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sábado, 8 de julho de 2023

A “neutralidade” sempre ajuda o opressor, prejudicando a vítima - Elie Wiesel, Paulo Roberto de Almeida

Sobre a tal de “neutralidade” na “guerra da Ucrânia”

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre argumentos de Elie Wiesel e de Rui Barbosa.

  

O Brasil de Bolsonaro foi assim, o Brasil de Lula 3 está sendo assim, o Brasil de muita gente, provavelmente a maioria, e com ela também a maioria do chamado “Sul Global”, uma entidade diáfana, inventada por acadêmicos e gente bem pensante (mas que formalmente não existe), todo esse povo, oficialmente ou apenas declaradamente, sem qualquer outra explicação mais explícita, é objetivamente, abertamente ou implicitamente NEUTRO em relação à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, evitando fornecer armas e outros materiais bélicos para um ou outro lado daquilo que eles chamam de “conflito”, ou apenas “guerra” da ou na Ucrânia (uma expressão banida na Rússia de Putin, podendo render vários anos de prisão para quem assim se referir ao que o tirano de Moscou apenas chama de “operação militar especial”), mas aproveitando para continuar a manter relações comerciais e outras, com uma ou outra parte no “conflito”, o que ocasionalmente pode render algum lucro ou vantagem temporária na “contenda”, algum desconto na aquisição, grandes lucros na revenda de materiais com valor de mercado, embora continuando a apregoar a sua “neutralidade” em relação ao “conflito” em si.

Pois bem, não preciso me referir novamente ao famoso discurso feito em Buenos Aires pelo eminente jurista, politico e intelectual brasileiro Rui Barbosa, por ocasião do primeiro centenário da independência argentina, em 1916, quando, ao mencionar a invasão da Bélgica neutra pelas tropas do Império alemão no curso da Grande Guerra, ele proclamou solenemente que não se pode ser neutro entre a Justiça e o crime, ante a injustiça, a violência e a opressão, entre um opressor e o oprimido, e que não há imparcialidade possível nessas circunstâncias.

Esse famoso discurso, mais popularmente conhecido como “os deveres dos neutros”, justamente, pode ser encontrado numa publicação da Fundação Casa de Rui Barbosa, de 1983, formalmente intitulada Conceitos Modernos de Direito Internacional. Ele fundamentou em parte o abandono pelo Brasil da sua postura oficial de “neutralidade” em relação à guerra europeia (e mundial), mas apenas depois que submarinos do Reich torpedearem barcos brasileiros no Atlântico, o que também ocorreu antes do rompimento de nossa neutralidade em circunstâncias semelhantes no curso do que já tinha ficado conhecido como Segunda Guerra Mundial. 

Esse mesmo discurso de Rui Barbosa e seus argumentos irrespondíveis foram fundamentais para que o então chanceler Oswaldo Aranha apoiasse sua tomada de posição em favor da cessação da postura oficial de neutralidade em relação ao “conflito” em curso, rompendo relações diplomáticas comas potências do Eixo (ou “Pacto de Aço”), a Alemanha nazista, a Itália fascista e o Japão militarista, e depois declarando guerra aos agressores (mas, também, só depois que submarinos nazistas afundaram navios brasileiros em nossas costas, comperdas humanas e materiais, além dos próprios crimes de guerra).

Esse discurso de Rui Barbosa, assim como diversos dos seus outros discursos por ocasião da segunda Conferência da Paz da Haia, em 1907, constituem um marco conceitual relevante na formulação jurídica e na implementação prática da doutrina diplomática brasileira, integrando nosso patrimônio político e moral na tomada de posição em relevantes questões da agenda internacional, sobretudo em problemas atinentes à paz e a segurança internacionais, tal como modernamente regulamentadas pelos principais dispositivos da Carta das Nações Unidas (contra a guerra e a opressão, justamente), assim como em diversos outros instrumentos do Direito Internacional. Ou pelo menos constituíam, pois que desde a invasão violenta e a anexação ilegal, pela mesma Rússia, em 2014, da península ucraniana da Crimeia, tais princípios de Direito Internacional e do sistema político multilateral parecem ter deixado de fazer parte de nossa doutrina diplomática, pois que o Brasil do governo Dilma Rousseff não tomou oficialmente posição, ou declarou informalmente sua “neutralidade” em relação àquela violência perpetrada contra um Estado soberano, membro das Nações Unidas. Naquela ocasião, diversos estados membros da Organização das Nações Unidas, tomaram oficialmente posição, mas não o Brasil, na defesa dos princípios da Carta da ONU, acusando a violação do Direito Internacional e adotando sanções contra o agressor, sanções inteiramente conformes ao espírito e à letra dos artigos 41 e 42 da Carta, apenas “unilaterais” em virtude do uso abusivo do “direito de veto” pela Rússia, então como agora, em circunstâncias similares e até semelhantes, mas de natureza muito mais grave, pois que estamos falando da invasão unilateral, não provocada, do território soberano de um Estado parte por outro membro, inclusive em situação ainda mais ilegal, pois que formalmente responsável pela garantia da lei e da ordem, da paz e da segurança internacionais, em conformidade com os princípios que regem a atuação dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como é o caso da Rússia.

Voltando ao tema da “neutralidade” brasileira, e retomando princípios e valores que já pareciam consagrados em nossa doutrina jurídico-diplomática desde Rui Barbosa, hoje aparentemente esquecidos pelos governos de Bolsonaro e de Lula, gostaria de remeter a argumentos de natureza simplesmente moral, ou de cunho apenas humanos, expostos pelo sobrevivente do Holocausto nazista, o judeu polonês Elie Wiesel, tal como transcritos abaixo:

“We must take sides. Neutrality helps the oppressor, never the victim. Silence encourages the tormentor, never the tormented. Sometimes we must interfere. When human lives are endangered, when human dignity is in jeopardy, national borders and sensitivities become irrelevant. Wherever men and women are persecuted because of their race, religion, or political views, that place must — at that moment — become the center of the universe.”

Elie Wiesel

 

Tradução livre:

“Precisamos tomar partido. A neutralidade ajuda o opressor, jamais a vítima. O silêncio encoraja o torturador, nunca o torturado. Em algumas ocasiões, precisamos interferir. Quando vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade humana está sob ameaça, quando as fronteiras nacionais e as sensibilidades se tornam irrelevantes. Onde quer que homens e mulheres são perseguidos por causa de sua raça, religião ou posturas políticas, aquele lugar precisa — naquele momento — tornar-se o centro do universo.”

Este é o caso, este é o momento, em relação à guerra de agressão, ilegal, desumana, contra o país e o povo da Ucrânia, violadora do Direito e da consciência universais. Os princípios e valores da nossa tradição diplomática, as cláusulas de relações internacionais de nossa própria Constituição assim o pedem. Assim deveríamos fazer: tomar partido, como recomendava Rui Barbosa, cono aquiesceu Oswaldo Aranha, como apelou Elie Wiesel. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4431, 8 julho 2023, 3 p.


sábado, 2 de julho de 2016

Elie Wiesel: um sobrevivente combativo, um combatente que persistiu - homenagens

Ele era grande, ele era ativo, ele nunca deixou de lutar pela justiça e pela dignidade da pessoa humana. Lembro-me que em janeiro de 1988, pouco depois de ganhar o Prêmio Nobel da Paz, pelo seu trabalho incansável em prol da justiça universal, ele usou parte do prêmio ganho para reunir, em Paris, um grande número de outros detentores do mesmo prêmio para discutir e aprovar uma série de propostas para uma agenda para o século XXI.
Eu elaborei um comentário a respeito, a partir dessa  “Conferência dos Nobel”, que transcrevo mais abaixo.
Paulo Roberto de Almeida 

Morte de Elie Wiesel


Declaração do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, sobre o falecimento de Elie Wiesel
O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, divulgou a seguinte declaração esta noite (sábado, 2 de junho de 2016), sobre o falecimento de Elie Wiesel:

“O Estado de Israel e o Povo Judeu lamentam o falecimento de Elie Wiesel. Através de seus livros inesquecíveis, comoventes palavras e exemplo pessoal, Elie personificava o triunfo do espírito humano sobre o mais inimaginável dos males. Das trevas do Holocausto, Elie se tornou uma poderosa força para a luz, a verdade e a dignidade. Sua vida e trabalho foram uma grande bênção para o Povo Judeu, o Estado Judeu e toda a Humanidade.

“Sinto-me afortunado por tê-lo conhecido e ter aprendido de sua prodigiosa sabedoria. Em nome de todo o povo de Israel, Sara e eu enviamos condolências à toda a família Wiesel. Que a memória de Elie Wiesel, um elevado espírito que nos ensinou a lembrar, seja para sempre abençoado”.

Comunicado do presidente de Israel, Reuven Rivlin, sobre o falecimento do ganhador de Prêmio Nobel da Paz, Elie Wiesel
O presidente de Israel, Reuven Rivlin, comentou sobre sua tristez a quanto ao falecimento do ganhador do Prêmio Nobel da Paz e sobrevivente do Holocausto, Elie Wiesel, na noite deste sábado.

“Hoje à noite, nos despedimos de um herói para o Povo Judeu e de um gigante para toda a Humanidade. Elie Wiesel, que sua memória seja abençoada, personificou a determinação do espírito humano para superar o mais sombrio dos males e sobreviver a todas as adversidades.

“Sua vida foi dedicada à luta contra todo e qualquer  ódio e pelo bem do homem criado à imagem de Deus. Ele era um guia para todos nós. Um dos maiores filhos do Povo Judeu, que tocou os corações de tantos e ajudou-nos a acreditar no perdão, na vida e no vínculo eterno do Povo Judeu. Que sua memória seja uma bênção eternamente gravada no coração da nação”.

O 9° presidente de Israel, Shimon Peres, lamenta a perda de Elie Wiesel

“Hoje, o Povo Judeu e o mundo perderam um indivíduo maior do que a vida: o sobrevivente do Holocausto, escritore ganhador do Prêmio Nobel da Paz, Elie Wiesel.

“Wiesel deixou sua marca na Humanidade através da perseverança, da defesa do legado do Holocausto e do envio de uma mensagem de paz e respeito entre as pessoas por todo o mundo.

“Ele suportou as mais graves atrocidades da H umanidade. Sobreviveu e dedicou sua vida a transmitir a mensagem de “Nunca Mais”.

“Eu tive a honra e o privilégio de agradecê-lo pessoalmente por seus numerosos anos de trabalho e por salvar o mundo da apatia quando dei a ele a Medalha Presidencial em nome do Estado de Israel. Que sua memória seja uma bênção para todos nós”.

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A Conferência dos Prêmios Nobel:
Uma agenda para o Século XXI ?

Paulo Roberto de Almeida

Reunidos em Paris no período de 18 a 21 de Janeiro de 1988 para discutir sobre as “ameaças e promessas no alvorecer do Século XXI”, 75 Prêmios Nobel de 31 diferentes países divulgaram o resultado de seus trabalhos sob a forma de 16 conclusões e recomendações relativas aos mais importantes problemas da atualidade internacional deste final de século (vide Quadro).
A iniciativa do Prêmio Nobel da Paz Elie Wiesel, escritor judeu de naturalidade polonesa, foi sem dúvida alguma meritória, mesmo se cabe questionar a representatividade intrínseca de cientistas e homens de letras de origens as mais diversas (com maciça predominância norte-americana) e sua competência específica para debater problemas complexos que nos afetam a todos, mas de maneira variada. Uma vez que se reconhece, porém, a um biólogo o direito de apresentar propostas, enquanto cidadão, sobre problemas do desarmamento ou da educação, ou a um homem de letras o de argumentar sobre a melhor maneira de resolver o problema da dívida do Terceiro Mundo ou de acelerar a transferência de tecnologia em favor dos países em desenvolvimento, pode-se concordar em que o impacto mediático de uma conferência de laureados representa uma boa maneira de, mais uma vez, chamar a atenção da opinião pública ou dos homens de Estado para algumas das questões mais cruciais da agenda mundial.
O problema essencial, contudo, deve ser colocado da seguinte forma: as propostas dos Nobel são condizentes com a natureza das “ameaças” percebidas e suas recomendações caminham realmente em direção das “promessas” do século XXI? Se a principal qualidade de um bom cientista é a de ser um pouco “visionário”, isto é, de saber antecipar-se aos desafios futuros, as “conclusões” dos Prêmio Nobel devem ser julgadas à luz de sua adequação aos cenários desenhados para o próximo milênio, ou seja, segundo sua capacidade de realizar, nos termos do filósofo alemão Koselleck, uma “projeção utópica do futuro”.
Em outros termos, a agenda que os Nobel levantam hoje para os homens do presente corresponde efetivamente às necessidades de desenvolvimento das sociedades do futuro e as recomendações propostas representam algo mais do que simples manifestação de boa-vontade de homens desvinculados de tarefas executivas ou responsabilidades governamentais? Subsidiariamente, se poderia também indagar se os “remédios” propostos levam em consideração os meios atualmente disponíveis ou a organização social e política do sistema inter-estatal contemporâneo, bem como a relação de forças nele predominante.

Paulo Roberto de Almeida 
Paris, 22 de Janeiro de 1988; Genebra, 21 fevereiro 1988.

AS 16 PROPOSTAS DA CONFERÊNCIA DOS NOBEL

1. Todas as formas de vida devem ser consideradas como um patrimônio essencial da Humanidade. Causar dano ao equilíbrio ecológico constitui portanto um crime contra o futuro.
2. A espécie humana é única e cada indivíduo que a compõe tem os mesmos direitos à liberdade, à igualdade e à fraternidade.
3. A riqueza da Humanidade está também na sua diversidade. Ela deve ser protegida em todos os seus aspectos: cultural, biológico, filosófico e espiritual. Para isso, a tolerância, a atenção a outrém, a recusa das verdades definitivas devem ser incessantemente lembradas.
4. Os problemas mais importantes que a humanidade enfrenta atualmente são ao mesmo tempo universais e interdependentes.
5. A ciência é um poder. O acesso à ela deve ser igualmente repartido entre os indivíduos e os povos.
6. O fosso existente em muitos países entre a comunidade intelectual e os poderes públicos deve ser reduzido. Cada um deve reconhecer o papel do outro.
7. A educação deve tornar-se prioridade absoluta de todos os orçamentos e deve contribuir para valorizar todos os aspectos da criatividade humana.
8. As ciências e tecnologias devem estar à disposição de todos, especialmente dos países em desenvolvimento, de forma a permitir-lhes o controle de seu próprio destino e a definição dos conhecimentos que julguem necessários a seu futuro.
9. Se a televisão e os novos meios de comunicação constituem um instrumento essencial de educação para o futuro, a educação deve ajudar a desenvolver o espírito crítico em relação ao que é divulgado nesses meios.
10. A educação, a alimentação e a prevenção são os instrumentos essenciais de uma política demográfica e de redução da mortalidade infantil. A generalização do uso das vacinas existentes e o desenvolvimento de novas vacinas devem constituir a tarefa comum dos cientistas e dos homens políticos.
11. Todas as pesquisas relativas à prevenção e ao tratamento da AIDS devem ser partilhadas e estimuladas, sem bloqueios ou barreiras, especialmente através da cooperação da indústria farmacêutica. Uma vez disponível, a vacina contra a AIDS deve ser assegurada pelos poderes públicos.
12. A biologia molecular, que por seus recentes avanços permite prever progressos na medicina e no isolamento da dimensão genética de certas doenças, deve ser estimulada, o que permitirá prever e talvez curar essas doenças.
13. O desarmamento dará um estímulo significativo ao desenvolvimento econômico e social, tendo em vista os recursos limitados do mundo, atualmente drenados pela indústria armamentista.
14. Nós pedimos a organização de uma conferência internacional para tratar em seu conjunto do problema da dívida do Terceiro Mundo, obstáculo ao seu desenvolvimento econômico e poliítico.
15. Os governos devem comprometer-se sem ambiguidades e de maneira legalmente vinculatória com o respeito aos direitos do homem, assim como aos tratados por eles ratificados.
16. A conferência dos laureados do Nobel se reunirá novamente dentro de dois anos para estudar estes problemas. No intervalo, se uma urgência se manifestar, vários Nobel poderão reunir-se localmente, ou em todos os lugares onde os direitos do homem estiverem ameaçados.