A manilha e o libambo, de Alberto da Costa e Silva
Conjur, 3 de dezembro de 2023, 10h28
Os títulos que os autores dão a seus livros compõem um universo fascinante para pesquisas interessantes. Há aspectos formais. Há dilemas psicanalíticos. Há razões mercadológicas. Há jogos de palavras. Há pistas (inclusive falsas), e há também uma chave interpretativa para o que espera o leitor.
“O nome da Rosa”, de Umberto Eco, por exemplo, não é referência a personagem com esse nome, que não se encontra no livro, obviamente. Eco contava com um outro título, “A abadia do crime”; a opção, no entanto, “O nome da Rosa”, remete o leitor a um dos problemas centrais do romance: o tema do nominalismo.
O próprio Eco lembrava-se de Dumas (que contou a história de D’Artagnan, que não era um dos “Três Mosqueteiros), além de outros títulos labirínticos (“O vermelho e o negro”, “Guerra e Paz”). Eu acrescentaria “Esaú e Jacó” (argumento bíblico que Machado de Assis transpôs para Pedro e Paulo, com a paisagem do Rio de Janeiro na passagem do Império para a República como pano de fundo) ou, ainda mais objetivamente, “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum, no contexto da perturbadora tensão entre Uaqub e Omar.
Uma lista de títulos intrigantes contaria também com “A manilha e o libambo”, de Alberto da Costa e Silva. Diplomata, poeta, africanólogo, memorialista, historiador, faleceu neste último 26 de novembro, aos 92 anos de idade. Uma rápida olhada sobre um de seus livros principais, cujo título também é prova inconteste de sua inventividade, é o tema dos embargos culturais dessa semana, que seguem em forma de homenagem a esse grande intelectual.
“A manilha e o libambo” é um portentoso estudo sobre a escravidão e o comércio de escravos, sob uma inusitada perspectiva de historiador brasileiro que conhece profundamente a história africana, inclusive sob uma miragem local. Uma abordagem raramente enfrentada com sucesso na tradição historiográfica brasileira.
Sobre o título. O autor (no prefácio) faz uma referência a um conto de Machado de Assis, “Pai contra Mãe”, cujo tema é a violência da escravidão. Machado de Assis registrava que a escravidão levara consigo ofícios, aparelhos e instituições sociais. Exemplificava com a máscara da folha de Flandres, símbolo dessa ignominia. O assunto — escravidão — é um dos temas do mencionado conto, publicado em “Relíquias da Casa Velha”, na edição de 1906. Raimundo Faoro também comenta esse conto na parte 7 do capítulo III de “Machado de Assis, a pirâmide e o trapézio”.
O problema da escravidão é um dos mais intricados na obra de Machado de Assis, além, evidentemente, de ser o mais vergonhoso de nossa história. Pode-se atribuir à ironia machadiana uma crítica à mais sórdida fórmula de exploração que o Brasil conheceu, que muito nos envergonha, e que nos choca, sempre e sempre; e que deixou reflexos que até hoje são assustadores. Condições desumanas de trabalho e exploração superlativa da força humana são desdobramentos modernizados dessa condição odiosa.
A manilha, explica-nos Alberto da Costa e Silva, é um instrumento de metal, quase uma pulseira, em forma de C. O libambo evoca uma sequência de ferros que prendia escravos, comum nas caravanas de cativos. Manilha e libambo reportam-se, assim, à escravidão africana, que o autor identificou como forma de “iniquidade, violência, humilhação (e) sadismo”. Ainda que “toda história tenha um lado de sombra e um lado de sol”, o autor, após indicar várias contribuições africanas, registra que o livro enfatiza a escravidão e o comércio de escravos na África subsaariana, de 1500 e 1700.
São quase 1.000 páginas. Um texto elegante, culto, manifestadamente preparado, estudado, esquadrinhado. Uma leitura que exige tempo, dedicação e interesse pelo assunto. O último capítulo “Escravo igual a negro” retoma que também houve escravidão de eslavos (e o nome da instituição vem daí), gregos, turcos, árabes, armênios, berberes, búlgaros, circassianos. O autor lembrou que Américo Vespúcio tinha em sua casa cinco escravos: “dois negros, um guancho e dois mestiços de canários”. O guancho, encontrei no Aurélio, era um habitante do Tenerife. Alberto da Costa e Silva refere-se também ao fato de que “(…) não era invulgar encontrar-se em cativeiro árabes, berberes e turcos (…) ainda que em número bem menor, indianos, malaios, chineses e ameríndios”.
Nessa parte final do livro retoma o papel dos jesuítas no Brasil, quanto ao problema da escravidão, sob a luz da intrincada questão da oitiva de confissão, por parte dos inacianos, em relação a proprietários de escravos. A questão é intricada justamente porque à escravidão de indígenas (que os jesuítas abominavam) opunha-se a escravidão de africanos, o que teria provocado, segundo o autor, reprimendas do Papa II, que teria se insurgido contra a dominação de africanos convertidos ao catolicismo.
Alberto da Costa e Silva, também na parte final, refere-se ao escravo como tema e argumento literário. Evoca Bernardo de Guimarães (Isaura) e Coelho Neto (Lúcia, de “Rei Negro”), a par do próprio Machado de Assis, que é o ponto de partida do livro. É só um estudo aprofundado dos porquês dessa opção (tema de crítica genética) que poderia esclarecer se não há na referência uma leitura radical sobre um problema que a historiografia literária ainda não resolveu. Remeto o leitor ao primeiro capítulo de “Machado de Assis Historiador”, de Sidney Chalhoub, e o problema pode ser melhor compreendido.
Em “A manilha e o libambo” o leitor insere-se em uma viagem histórica pela Costa do Ouro, pelo reino do Congo, pela região dos Grandes Lagos, por Madagáscar, por Angola, pelo Chade, sobe e desce o Nilo, percebe a Etiópia, o Mali, o Benim. Um desfile de nomes diferentes e de regiões distantes e de personagens inesperadas. O autor trata desses assuntos com competência historiográfica, desarmado de qualquer apelo ao exótico, e no contexto de uma perspectiva humana e esforçadamente compreensiva.
Ao mesmo tempo, o leitor interessado em Alberto da Costa e Silva deve correr para ler “Invenção do Desenho”, o segundo livro de memórias desse exuberante autor (o primeiro foi “O espelho do príncipe”). Conhecerá (ou revisitará) provavelmente um de nossos maiores intelectuais; um pensador de cultura enciclopédica (para usar um chavão) com a alma aberta para o inusitado, o que me parece uma imagem cheia de metafísica e, paradoxalmente, carregada de realismo, condições e circunstâncias que marcam escritores que, ao mesmo tempo, enxergam a pureza putativa do céu e consideram a realidade angustiante da terra.
Alberto da Costa e Silva ocupava a cadeira número 9 da Academia Brasileira de Letras.
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