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domingo, 12 de janeiro de 2025

O Brasil não é mais neutro no grande jogo da geopolítica mundial - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil não é mais neutro no grande jogo da geopolítica mundial

Paulo Roberto de Almeida

        Durante a maior parte da nossa existência enquanto Estado nacional independente, os dirigentes políticos, eventualmente estadistas de grande tirocínio e visão do mundo, os diplomatas responsáveis pelas nossas relações exteriores, os chefes militares encarregados da defesa do território e da soberania nacional, os principais membros das elites dominantes e dirigentes, essa comunidade algo difusa que representa o Brasil no mundo e que representa o Estado e a nação para si própria, frente aos súditos do Império e aos cidadãos da República, tentou ser coerente vis-à-vis os grandes interesses nacionais de desenvolvimento econômico e social, de estabilidade politica, de funcionamento das instituições do Estado, de preservação de um regime de liberdades — chamemo-lo de democracia, com todas as imperfeições dessa que temos — e tentou, na frente externa, ser basicamente neutra e amplamente autônoma, no plano decisório nacional, em face das disputas externas entre grandes potências, vis-à-vis as contradições do cenário internacional, no qual momentos de conflitos parciais ou globais interromperam períodos de relativa estabilidade, paz e segurança, num mundo sempre confrontado com divergências ou conflitos entre atores poderosos, belicamente capazes, o que nunca foi o nosso caso no terreno da necessária preparação militar (inclusive porque sempre tivemos um ambiente externo relativamente pacífico).

        Nas poucas vezes nas quais tivemos desafios significativos na defesa da soberania e da dignidade nacionais empreendemos com certo sacrifício dos meios disponíveis um esforço correspondente à magnitude dos perigos revelados: foram talvez apenas em número de três esses desafios, um no plno regional, no século XIX, e dois na primeira metade do século XX, no plano global. A guerra da Tríplice Aliança, contra o ditador do Paraguai que violou nossa soberania e invadiu nosso território, nos custou quase cinco longos anos de um esforço hercúleo no terreno puramente militar e a grandes despesas para a nação no terreno econômico, com um final bem sucedido nos anos e décadas seguintes, graças à capacidade da diplomacia imperial em lidar com os resultados do conflito numa conjuntura de ascensão de um aparente competidor na esfera regional do Cone Sul, uma problemática também encaminhada de modo favorável pelo grande diplomata que foi o Barão do Rio Branco.

        No século XX, os desafios não se exerceram diretamente sobre o território nacional, mas atingiram nossa soberania e dignidade nos transportes internacionais e até no funcionamento de nossas instituições e interesses nacionais. O esforço dispendido na Grande Guerra não representou um custo exagerado para os cofres da nação, mas as lições aprendidas e as doutrinas formuladas em termos de protagonismo diplomático internacional foram significativas, em grande medida graças ao tirocínio de um jurista, Rui Barbosa, aliás desde 1907, concebendo posturas que depois foram incorporadas ao eixo central do multilateralismo contemporâneo, como é a defesa intransigente do princípio da igualdade soberana dos Estados. Sua lição exemplar, feita em 1916, sobre os “deveres dos neutros”, um dos componentes do Direito Internacional, também contribuiu para o fortalecimento do patrimônio jurídico de nossa diplomacia, e que também serviu de base política para o excepcional trabalhos de construção de uma estratégia de defesa dos interesses nacionais por Oswaldo Aranha, quando novos desafios vindos de potências militaristas e expansionistas se abateram sobre o país nos anos 1930-40.

        O Brasil esteve presente na criação da nova ordem mundial do segundo pós-guerra, defendendo aqueles princípios quando a ocasião se apresentou, em San Francisco, por exemplo, protestando contra o privilégio abusivo concedido aos “mais iguais entre os iguais”, os vencedores do maior conflito global da história, na preservação elusiva da paz e da segurança internacionais. Na Guerra Fria que se seguiu entre as duas maiores potências mundiais continuamos a ser fiéis aos valores e princípios que fundamentam a ação interna e externa do Estado nacional, mas no plano diplomático nos mantivemos basicamente neutros e autônomos em face da grande disputa estratégica mantida entre os dois super poderes nucleares. A diplomacia nacional continuou a ser guiada pelo interesse maior do desenvolvimento econômico e social do país, em consonância com escolhas próprias no tocante às ferramentas para alcançar a prosperidade da nação. Assim o proclamamos ao mundo, cada vez que, desde 1946, abríamos os debates na Assembleia Geral da ONU, paralelamente à discussão dos grandes temas da agenda mundial a cada momento.

        Continuamos a assim proceder durante a maior parte do restante do século XX e até o início do presente século, o que aliás granjeou para a nossa diplomacia uma aura de prestígio e de respeitabilidade, sobretudo no plano regional, que muito fez para conquistar credibilidade e confiança nas relações mantidas com todos os parceiros da comunidade internacional, resultando em ganhos econômicos consideráveis, tendo em vista o equilíbrio e a independência de nossas posições no plano internacional. A partir do início do presente século, o primeiro governo lulopetista introduziu novos elementos de política externa que não figuravam entre os fundamentos de nossa doutrina diplomática, quais sejam, considerações partidárias, de natureza ideológica, em especial quanto aos parceiros preferenciais com os quais o Brasil deveria manter “parcerias estratégicas”. Insinuou-se então uma nítida escolha por alianças políticas e diplomáticas supostamente fora do eixo global das “grandes potências hegemônicas”, tendentes a uma agregação de esforços no âmbito de um alegado Sul Global, com o objetivo de mudar as “relações de força no mundo, favorecendo potências emergentes e os países em desenvolvimento do Sul. O primeiro exemplo dessa postura foi a conformação do IBAS (com Índia e África do Sul), no próprio ano de 2003, logo adiante seguido pela criação, em 2006 (em nível ministerial) e em 2009 (em nível de cúpula), do BRIC, o primeiro foro, com Rússia, Índia e China, inspirado por uma sugestão não propriamente interna, de natureza diplomática, mas por uma ideia externa à diplomacia dos quatro primeiros engajados, qual seja, uma plataforma econômica para investimentos de cunho financeiro a partir de fundos institucionais.

        Essa segunda instância encontrou bom acolhimento midiático e significativo sucesso na esfera internacional e foi logo ampliada, em 2011, com a incorporação da África do Sul, por injunção da China, de longe o maior e mais importante membro do novo foro. Ela passou a fazer parte, mais até do que o IBAS, do "patrimônio diplomático" dos governos lulopetistas. Por ocasião de uma interrupção de alguns anos, entre 2016 e 2022,  no ciclo dos governos lulopetistas, ocorreu certa descontinuidade de algumas iniciativas do lulopetismo diplomático nos planos regional (Unasul) e plurilateral (reuniões dos chefes de Estado da América Latina e seus contrapartes africanos e do mundo árabe, por exemplo), as reuniões anuais do grupo Brics se mantiveram regularmente nos anos intermediários, e mesmo durante os quatro anos mais bizarros jamais enfrentados pela diplomacia nacional, quando princípios e valores da diplomacia tradicional foram afastados em favor de um antiglobalismo demencial e de um antimultilateralismo irracional no plano da principal metodologia operativa no campo das relações internacionais. 

        Já no terceiro governo do lulopetismo tinha ocorrido uma nítida postura em desacordo com a inquestionável adesão da diplomacia brasileira ao princípio da intangibilidade das fronteiras estatais oficiais, de estrito respeito à Carta da ONU e às mais elementares regras do Direito Internacional. Quando da invasão e anexação ilegais da península ucraniana da Crimeia pela Rússia de Putin, o governo de Dilma Rousseff permaneceu rigorosamente em silêncio, chegando mesmo a chefe de Estado a proclamar que o assunto era "uma questão interna da Ucrânia". Apenas para registro da consistência histórica da doutrina jurídico-diplomática do Brasil, nem o Estado Novo ousou inverter a posição tradicional de não reconhecer usurpação de territórios estatais pela força, sobretudo com países com os quais mantínhamos relações diplomáticas; foi assim com a Polônia, invadida militarmente em 1939 pela Alemanha nazista e pela União Soviética, e com os três países bálticos, incorporados à força por Stalin, atos unilaterais de agressão que nunca reconhecemos.

        A dissociação mais evidente da diplomacia brasileira, e do Estado brasileiro, com relação a princípios básicos das relações internacionais, aliás constitucionalizados, ocorreu a partir da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia em fevereiro de 2022, quando, a despeito de aderir, formalmente, a uma resolução da Assembleia Geral – em vista da paralisia, por veto da Rússia, do CSNU – condenando a Rússia pela invasão, claramente violadora dos primeiros artigos da Carta da ONU, o governo de Bolsonaro, seguido de forma ainda mais enfática pelo de Lula, não adotou qualquer postura mais resolutiva, deixando de se referir de forma nítida, em sua declaração de voto, ao agressor unilateral, apenas conclamando de forma genérica à “solução pacífica da controvérsia entre as partes”, como se ambas fossem equivalentes. Não apenas isso: o governo Bolsonaro, por razões basicamente eleitoreiras, continou e até incrementou as importações brasileiras de fertilizantes e de combustíveis russos, beneficiando objetivamente a potência agressora, depois do próprio chefe de Estado ter proclamado, em visita bilateral uma semana antes da invasão, sua “solidariedade à Rússia”. Permanecemos indiferentes ao artigo da Carta da ONU que conclama todos os Estados membros a prestar assistência à parte ilegalmente atacada, como o fizeram quase todos os países ocidentais, sendo que os principais passaram a suprir de imediato meios de defesa, em conformidade com o espírito e a letra da Carta.

        O governo Lula recrudesceu no apoio deliberado, aliás voluntário, à guerra de agressão da Rússia, parceiro original no Brics, declarando, ainda antes das eleições, que a Ucrânia era igualmente responsável pela guerra, o que obviamente chocou a totalidade dos paises membros do G7, quando o presidente compareceu, a convite, na reunião do grupo em Hiroshima, em 2023. As importações da Rússia cresceram mais do que exponencialmente sob o presente Governo Lula, que chegou inclusive a vetar a exportação de material humanitário brasileiro para a Ucrânia, mesmo com o assentimento da diplomacia e das FFAA. Lula chegou inclusive a contestar a adesão do Brasil ao TPI, que pediu a detenção de Putin por crimes contra a humanidade, assim como tentou subtrair o Brasil das obrigações decorrentes do Estatuto de Roma, na tentativa de fazer com que Putin comparecesse à cúpula do G20, realizada no Rio de Janeiro em novembro de 2024.

        De modo muito claro, e não apenas com relação à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, o governo Lula abandonou completamente a postura da diplomacia profissional e do próprio Brasil, de respeito ao Direito Internacional e de observância da Carta da ONU, ao ter abandonado a neutralidade e a imparcialidade em face de conflitos que colocam justamente em cheque os princípios consagrados nas cláusulas constitucionais pelas quais se rege o país em suas relações internacionais. Em mais de uma ocasião, sua diplomacia presidencial personalista confirmou sua adesão ao projeto russo-chinês de uma “nova ordem global multilateral”, jamais definida ou explicitada de forma clara pelos seus proponentes, e sem que o tema tenha sido exaustiva e expressamente debatido em nivel de governo, com o Parlamento ou com a sociedade de uma forma geral. 

            Ao se posicionar verbalmente do lado da China e da Rússia numa alegada confrontação com a “ordem ocidental” identificada com a dominação ocidental sobre o resto do mundo, em especial um diáfano Sul Global, a postura diplomática de Lula não confronta exatamente a ordem internacional, apenas por desejar uma "nova ordem global multipolar", mas mais precisamente por escolher o seu campo e se posicionar do lado dos países que estão adotando uma postura agressiva e confrontacionista, aumentando as tensões que podem ameaçar ainda mais a paz e a segurança internacionais. A diplomacia presidencialista personalista aderiu a um dos lados da contenda potencial, rompendo, portanto, com a postura histórica e tradicional da diplomacia brasileira de absoluta neutralidade nos conflitos de natureza geopolítica, envolvendo interesses e objetivos nacionais de grandes potências que não são aqueles normalmente perseguidos pelo Brasil, aspirando a um ambiente de cooperação propício ao desenvolvimento do país.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 12 de janeiro de 2025


sábado, 8 de julho de 2023

A “neutralidade” sempre ajuda o opressor, prejudicando a vítima - Elie Wiesel, Paulo Roberto de Almeida

Sobre a tal de “neutralidade” na “guerra da Ucrânia”

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre argumentos de Elie Wiesel e de Rui Barbosa.

  

O Brasil de Bolsonaro foi assim, o Brasil de Lula 3 está sendo assim, o Brasil de muita gente, provavelmente a maioria, e com ela também a maioria do chamado “Sul Global”, uma entidade diáfana, inventada por acadêmicos e gente bem pensante (mas que formalmente não existe), todo esse povo, oficialmente ou apenas declaradamente, sem qualquer outra explicação mais explícita, é objetivamente, abertamente ou implicitamente NEUTRO em relação à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, evitando fornecer armas e outros materiais bélicos para um ou outro lado daquilo que eles chamam de “conflito”, ou apenas “guerra” da ou na Ucrânia (uma expressão banida na Rússia de Putin, podendo render vários anos de prisão para quem assim se referir ao que o tirano de Moscou apenas chama de “operação militar especial”), mas aproveitando para continuar a manter relações comerciais e outras, com uma ou outra parte no “conflito”, o que ocasionalmente pode render algum lucro ou vantagem temporária na “contenda”, algum desconto na aquisição, grandes lucros na revenda de materiais com valor de mercado, embora continuando a apregoar a sua “neutralidade” em relação ao “conflito” em si.

Pois bem, não preciso me referir novamente ao famoso discurso feito em Buenos Aires pelo eminente jurista, politico e intelectual brasileiro Rui Barbosa, por ocasião do primeiro centenário da independência argentina, em 1916, quando, ao mencionar a invasão da Bélgica neutra pelas tropas do Império alemão no curso da Grande Guerra, ele proclamou solenemente que não se pode ser neutro entre a Justiça e o crime, ante a injustiça, a violência e a opressão, entre um opressor e o oprimido, e que não há imparcialidade possível nessas circunstâncias.

Esse famoso discurso, mais popularmente conhecido como “os deveres dos neutros”, justamente, pode ser encontrado numa publicação da Fundação Casa de Rui Barbosa, de 1983, formalmente intitulada Conceitos Modernos de Direito Internacional. Ele fundamentou em parte o abandono pelo Brasil da sua postura oficial de “neutralidade” em relação à guerra europeia (e mundial), mas apenas depois que submarinos do Reich torpedearem barcos brasileiros no Atlântico, o que também ocorreu antes do rompimento de nossa neutralidade em circunstâncias semelhantes no curso do que já tinha ficado conhecido como Segunda Guerra Mundial. 

Esse mesmo discurso de Rui Barbosa e seus argumentos irrespondíveis foram fundamentais para que o então chanceler Oswaldo Aranha apoiasse sua tomada de posição em favor da cessação da postura oficial de neutralidade em relação ao “conflito” em curso, rompendo relações diplomáticas comas potências do Eixo (ou “Pacto de Aço”), a Alemanha nazista, a Itália fascista e o Japão militarista, e depois declarando guerra aos agressores (mas, também, só depois que submarinos nazistas afundaram navios brasileiros em nossas costas, comperdas humanas e materiais, além dos próprios crimes de guerra).

Esse discurso de Rui Barbosa, assim como diversos dos seus outros discursos por ocasião da segunda Conferência da Paz da Haia, em 1907, constituem um marco conceitual relevante na formulação jurídica e na implementação prática da doutrina diplomática brasileira, integrando nosso patrimônio político e moral na tomada de posição em relevantes questões da agenda internacional, sobretudo em problemas atinentes à paz e a segurança internacionais, tal como modernamente regulamentadas pelos principais dispositivos da Carta das Nações Unidas (contra a guerra e a opressão, justamente), assim como em diversos outros instrumentos do Direito Internacional. Ou pelo menos constituíam, pois que desde a invasão violenta e a anexação ilegal, pela mesma Rússia, em 2014, da península ucraniana da Crimeia, tais princípios de Direito Internacional e do sistema político multilateral parecem ter deixado de fazer parte de nossa doutrina diplomática, pois que o Brasil do governo Dilma Rousseff não tomou oficialmente posição, ou declarou informalmente sua “neutralidade” em relação àquela violência perpetrada contra um Estado soberano, membro das Nações Unidas. Naquela ocasião, diversos estados membros da Organização das Nações Unidas, tomaram oficialmente posição, mas não o Brasil, na defesa dos princípios da Carta da ONU, acusando a violação do Direito Internacional e adotando sanções contra o agressor, sanções inteiramente conformes ao espírito e à letra dos artigos 41 e 42 da Carta, apenas “unilaterais” em virtude do uso abusivo do “direito de veto” pela Rússia, então como agora, em circunstâncias similares e até semelhantes, mas de natureza muito mais grave, pois que estamos falando da invasão unilateral, não provocada, do território soberano de um Estado parte por outro membro, inclusive em situação ainda mais ilegal, pois que formalmente responsável pela garantia da lei e da ordem, da paz e da segurança internacionais, em conformidade com os princípios que regem a atuação dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como é o caso da Rússia.

Voltando ao tema da “neutralidade” brasileira, e retomando princípios e valores que já pareciam consagrados em nossa doutrina jurídico-diplomática desde Rui Barbosa, hoje aparentemente esquecidos pelos governos de Bolsonaro e de Lula, gostaria de remeter a argumentos de natureza simplesmente moral, ou de cunho apenas humanos, expostos pelo sobrevivente do Holocausto nazista, o judeu polonês Elie Wiesel, tal como transcritos abaixo:

“We must take sides. Neutrality helps the oppressor, never the victim. Silence encourages the tormentor, never the tormented. Sometimes we must interfere. When human lives are endangered, when human dignity is in jeopardy, national borders and sensitivities become irrelevant. Wherever men and women are persecuted because of their race, religion, or political views, that place must — at that moment — become the center of the universe.”

Elie Wiesel

 

Tradução livre:

“Precisamos tomar partido. A neutralidade ajuda o opressor, jamais a vítima. O silêncio encoraja o torturador, nunca o torturado. Em algumas ocasiões, precisamos interferir. Quando vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade humana está sob ameaça, quando as fronteiras nacionais e as sensibilidades se tornam irrelevantes. Onde quer que homens e mulheres são perseguidos por causa de sua raça, religião ou posturas políticas, aquele lugar precisa — naquele momento — tornar-se o centro do universo.”

Este é o caso, este é o momento, em relação à guerra de agressão, ilegal, desumana, contra o país e o povo da Ucrânia, violadora do Direito e da consciência universais. Os princípios e valores da nossa tradição diplomática, as cláusulas de relações internacionais de nossa própria Constituição assim o pedem. Assim deveríamos fazer: tomar partido, como recomendava Rui Barbosa, cono aquiesceu Oswaldo Aranha, como apelou Elie Wiesel. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4431, 8 julho 2023, 3 p.


segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Rui Barbosa e o direito internacional: "Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade admissível." - Paulo Roberto de Almeida

 Rui Barbosa e o direito internacional 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, julho de 2016

 

         Há cem anos, quando a Argentina comemorou o primeiro centenário de sua independência, o governo brasileiro designou o senador Rui Barbosa como seu representante nos festejos. Além de participar das cerimônias oficiais, Rui Barbosa foi convidado a palestrar na Faculdade de Direito de Buenos Aires, ali pronunciando uma das mais importantes alocuções da história do direito internacional no Brasil. Dada a contribuição de suas reflexões para a construção da doutrina jurídica que sustenta a essência da política externa brasileira, bem como para a afirmação de valores e princípios da diplomacia defendida pelo Itamaraty, vale relembrar alguns conceitos fundamentais dessa conferência, ainda válidos em nossos dias.

         Em 1983 a Casa de Rui Barbosa publicou o texto definitivo, traduzido do espanhol, dessa palestra, Os Conceitos Modernos do Direito Internacional, durante muito tempo denominada como “O Dever dos Neutros”. Rui já era conhecido na Argentina, onde vivera entre 1893 e 1894, fugindo da perseguição que lhe movia o governo de Floriano por sua posição em defesa dos revoltosos da Armada. Depois de repassar os episódios mais relevantes do itinerário independentista argentino – iniciado em 1806, avançando em 1810 e consagrado definitivamente no Congresso de Tucuman, em 9 de julho de 1816, quando se proclamou a autonomia do país em face da Espanha –, Rui Barbosa cita Juan Bautista Alberdi, que condenava, no panfleto “A Onipotência do Estado”, o culto ao Estado como “a negação da liberdade individual”. 

Ele chega então ao cerne de sua exposição: a condenação formal do uso da força, representada pela violação da neutralidade da Bélgica por tropas do Império alemão, em total desrespeito aos princípios discutidos poucos anos antes na Segunda Conferência da Paz da Haia, na qual Rui fora o chefe da delegação brasileira. Suas palavras, em defesa desse princípio, foram muito claras: “Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade; quer dizer imparcialidade; e não há imparcialidade entre o direito e a injustiça. (...) O direito não se impõe... com o peso dos exércitos. Também se impõe, e melhor, com a pressão dos povos. (...) Não há duas morais, a doutrinária e a prática. A moral é uma só: a da consciência humana, que não vacila em discernir entre o direito e a força.

         Essa conferência de Rui Barbosa foi relembrada pelo chanceler Oswaldo Aranha, em 1942, no exato momento em que o Brasil se viu confrontado à extensão da guerra europeia ao continente americano, instando, então, o país a assumir suas responsabilidades no plano dos princípios do direito internacional e em consonância com os deveres da solidariedade hemisférica. A Alemanha tinha, mais uma vez, violado a neutralidade da Bélgica, para invadir a França. A postura de Aranha – que havia recepcionado Rui, como jovem estudante no Rio de Janeiro, quando o jurista desembarcou em sua volta ao Brasil –, foi decisiva para que, ao contrário da vizinha Argentina, então controlada pelo Grupo de Oficiais Unidos, de orientação simpática ao Eixo, o Brasil adotasse uma postura compatível com a construção doutrinária iniciada por Rui e de acordo a seus interesses nacionais, nos contextos hemisférico e global, em face do desrespeito brutal ao direito internacional cometido pelas potências nazifascistas na Europa e fora dela.  

         Vinte anos depois, o chanceler San Tiago Dantas, um dos grandes tribunos do pensamento jurídico da diplomacia brasileira, defende o respeito ao princípio da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados, que estava então em causa nas conferências e reuniões pan-americanas em torno do caso de Cuba. Outros juristas e diplomatas brasileiros, ao longo do século, a exemplo de Raul Fernandes, Afrânio de Melo Franco, Afonso Arinos e Araújo Castro, participaram dessa construção doutrinal e pragmática dos valores e princípios da diplomacia brasileira. Há que se reconhecer, no entanto, que Rui Barbosa foi um dos responsáveis pela contribuição das grandes diretrizes políticas e jurídicas que hoje integram plenamente o patrimônio da diplomacia brasileira.


 

domingo, 15 de junho de 2014

A frase da semana: o inferno para a neutralidade em tempos de crise moral

Confesso que não li, pois não sou afeto à leitura de best-sellers que tripudiam sobre a história, misturando superstições e religião (e sei que isso encanta milhões ao redor do mundo), mas o mais recente livro de Dan Brown, Inferno (assim mesmo, na edição original em inglês), supostamente (ou enganosamente), envolvendo o referencial dantesco em torno das condenações, feito o genial escritor e forjador da língua italiana, com Petrarca, em sua Divina Comédia, traz esta epígrafe, que encontro particularmente apropriada ao Brasil, nos tempos que correm:

The darkest places in hell are reserved for those who maintain their neutrality in times of moral crisis.

Permito-me acrescentar um comentário à frase selecionada, o que raramente faço, pois cada uma delas deveria bastar-se a si mesma, em toda a sua plenitude, se ainda me permitem esta redundância.
Creio que todos nós temos perfeita consciência de que o Brasil vive uma profunda crise moral, que é mais profunda, devastadora e extensa do que a simples crise política, econômica, ou cultural. Ela é o resultado de doze anos de abusos contínuos do poder companheiro, em termos de mentiras, fraudes, enganação, desvio de dinheiro público, populismo, demagogia, fisiologismo, patrimonialismo, prebendalismo e vários outros ismos negativos que encontramos no dicionário da política e da sociologia.
Por isso mesmo, não temos o direito moral de permanecer neutros neste ano eleitoral.
Não se trata de escolher uma candidatura alternativa. Não indico nenhuma.
Se trata apenas de afastar a máfia criminosa que se apossou do Estado no Brasil.
Este é um dever moral de todos os brasileiros conscientes. Simples assim.
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 15/05/2014