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sábado, 23 de dezembro de 2023

Desafios da diplomacia brasileira na atualidade Paulo Roberto de Almeida revista Crusoé

  Sou colunista da revista Crusoé, o que implica em resguardar por certo tempo os direitos autorais da editora responsável. Considero que depois de duas ou três semanas seja razoável divulgar por este canal a íntegra dos meus artigos, vários deles de natureza conjuntural. É o que faço agora.

1531. “Desafios da diplomacia brasileira na atualidade”, revista Crusoé (10/11/2023; link: https://crusoe.com.br/edicoes/289/desafios-da-diplomacia-brasileira-na-atualidade/)Relação de Originais n. 4505.


Desafios da diplomacia brasileira na atualidade

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

 

“O Brasil voltou”, proclamou várias vezes Lula, desde que ganhou as eleições em outubro de 2022. Certamente que Lula voltou, mas menos triunfalmente do que desejaria e, ao que parece, indiferente às mudanças ocorridas no Brasil e no mundo desde 2010. O Brasil também voltou ao noticiário internacional, isolado que estava durante todo o mandato do presidente anterior, que fazia questão de exibir uma diplomacia ideológica, bem mais sectária do que a diplomacia partidária que Lula e o PT praticaram durante os anos da “ativa e altiva”, como eles tinham apelidado sua política externa daqueles anos. 

Ou seja, não funcionou como Lula gostaria: o retorno triunfal de uma política externa que pretenderia fazer do BRICS e de um diáfano Sul Global as bases diplomáticas de sua liderança regional e até mundial, teria de saudado por todos, o que não ocorreu. As razões podem ser encontradas no mundo a que Lula e o PT voltaram, depois de oito anos fora do poder. Ambos avaliaram mal a amplitude das mudanças objetivas ocorridas no Brasil, no entorno sul-americano e no mundo, com incertezas marcantes na economia mundial, com a deterioração do ambiente multilateral e o abandono prático do diálogo entre os líderes de nações relevantes e com o crescimento da direita em diversos países, inclusive no Brasil.

As bondades econômicas e o ambiente de relativa convivência entre as grandes potências que marcaram os anos 1990 e o início dos 2000 já não existem mais. A pandemia da Covid, os problemas econômicos dela decorrentes, as agressões russas à Ucrânia (desde 2014) e o acirramento das tensões geopolíticas entre as mesmas potências contaminaram o ambiente político internacional de uma forma que talvez não tenha sido visto desde as fases sombrias da Guerra Fria, como as tensões em torno de Berlim ou na crise dos mísseis soviéticos em Cuba, em 1962. Rumores de uma nova guerra nuclear foram ouvidos aqui e ali.

Lula acumulou contrariedades, sobretudo na própria região, com resultados limitados nas duas reuniões regionais que ele patrocinou no primeiro semestre de 2023: a cúpula dos presidentes sul-americanos, na qual ele esperava contar com o apoio de todos para a sua proposta de reviver a Unasul e de operar o acolhimento do governo chavista no seio da família sul-americana, e a cúpula dos países amazônicos, da qual esperava igual assentimento para medidas de proteção ambiental e de transição energética. Por outro lado, a calorosa recepção que grandes líderes mundiais lhe devotaram no momento de sua eleição começou a esfriar logo em seguida às suas primeiras declarações, já em 2022 e no início de 2023; no tocane à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, Lula mal disfarçou sua postura objetivamente favorável ao país agressor, em especial em relação a Putin, colega no BRICS.

A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia representou um primeiro desafio à política externa e à diplomacia de Lula, e um dos mais complicados, uma vez que ela implicou a negação de valores e princípios tradicionais da diplomacia brasileira – como o respeito à Carta da ONU e ao Direito Internacional –, assim como de cláusulas de relações internacionais da própria Constituição brasileira, como o respeito à soberania e à integridade territorial, a não interferência nos assuntos internos de outros Estados, ou o cometimento de crimes de guerra, sancionados em protocolos humanitários e sobre as leis da guerra subscritos pela maioria da comunidade mundial. Tal desafio já existia no governo Bolsonaro, mas foi continuado sob Lula, ambos sendo objetivamente pró-Rússia nessa violação aberta da Carta da ONU e do Direito Internacional.  Na verdade, ele remonta a 2014, quando da invasão e anexação ilegais da Crimeia pela Rússia, à qual o governo do PT, então sob Dilma Rousseff, se mostrou completamente indiferente, quando muitos países condenaram a invasão russa e introduziram sanções contra o país agressor.

Registre-se que a doutrina jurídico-diplomática brasileira sempre condenou tais atos de agressão: mesmo o Estado Novo de Vargas não admitiu a violação da soberania da Polônia pela Alemanha nazista, em 1939, ou a incorporação dos Estados bálticos pela União Soviética em 1940. Mas Dilma chegou a afirmar que a ocupação ilegal da Crimeia era um “problema interna da Ucrânia”, como se a invasão e anexação do território por um Estado estrangeiro pudesse ser considerado uma questão doméstica. Lula não esteve muito distante desse absurdo, quando chegou a sugerir que a Ucrânia entregasse partes do seu território para terminar com a guerra de agressão do vizinho mais poderoso. Essa postura causou mal-estar entre diversos dirigentes de democracias avançadas e a “neutralidade” de Lula gerou reações abertas de estranheza por parte de vários deles, e ainda não foi digerida por essas nações. 

O segundo desafio é mais recente, e está obviamente configurado pela guerra do Hamas contra Israel, iniciada pelos ataques terroristas perpetrados em graus elevados de atrocidades pela organização terrorista da Faixa de Gaza, agressor e atos insidiosamente obscurecidos nas primeiras notas e comentários do governo Lula a esse respeito, depois parcialmente corrigidos nos dias seguintes. Não é nenhum segredo diplomático que o governo de Lula 2 foi um dos primeiros Estados, em 2010, a reconhecer a Autoridade Nacional Palestina e seu “governo” na Cisjordânia ocupada por Israel. 

Tampouco é uma novidade constatar que a diplomacia brasileira aceita desde longo tempo – praticamente desde a partilha de 1947, operada sob a condução de Oswaldo Aranha na presidência da Assembleia Geral da ONU – o princípio de dois Estados na antiga Palestina sob tutela britânica durante a vigência da Liga das Nações. Mas, o militantismo pró-palestino do PT, assim como das esquerdas em geral no Brasil, se confunde com uma velha postura anti-imperialista e antiamericana, o que os colocam ao lado das mais execráveis ditaduras naquela região e no mundo. Essa postura, que contamina o governo e a diplomacia, pode estar na origem da frustração do Brasil quando do veto ao projeto de resolução apresentado no Conselho de Segurança durante a presidência brasileira e no tocante à longa espera imposta ao resgate de brasileiros da faixa de Gaza pela fronteira egípcia. 

O terceiro desafio, ainda não consumado na prática, mas subjacente desde muitos anos, é constituído pela pretensão da Venezuela, sob governos chavistas, de incorporar à sua soberania 74% do território da vizinha Guiana, a pretexto de que aquele território seria originalmente pertencente à antiga capitania geral da Venezuela. Maduro foi recebido com honras de chefe de Estado por Lula um dia antes da cúpula sul-americana de maio; ele agora pretende realizar um plebiscito de cartas marcadas no início de dezembro, e que poderia ser o prelúdio a uma invasão armada, pretensão já discutida e recusada na OEA e em outros foros internacionais, como a Corte Internacional de Justiça. Esse é um desafio ao qual o Brasil não poderá ficar indiferente, inclusive porque parte daquele imenso território era originalmente considerado português, portanto, brasileiro, no Império, mas reivindicado pelo Reino Unido e objeto de uma arbitragem defendida por Joaquim Nabuco, mais de um século atrás, quando o rei italiano Vitorio Emanuel resolveu concedê-lo graciosamente à rainha Vitória. 

Estes desafios devem ocupar intensamente a diplomacia brasileira nos meses, talvez anos, à frente; outros, igualmente complicados, certamente virão. A corporação profissional do Itamaraty está plenamente capacitada para administrar a parte que lhe cabe nas grandes questões que lhe estão afetas; o problema é que a condução da política externa nem sempre é compatível com os princípios e valores com os quais sempre trabalhou a Casa de Rio Branco. Aliás, o grande patrono da diplomacia preparou cuidadosamente os subsídios com os quais trabalhou Joaquim Nabuco na defesa dos direitos brasileiros na questão da Guiana. Se o Barão fosse o atual chanceler certamente expediria uma nota de protesto contra a Venezuela.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4505, 4 novembro 2023, 3 p.

 

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Entre o passado e o futuro: práticas republicanas e desafios da diplomacia brasileira - Gabriela Lotta, Izabela Moreira Correa, Mariana Costa Silveira

Entre o passado e o futuro: práticas republicanas e desafios da diplomacia brasileira

O Estado de S. Paulo, 20 de abril de 2022

Gabriela Lotta, Professora de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP) e Coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB-FGV)

Izabela Moreira Correa, Doutora em Governo pela London School of Economics (LSE)

Mariana Costa Silveira, Doutoranda em Administração Pública e Governo na Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB-FGV)

 Em todos os lugares, levo a memória da Pátria. Ubique Patriae Memor. A frase é do Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, cuja data de nascimento marca a comemoração do Dia do Diplomata, 20 de abril.

Mas, mostrar para o mundo o que é o Brasil nunca foi tão difícil para as diplomatas e os diplomatas brasileiros como tem sido recentemente. Em pouco mais de três anos, o país alterou profundamente várias de suas posições diplomáticas históricas. Exemplos abundam. O alinhamento sem precedentes da política externa brasileira à do presidente americano Donald Trump, o ataque internacional aos direitos humanos, o afastamento da posição de equilíbrio em relação a Israel e Palestina, as duras críticas à China, o descaso com compromissos internacionais sobre meio ambiente, o afastamento de nossos vizinhos, e, o desmonte dos mecanismos de integração regional.

O Brasil, que sempre foi reconhecido por ter uma postura mediadora e negociadora, se transformou num pária internacional, isolado em várias posições ao lado de governos autoritários. ‘Nos últimos dois anos, avolumaram-se exemplos de condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo os códigos mais elementares da prática diplomática’, constava da carta apócrifa de diplomatas brasileiros divulgada no final de março de 2021, dois dias antes da demissão de Ernesto Araújo.

Por que apócrifa? Por que, com raras exceções, em vez de encontrarmos uma resistência frontal dos diplomatas, temos visto atos de resistência tímidos ou silenciosos?

Para responder a esta pergunta, entrevistamos dezenas de diplomatas, lotados em vários países, em distintos setores, e que fazem parte de diferentes gerações do Itamaraty. Estas entrevistas fazem parte de pesquisa que estamos conduzindo para compreender a relação entre opressão governamental e reação burocrática. Para tanto, temos olhado para a administração pública buscando avaliar o funcionamento dos órgãos governamentais e de suas burocracias.

O Itamaraty é um dos órgãos federais mais longevos. Reconhecido por seu posicionamento histórico de equilíbrio e moderação, possui corpo funcional estável e altamente qualificado que, até recentemente, se orgulhava de sua independência técnica ao se assumir como “funcionários de Estado”, elemento aprendido em seu processo de formação e socialização no Instituto Rio Branco. Essas características são, em geral, associadas a organizações públicas autônomas, que conseguem se proteger de desmandos políticos e manter, com bastante efetividade, certa estabilidade na sua agenda. Por todas essas características, enquanto estudiosas da administração pública, fomos surpreendidas com a mudança radical sofrida pelo Itamaraty e pela política externa durante o Governo Bolsonaro.

Embora críticos dos rumos seguidos pela política externa do Governo Bolsonaro, as diplomatas e os diplomatas que entrevistamos foram enfáticos em reconhecer sua limitação em impor resistências ao governo. Na raiz dessa impotência mora o medo da retaliação, pelos pares ou pelo governo, agora ou no futuro.

Medo de retaliação não é peculiar aos servidores do Itamaraty. Em outras organizações também encontramos servidores com receio de sofrer processos administrativos, perseguições, assédio moral e mudança de área. No Itamaraty, entretanto, as represálias parecem ser de outra ordem e ter consequências que ultrapassam um único governo. O trabalho do corpo diplomático envolve, necessariamente, remoções ao longo da vida funcional para serviço em outros países, promoções funcionais e acesso a cargos de direção.

A escolha de para onde o diplomata vai (ou não) afeta não só seu futuro profissional, mas também o de sua própria família. A barganha e uso político do instrumento – por exemplo, punindo servidores que divergem do governo com possível remoção para países indesejados – é uma forma poderosa de manter os diplomatas na linha de obediência.

O segundo mecanismo, a promoção, pode ser usado para o mesmo propósito. Diferentemente de outras carreiras nas quais a promoção acontece a partir de critérios objetivos – tempo de serviço e capacitação, por exemplo – no caso das diplomatas e dos diplomatas, a partir de certo estágio da carreira, a ascensão funcional é feita com base na “promoção por merecimento”, que envolve elementos subjetivos e cuja decisão final depende de apoios formais de colegas na alta direção do ministério, do ministro das Relações Exteriores e, legalmente, do presidente da República. Para além das críticas à influência de fatores como parentesco e relacionamentos pessoais, nossa pesquisa aponta que, sem critérios formais, a promoção também pode ser instrumentalizada para manter a subordinação ou o silêncio daqueles que, ainda que muito desconfortáveis com o retrocesso da política externa, temem que a defesa aberta da democracia, de princípios constitucionais ou de posicionamentos diplomáticos tradicionais os levem ao ostracismo no futuro.

Por fim, os resultados da pesquisa sugerem que o Palácio do Planalto, com a conivência de Ernesto Araújo, num primeiro momento, e agora de Carlos França, tem vetado número expressivo de diplomatas indicados para posições no ministério. A “caça às bruxas”, como tem sido descrita (não apenas no Itamaraty, aliás), afeta inclusive cargos de comissão de médio escalão, algo jamais vivenciado pelo Itamaraty, segundo relatos dos entrevistados. Há casos também de diplomatas que passam meses sem lotação ou atribuições definidas, num limbo funcional jocosamente conhecido como “Departamento de Escadas e Corredores”. Isso tudo sem que os servidores jamais conheçam as motivações para tanto. Os relatos indicam perseguições políticas motivadas, por exemplo, por posicionamentos pessoais de servidores em redes sociais, posições ocupadas em governos anteriores, ou proximidade com pessoas vistas com desconfiança.

Estes instrumentos, junto com outros que encontramos no restante da esplanada (como processos administrativos, assédio institucional e interferência política por meio de nomeações de atores externos, incluindo de militares, para cargos de chefia sem conhecimento técnico) explicam em grande medida como e por que o presidente foi capaz de impor uma mudança tão brusca nos rumos de uma organização que se vangloriava por suas tradições.

Último ano do governo. Hora de olharmos para tudo o que vivemos, aprender e tirar uma agenda de futuro que melhore nossa administração pública e fortaleça nossa democracia. O caso do Itamaraty nos mostra a importância de investir em organizações públicas fortes, capacitadas, e que tenham instrumentos transparentes, isonômicos e impessoais de gestão e carreira. E nos lembra que, para que a tradição da política externa brasileira seja preservada e o Brasil consiga retomar posições de equilíbrio e destaque internacional, é necessário avançar em prol de práticas internas mais republicanas. Talvez assim, as diplomatas e os diplomatas brasileiros não tenham que conviver mais com a dificuldade de em todos os lugares levar a memória da pátria.

https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/entre-o-passado-e-o-futuro-praticas-republicanas-e-desafios-da-diplomacia-brasileira/