionado ao embaixador Ricupero, transformado numa mensagem curta e grossa: Itamar quer Ricupero no Ministério da Fazenda.

Ricupero ouviu sem falar. E, em seguida, reagiu sem pestanejar nem hesitar. Recusou prontamente. Indicou ser engano. E apresentou as suas razões. Restando ao chanceler escutar e partir. Marcílio Moreira Marques seguia no cargo. Sucedia a Zélia Cardoso de Mello. Mas, agora, ia deixar. Mas não era o caso de largar. Itamar queria Ricupero. E fez Fernando Henrique de mensageiro para sutilmente avisar. Ricupero disse não. Itamar foi informado. E, por claro, não gostou nem aceitou. Retornou, ele próprio, presidente da República, a ligação para Washington. Queria falar diretamente com Ricupero. Em sua contrição interior deveria se martirizar com a indagação o onde é que já se viu?!

O telefone tocou em Washington. Ricupero atendeu. Era Itamar. História similar. Ricupero ouviu. Novamente, desconversou. Apresentou novas razões. Disse estar longe do Brasil. Ser estranho à área – economia e finanças. Estar distante de seus operadores. Desconhecer empresários. E assim por diante.

Itamar, mineiro, por temperamento, silenciou. Ricupero também.

Despedida, seguramente, bem seca.

Tenha um bom dia, presidente. Tenha um bom dia, embaixador.

Mas uma aflição no ar. Longe, muito longe de assunto encerrado. Passados uns instantes, mais uma vez, o telefone em Washington tocou. Ricupero atendeu. Do outro lado, quem poderia ser? Sim, claro: José Sarney. O homem que sucedeu a Tancredo de Almeida Neves e por quem Ricupero sempre demonstrou afeição. Mas, agora, aflição. Assunto similar. O desejo de Itamar. Ricupero não teve como. Recrudesceu. Declinou novamente e disse adeus. Sabe-se lá se o antigo presidente entendeu. Pouco importa. Ricupero disse não; e o seu não era não. Mas o seu telefone voltou a tocar e tocar. Maiorais da vida nacional brasileira queriam lhe falar. Convencer. Quem sabe, até intimidar. O poderoso governador do seu estado natal, São Paulo, Luiz Antônio Fleury pediu a Ricupero que aceitasse o novo posto em seu favor. O extraordinariamente nobre senador gaúcho Pedro Simon moveu esforços pelo mesmo. Mas, não. Ricupero reiterava o seu não.

Era um dia especial. Fenomenal. Era o 2 de outubro de 1992 e todos em Washington queriam ver Sinatra. Ricupero também. Que coisa era aquela de ficarem querendo que ele assumisse o Ministério que tanto mal causara ao seu mentor e amigo San Tiago Dantas quando, em Brasília, tudo em sua vida começou? Que coisa era aquela? Que coisa era aquela de quererem jogá-lo na piscina sem água, na fogueira sem fogo, no abismo sem fundo, na floresta sem bússola, num Ministério – o da Fazenda – que até Deus – brasileiro ou não – hesitaria em aceitar?

Caiu a tarde. Todos ver Sinatra à rua 13, no Warner Theatre. Esqueça-se, por ora, mesmo sendo embaixador, o Brasil.

Diria um bom mineiro: tenha-se a santa paciência.

Belo show, findo o show, o jantar.

Sinatra – amigo próximo de MacLaine – convidou Ruth e Marisa, que adicionaram Ricupero. O projeto era jantar chinês. Foram todos. Sinatra guiando. Chegam ao restaurante. Ricupero deveria estar cantarolando mentalmente algum sucesso do ídolo, tamborilando algum ritmo com os dedos das mãos ou fazendo o chão de percussão com as pontas dos pés quando a invenção de Graham Bell volta, mais uma vez, a tocar. Não teve jeito. Cortou-se o clima. Teve que atender. Era, novamente, do Brasil. Mas não era o chanceler nem o presidente. Era o jornalista Elio Gaspari, que ligara para dizer que o economista Gustavo Krause acabara de aceitar ser Ministro da Fazenda. E – quem sabe – também para recomendar a Ricupero que dormisse tranquilo e aliviado pois não tinha sido daquela vez. Ricupero, por certo, ouviu aquilo e suspirou. Mas, claro, agora, ele não ia dormir. A noite estava só começando. Sinatra – sim, Frank Sinatra – o aguardava lá dentro para jantar.

Trivialidades, diversão, risadas.


O leitor, que achava conhecer bem a história política recente, surpreendeu-se. Parou um pouco a leitura apenas para tomar um fôlego para seguir melhor, e seguiu. E, seguindo, notou que Ricupero continuou firme como embaixador do Brasil em Washington. Mas também percebeu que por tanto tempo.

Ele vai lendo e anotando que tudo mudaria em meados de 1993, depois daquela horrível chacina de Yanomami ao Norte do Brasil. Essa chacina – ocorrida menos de um ano após o congraçamento mundial da Cúpula da Terra no Rio de Janeiro – comoveu o mundo inteiro e o presidente Itamar precisou agir. E agiu. Mandou mover às pressas Ricupero de Washington para o Brasil para Ricupero transformar a antiga Secretaria do Meio Ambiente em Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal. Era um gesto forte do governo Itamar. Ricupero veio.

Voltou para Brasília e fundou o Ministério. E, por talento, gostou. E até virou ambientalista.

Adeus, Washington, MacLaine, Sinatra, mas, em compensação, toda a fauna e flora explorada e inexplorado do Brasil para conviver.

Tudo ia bem, lê-se. Até que no 1º de março de 1994, data de seu aniversário de 57 anos, o assessor especial da presidência Itamar, Mauro Durante, deixou escapar a (in)confidência: Itamar não esquecera nem se dera por vencido: seguia querendo Ricupero no Ministério da Fazenda: Ricupero estava no Ministério do Meio Ambiente apenas aquecendo: o jogo estava rolando e, a qualquer momento, Ricupero seria convocado a entrar em campo: ele estava no Brasil como regra-três.

Ricupero entendeu. Mas fez que não. Vida que siga, vida a fluir.

Até porque, tudo no Ministério da Fazenda, agora, parecia ir muito bem. Fernando Henrique Cardoso – movido do Itamaraty para a Fazenda, sucedendo Gustavo Krause, Paulo Haddad e Eliseu Resende – conseguia estruturar o Plano Real que, agora, era real. Parecia dar certo. Tinha ambiente. Competência. Timing. A equipe – como a dos outros planos – era formidável. Coesa e determinada. Em seu geral, com o que de melhor existia no Departamento de Economia PUC do Rio e em outros departamentos de Economia. Gente formada no exterior. Com doutorado no MIT, em Harvard. Quando não em Yale, como no caso do experimentado Edmar Bacha. Gente que tinha tudo para fazer dar certo. Pra quê Ricupero, Ricupero pra quê?, poderia se perguntar o próprio Ricupero. O negócio de Ricupero, agora, 1993-1994, era água, plantas e bichos, Meio Ambiente e Amazônia Legal.

Seguiu-se assim. Mês de março de 1994 adentro. Até que ficou patente que Fernando Henrique Cardoso sairia do Ministério da Fazenda para se candidatar a presidente. Ricupero soube disso no Rio. Era fins de março e a jornalista Miriam Leitão viera avisar. E, Ricupero seguia dando de ombros. A vida seguia. Até que chegou o “grande” dia.

Estava-se em Brasília. Vivia-se o 30 de março de 1994. Ricupero dava expediente normal em seu Ministério quando o telefone toca. Era o presidente Itamar. Queria vê-lo. Ricupero – sem saber ou sabendo – foi. Encontrou-se com Itamar no Palácio do Planalto. Os detalhes, gestos e símbolos do encontro foram muitos. Mas, em síntese, conversaram. Quem sabe, até, mutuamente, apiedaram-se. Afinal, eram cavalheiros. Até que pelas tantas, veio o xeque que virou xeque-mate e Itamar foi na jugular de Ricupero de modo certeiro dizendo: “já examinamos todas as alternativas e o senhor é a única opção” (apud p. 476).

Pronto. Acabou. Sem saída. Fim da partida. Ricupero virava, ali, Ministro da Fazenda do Brasil.

E, como Ministro, foi muito bem. Todos sabem. Até quem não viu. Ficou cinco meses. Criou a moeda. Assinou-a. Divulgou-a. Pacificou-a no imaginário nacional. Deu-lhe vida. E se foi. Para dizer depois “Embora importante, a participação na saga do Real não define ou esgota minha trajetória, representa cinco meses de uma vida de 87 anos” (p. 542).

O leitor segue lendo. E vai compreendendo que, depois do Plano Real, Ricupero renasce em outros campos e em outras vidas. Roma, ONU, Genebra, UNCTAD. Gira mundo, volta pra casa, vem pra São Paulo, Higienópolis, FAAP, Mensalão, Petrolão, Bolsonaro, Lula III.

Nossa: agora, sim. Termina-se, de modo seguro, o livro. Fecha-se os olhos. Confidencia-se em silêncio: meu Deus: quanta vida, quanta história, quanta informação.

E, agora, o mais que distinto leitor fecha e guarda o livro. Mas as histórias contidas nesse livro pululam em sua memória e preenchem a sua imaginação. Quase perseguição. Elas vão e voltam. Quando, muito aflito, o leitor volta ao livro para contemplar apenas a sua capa. E ele vai e vê. Vê Ricupero. Que, agora, na capa, incrivelmente, não para de sorrir. Quien ríe, entiende. Que fazer?

Medita-se. Conclui. Sim: falta algo a ser percebido. Não se sabe o quê. Mas falta.

Lê-se, de novo, na capa do livro: Rubens Ricupero, Memórias. Parece charada. E é. Tenta-se decifrar. E, exausto de tanto tentar decifrar, diz pra si mesmo: bom, vamos ver se é isso.

Claro: já se disse. O livro não é bem um livro. E, por isso, não é bem para ser lido, explicado nem entendido. Esse livro, Memórias, de Ricupero, é vida. E, como a vida, vale mais em ser apreciado, notado, sentido que decodificado, explicado ou entendido.

Nesse prisma, agora se entende que quando se vê Memórias, sabe-se bem que não são bem memórias. São ao máximo – como diria Carlos Heitor Cony – Quase Memórias. Quase e literalmente quase porque, vendo e olhando ao redor, os mundos de Ricupero formam oceanos verdadeiramente impossíveis de abraçar. Oceanos de muita água. Água demais – diria Camões – para caber em tão pequenos vasos feito livros, feito artigos, feito Memórias.

De toda sorte, pragmaticamente, tem-se aqui um livro. Um livro de memórias assinado por Ricupero. Livro ou quase livro, memórias ou quase memórias. Pouco importa. O que, agora, mais importa, depois de lido e relido, talvez seja uma investigação mais segura sobre o enquadramento fidedigno do seu significado. E, diante disso, sai de cena o leitor desavisado para ter espaço um singelo observador. Que olha, percebe, entende e vê que, quem segue distante ou desinteressado dos assuntos que circundam esse novo livro de Ricupero não possui elementos para perceber que ele, Memórias,representa, sinceramente, um verdadeiro acontecimento na vida cultural, intelectual e política brasileira. Isso mesmo: um acontecimento.

Sem exagero nem concessão, o conjunto de relatos que compõe Memórias de Ricupero vem sendo demandados e aguardados tem vinte, trinta, quarenta, cinquenta ou sessenta anos. Desde que Ricupero deixou a UNCTAD em 2004. Desde que saiu do Ministério da Fazenda em 1994. Desde que participou do parto bem-sucedido da Nova República em 1984-1985. Desde que foi servir em Washington em 1974. Desde que foi colocado no vigésimo primeiro lugar na lista dos 39 diplomatas “subversivos” perseguidos pelo Itamaraty em 1964.

Sim. Isso mesmo. Muita espera.

Uma espera que foi – é verdade – remediada de muitas formas, com muitos livros, muitos textos e muitas intervenções. Veja-se, por exemplo, o formidável A diplomacia na construção do Brasil: 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal, 2017) que, acima de tudo, também foi uma maneira de abrandar essa espera. Lembre-se que Ricupero foi colunista contínuo de um dos jornais mais importantes do país, a Folha de S. Paulo, por mais de vinte anos. [Aliás, causa perplexidade que esses artigos ainda não tenham sido reunidos em livros]. Observe-se que ele escreveu bem mais de uma centena de artigos, prefácios e introduções para livros – a começar pela belíssima introdução à versão italiana de Brás, Bexiga e Barra Funda, feito Notizie di San Paolo, de Antônio de Alcântara Machado. [Aliás, novamente, causa estranhamento que esses materiais ainda não tenham sido reunidos em livros e que ninguém no Itamaraty ou fora tenha se dedicado a contextualizá-los, problematizá-los e comentá-lo como fonte de fortuna crítica]. Ademais, ele deve ter milhares de minutos em aparições em rádio, televisão e, agora, Internet, YouTube e afins. [Também causa espanto que esses registros ainda não estejam catalogados]. E, com tudo isso, ele abrandou a força da demanda verdadeiramente insistente por seu imponente relato. Que, agora, aparece nesse volume Memórias.

E, por tudo isso, Memórias, por isso só, é um livro marcante.

Mas tem mais.

Ele tem, ao menos, um nítido significado. Um significado que namora o “significado” que Antonio Candido ofereceu ao Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Um significado que os diplomatas, historiadores, cientistas sociais e homens práticos no Brasil, mais dia, menos dia, vão ter que se debruçar.

Por agora, modestamente, saindo do assunto para depois voltar, O significado de Raízes do Brasil, todos sabem e vão lembrar, cravou tempos e marcou gerações. Nesse ensaio, o autor do extraordinário Os Parceiros do Rio Bonito, superou-se mais uma vez.

Relend0-o à luz de 2024, nota-se bem viva a sua concepção principal que aduzia que há obras que marcam e poucos percebem. Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda foi assim. Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre e Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado Júnior também. Alguém no futuro, não tão distante de 2024, vai, claramente, dizer o mesmo de Memórias de Ricupero.

Por agora, o que se pode singelamente tentar fazer é simplesmente começar a enquadrar Memórias de Ricupero para alguém no futuro verdadeiramente o significar. E ao significar, seguir o eterno mestre Antonio Candido, e finalmente confeccionar uma avaliação marcante sob o título “O significado de Memórias de Rubens Ricupero”.

Por agora, porquanto, apenas começar a enquadrar.

E, para esse começar a enquadrar, vale lembrar que o fazer memórias – essencialmente políticas e notadamente diplomáticas – se traduz, antes de tudo, num estilo retórico. Um estilo que, no Ocidente, remonta ao mundo antigo. Quintiliano, Aristóteles, Cícero, Plutarco, Platão. Um estilo que foi, também no Ocidente, formidavelmente modificado e atualizado pelos tratadistas Quinhentistas e Seiscentistas. Que todos sabem e, por isso, não vai ao caso de muito, por aqui, se detalhar. Mas compete, isto sim, lembrar e acentuar o peso retórico de Maquiavel nessa renovação. E não simplesmente do Maquiavel que escreveu O Príncipe.

Mas depois de seu O Príncipe, em tempos modernos e de governos absolutos, essa prática memorialística renovada se multiplicou. Notavelmente entre os diplomatas. Essencialmente entre os homens práticos e a gente de ação. Reveja-se, como exemplo e demonstração, a erupção de memórias sob os tempos de Richelieu, Mazarin, Westfalen.

No século a seguir, o das revoluções – Industrial, Americana e Francesa –, essa prática aumentou ainda mais. Parte pela ampliação das relações transatlânticas e planetárias. Parte pelo aumento da complexidade dessas relações. Parte pela complexidade crescente das sociedades. Parte pela emergência de novas e abrangentes noções de esfera pública, espaço público, debate público. Parte pela afirmação das ideias de nação, nacional e interesse nacional. Parte pelo retorno do imperativo da res publica. Parte pela reabilitação da democracia. Parte pela força dos nacionalismos. Parte pelo apogeu do cidadão. “Citizens” diria o sempre sutil Simon Schama. E, isso tudo, num crescendo retilíneo desde as revoluções até 1914-1918.

Sem ser exaustivo nem ter a pretensão de tudo abarcar, demonstrar ou dizer, mas, antes, apenas evidenciar, veja-se, por exemplo, a multiplicação de memórias nos tempos de Kaunitz (1711-1794), esse cidadão que ficou meio século ao serviço do Império Habsburgo e, malgrado o regime, fomentou memórias, suas e de outros, para tudo se saber e para todos assuntarem. Veja-se como William Pitt (1708-1778) fez o mesmo ao seu tempo e ao seu modo. Lembre-se do esquecido chanceler francês Vergennes (1719-1787), homem de erudição e ação, que foi o mestre de memórias, na França e na Europa, dos tempos de Napoleão. Veja-se depois. Tem mais. Talleyrand (1754-1838), Metternich (1773-1859). Projete-se no tempo. Mentalize o depois. Reveja-se nos tempos de Bismarck (1815-1898), Disraeli (1804-1881). Tempos formidáveis. De história em aceleração. Mundos em ebulição. Memórias e mais memórias em confecção. Até se chegar em 1914. Quando todos se descobriram sonâmbulos. Quem sabe, talvez, pela própria proliferação de memórias. Ou, então, o mais provável, por, como el ingenioso hidalgo Don Quixote de la Mancha, terem, talvez, adentrado nessas memórias com tamanho gosto até perder a razão.

Seja como for, marcou demais a imagem – feliz, mas sinistra –, sonâmbulos, “sleepwalkers”, de Christopher Clark para sintetizar as origens da Grande Guerra. Sonâmbulos. Mas pouco se lembra ou fala que, depois do 11 de novembro de 1918, a intenção do professor Woodrow Wilson, tornado presidente dos Estados Unidos, era a promoção universal de uma open diplomacy para contrastar a dirty diplomacy, que, em seu entender, tinha alimentado o sonambulismo que conduziu a 1914.

open diplomacy wilsoniana, assim, propunha uma “diplomacia do conhecimento” e uma “diplomacia do esclarecimento” a partir do debate público, livre, transparente e em alto nível entre os países. Era uma ideia francamente liberal. Mas que foi – mesmo assim ou justamente por ser assim – posta em prática a partir de 1919 com o início da organização de documentos diplomáticos, arquivos políticos, confecção de portrais dos grandes homens políticos e diplomáticos e o fomento para a produção e divulgação de suas memórias.

Desde aí, o fazer memórias ganhou novos rumos e plenos significados. Passou a ser uma questão quase moral a produção de memórias. Um fator de honra. Caso se queira, um imperativo democrático.

E assim se fez. E não precisa de muito para se notar. Basta que se vasculhe com calma o movimento editorial do estilo memórias nos anos de 1920 e 1930. Foi impressionante. Fortemente na Europa. Mas também nos Estados Unidos. E, seguramente, também, no Brasil.

Mas veio 1940. A queda da França. A “étrange défaite”.

Pode não parecer. Mas, vendo-se com olhos interessados, quando Marc Bloch apresentou o seu magnífico e penetrante ensaio sobre as razões da queda da França em 1940 ele estava dizendo e pensando nisso e somente nisso. Debate público de alto nível, transparência nas discussões, amplitude de informações e memórias.

E, justamente pela ausência disso, e não ao acaso, ele diz que “Nos chefs n’ont pas su penser cette guerre. En d’autres termes, le triomphe des Allemands fut, essentiellement, une victoire intelectuelle et c’est peut-être ce qu’il y a là de plus grave” [Os nossos líderes não souberam pensar esta guerra. Em outros termos, o triunfo dos alemães foi, essencialmente, uma vitória intelectual e é talvez nisso resida o mais grave].

Dito sem remorsos, malgrado a ampliação qualificada do debate público após 1919, o sonambulismo intelectual ainda imperou e todos sucumbiram, mais uma vez, no terror. E, no caso da Europa e da França, esse terror deixou marcas ainda mais profundas e duradouras.

Justamente por isso e pensando nisso e só nisso, que o general De Gaulle, na França, e Winston Churchill, no Reino Unido, empenharam-se em confeccionar as suas obras-mestras sobre as guerras totais.

Ficando-se apenas no esforço do general francês, todos sabem ou podem imaginar o quão imenso foi o impacto cultural, político e moral da verdadeira catarse espiritual, emocional e racional plasmada nos três tomos de Mémoires de Guerre. Basta que se rememore a frase-mestra “Toute ma vie, je me suis fait une certaine idée de la France.” Quem, após Mémoires de Guerre de De Gaulle, consegue esquecer dessa “certa ideia”?

Nesse sentido, e voltado ao principal, naquele após-guerra, as memórias de Churchill e de De Gaulle, ao fim das contas, soergueram a barra do estilo e modificaram o patamar da confecção de memórias. Tanto que políticos, diplomatas, intelectuais, homens públicos e gente do comum também se enveredaram na produção de suas próprias memórias sobre a guerra, mas sempre conscientes da impossibilidade de concorrer ou superar as obras-primas e obras-mestras de Churchill e De Gaulle.

Tempos depois, quem ousou concorrer e superar foi Henry Kissinger com a sua trilogia – White House Years, Years of Upheaval e Years of Renewal – sobre seus tempos diplomáticos.
Sucesso de público e de crítica, essas memórias desse verdadeiro mago do serviço exterior norte-americano marcaram e ainda marcam pela abrangência, pela contundência e pelas contradições.

Os seus críticos mais acerbos sempre disseram se tratar de uma aglomeração de ideias desconexas concretizadas em livro pelo beneplácito de ghost writers de agências publicitárias. Stanley Hoffman, esse notável austríaco, formado na França, profundo conhecedor de Mémoires de Guerre de De Gaulle e responsável pela cadeira de História Europeia em Harvard, em contraponto, sempre acentuou o caráter penetrantemente transcendental das memórias de Kissinger – com Diplomacy incluída. Niall Ferguson, discípulo de Hoffman e biógrafo de Kissinger, diria, sobre Kissinger, simplesmente, “um homem complexo”.

E parece ser essencialmente essa dimensão de sujeito complexo que entrelaça o état de lieux do fazer memórias depois de Wilson, Churchill, De Gaulle e Kissinger. O mundo foi ficando cada vez mais complexo. E as boas memórias necessariamente também.

No caso brasileiro, o acontecimento mais eloquente que entrelaça essa discussão multissecular e antecede Memórias de Ricupero foi A lanterna na Popa – Memórias de Roberto Campos. Mas, antes de voltar a isso, o caso brasileiro merece preliminares.

Independentemente do que se diga ou se possa pensar, não vai nada verde a prática de memórias políticas e diplomáticas no Brasil. Para não se retornar muito nem muitíssimo no tempo, quem se aplicar a examinar do momentum que recobre a emergência do estado nacional brasileiro de 1750 a 1850 vai encontrar exemplares simplesmente acabados do que talvez melhor se produziu nesse estilo memórias no mundo inteiro. E o saudoso José Murilo de Carvalho, sobre isso, muito – ou tudo – já demonstrou. Adiante, da Guerra do Paraguai até 1930, seguramente, ninguém passou indiferente a Minha formação de Joaquim Nabuco. Nem mesmo o caríssimo Barão. Entenda-se: Barão do Rio Branco.

Vai verdade, mesmo assim, que das grandes figuras diplomáticas brasileiras das primeiras repúblicas, da Constituição de 1891 à de 1967, poucos deixaram memórias completas, organizadas e “definitivas”. Em seu lugar, deixaram, em sua maioria, fartos escritos. Quase sempre, sim, muito importantes. Mas quase sempre também, reconheça-se, demasiado desconexos.

Veja-se que com o próprio Barão do Rio Branco foi assim. E com Oswaldo Aranha, Cyro de Freitas-Valle, José Carlos Macedo Soares, Edmundo Penna Barbosa da Silva, San Tiago Dantas e Araújo Castro – verdadeiros luminares do serviço exterior brasileiro – também.

Uma forte – para não dizer, fortíssima – inflexão ocorreria no afluxo da redemocratização. Depois da anistia, nos anos de 1980, protagonizada pelo longo e importante depoimento do ministro Ramiro Saraiva Guerreiro, ao CPDOC da FGV, no Rio de Janeiro, em 1985. Um depoimento transformado em publicação em 1992 com a curiosa nomeação – no caso, título – de Lembranças de um empregado do Itamaraty.

No mesmo ano, 1992, ano do impeachment do presidente Collor, o Ministro Mario Gibson Barboza fez publicar, pela editora Record, Na diplomacia, o traço todo da vida.

E, desde então, começou a crescer a oferta de memórias desse tipo e qualidade assim como a sua demanda.

Para ficar apenas em alguns exemplos desse momento, veja-se, por exemplo, O mundo em que vivi de Manoel Pio Correa Júnior, Diplomacia em alto-mar: depoimento de Vasco Leitão da Cunha e Diplomacia, Política e Finanças de Marcílio Marques Moreira.

Existem outras. Aliás, muitas outras.


Quem desejar um panorama mais criterioso desse fenômeno não pode deixar de ver o importante artigo Memória e Diplomacia: o verso e o reverso do também embaixador e diplomata Paulo Roberto de Almeida.

De toda forma e de forma geral, o que se pode francamente apreender dessas memórias que sucedem imediatamente o depoimento de Saraiva Guerreiro é que elas padecem da síndrome contida na imagem Lembranças de um empregado do Itamaraty.

Ou seja, malgrado importantes, necessárias e interessantes, elas seguem, em geral, na forma e no conteúdo, demasiado comportadas, meio carrancudas e, quem sabe, no quesito estilo, até um pouco à cotê de la plaque. Até que A lanterna na Popa – Memórias de Roberto Campos mudou tudo ao subverter a forma de convenção.

Lançado em 1994, o calhamaço de 1.460 páginas do embaixador Roberto Campos provocou um inequívoco impacto cultural, intelectual e político no Brasil. O frisson foi geral. Mesmo quem na época não leu, conheceu. Passaram-se meses e anos onde o assunto era apenas esse. O das memórias de Bob Fields.

Tratou-se de um texto, sobretudo, erudito. Erudito – se é que vale a ênfase – ao extremo. Sabia-se e sentia-se que ele continha muito da paixão de Mémoires de Guerre de De Gaulle.

Notava-se que também existia, em suas tiradas e conclusões, algo do prosaico dos relatos de Kissinger. Mas também se via – isso, sim, muito forte – muito da pulsação de Mémoires – 50 ans de réflexion politique de Raymond Aron. Talvez não seja o caso de muito acentuar, mas apenas lembrar que o duplamente realista e liberal Raymond Aron – ao lado de Reinhold Niebuhr, Edward H. Carr, Hans J. Morgenthau e Martin Whigt – foi, seguramente, o mais erudito pensador das relações internacionais do século 20. Também não vem ao caso detalhar, mas relembrar que, após Mémoires de Guerre do general, o seu Mémoires – 50 ans de réflexion politique foi, seguramente, o livro mais esperado e consumido pela intelligentsia planetária.

E, por fim, mas não menos relevante, vale muito ressaltar que ele foi um dos poucos intelectuais de seu tempo que Kissinger reconhecia como mestre e confidente. Por tudo isso, naturalmente, gente da presença de espírito e da força intelectual do Roberto Campos não passou por nenhum indiferente por nenhum desses detalhes. Que, ao fim das contas, não são detalhes, mas fundamentos. E todos esses, então, complexos fundamentos – mais que detalhes – participam vivamente de suas memórias contidas em A lanterna na Popa – Memórias.

Por tudo isso, A lanterna na Popa – Memórias de Roberto Campos pode ser, assim, entendida de vários campos e maneiras. Menos como uma simples sequência de lembranças de um empregado do Itamaraty.

Depois desse momentum Roberto Campos, que ainda hoje aguarda estudos mais alentados, a chegada do século 21, a presidência Lula da Silva e a expansão do sistema universitário brasileiro edificaram uma novidade sem precedentes na matéria que foi a multiplicação exponencial do gosto e do estudo de relações internacionais fora do Itamaraty e, consequentemente, do interesse geral por memórias diplomáticas no Brasil.

Sem muito detalhar, vale sinceramente notar que os ataques de 11 de setembro de 2001 inauguraram o novo século e, mesclados à evolução do acesso à informação, tornaram ubíqua a preocupação com questões internacionais em todas as partes. Consequentemente, virou mais amplo – e, quem sabe, democrático – o desejo de se saber mais sobre o que se passa além das fronteiras.

Isso posto, cumpre lembrar que no primeiro biênio da presidência Lula da Silva, a política externa brasileira – como nos momentos inaugurais da Nova República – era o único consenso.

De um lado, porque o economista Jim O’Neill havia criado o acrônimo BRIC para os investidores a Goldman Sachs onde o Brasil figurava logo em primeiro como destino desejável de recursos públicos e privados internacionais. De outro lado, porque a sinergia perfeita e magnética entre o presidente Lula da Silva, o assessor especial da presidência Marco Aurélio Garcia, o chanceler Celso Amorim e o secretário-geral do Itamaraty Samuel Pinheiro Guimarães deram frutos importantes, relevantes e concretos para a ação exterior do país. E, adicione-se a tudo isso, a conjunção de bons e harmoniosos momentos na política, na economia e na política econômica brasileira – mesmo sob as sombras do Mensalão – que produziu um arco-íris quase perfeito naquele início de século no Brasil.

Primeiro pela manutenção do espírito conciliatório da Constituição de 1988. Segundo pelo reconhecimento dos legados do Plano Real e da presidência de Fernando Henrique Cardoso. Terceiro pela expertise no auscultar geopolítico. E, sobre isso, vale lembrar que o contexto era complexo. Os norte-americanos se afundavam no Oriente Médio. Os chineses adentravam a OMC, modificavam a integralidade comercial internacional e miravam as commodities brasileiras, africanas e latino-americanas. Enquanto o Brasil, por sua vez, começou a mirar na China, mas também avançou firma para a África, a América Latina, a Europa; todos os lugares.

No torvelinho de tudo isso, foi que foi se ampliando o interesse público por profissionais dedicados e especializados em áreas internacionais. E, nisso, chegou o momento das universidades.

No interior da longa e vertiginosa expansão da malha de universidades públicas e privadas no Brasil iniciada na gestão do Ministro Paulo Renato, ocorreu uma verdadeira ebulição de cursos sobre relações internacionais no país inteiro. Vendo-se tudo isso com calma, pode-se notar que, no lapso de cinco ou dez anos depois do 11 de setembro de 2001, a oferta de formação de qualidade e alto nível nessa área deixou rapidamente de ser, assim, monopólio de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Desse modo e desde então, praticamente nenhuma das dezenas de universidades federais espalhadas pelo território nacional, por exemplo, deixou de fazer constar em seu portifólio a oferta de bacharelado, mestrado e/ou doutorado em Relações Internacionais ou de áreas conexas a temas internacionais.


A conexão fina disso tudo ampliou a audiência para assuntos diplomáticos e fomentou, consequentemente, o gosto por memórias diplomáticas. E nesse entremeio deu-se o momentum Celso Amorim.

Sob vários aspectos, a trajetória diplomática de Celso Luiz Nunes Amorim figura sem par entre os empregados do Itamaraty. Vale simplesmente lembrar que ele só não fora mais longevo na função de chanceler que o próprio Barão do Rio Branco. E, mais que isso, sendo chanceler sob a presidência Itamar e chanceler sob a presidência de Lula da Silva, é possível afirmar que, em termos de prestígio e popularidade, o concorrente do nobre embaixador Celso Amorim seja, novamente, apenas o caríssimo Barão do Rio Branco.

Como se sabe, por ora, Celso Amorim ainda não parou o Carnaval como fez o Barão. Mas, contraexemplo, foi eleito, pela prestigiada Foreign Policy, o sexto mais importante pensador global do ano de 2010.

E tudo isso o impeliu, por claro, a se livrar ao público. E, nesse esforço pensado e demandado, apareceram os seus formidáveis Conversas com jovens diplomatasBreves narrativas diplomáticas e Teerã, Ramalá e Doha – Memórias da política externa ativa e altiva – respectivamente em 2011, 2013 e 2014.

Seria longa ou longuíssima uma peroração bem cuidada sobre cada um desses livros de Celso Amorim. Cada um deles possui um estilo e uma intenção que suscitam reflexões bem profundas. Teerã, Ramalá e Doha, por exemplo, de longe o texto mais agudo, sofisticado e penetrante, mereceria cotejamentos com praticamente todas as referências diretas e indiretas mencionadas. Pois, em termos formais e práticos, os seus principais argumentos, levados às últimas consequências, anteciparam todo o mal-estar planetário que o após-pandemia, o após-fevereiro de 2022 e o após-outubro de 2023 lançou. Trata-se, portanto, de um livro premonitório e essencial que não cabe num comentário. Um livro que, ao fim das contas, reporta o que ninguém quis ouvir nem ver, a saber: que as placas tectônicas do planeta se moveram bruscamente após a crise financeira de 2008 tornando o mundo geopoliticamente irreconhecível, perigoso e indomável.

Enfim, não dá, por aqui, para se deter demais na importância decisiva, intelectual e moral desses empreendimentos de Celso Amorim. Mas, mesmo assim, nesse contexto geral de enquadramentos, vale notar um aspecto, por muitas razões, curioso: os relatos de Celso Amorim nesses livros, consciente ou inconsciente, parecem se desviar do estilo e da verve transcendentes de A lanterna na Popa – Memórias de Roberto Campos para se aninhar no comportamento, na disciplina e na discrição de Lembranças de um empregado do Itamaratydo ministro Ramiro Saraiva Guerreiro. Basta voltar a ler pra ver. É impressionante. E impressiona ainda mais o fato de Celso Amorim, consciente ou inconscientemente, por intermédio dessas suas memórias diplomáticas, voltar a realçar o sentido do fazer memórias desse tipo no Brasil.

Esse era o quadro.

E agora aparece Memórias de Ricupero.

Sem muito avançar, vale inicialmente notar que Memórias de Ricupero, para fins de enquadramento, parece mesclar essas, por assim dizer, tradições. Encontra-se, assim, em Memórias de Ricupero muito do comedimento, da disciplina e do charme de Lembranças de um empregado do Itamaraty e muito da joie de vivrede Roberto Campos. Mas vê-se também muito, muito mesmo, do intenso e desabrido comprometimento ético, intelectual e moral com a democracia brasileira que se nota nas memórias de Celso Amorim. E, também, como transpassa todas as memórias de Celso Amorim, em Memórias de Ricupero existe o senso estético do combate, a força analítica de uma certa ideia do lugar exato do Brasil no mundo e a convicção inesgotável de que o Brasil tem tudo para chegar lá.

Visto, então, assim, Memórias de Ricupero reside na crista da onda. Participa, no plano do estilo, do que existe de mais coevo e completo.

Mas, acredite-se, Memórias de Ricupero vai além. E, seguramente, inaugura uma nova fase desse fazer memórias diplomáticas no Brasil.

Mas sobre isso – essa nova fase –, prometo regressar, em breve, aqui mesmo, no Jornal da USP, para tentar cuidar.

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