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sábado, 23 de dezembro de 2023

O terrorismo que as esquerdas toleram - Paulo Roberto de Almeida (revista Crusoé)

 Sou colunista da revista Crusoé, o que implica em resguardar por certo tempo os direitos autorais da editora responsável. Considero que depois de duas ou três semanas seja razoável divulgar por este canal a íntegra dos meus artigos, vários deles de natureza conjuntural. É o que faço agora.

1529. O terrorismo que as esquerdas toleram”, revista Crusoé (13/10/2023, link: https://crusoe.com.br/edicoes/285/o-terrorismo-que-as-esquerdas-toleram/). Relação de Originais n. 4489.


O mau terrorismo e o terrorismo tolerável pelas esquerdas

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Artigo para a revista Crusoé

  

O PT, os petistas, as esquerdas em geral, possuem uma estranha postura em face do terrorismo. Existem aqueles atos condenáveis, vindos da extrema direita, de governos de tendências contrárias às deles, e existem os atos terroristas que são pelo menos toleráveis, segundo eles se dirigem contra alvos “imperialistas”, e que podem, portanto, ser justificados como resposta de populações oprimidas contra “potências imperiais”. Tal tipo de deformação moral revelou-se plenamente a propósito dos ataques terroristas perpetrados pelas forças do Hamas contra a população civil israelense adjacente ao território palestino da Faixa de Gaza. A despeito de que o próprio presidente condenou, numa postagem em rede, os “ataques terroristas”, a nota oficial do governo brasileiro – que é o que conta do ponto de vista da expressão formal do governo em face de um evento de repercussão mundial – incorreu num vezo já amplamente registrado em relação à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia e o morticínio cometido cotidianamente pelas forças comandadas por Putin.

A nota à imprensa liberada pelo Itamaraty no próprio dia dos ataques, 7 de outubro, apenas “condena a série de bombardeios e ataques terrestres realizados hoje em Israel a partir da Faixa de Gaza”, expressa condolências às vítimas e reitera “que não há justificativa para o recurso à violência, sobretudo contra civis”; mas ela repete a típica atitude de isenção que tem sido registrada em relação ao caso da Ucrânia: “exorta todas as partes a exercerem máxima contenção a fim de evitar a escalada da situação”, como se as “partes” detivessem responsabilidades equivalentes na violência. As notas seguintes se referem bem mais ao repatriamento de brasileiros de Israel e de Gaza, do que o ao próprio evento em si. 

A reunião de emergência convocada pelo Brasil no domingo 8/10, exercendo a presidência do Conselho de Segurança, suscitou uma outra nota no dia seguinte. Nela, o governo volta a “lamentar profundamente a perda de vidas”, condena “ataques contra civis” – sem dizer quais eram – e, mais uma vez, sublinha “que as partes devem se abster da violência contra civis e cumprir suas obrigações perante o direito internacional humanitário”, como se essas “partes” estivessem agindo reciprocamente. Em nenhum momento, a nota se refere ao Hamas como autor primeiro dos atentados terroristas; jamais usa essa expressão.

Esse tipo de postura não é inédito vindo de um governo do PT; talvez expresse realmente o que o PT pensa, como partido, a respeito de atos terroristas visando alvos civis. Pode-se remontar aos ataques terroristas de setembro de 2001, contra as torres gêmeas de Nova York e o Pentágono em Washington (que fizeram mais de três mil vítimas inocentes), para retirar exemplos lamentáveis dessa distinção feita a respeito de atos terroristas toleráveis e justificáveis, segundo a ideologia do perpetrador. Tendo assistido de perto, se ouso dizer, ao segundo ataque – ao residir em Alexandria, na Virgínia, muito próximo ao Pentágono –, recolhi, estarrecido, nos dias seguintes, declarações inaceitáveis de militantes partidários e até de líderes do PT, tal como publicadas pela imprensa brasileira. Transcrevo aqui algumas das pérolas registradas naquela ocasião.

Num desses exemplos, a mídia recolheu declarações do deputado estadual Roque Grazziotin (PT-RS), segundo as quais o parlamentar considerava o atentado a “consequência do processo de dominação” norte-americana no mundo (OESP, 12/09/2001). Outro deputado do PT gaúcho, Edson Portilho, disse que, “por coerência”, lamentava que “milhares de vidas tenham sido ceifadas” nos Estados Unidos, mas comparou o atentado a outros episódios em que o governo norte-americano foi responsável: “São as mesmas cenas [sic] que o mundo repudiou no Vietnã e no Oriente Médio e que foram patrocinadas pelos Estados Unidos”, afirmou. Por sua vez, a então deputada estadual (depois federal) Luciana Genro disse que “essa tragédia é de responsabilidade do governo norte-americano, porque os Estados Unidos promovem o terrorismo de Estado no mundo inteiro” (OESP, 12/09/2001).

Estas são “explicações” que tentam racionalizar ou mesmo “justificar” os atos terroristas, colocando a responsabilidade principal sobre os ombros da potência imperial. Existe também outro tipo de “racionalização” desse tipo de atentado – quando cometido contra um alvo “imperialista”, entenda-se – que tenta minimizar os bárbaros fatos que ceifam vidas inocentes em nome de não se sabe bem qual causa política. Assim, por exemplo, o deputado (depois senador e ministro) Aloízio Mercadante (PT-SP), então secretário de Relações Internacionais do partido, minimizou a importância dos atentados. Para ele, não se deve “exagerar na dimensão do episódio. Qualquer terremoto ou furacão na Flórida faz mais vítimas e provoca estragos muito maiores” (Jornal da Tarde, 18/09/2001). Esse tipo de afirmação é no mínimo insensível e, em última instância, revela um certo desprezo pela perda de vidas humanas, quando resultando de algum tipo de “enfrentamento político” que possa colocar num dos lados da balança o tradicional “opressor imperialista”.

O que expressar, em face desse tipo de manifestação “política”, que revela certo anti-imperialismo primário, que se desdobra em antiamericanismo visceral, capaz de embotar determinadas mentes, que aparentemente não se dão conta de que estão coonestando os mais bárbaros atentados aos direitos humanos (no plano individual) ou aos direitos civis de grupos humanos (quando organizados contra países e sociedades), ao mesmo tempo em que, aqueles que assim procedem, conseguem ser condescendentes com forças reacionárias ou intolerantes no plano da civilização humana, desde o Iluminismo pelo menos? Alguém pensou em Putin?

 

Cada um tem o terrorista que merece? Apenas uma questão semântica?

O que esse tipo de atitude de políticos brasileiros, e também das esquerdas em geral, revela é o estranho acolhimento” que certos tipos de terrorismo encontram em meios políticos do Brasil quando cometidos em determinadas circunstâncias que o tornam, ou parecem convertê-lo em politicamente “palatável”. Tal postura já estava amplamente demonstrada no caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, estranhamente ausente de qualquer nota do Itamaraty, quando o órgão submisso se esmera em emitir notas de solidariedade por qualquer acidente natural ou desastre humano ocorrido em qualquer canto do planeta. Ela acaba de ser escancarada no caso dos bárbaros assassinatos perpetrados contra inocentes civis, entre eles mulheres, crianças e até bebês. Uma nota específica chega a ser propriamente ridícula, ao falar do “falecimento” de um brasileiro, “vítima dos atentados” ocorridos no dia 7/10, assim genericamente, sem qualquer autor. Em nenhum momento, as notas se referem ao terrorismo, termo inexistente em qualquer uma delas, como referido pelo jornalista Duda Teixeira em matéria sobre essa estranha dicotomia (https://crusoe.com.br/diario/itamaraty-nao-ve-terrorismo-agora-em-israel-mas-viu-na-siria-turquia-paquistao/).

Nessa mesma linha, chega a ser patética, senão abjeta, a postura do MST, que exaltou a “brava resistência” palestina em Gaza após os atentados terroristas. Como vimos pelos exemplos acima, não deveria haver nenhuma surpresa nesse tipo de postura. Os governos do PT, aliás, objetaram a adotar uma legislação consistente contra o terrorismo exatamente em função desses pruridos emessetistas. Tampouco deveria haver qualquer tipo de ingenuidade, como a demonstrada no mesmo dia pelo embaixador de Israel em Brasília: segundo entrevista conduzida por Eliane Oliveira, “Daniel Zonshine, afirmou esperar que o Brasil, como presidente do Conselho de Segurança da ONU, lidere uma dura condenação internacional contra o Hamas” (Globo, 10/10/2023). Como essa “ousadia” não tem qualquer chance de ocorrer, é possível que algum outro diplomata israelense volte a chamar o Brasil de “anão diplomático.  Seria a consequência lógica de se ter uma definição à la carte do terrorismo, na qual a caracterização depende do autor preferido e da vítima designada.


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4489, 10 outubro 2023, 3 p. 


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