Sou colunista da revista Crusoé, o que implica em resguardar por certo tempo os direitos autorais da editora responsável. Considero que depois de duas ou três semanas seja razoável divulgar por este canal a íntegra dos meus artigos, vários deles de natureza conjuntural. É o que faço agora.
1531. “Desafios da diplomacia brasileira na atualidade”, revista Crusoé (10/11/2023; link: https://crusoe.com.br/edicoes/289/desafios-da-diplomacia-brasileira-na-atualidade/). Relação de Originais n. 4505.
Desafios da diplomacia brasileira na atualidade
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
“O Brasil voltou”, proclamou várias vezes Lula, desde que ganhou as eleições em outubro de 2022. Certamente que Lula voltou, mas menos triunfalmente do que desejaria e, ao que parece, indiferente às mudanças ocorridas no Brasil e no mundo desde 2010. O Brasil também voltou ao noticiário internacional, isolado que estava durante todo o mandato do presidente anterior, que fazia questão de exibir uma diplomacia ideológica, bem mais sectária do que a diplomacia partidária que Lula e o PT praticaram durante os anos da “ativa e altiva”, como eles tinham apelidado sua política externa daqueles anos.
Ou seja, não funcionou como Lula gostaria: o retorno triunfal de uma política externa que pretenderia fazer do BRICS e de um diáfano Sul Global as bases diplomáticas de sua liderança regional e até mundial, teria de saudado por todos, o que não ocorreu. As razões podem ser encontradas no mundo a que Lula e o PT voltaram, depois de oito anos fora do poder. Ambos avaliaram mal a amplitude das mudanças objetivas ocorridas no Brasil, no entorno sul-americano e no mundo, com incertezas marcantes na economia mundial, com a deterioração do ambiente multilateral e o abandono prático do diálogo entre os líderes de nações relevantes e com o crescimento da direita em diversos países, inclusive no Brasil.
As bondades econômicas e o ambiente de relativa convivência entre as grandes potências que marcaram os anos 1990 e o início dos 2000 já não existem mais. A pandemia da Covid, os problemas econômicos dela decorrentes, as agressões russas à Ucrânia (desde 2014) e o acirramento das tensões geopolíticas entre as mesmas potências contaminaram o ambiente político internacional de uma forma que talvez não tenha sido visto desde as fases sombrias da Guerra Fria, como as tensões em torno de Berlim ou na crise dos mísseis soviéticos em Cuba, em 1962. Rumores de uma nova guerra nuclear foram ouvidos aqui e ali.
Lula acumulou contrariedades, sobretudo na própria região, com resultados limitados nas duas reuniões regionais que ele patrocinou no primeiro semestre de 2023: a cúpula dos presidentes sul-americanos, na qual ele esperava contar com o apoio de todos para a sua proposta de reviver a Unasul e de operar o acolhimento do governo chavista no seio da família sul-americana, e a cúpula dos países amazônicos, da qual esperava igual assentimento para medidas de proteção ambiental e de transição energética. Por outro lado, a calorosa recepção que grandes líderes mundiais lhe devotaram no momento de sua eleição começou a esfriar logo em seguida às suas primeiras declarações, já em 2022 e no início de 2023; no tocane à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, Lula mal disfarçou sua postura objetivamente favorável ao país agressor, em especial em relação a Putin, colega no BRICS.
A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia representou um primeiro desafio à política externa e à diplomacia de Lula, e um dos mais complicados, uma vez que ela implicou a negação de valores e princípios tradicionais da diplomacia brasileira – como o respeito à Carta da ONU e ao Direito Internacional –, assim como de cláusulas de relações internacionais da própria Constituição brasileira, como o respeito à soberania e à integridade territorial, a não interferência nos assuntos internos de outros Estados, ou o cometimento de crimes de guerra, sancionados em protocolos humanitários e sobre as leis da guerra subscritos pela maioria da comunidade mundial. Tal desafio já existia no governo Bolsonaro, mas foi continuado sob Lula, ambos sendo objetivamente pró-Rússia nessa violação aberta da Carta da ONU e do Direito Internacional. Na verdade, ele remonta a 2014, quando da invasão e anexação ilegais da Crimeia pela Rússia, à qual o governo do PT, então sob Dilma Rousseff, se mostrou completamente indiferente, quando muitos países condenaram a invasão russa e introduziram sanções contra o país agressor.
Registre-se que a doutrina jurídico-diplomática brasileira sempre condenou tais atos de agressão: mesmo o Estado Novo de Vargas não admitiu a violação da soberania da Polônia pela Alemanha nazista, em 1939, ou a incorporação dos Estados bálticos pela União Soviética em 1940. Mas Dilma chegou a afirmar que a ocupação ilegal da Crimeia era um “problema interna da Ucrânia”, como se a invasão e anexação do território por um Estado estrangeiro pudesse ser considerado uma questão doméstica. Lula não esteve muito distante desse absurdo, quando chegou a sugerir que a Ucrânia entregasse partes do seu território para terminar com a guerra de agressão do vizinho mais poderoso. Essa postura causou mal-estar entre diversos dirigentes de democracias avançadas e a “neutralidade” de Lula gerou reações abertas de estranheza por parte de vários deles, e ainda não foi digerida por essas nações.
O segundo desafio é mais recente, e está obviamente configurado pela guerra do Hamas contra Israel, iniciada pelos ataques terroristas perpetrados em graus elevados de atrocidades pela organização terrorista da Faixa de Gaza, agressor e atos insidiosamente obscurecidos nas primeiras notas e comentários do governo Lula a esse respeito, depois parcialmente corrigidos nos dias seguintes. Não é nenhum segredo diplomático que o governo de Lula 2 foi um dos primeiros Estados, em 2010, a reconhecer a Autoridade Nacional Palestina e seu “governo” na Cisjordânia ocupada por Israel.
Tampouco é uma novidade constatar que a diplomacia brasileira aceita desde longo tempo – praticamente desde a partilha de 1947, operada sob a condução de Oswaldo Aranha na presidência da Assembleia Geral da ONU – o princípio de dois Estados na antiga Palestina sob tutela britânica durante a vigência da Liga das Nações. Mas, o militantismo pró-palestino do PT, assim como das esquerdas em geral no Brasil, se confunde com uma velha postura anti-imperialista e antiamericana, o que os colocam ao lado das mais execráveis ditaduras naquela região e no mundo. Essa postura, que contamina o governo e a diplomacia, pode estar na origem da frustração do Brasil quando do veto ao projeto de resolução apresentado no Conselho de Segurança durante a presidência brasileira e no tocante à longa espera imposta ao resgate de brasileiros da faixa de Gaza pela fronteira egípcia.
O terceiro desafio, ainda não consumado na prática, mas subjacente desde muitos anos, é constituído pela pretensão da Venezuela, sob governos chavistas, de incorporar à sua soberania 74% do território da vizinha Guiana, a pretexto de que aquele território seria originalmente pertencente à antiga capitania geral da Venezuela. Maduro foi recebido com honras de chefe de Estado por Lula um dia antes da cúpula sul-americana de maio; ele agora pretende realizar um plebiscito de cartas marcadas no início de dezembro, e que poderia ser o prelúdio a uma invasão armada, pretensão já discutida e recusada na OEA e em outros foros internacionais, como a Corte Internacional de Justiça. Esse é um desafio ao qual o Brasil não poderá ficar indiferente, inclusive porque parte daquele imenso território era originalmente considerado português, portanto, brasileiro, no Império, mas reivindicado pelo Reino Unido e objeto de uma arbitragem defendida por Joaquim Nabuco, mais de um século atrás, quando o rei italiano Vitorio Emanuel resolveu concedê-lo graciosamente à rainha Vitória.
Estes desafios devem ocupar intensamente a diplomacia brasileira nos meses, talvez anos, à frente; outros, igualmente complicados, certamente virão. A corporação profissional do Itamaraty está plenamente capacitada para administrar a parte que lhe cabe nas grandes questões que lhe estão afetas; o problema é que a condução da política externa nem sempre é compatível com os princípios e valores com os quais sempre trabalhou a Casa de Rio Branco. Aliás, o grande patrono da diplomacia preparou cuidadosamente os subsídios com os quais trabalhou Joaquim Nabuco na defesa dos direitos brasileiros na questão da Guiana. Se o Barão fosse o atual chanceler certamente expediria uma nota de protesto contra a Venezuela.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4505, 4 novembro 2023, 3 p.
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