Jean-Baptiste Duroselle:
Morte do grande historiador das relações internacionais
Paulo Roberto de Almeida
Paris, 20/09/1994
O historiador francês Jean-Baptiste Duroselle morreu em 12 de setembro de 1994 aos 76 anos, deixando uma imensa obra centrada sobre a história das relações internacionais contemporâneas e os problemas da política externa francesa neste século. Seu último livro, La Grande Guerre des français, 1914-1918, estava previsto para publicação em outubro (Perrin), no seguimento das comemorações da primeira guerra mundial, que o tinha visto nascer, em 1917. O livro é dedicado a Albert Duroselle, seu pai, ferido em combate em 1916, e a Pierre Renouvin, também ferido no mesmo conflito e amputado do braço esquerdo.
Discípulo e sucessor de Pierre Renouvin, ele não tinha entretanto começado sua carreira na área das relações internacionais, já que sua tese de doutoramento tinha sido dedicada aos Débuts du catholicisme social en France, 1822-1870. Antigo aluno da École Normale Supérieure, tornou-se professor de história aos 32 anos, foi recebido na Sorbonne como primeiro assistente em história contemporânea, passou pelas universidades de Sarreburck e de Lille, antes de voltar a Paris, para o Instituto de Estudos Políticos e como professor na Sorbonne, aos 47 anos. Ele também ensinava regularmente na Universidade de Bolonha e em diversas universidades norte-americanas, entre as quais Harvard e Notre Dame (Indiana).
No campo da história das relações internacionais, ele manifesta interesse não só pela política externa francesa, mas igualmente pela de outros países. Ele publicou, em 1961, De Wilson à Roosevelt, politique étrangère des États-Unis 1913-1945 (Armand Colin) e, em 1976, um estudo sobre La France et les États-Unis (Seuil).
Sua obra de estudioso das relações internacionais, da história diplomática européia e de analista implacável da política externa da França é imensa, mas também é importante sua reflexão como teórico nesse setor. Data de 1964 sua obra metodológica em colaboração com Pierre Renouvin, Introduction à l’Histoire des relations internationales (Armand Colin), na qual eles chamam a atenção para as “forças profundas da história” (os interesses econômicos e financeiros, as mentalidades coletivas, as grandes correntes políticas). Sua Histoire Diplomatique de 1919 à nos jours permanece o trabalho de referência na área, intensamente utilizada por gerações de diplomatas e de universitários (Dalloz, 11a. edição, 1993).
Em relação à Europa, seus trabalhos são diversos e variados: Le Conflit de Trieste (1965), L’Europe de 1815 à nos jours, Le Drame de l’Europe, 1914-1915 e o imenso painel L’Europe, histoire de ses peuples (Perrin, 1991). No terreno das biografias, ele abordou a vida de Clemenceau (Fayard, 1988) e tinha um Foch em preparação. Duroselle também dirigiu a grande coleção (13 vols.) La politique étrangère de la France, 1871-1969, na qual escreveu dois volumes: La Décadence, 1932-1939 (Imprimerie Nationale, 1979) e L’Abîme, 1940-1944 (1982; ambos igualmente disponíveis na coleção Points-Seuil desde 1983). Ele tinha aliás dirigido, depois de Pierre Renouvin, a comissão de publicação dos documentos diplomáticos franceses que, no âmbito do Quai d’Orsay, publica regularmente uma seleção de documentos dos arquivos diplomáticos (o último tomo publicado, em três volumes, vai de julho de 1958 a junho de 1959).
Multidisciplinar, grande apreciador de Raymond Aron, ele tinha consolidado suas reflexões teóricas sobre as relações internacionais no consagrado Tout Empire Périra (Publications de la Sorbonne, 1981; Armand Colin, 1992). Finalmente, um de seus últimos livros publicados em vida foi dedicado ao problema das transferências maciças de populações: L’Invasion: les migrations humaines, chance ou fatalité (Plon, 1992).
A profundidade de sua pesquisa histórica foi resumida numa frase do historiador Pierre Chaunu ao falar de uma obra de Duroselle: “Não se resume um livro que bate o recorde de informações por linha” (Nota necrológica de Henri Amouroux, Le Figaro, 17.09.94). Maurice Vaïsse, outro grande especialista do terreno, prestou-lhe uma primeira homenagem nas páginas do Le Monde: “Esse poço de ciência, essa memória prodigiosa era também um homem simples de um humor inalterável e de uma extraordinária alegria, fazendo mentir a fórmula de Péguy: ‘Quando se tem a juventude, não se tem competência, e quando se tem competência, não se tem mais a juventude’” (15.09.94).
Sua última entrevista foi dada precisamente ao Le Monde, que publicou grandes extratos em sua edição de 20.09.94. Nela, Duroselle afirma que “existem dois elementos no esforço do historiador. O primeiro é decisivo: o historiador deve buscar os acontecimentos. Apenas depois que ele acumulou os fatos o mais precisamente possível é que entra o segundo elemento, a interpretação. Se o historiador não interpreta, se ele não tenta encontrar explicações, ele não exerce sua profissão. A interpretação é o que há de mais interessante para o historiador, mesmo se a História nunca é segura, já que ninguém poderá provar que a sua interpretação é ou não justa”.
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Entrevista com Jean-Baptiste Duroselle (excertos)
(Le Monde, 20/09/1994; tradução Paulo Roberto de Almeida)
Suas pesquisas como historiador são sempre solidamente apoiadas na cronologia. Deve-se ao fato de trabalhar com documentos diplomáticos sua forte vinculação a uma concepção clássica da História, longe da renovação empreendida pela escola dos Annales, criada em 1929 e que se afasta da história fatual?
– “A ideia de descartar a cronologia sempre me pareceu absurda e a história não cronológica está morta atualmente. Todos os terrenos proibidos pelos Annales são novamente largamente explorados: por exemplo, a biografia, a história política. É muito interessante falar do sabão usado nas fazendas pelos camponeses para se lavar, mas a primeira guerra mundial tem também uma certa importância! O que eu reprovo sobretudo nos Annales é o fato de ter excomungado historiadores e não de ter procurado analisar a transformação da História. É o que Pierre Renouvin, que foi meu mestre, chama de forças profundas. Os Annales inventaram esse conceito, mas outros também o inventaram ao mesmo tempo. Tratava-se de uma tendência provavelmente ligada ao sucesso considerável do marxismo imediatamente após a segunda guerra mundial.
“O que eu não gostava nos Annales é a distinção que se faz entre uma história fatual e uma história que não o é. Toda história é forçosamente composta de acontecimentos (événements), de uma coleção de acontecimentos. A palavra “acontecimento” é feia, é falsa. Ela é injuriosa contra essa História que você chama legitimamente de clássica, mais que realizou progressos como as outras disciplinas das ciências humanas.”
Quais são os principais componentes da profissão de historiador?
– “Considero que existem dois elementos no esforço do historiador. O primeiro é decisivo: o historiador deve buscar os acontecimentos. Apenas depois que ele acumulou os fatos o mais precisamente possível é que entra o segundo elemento, a interpretação. Se o historiador não interpreta, se ele não tenta encontrar explicações, ele não exerce sua profissão. A interpretação é o que há de mais interessante para o historiador, mesmo se a História nunca é segura, já que ninguém poderá provar que a sua interpretação é ou não justa.
“Nas ciências humanas, o homem se interrogará continuamente sobre as interpretações. Na História, isto é de uma clareza absoluta. (...)”
(...)
O Senhor vive no meio dos arquivos, a ponto que eles se tornam seus cúmplices. Como os definiria?
– “Os arquivos não são documentos empoeirados. Os arquivos, contrariamente ao que se imagina algumas vezes, não são feitos para os historiadores. Eles são produzidos pelos homens de ação que têm necessidade de vestígios escritos para se lembrar do que se passou. Em outras palavras, são antes de mais nada um instrumento de governo. Isto é verdade desde a mais alta antiguidade. As famosas plaquetas cuneiformes, que se acreditava no começo serem textos religiosos, são cadastros, balanços gerais, documentos administrativos por excelência.
“Uma vez que os governos não têm mais necessidade desses papéis, eles os depositam num escritório de classificação. Em seguida, os arquivistas fazem um trabalho formidável estabelecendo os catálogos. Eles tornam utilizável o que seria inutilizável se não estivesse classificado. É a partir do momento que os catálogos são estabelecidos que aparece uma terceira categoria: os historiadores, os jornalistas, os panfletários, algumas vezes também os policiais.” (...)
Como procedem os historiadores perfeitamente conscientes de que os homens do poder selecionam os seus arquivos antes de entregá-los aos especialistas?
– “Os homens políticos e notadamente os ministros são naturalmente desconfiados, sabendo que os historiadores consultam os arquivos. E nós somos conscientes de que eles podem expurgar os arquivos ou mesmo, raramente, introduzir alguns papéis falsos. Algumas vezes alguns documentos que lhes parecem verdadeiramente perigosos desaparecem, algumas vezes séries de documentos.” (...)
(...)
Como os diplomatas avaliam o seu trabalho?
– “Uma pequena história sobre esse assunto. No começo dos anos 60, quando a comissão sobre as origens da segunda guerra mundial foi criada, o grande historiador italiano Toscano perguntou se ela teria uma maioria de diplomatas ou uma maioria de universitários. Os diplomatas eram supostos exercer uma pressão que não exercem os universitários... Pierre Renouvin, presidente da comissão, tratou então de que houvesse mais historiadores do que diplomatas. Pessoalmente, no decorrer de uma experiência de 19 anos, nenhuma vez um diplomata chegou e me disse: você deve fazer isto ou aquilo”.
Depoimento recolhido por Laurent Greilsamer
Tradução: Paulo Roberto de Almeida
[Paris, 20.09.94]
[Relação de Trabalhos n. 455]
455. “Jean-Baptiste Duroselle: Morte do grande historiador das relações internacionais”, Paris, 20 setembro 1994, 2 pp. Nota necrológica sobre a obra do historiador francês falecido em 12/09/94, acompanhada de excertos de sua última entrevista ao Le Monde (20.09.94). Publicada na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: vol. 37, n° 2, julho-dezembro 1994, pp. 120-121). Relação de Publicados n. 166.