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terça-feira, 12 de setembro de 2023

A paz impossível de Putin: só depois de destruir a Ucrânia (O Globo, com agências internacionais)

 Rússia só falará de paz quando Ucrânia estiver exaurida de soldados, equipamentos e munição, diz Putin

Presidente russo disse que envio de armamentos ocidentais só vai prolongar a guerra e culpou Kiev por ausência de negociações de paz

O Globo, com agências internacionais — Vladivostok, Rússia

12/09/2023 14h43 


Em uma série de raras declarações sobre a guerra na Ucrânia, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, expôs brevemente seus pensamentos sobre o fim do conflito. De acordo com o líder russo, apenas quando Kiev estiver exaurida de soldados, equipamentos e munição, será possível um cessar-fogo duradouro.

Ao contrário de seu rival ucraniano, Volodymyr Zelensky, Putin não fala publicamente sobre os detalhes da guerra no Leste Europeu com frequência. As impressões russas, sobretudo do Kremlin, costumam ser comunicadas por porta-vozes e interlocutores. No entanto, em meio a um Fórum Econômico sediado em Vladivostok e recebendo a visita do líder norte-coreano, Kim Jong-un, que atraiu a atenção do mundo, Putin comentou em primeira mão vários detalhes da guerra.

Putin estimou que a Ucrânia já havia perdido cerca de 71 mil soldados durante a atual contraofensiva que avança lentamente no sul e no nordeste do país, afirmando que, não fosse em caso de exaustão, Kiev utilizaria qualquer cessar-fogo russo para reorganizar suas tropas e planejar novos ataques. Para o presidente russo, apenas quando Kiev parar com sua "proibição autoimposta" à negociação, conversas sobre paz poderão tomar lugar.

— Então nós veremos — disse Putin, em frase registrada pela agência britânica Reuters.

Em paralelo, o líder russo criticou as remessas de ajuda bélica e militar enviadas pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), sobretudo pelos EUA, a Kiev. Referindo-se diretamente às bombas de fragmentação já enviadas por Washington e aos caças F-16, de fabricação americana, que os aliados se preparam para mandar para a Ucrânia, ele disse que elas apenas prolongariam o conflito, dificultando a resolução da guerra.

— Vão entregar caças F-16. Vai mudar algo? Não acredito. Isso apenas prolongará o conflito — disse Putin. — Outra coisa é preocupante: já não há limites. Não faz muito tempo, o governo americano considerava o uso de bombas de fragmentação um crime de guerra. E afirmou isto de maneira pública.

Mil alistamentos por dia

Mais raro do que os comentários gerais sobre a guerra e as críticas ao Ocidente, Putin comentou também sobre os esforços russos para manter o volume de tropas em ação no país vizinho.

O presidente russo estimou que cerca de 500 mil pessoas se alistaram no Exército russo desde que a operação na Ucrânia foi lançada, incluindo os 300 mil anunciados publicamente pelo Kremlin no ano passado. De lá para cá, uma média de 1 mil a 1,5 mil pessoas teria se alistado por dia, segundo Putin.

 – Fizemos uma mobilização parcial, e 300 mil pessoas se alistaram. E, nos últimos seis ou sete meses, 270 mil pessoas assinaram voluntariamente contratos nas Forças Armadas e em unidades de voluntários — detalhou.

A Rússia nunca revelou quantos homens participaram da operação inicial da ofensiva na Ucrânia em fevereiro de 2022, mas fontes ocidentais estimam o número em entre 150 mil e 190 mil. Nenhum lado do conflito revela suas baixas, mas, segundo fontes ocidentais, são consideráveis.

 

 

 

sábado, 8 de julho de 2023

A “neutralidade” sempre ajuda o opressor, prejudicando a vítima - Elie Wiesel, Paulo Roberto de Almeida

Sobre a tal de “neutralidade” na “guerra da Ucrânia”

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre argumentos de Elie Wiesel e de Rui Barbosa.

  

O Brasil de Bolsonaro foi assim, o Brasil de Lula 3 está sendo assim, o Brasil de muita gente, provavelmente a maioria, e com ela também a maioria do chamado “Sul Global”, uma entidade diáfana, inventada por acadêmicos e gente bem pensante (mas que formalmente não existe), todo esse povo, oficialmente ou apenas declaradamente, sem qualquer outra explicação mais explícita, é objetivamente, abertamente ou implicitamente NEUTRO em relação à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, evitando fornecer armas e outros materiais bélicos para um ou outro lado daquilo que eles chamam de “conflito”, ou apenas “guerra” da ou na Ucrânia (uma expressão banida na Rússia de Putin, podendo render vários anos de prisão para quem assim se referir ao que o tirano de Moscou apenas chama de “operação militar especial”), mas aproveitando para continuar a manter relações comerciais e outras, com uma ou outra parte no “conflito”, o que ocasionalmente pode render algum lucro ou vantagem temporária na “contenda”, algum desconto na aquisição, grandes lucros na revenda de materiais com valor de mercado, embora continuando a apregoar a sua “neutralidade” em relação ao “conflito” em si.

Pois bem, não preciso me referir novamente ao famoso discurso feito em Buenos Aires pelo eminente jurista, politico e intelectual brasileiro Rui Barbosa, por ocasião do primeiro centenário da independência argentina, em 1916, quando, ao mencionar a invasão da Bélgica neutra pelas tropas do Império alemão no curso da Grande Guerra, ele proclamou solenemente que não se pode ser neutro entre a Justiça e o crime, ante a injustiça, a violência e a opressão, entre um opressor e o oprimido, e que não há imparcialidade possível nessas circunstâncias.

Esse famoso discurso, mais popularmente conhecido como “os deveres dos neutros”, justamente, pode ser encontrado numa publicação da Fundação Casa de Rui Barbosa, de 1983, formalmente intitulada Conceitos Modernos de Direito Internacional. Ele fundamentou em parte o abandono pelo Brasil da sua postura oficial de “neutralidade” em relação à guerra europeia (e mundial), mas apenas depois que submarinos do Reich torpedearem barcos brasileiros no Atlântico, o que também ocorreu antes do rompimento de nossa neutralidade em circunstâncias semelhantes no curso do que já tinha ficado conhecido como Segunda Guerra Mundial. 

Esse mesmo discurso de Rui Barbosa e seus argumentos irrespondíveis foram fundamentais para que o então chanceler Oswaldo Aranha apoiasse sua tomada de posição em favor da cessação da postura oficial de neutralidade em relação ao “conflito” em curso, rompendo relações diplomáticas comas potências do Eixo (ou “Pacto de Aço”), a Alemanha nazista, a Itália fascista e o Japão militarista, e depois declarando guerra aos agressores (mas, também, só depois que submarinos nazistas afundaram navios brasileiros em nossas costas, comperdas humanas e materiais, além dos próprios crimes de guerra).

Esse discurso de Rui Barbosa, assim como diversos dos seus outros discursos por ocasião da segunda Conferência da Paz da Haia, em 1907, constituem um marco conceitual relevante na formulação jurídica e na implementação prática da doutrina diplomática brasileira, integrando nosso patrimônio político e moral na tomada de posição em relevantes questões da agenda internacional, sobretudo em problemas atinentes à paz e a segurança internacionais, tal como modernamente regulamentadas pelos principais dispositivos da Carta das Nações Unidas (contra a guerra e a opressão, justamente), assim como em diversos outros instrumentos do Direito Internacional. Ou pelo menos constituíam, pois que desde a invasão violenta e a anexação ilegal, pela mesma Rússia, em 2014, da península ucraniana da Crimeia, tais princípios de Direito Internacional e do sistema político multilateral parecem ter deixado de fazer parte de nossa doutrina diplomática, pois que o Brasil do governo Dilma Rousseff não tomou oficialmente posição, ou declarou informalmente sua “neutralidade” em relação àquela violência perpetrada contra um Estado soberano, membro das Nações Unidas. Naquela ocasião, diversos estados membros da Organização das Nações Unidas, tomaram oficialmente posição, mas não o Brasil, na defesa dos princípios da Carta da ONU, acusando a violação do Direito Internacional e adotando sanções contra o agressor, sanções inteiramente conformes ao espírito e à letra dos artigos 41 e 42 da Carta, apenas “unilaterais” em virtude do uso abusivo do “direito de veto” pela Rússia, então como agora, em circunstâncias similares e até semelhantes, mas de natureza muito mais grave, pois que estamos falando da invasão unilateral, não provocada, do território soberano de um Estado parte por outro membro, inclusive em situação ainda mais ilegal, pois que formalmente responsável pela garantia da lei e da ordem, da paz e da segurança internacionais, em conformidade com os princípios que regem a atuação dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como é o caso da Rússia.

Voltando ao tema da “neutralidade” brasileira, e retomando princípios e valores que já pareciam consagrados em nossa doutrina jurídico-diplomática desde Rui Barbosa, hoje aparentemente esquecidos pelos governos de Bolsonaro e de Lula, gostaria de remeter a argumentos de natureza simplesmente moral, ou de cunho apenas humanos, expostos pelo sobrevivente do Holocausto nazista, o judeu polonês Elie Wiesel, tal como transcritos abaixo:

“We must take sides. Neutrality helps the oppressor, never the victim. Silence encourages the tormentor, never the tormented. Sometimes we must interfere. When human lives are endangered, when human dignity is in jeopardy, national borders and sensitivities become irrelevant. Wherever men and women are persecuted because of their race, religion, or political views, that place must — at that moment — become the center of the universe.”

Elie Wiesel

 

Tradução livre:

“Precisamos tomar partido. A neutralidade ajuda o opressor, jamais a vítima. O silêncio encoraja o torturador, nunca o torturado. Em algumas ocasiões, precisamos interferir. Quando vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade humana está sob ameaça, quando as fronteiras nacionais e as sensibilidades se tornam irrelevantes. Onde quer que homens e mulheres são perseguidos por causa de sua raça, religião ou posturas políticas, aquele lugar precisa — naquele momento — tornar-se o centro do universo.”

Este é o caso, este é o momento, em relação à guerra de agressão, ilegal, desumana, contra o país e o povo da Ucrânia, violadora do Direito e da consciência universais. Os princípios e valores da nossa tradição diplomática, as cláusulas de relações internacionais de nossa própria Constituição assim o pedem. Assim deveríamos fazer: tomar partido, como recomendava Rui Barbosa, cono aquiesceu Oswaldo Aranha, como apelou Elie Wiesel. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4431, 8 julho 2023, 3 p.