Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
Diferentemente do que foi amplamente noticiado, o Brasil não foi à Corte de Haia para acusar Israel de cometer genocídio. A participação brasileira é limitada à intervenção processual de um Estado interessado em oferecer sua visão jurídica sobre o tratado que fundamenta o caso, qual seja, a Convenção contra o Genocídio.
Houve estratégica prudência por parte do Brasil em sua manifestação ao levantar uma série de elementos jurídicos e fáticos perante as juízas e juízes da Corte de Haia, que serão fundamentais na decisão final do julgamento, cujas audiências deverão ocorrer em 2026. A manifestação brasileira não afirma explicitamente que ocorre um genocídio em Gaza — e deixa muito claro, em diversas passagens, que sua intenção é se pronunciar sobre a interpretação da Convenção.
Spacca
Palestinos são grupo protegido
Em primeiro lugar, o Brasil destacou que a população palestina é um dos grupos protegidos pela Convenção do Genocídio, ou seja, detém direitos específicos de não ser vítima de genocídio. Em seguida, analisou cuidadosamente a jurisprudência da Corte e de outros tribunais internacionais sobre os critérios de comprovação do crime.
Como se sabe, o crime de genocídio é uma das violações mais graves que um Estado ou indivíduos podem cometer. Devido à sua gravidade e às consequências jurídicas e reputacionais para um Estado, a jurisprudência internacional desenvolveu padrões muito elevados para aferir sua ocorrência. Segundo a Corte, ao se examinar as provas de genocídio, a conclusão deve ser que “a única inferência razoável” é a intenção genocida. Não bastam atos bárbaros de natureza genocida contra um grupo; é igualmente necessária a comprovação da intenção de eliminar, total ou parcialmente, aquele grupo (o chamado dolus specialis).
Na visão brasileira, a linguagem empregada pela Corte no passado permite que se adote uma abordagem balanceada na identificação das provas da intenção, à luz de diversos elementos destacados em sua manifestação. Os argumentos do Brasil fundamentaram-se em relatórios de organismos internacionais sobre a situação de mulheres e crianças, a fome em Gaza, deslocamentos forçados, a negação de ajuda humanitária, bem como em declarações públicas de autoridades israelenses.
Amparando-se na jurisprudência da Corte, o Brasil observou que “um certo número de órgãos estatais ou outros indivíduos atuando em nome de um Estado pode produzir um padrão de conduta a partir do qual se pode inferir uma política governamental relativa à destruição de um grupo”. Em outras palavras, não seria necessário um plano formal e específico para a prática do genocídio.
Legítima defesa x genocídio
O Brasil também aproveitou a oportunidade para se pronunciar sobre o argumento de legítima defesa e sua relação com o crime de genocídio — uma das principais teses apresentadas por Israel na fase inicial do processo. Para o Brasil, em conformidade com os pilares da Carta da ONU e das regras sobre o uso da força, toda legítima defesa deve ser necessária e proporcional, não podendo ser invocada como excludente de ilicitude nem servir para atenuar as obrigações relativas à proibição de genocídio.
Numa formulação inovadora, o Brasil parece chamar a Corte Internacional de Justiça à sua responsabilidade no julgamento. Dada a excepcional gravidade do crime de genocídio, não cabe apenas à Corte adotar rigor na verificação da intenção, mas também oferecer uma justificação extensiva caso ela não a encontre no caso concreto — algo que, para alguns juízes internacionais, faltou na decisão sobre a acusação de genocídio entre Croácia e Sérvia. Em suma, o ônus probatório rigoroso deve ser acompanhado de uma motivação igualmente rigorosa, especialmente diante da grande atenção da comunidade internacional ao deslinde do caso.
Se o Brasil não argumentou diretamente pela ocorrência de genocídio em Gaza, sua intervenção não pode ser retirada de contexto nem ter diminuído seu valor simbólico. Politicamente, trata-se de um contundente apoio à África do Sul e ao povo palestino. As sofisticadas estratégias jurídicas empregadas na manifestação configuram traçados de potenciais caminhos jurídicos a serem seguidos. Quando a Corte Internacional de Justiça emitir seu julgamento final no Palácio da Paz, na Haia, saberemos o quão efetiva terá sido a política externa jurídica brasileira.
é professor de Direito Internacional da UFMG, coordenador do grupo de pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais (CNPq/UFMG) e membro da Diretoria da International Law Association – Brasil.
José Guilherme Merquior (1941-1991) foi um intelectual, na
mais precisa expressão desse termo. Escritor com visão abrangente dos
problemas de seu tempo, e todos os tempos, também escrevia em língua
estrangeira, a exemplo do inglês, idioma que usou no seu portentoso
estudo sobre o liberalismo, livro que já resenhei nessa coluna[1].
Nessa obra, traduzida para o português por Henrique de Araújo Mesquita,
Merquior discorreu longamente sobre o tema (e o problema) do direito
natural.
Graduado
em Filosofia e em Direito, tratou também de vários assuntos de
especulação jurídica, o que lhe vale, certamente, a posição de
importante jusfilósofo. Essa classificação certamente seria por
Merquior desprezada; afinal, foi um pensador acima de quaisquer
tipologias e classificações. Insisto, no entanto, que há um importante
legado de filosofia do direito na obra de Merquior, tema que merece
estudo mais profundo. Não é o caso da presente crônica, que se ocupa do
discurso de posse de Merquior na Academia Brasileira de Letras, em 11 de
março de 1983.
Como se lê em Fábio Coutinho, ainda que em outro contexto, “o
ingresso nas grandes academias representa, via de regra, a consagração
dos homens e suas obras, culminando vidas inteiramente dedicadas ao
trabalho intelectual”[2]. É o caso, também exatamente, de José Guilherme Merquior. Um “caso único”, como lemos em instigante ensaio de Paulo Roberto de Almeida[3]; organizador de “José Guilherme Merquior: um intelectual brasileiro”[4]; cujo
prefácio me parece o mais completo estudo sobre o intelectual aqui
estudado. O discurso de Merquior como orador da turma do Instituto Rio
Branco (em 1963), que Paulo Roberto Almeida acrescenta em seu livro, já
revelava a intuição racionalizadora do orador: a verdade não seria
apenas “a conformidade da ideia com o ser: é antes um comportamento (…) frente ao mundo objetivo, como se ele nos fosse estranho”.
Merquior
foi antecedido na Academia por Paulo Carneiro, ocupou a cadeira n. 36, e
foi saudado por Josué Montello. A cadeira fora ocupada por Afonso
Celso, filho do Visconde de Ouro Preto, o último chefe de gabinete do
segundo reinado. Merquior enfatizou as qualidades intelectuais de Afonso
Celso, a exemplo da elegância do estilo (um estilo eminentemente
verbal), o que despontava objetividade e clareza na exposição das
ideias.
Segundo Merquior, integridade e paixão marcavam Afonso Celso. Um
nacionalismo que identificava como “positivo” era nítido no intelectual
que homenageava, autor de um livro hoje pouco lembrado: “Por que me
ufano de meu país”. Trata-se de um livro publicado em 1900, e que foi de
algum modo mais tarde ridicularizado, por sua forma laudatória.
O adjetivo “positivo” que Merquior acrescentou ao substantivo
“nacionalismo” talvez revele, para o leitor contemporâneo, o pensamento
requintado do acadêmico que tomava posse. Merquior enfatizou a coragem
política de Afonso Celso, que fez o caminho inverso de seus
contemporâneos. Com a Proclamação da República, muitos monarquistas se
fizeram republicanos (os republicanos arrivistas de 15 de novembro).
Afonso Celso fez a rota inversa: de republicano tornou-se monarquista,
talvez até como enfrentamento ao oportunismo, a par de uma inegável
homenagem ao próprio pai. Essa tensão (inclusive sob uma perspectiva
freudiana, é tema de um instigante livro de Luís Martins, “O patriarca e o bacharel”).
Afonso Celso fora corajoso na política e versátil nas humanidades (um
polígrafo de valor). Ao lado de Eduardo Prado, Afonso Celso
quixotescamente se colocou contra a República, segundo Merquior, que
também lembrou que o vocábulo “brasilidade” fora por criado por Afonso
Celso, que também atuou na Ação Social Nacionalista. Merquior o
identificou como o “criador do ufanismo”.
Merquior seguiu a tradição dos empossados, e proferiu discurso
centrado na figura de seus antecessores, acentuando o pensamento
humanista que os marcava, fixando pontos de conexão histórica que
implicavam no papel do intelectual na sociedade. Insistiu na
necessidade de engajamento social do intelectual, tema recorrente nas
reflexões sobre as relações entre os intelectuais e o poder, tema de um
dos livros de Norberto Bobbio, “Os intelectuais e o poder”.
Merquior acentuou uma continuidade entre os ocupantes da cadeira n.
36, o que de alguma forma explicitava sua profissão de fé,
simbolicamente, no sentido teológico de afirmação de posicionamento em
relação aos dilemas da vida. Merquior havia discutido com profundidade a
responsabilidade social do artista, em ensaio de 1963, publicado nessa
obra prima de crítica e estética, que é a “Razão do Poema”,
recentemente republicado em coleção coordenada por João Cezar de Castro
Rocha. Nesse texto de crítica, Merquior sublinhou que “qualquer
ideia acerca da responsabilidade social do artista tem de incorporar
essa crença na arte como função cognitiva, porque, sob pena de andarmos
em nuvens, não há outro meio de se exigir do artista uma determinada
atitude a não ser reconhecendo nele um instrumento de visão”.
O patrono da cadeira n. 36 foi Teófilo Dias (o poeta das Fanfarras).
Merquior lembrou que Teófilo Dias fora um protoparnasiano. Teófilo Dias
era sobrinho de Gonçalves Dias, cuja “Canção do Exílio” Merquior
analisou em “Poema do lá”, um dos mais conhecidos estudos de crítica literária que conhecemos, também republicado em “Razão do Poema”.
Certamente, Merquior é o intelectual brasileiro mais autorizado a
falar sobre a relação entre os intelectuais e o poder, isto é, sobre a
relação entre o pensador e a ação política. Celso Lafer, outro
intelectual de importância superlativa, também da Academia Brasileira de
Letras, afirmou em um documentário que Merquior fora o mais importante
intelectual de sua geração.
A propósito desse papel (e dessa função, pensador e política)
Merquior exemplificou a complexidade da tarefa, tratando de dois outros
antecessores da cadeira n. 36: Clementino Fraga (médico, que trabalhou
com Oswaldo Cruz) e Paulo Carneiro (que foi embaixador, para quem “saber
é saber o quanto se ignora”, e que conviveu com Guimarães Rosa e Sousa
Dantas no fim da segunda guerra mundial). Merquior tratava de um
“humanismo inclusivo”, metáfora que bem mostrava uma disposição para
aproximar a academia da vida real, mediando cultura e emancipação.
Ao tratar de Paulo Carneiro (que Merquior reputou como o último dos
apóstolos de Augusto Comte no Brasil) o empossado fixou para o leitor
atual as características dessa doutrina, distinguindo as diferenças
entre positivismo-clima e positivismo-seita, fazendo-o inclusive com
humor e graça, lembrando e contando uma anedota de Josué Montello.
Não nos esqueçamos, Merquior era um liberal (na tradição de Isaiah
Berlin), no sentido de enfatizar liberdade e autonomia no fortalecimento
do indivíduo em face do Estado. Foi um defensor da democracia liberal e
da economia de mercado, pontos que o aproximavam de Roberto Campos,
outro expoente máximo da história do pensamento brasileiro. A ação
prática é necessária, e sem essa, não se pode pensar em mudança social
significativa. Qual a função do acadêmico na sociedade? A pergunta,
parece-me o ponto central desse discurso memorável, que é um manifesto
sobre a posição dos intelectuais na sociedade.
Merquior encerrou sua fala lembrando que “mesmo na eventual divergência”, era a “via régia do conhecer e da paixão’ que o animava: “a paixão de compreender”. Essa
orientação ao mesmo tempo prática e especulativa, a “paixão de
compreender”, penso, seja o maior legado de José Guilherme Merquior,
ainda que em forma de permanente inspiração.
Discurso de posse de Pontes de Miranda na Academia Brasileira de Letras
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Conjur, 28/07/2024
O jurista alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1892-1979) deixou-nos portentosa obra. Eu levaria uma vida para lê-la. E mais do que dez vidas para escrevê-la, isto é, se conseguisse. Eu não tenho competência para tanto. Nem mesmo em dez vidas, que é um número cabalístico para o Tiradentes, creio que conseguiria. Quem não se lembra? Tiradentes, marca certa tradição, teria afirmado que dez vidas tivesse, dez vidas daria, pelo ideal pelo qual morria. Para as pessoas comuns, precisamos mais do que dez vidas para escrevermos uma obra tão vasta e profunda.
Pontes de Miranda era um polímata (no sentido que Peter Burke dá ao termo, isto é, interessava-se por todos os campos do saber). Foi empossado na Academia Brasileira de Letras, em 8 de março de 1979. Tinha 87 anos. Nos embargos culturais dessa semana comento o discurso de posse de Pontes de Miranda na ABL. É uma contribuição aos trabalhos de Fábio Coutinho, que estuda a presença dos juristas no “Petit Trianon”. Pontes de Miranda ocupou a Cadeira 7, cujo patrono é Castro Alves.
Um estudo biográfico de Pontes de Miranda (e o grande especialista no assunto hoje é o jovem advogado e pesquisador Ednardo Benevides) revela que o jurista nunca se candidatou a cargos ou funções, embora tenha sido desembargador no Rio de Janeiro, então Distrito Federal. No entanto, e quando se falava de cultura desinteressada a coisa muda, candidatou-se à ABL, mais de uma vez. Foi preterido em duas ocasiões. A escolha ocorreu na terceira tentativa. É o que lemos no discurso:
“Nunca, em toda a minha vida, me candidatei a qualquer cargo ou função, aqui ou no estrangeiro. Os que exerci no Poder Judiciário e no Ministério das Relações Exteriores, de que sou aposentado, me foram excepcionalmente destinados, sem concurso e sem pedido meu. Nas próprias Academias de que faço parte, ou fui um dos fundadores, ou incluído apenas mediante consulta que me fizeram. (…). Estou a dizer-vos isso, eminentes acadêmicos, para frisar que só me candidatei, em toda a vida, a esta Academia. Nela fui preterido, uma vez, há mais de meio século, quando era jovem, e recentemente, de novo estimulado por alguns amigos, voltei a concorrer e, pela segunda vez perdi. Quando ia atingir os 87 anos, candidatei-me, espontaneamente, pela terceira vez, e fui eleito. (…)”
Pontes de Miranda enfatizou a missão histórica e intelectual da ABL
Reafirmou compromissos com valores fundamentais, a exemplo da democracia, da liberdade e da igualdade. Tenho comigo um livro de Pontes de Miranda, publicado em 1933, com o sugestivo título de “Os Novos Direitos do Homem”. O autor discutia a crise do Estado, o problema das autocracias (Hitler ascendia na Alemanha), uma certa incapacidade de a democracia representativa fixar uma ordem que reputava necessária, a relação da liberdade com a lei. Discutia nesse precioso livro a confusão do lógico com o justo, que reputava como um vício recorrente nos juristas.
Seguindo o padrão de discurso do acadêmico que toma posse, Pontes de Miranda elogiou o patrono da cadeira que passaria a ocupar. Homenageou Castro Alves. Fez uma referência ao poema “A Cachoeira de Paulo Afonso”. O poema narra a história de Maria e Lucas. Lucas buscava vingança contra o senhor dos escravos, mas descobre que este é seu irmão. Maria e Lucas acabam se suicidando na cachoeira. Pontes de Miranda reputava Castro Alves como uma das maiores inteligências do Brasil. E perguntava o que mais ele poderia ter feito se tivesse vivido mais tempo.
Pontes de Miranda também reverenciou aos demais ocupantes da Cadeira 7: Costa Magalhães, Euclides da Cunha, Afrânio Peixoto, Afonso Pena Júnior e o próprio Hermes de Lima, a quem se referiu da forma que copio em seguida:
“Nascido em 1902, Hermes Lima estudou profundamente e ingressou na Faculdade de Direito em 1920 (…) Em 1924, antes de completar os 23 anos, Hermes Lima foi eleito deputado da Assembleia Legislativa da Bahia. (…) No ano de 1925, já em São Paulo, candidatou-se à Cátedra de Direito Constitucional, com duas brilhantes teses, Princípios Constitucionais e Direito da Revolução. (…) Vindo para o Rio de Janeiro disputou, em 1933, a cátedra de Introdução à Ciência do Direito, com a tese “Material para um Conceito de Direito”. O brilho das aulas e a maneira de ajustar-se aos estudantes e de ajustá-los à sua missão levaram-no a criar admiradores e adversários. (…) Com o motim de 1935, injustamente foi preso. (…) Quero apenas acrescentar que este foi o homem, o intelectual, que os ilustres acadêmicos conheceram, e o homem, o intelectual, o amigo, que conheci. (…)”
Na parte final do discurso Pontes de Miranda revela e comprova cultura enciclopédica aludindo às várias academias, de todos os tempos. Lembrou inicialmente a Academia da História Portuguesa, criada em 1720 e a Academia de Ciências de Lisboa, de 1779. Chamou a memória que no século III vários acadêmicos se reuniam no Museu de Alexandria. Mencionou os acadêmicos de Granada e de Córdoba.
Fez referências à Academia de Nápoles (1433); à Academia Platônica (fundada em 1474 por Lorenzo de Médici); à Academia Científica, de 1603, de que foi membro Galileu; à Real Academia de Ciências, de 1757; à Academia Francesa, de 1635; à Real Academia de Ciências fundada na Alemanha, em 1700, planejada por Leibniz; à Academia Imperial de Ciência de São Petersburgo, Rússia, que Catarina I instalou em 1725.
Lembrou que os norte-americanos fundaram a Sociedade Filosófica de Filadélfia, em 1727, a Academia de Artes e Ciências de Boston, em 1780, entre outras. Fechou esse ponto fazendo referências à experiência brasileira:
“No Brasil, houve e há, felizmente, muitas Academias. A Academia Brasileira da Bahia foi criada em 1724, dita dos Esquecidos, e a do Rio de Janeiro, a dos Felizes, em 1736, bem como a dos Seletos, em 1751. Em 1791, teve o Rio de Janeiro a Academia Científica; em 1786, a Sociedade Literária. Em 1896, criou-se a Academia Brasileira de Letras em que nos achamos. Todos nós, seres humanos, somos mortais; a Academia, não. O que se deve aos patronos das Cadeiras, aos fundadores e aos sucessores, inclusive aos atuais ocupantes, bem mostra o que o Brasil fez pela Academia.”
O discurso é simples, curto, objetivo, preciso. Pontes de Miranda encerrou registrando que ali estava para uma convivência intelectual e afetuosa, bem como agradecia os presentes pela atenção para com a sessão de posse. Um discurso marcado pelo afeto e pela adesão incondicional à cultura e ao pensamento, exatamente como foi a vida desse jurista incomparável.
Já se vão alguns anos, eu estava no Recife, participando de um Congresso de Direito Tributário, então muito tradicional. Mary Elbe Queroz e Heleno Taveira Torres estavam à frente do evento. A palestra de Heleno foi memorável. No elevador, encontrei-me com um autor português, jurista convidado, que eu já admirava, que já havia lido, e cuja obra apreciava. Era José Casalta Nabais, professor em Coimbra. Não podia perder a oportunidade de ouvi-lo. Puxei conversa. Fiz referência ao sucesso que sua tese de doutoramento fazia entre nós. Muito espontaneamente, ele me respondeu que o título do livro era mal-entendido[1]. Fiquei intrigado.
O título, segundo Nabais, não se resumia em “O dever fundamental de pagar impostos”. Segundo o autor, o livro deveria ser recepcionado como “O dever fundamental de pagar impostos, de acordo com a lei”. Ele enfatizou a vírgula, pronunciando em voz alta o sinal de pontuação, gesticulando. Certamente, o dever de pagar impostos é um dever, fundamental, o que não significa que o Estado possa cobrar impostos como bem entenda. Há limites. E é justamente esse o tema central desse texto canônico da literatura jurídico-tributária de expressão portuguesa.
Trata-se de um livro escrito com profunda erudição, redigido como tese definitiva. Nabais enfrentava o tema da tributação sobre a ótica de “deveres fundamentais”. Essa opção metodológica representava uma virada de chave na literatura do direito público, então empolgada com “direitos fundamentais”. Só se falava de direitos. Não se falava de deveres. Nabais mudou a perspectiva.
Na parte I há capítulo que cuida de um efetivo regime dos deveres fundamentais. O autor tratava de um regime geral, de sua aparente inaplicabilidade direta, de seu significado normativo, bem como das relações entre os deveres fundamentais e o legislador, a par da revisão constitucional, em face dos deveres fundamentais, que é o núcleo conceitual do livro.
De fato, segundo Nabais, “o tratamento constitucional e dogmático dos deveres fundamentais tem sido descurado nas democracias contemporâneas”. O autor chamava a atenção para o fato (indiscutível) de que a agenda dos direitos fundamentais contava com uma sólida construção dogmática, o que não se podia afirmar em relação aos deveres fundamentais. Nabais rejeitava “os extremismos de um liberalismo que só reconhece direitos e esquece a reponsabilidade comunitária dos indivíduos”. O tema é de permanente atualidade.
Nabais discutia os fundamentos da tributação. O Direito Tributário é o ramo do Direito Público que se ocupa da arrecadação de recursos com os quais o Estado atende suas despesas. Trata-se de conjunto sistematizado de regras e princípios que orienta a atividade financeira do Estado, com fortes reflexos na organização da economia e da vida dos cidadãos.
John Marshall, juiz da Suprema Corte norte-americana, afirmou, em julgado célebre (de 1819) que o poder de tributar envolvia, necessariamente, o poder de destruir. Por outro lado, Oliver Wendell Holmes Jr., também juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, afirmava (em 1927) que o pagamento de tributos o tornava feliz, porque era o preço que pagava pela vida civilizada. Não sei. Tenho dúvidas. Essa tensão, que opõe a organização da vida privada à necessidade de recursos, por parte do Estado, é um dos pontos centrais da discussão que Nabais apresentava.
O Direito Tributário tem como objeto central a construção conceitual das várias modalidades tributárias, bem como os arranjos institucionais que organizam as exigências fiscais. Radica no Direito Constitucional, de onde colhe seus princípios norteadores e suas linhas gerais. As normas de direito tributário são de natureza cogente. O Direito Tributário cuida da instituição, da arrecadação e da fiscalização das várias espécies tributárias. A justificação da tributação e a discussão acerca da justiça tributária é assunto para a Ciência das Finanças. Esses postulados são incontornáveis.
A tributação é assunto constante na história dos povos. Ainda que não se possa afirmar que houve um modelo tributário racionalmente organizado no passado, há evidências de que civilizações que nos antecederam se preocuparam seriamente com o problema da tributação.
Quais são os fundamentos da tributação nas sociedades contemporâneas? Em que extensão se revelam como obrigações (deveres) sem as quais não se podem fruir direitos? Nabais propõe que há uma categoria jurídico-constitucional própria para os deveres fundamentais, que integram, por uma razão muito mais do que óbvia, os direitos, também fundamentais. É que esses (direitos) não se realizam sem aqueles (deveres).
Para Nabais, deveres fundamentais também qualificam a soberania do Estado, que radica na dignidade da pessoa humana. Os deveres fundamentais submetem-se “ao princípio da tipicidade ou da lista constitucional”, revelando-se (na prática) na esfera de seus destinatários. Mencionados deveres fundamentais, prosseguia o Professor, contam com uma estrutura externa (que radica em várias relações jurídicas) e com uma estrutura interna (que é seu próprio conteúdo).
Os deveres fundamentais, continua Nabais em seu livro, são diretamente ligados à realização de valores que a comunidade escolheu, e que de alguma forma se encontram constitucionalizados. No caso de Portugal, os deveres fundamentais também se destinam a estrangeiros e a apátridas, premissa que também vale para a realidade empírica brasileira. Os deveres fundamentais afetam também as pessoas jurídicas, que Nabais nomina de pessoas coletivas.
O que chama a atenção é que Nabais vincula os deveres fundamentais aos direitos fundamentais, no sentido de que ambas as expressões qualificam o estatuto constitucional dos indivíduos. Intui-se, assim, que não há como se usufruir de direitos fundamentais sem que se tenha a necessária concretude para tal. Isto é, os direitos somente podem ser usufruídos se há financiamento.
Pode-se perceber, nessa linha, alguma semelhança com o pensamento de Stephen Holmes e Cass Sunstein, em livro que vincula a tributação ao exercício de direitos. O argumento central do livro “Os Custos dos Direitos- Por que a liberdade depende da tributação “consiste na afirmação de que direitos custam dinheiro; é que direitos não podem ser protegidos sem apoio e fundos públicos.
Holmes e Sunstein tratam dos custos enquanto custos orçamentários e de direitos como interesses que podem ser protegidos por indivíduos ou grupos mediante o uso de instrumentos governamentais. Direitos somente existiriam quando efetivamente passíveis de proteção. E a proteção se faz com recursos que o Estado obtém da sociedade. Para simplificar: tem-se na realidade uma justificativa para a tributação, que se reconheceria como legítima.
A lógica de Nabais aproxima-se da lógica dos autores norte-americanos acima citados, com a diferença de que o autor português se preocupa com os limites da extração fiscal, que devem ser fixados em lei. Vale dizer, se os direitos fundamentais contam com um delineamento constitucional objetivo, o outro lado da relação, os deveres fundamentais, de igual modo, escora-se com igual razão na lei. Não há como se fixar um dever fundamental de pagamento de impostos sem que se operacionalize essa obrigação dentro dos exatos limites da lei.
Há um dever fundamental de se pagar impostos, como condição de exercício de direitos fundamentais na vida social. Estes dependem daquele. O que os equipara – direitos e deveres – é a fixação normativa, de índole constitucional. O dever de pagar impostos é um dever fundamental, cujo exercício (mandatório) é limitado pela lei. É essa, na minha compreensão, o “lead” do livro de Casalta Nabais, um clássico, publicado pela Almedina.
[1] Dedico essa resenha, em forma de ensaio, aos colegas Paulo Caliendo, Luis Alberto Reichelt e Édison Porto, com quem participei na banca de mestrado de Edimilson Cardias Rosa, também grande colega, autor de belíssima tese sobre economia comportamental e recolhimento de tributos, ocasião em que a contribuição de Nabais foi realçada.
Imperdível, todos os domingos, para os que gostam de livros, em geral, em especial na conexão com mundo jurídico (mas literário também).
Contei, aproximadamente, 494 ou 496 colunas(13 colunas, cada bloco, em 38 blocos), desde a primeira, abaixo reproduzida, sobre Macbeth, que é de 31 de julho de 2011. Ou seja, dentro de SEIS domingos, ele poderá comemorar 500 colunas (e alguns milhares de livros citados paralelamente). Trata-se de um dos mais vigorosos empreendimentos culturais do e no Brasil, à altura de um Wilson Martins, que publicou sete volumes da História da Inteligência Brasileira, falando, se possível, de todas as obras produzidas no Brasil, ou por brasileiros, desde o século XVI até os anos 1970.
A mais recente, logo abaixo, é de 18 de fevereiro de 2024. Ou seja, neste domingo, 25 de fevereiro, teremos uma nova, a qual acessarei assim que disponível (estamos na madrugada do domingo).
Mas não se trata de apenas uma resenha de UM livro cada domingo. Paralelamente, Arnaldo Godoy cita muitas outras obras. Por exemplo, coloquei as notas remissivas para a sua resenha de Macbeth, ao final desta postagem:
Começo pelos mais recentes, ou seja, das últimas semanas de 2023 e as primeiras de 2024:
[1] BRADLEY, A. C., A Tragédia shakespeariana, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 255. Tradução de John Russell Brown.
[2] Cf. MOURTHÉ, Claude, Shakespeare, Porto Alegre: L & PM, 2010, p. 164. Tradução de Paulo Neves.
[3] Cf. FREUD, Sigmund, Os Arruinados pelo êxito, in Obras Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1999, Volume XIV, pp. 331 e ss. Tradução sob direção de Jayme Salomão.
[4] Cf. HELIODORA, Bárbara, Reflexões shakespearianas, Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2004, pp. 159 e ss.
[5] BORGES, Jorge Luís, Prólogos, com um prólogo de prólogos, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 193. Tradução de Josely Vianna Baptista.
[6] BLOOM, Harold, Gênio- os 100 autores mais criativos da história da literatura, Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 44. Tradução de José Roberto O´Shea.
[7] Cf. HONAN, Paul, Shakespeare, uma vida, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 399. Tradução de Sonia Moreira.