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sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

A dupla barbárie na guerra Hamas-Israel e a solução de dois Estados - Sérgio Florêncio (Portal Interesse Nacional)

 A dupla barbárie na guerra Hamas-Israel e a solução de dois Estados

Sérgio Florêncio

Embaixador aposentado


A dupla barbárie - o ataque terrorista do Hamas contra a população civil israelense, com 1200 mortos, além de 240 reféns; e a brutal contraofensiva israelense, com mais de 12 mil mortos em Gaza – poderá abrir caminho à única alternativa viável para a questão palestina: a solução de dois Estados, apresentada pela ONU em 1947, quando da partilha da Palestina. A partir de então, essa solução sempre fracassou, tanto por intransigência israelense como palestina. Diante da devastadora tragédia iniciada em 7 de outubro, diversos líderes mundiais e Estados árabes, por primeira vez, sinalizam apoio à solução de dois Estados. Assim, a superação do impasse passa a depender de dois polos : EUA -Israel versus Irã-Hezbollah-Hamas. 

A primeira solução de dois Estados, proposta pela ONU em 1947, previa 53% da Palestina para os israelenses e 47% para os palestinos, sendo que os primeiros eram apenas 30% da população e os segundos , 70%. Os Estados árabes naquele momento foram terminantemente contrários à partilha. Consideravam a criação do Estado de Israel inaceitável imposição do colonialismo inglês, contrária aos direitos legítimos do povo palestino, e que poderia ser revertida pelas armas, diante da fragilidade militar e demográfica dos israelenses. A consequência foi a guerra de 1948 , surpreendentemente vencida por Israel, que ampliou sua área, passando dos 53%, previstos na partilha definida pela ONU, para 79%, consolidando, dessa forma, sua existência como Estado.

Diversos outros conflitos armados marcaram a rivalidade entre árabes e israelenses, tendo como epifenômeno a questão palestina e como resultado concreto a contínua ampliação do território de Israel. Assim foi na Guerra dos Seis Dias, de 1967, provocada por Israel, assim foi na Guerra do Yom Kippur, de 1973, iniciada por Egito e Síria. Na primeira, Israel ocupou toda a Palestina histórica, objeto da partilha de 1947. Na segunda, os árabes tentaram retomar esses territórios, mas fracassaram, sendo as Colinas de Golan, da Síria, formalmente anexadas a Israel. 

 Paralelamente a esses conflitos em torno da questão palestina, se desenvolviam os processos de paz, com avanços e recuos, mas que nunca chegaram a implantar a solução de dois Estados. 

Os Estados Unidos sempre foram o grande mediador/protagonista nessas negociações, que resultaram em dois Acordos de Paz - Camp David e Oslo - e envolveram, de um lado, Israel e, de outro, os Estados árabes mais influentes, como Egito, Síria, Jordânia, e a Organização para a Libertação da Palestina - OLP, sob a firme e carismática liderança de Yasser Arafat. 

As propostas contidas naqueles acordos de paz, embora contemplassem relativo equilíbrio entre as aspirações de judeus e palestinos, fracassaram, o que explica o clima de permanente tensão e conflito em torno da questão palestina. 

Os Acordos de Camp David de 1978 selaram a paz entre os atores hegemônicos na época - Israel e Egito. A Península do Sinai foi devolvida a esse último, que, em troca, reconhecia a existência do Estado de Israel. Na mesma linha, os acordos Begin-Sadat se referiam à devolução da Cisjordânia e da Faixa de Gaza para as lideranças palestinas. Isso significava ruptura radical com o passado. Nos anos 1950 e 1960, a liderança nacionalista de Nasser, o armamentismo egípcio com ajuda soviética e seu projeto de panarabismo ameaçavam de morte a existência de Israel. Em consequência, fortaleciam sua militarização, a defesa prioritária de suas fronteiras, tendo como desfecho, em 1967, a Guerra dos Seis Dias. 

Entretanto, aquelas promessas de Camp David foram desrespeitadas e só retomadas quinze anos depois, em 1993, com os Acordos de Oslo. Esses estabeleciam que a OLP, liderada por Yasser Arafat, reconhecia a existência de Israel, mas agora em troca de sua retirada da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Tratados complementares a Oslo previam a restituição aos palestinos de todos os territórios ocupados, o que nunca ocorreu. 

Qual a importância dessa revisão histórica para a compreensão da atual guerra entre Hamas e Israel e da possibilidade de, no pós-guerra, prevalecer a solução de dois Estados? A não implementação tanto de Camp David como de Oslo e o avanço dos assentamentos de colonos judeus sobre a Cisjordânia geraram ampla e profunda frustração entre os palestinos. Isso contribuiu para sua radicalização, visível na violência das duas Intifadas, que sepultaram aqueles dois processos de paz e fortaleceram os grupos rebeldes paramilitares apoiados pelo Irã – Hezbollah, Hamas e Jihad Islâmica. 

No plano doméstico, a ascensão política do Likud, dos religiosos ortodoxos e da extrema direita em Israel completava um quadro de polarização interna e externa. O projeto autoritário de poder de Netanyahu não dava margem a dúvidas - seu governo se afastava do jogo democrático ao perseguir o Judiciário; buscava o expansionismo sionista com exclusão da causa palestina; e dividia a sociedade israelense, que ia as ruas com milhões de manifestantes em defesa das instituições democráticas. 

Na vertente externa, a essência do contexto negociador se alterava substancialmente: declínio da importância dos EUA no Oriente Médio; ascensão de da direita radical, com Trump na presidência; e robusta influência política e militar iraniana na região. Os atores relevantes na Guerra dos Seis Dias, na Guerra do Yom Kippur e nas negociações de paz – Egito, Síria, Jordânia e OLP – eram substituídos pelo Irã revolucionário, e seus agentes nas proxy wars – Hamas, Hezbollah, Jihad Islâmica - que desestabilizavam as monarquias do golfo, mas ao mesmo tempo defendiam o status quo na Síria O Irã se afirmava na região e globalmente pelas armas e pelo avanço de seu programa nuclear.

Outra mudança de peso foi a aliança revigorada entre Washington e Tel Avive, visível na decisão crucial de Trump de retirar os EUA do Acordo sobre o Programa Nuclear Iraniano de 2015, arduamente negociado por Obama e aprovado pelos cinco membros permanentes do CSNU mais a Alemanha. A nova estratégia norte-americana se contrapunha ao Irã e tinha como alicerce os Acordos de Abraão, destinados a normalizar as relações de Israel com Bahrein, Emirados Árabes Unidos (EAU), Marrocos e Sudão. Ao mesmo tempo, avançava celeremente a aproximação diplomática Israel-Arábia Saudita. Essa seria, na visão dos países envolvidos, o desfecho de uma modalidade inédita de paz no Oriente Médio, ao selar uma aliança entre o Estado judeu e seus arqui-inimigos do passado no mundo árabe. 

Mas nessa gramática geopolítica, aparentemente exitosa, havia um sujeito oculto – o povo palestino. Enquanto os acordos de paz anteriores – Camp David e Oslo – tinham como centro a questão palestina, a estratégia de Trump fragilizava as lideranças moderadas palestinas (Fatah e Autoridade Nacional Palestina – ANP) e buscava uma paz top down, alicerçada na normalização das relações árabe-israelenses. 

Netanyahu consolidava essa estratégia de Trump, que considerava a questão palestina como integrante de um irrelevante coeteris paribus. Como Primeiro Ministro, controlava o Parlamento - em aliança com o Likud, as lideranças religiosas e a extrema direita - ao mesmo tempo que procurava neutralizar o Judiciário e, assim, eliminar a democracia israelense. Diante da alternativa entre identidade judaica ou democracia liberal, Netanyahu optou pela primeira, tendo como instrumento o Estado unitário, ou seja, o antípoda da solução de dois Estados. 

O braço direito dessa estratégia consistia em desacreditar o Fatah e a Autoridade Palestina, por meio do avanço exponencial dos assentamentos de colonos judeus na Cisjordânia ( cerca de 468 mil , segundo levantamento de 2022 da CIA) e em Jerusalém ( cerca de 262 mil). O outro braço era manter o Hamas sob controle, ao facilitar o fluxo de recursos do Catar para o grupo paramilitar e ao liberar residentes da Faixa de Gaza para trabalharem em Israel.

Assim, um transfigurado acordo de paz entre elites regionais estava em curso. Ao colocar entre parênteses ou jogar para escanteio a questão palestina, o objetivo era estabilizar a região, o que significava ameaçar a hegemonia do Irã e a razão de existir de seus procuradores regionais – Hezbollah e Hamas. Era uma transfiguração com os três pilares políticos acima indicados – revigorada aliança EUA-Israel; normalização das relações entre Israel e Estados árabes; e inexorável fragilização do Fatah e da Autoridade Palestina, por meio de mais de 700 mil assentamentos judeus na Cisjordânia e em Jerusalém. O preço da estratégia era uma paz de cemitério, com o sepultamento da questão palestina. 

Desdobramentos do processo acima descrito estarão na dependência do desfecho do conflito Hamas – Israel e da desafiadora gestão do pós-guerra. Parece provável que Israel esteja próximo de alcançar seu objetivo da eliminação militar do Hamas e da desmilitarização da Faixa de Gaza. Caso esse cenário se consolide, a pressão internacional para a solução de dois Estados assumirá supremacia, com o respaldo das duas superpotências, da Rússia e da União Europeia. 

É evidente que a continuidade da guerra beneficia China e Rússia . Os EUA saem fragilizados, porque são forçados a destinar vultosos recursos materiais e humanos para dois conflitos simultâneos de grandes proporções – Faixa de Gaza e Ucrânia . Mas o custo humanitário de estimular a barbárie seria brutal para China e Rússia. Por isso mesmo, a primeira votou a favor e a segunda se absteve na Resolução articulada pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU, apoiada por 12 dos 15 membros e vetada pelos EUA. Esse contexto geopolítico global favorece a solução de dois Estados.

 Entretanto, o avanço nessa direção dependerá de duas variáveis domésticas decisivas. A primeira é de fácil previsibilidade – a queda de Netanyahu no day after do conflito e a emergência de um governo de coalizão com maioria liberal. A segunda variável é extremamente difícil. Exigirá uma engenharia política e de segurança de alto risco em termos de coesão interna e de estabilidade social. Como proceder ao êxodo dos 700 mil israelenses que hoje ocuparam a Cisjordânia e Jerusalém, com o estímulo do governo de Israel e o beneplácito de Trump? Em sua maioria são colonos aliados de Netanyahu, integrantes da ortodoxia religiosa e da extrema direita antidemocrática. Em outros termos, como desmontar, numa democracia, o poderoso Cavalo de Troia montado por Netanyahu para dividir o país e bloquear a solução de dois Estados? 

Além desses obstáculos, o modelo de dois Estados exigirá, no day after do conflito, uma complexa gestão política, administrativa e de segurança. Que conformação terá o novo Estado Palestino para gerir, de forma sustentável, um território devastado pela contraofensiva militar israelense? Poderá Israel assumir temporariamente, como vem indicando Netanyahu, no imediato pós-guerra, a administração da Faixa de Gaza virtualmente destruída? Poderá uma Força de Paz da ONU, integrada também por nacionais de países árabes, construir pontes, moldar a transição para o almejado Estado palestino e, assim, consolidar a solução de dois Estados?

 Embora de difícil concretização, o modelo de dois Estados é o único capaz de trazer paz duradoura para a dividida sociedade israelense e alívio prolongado para o sofrido povo palestino. Apesar dos obstáculos hercúleos e dos enigmas comparáveis aos do oráculo de Delfos, a solução de dois Estados ganha momento no plano internacional e doméstico. Conta com a poderosa adesão das grandes potências, com o apoio da opinião pública nas sociedades democráticas, com os milhões de manifestantes nas ruas de Israel e com a resiliência das instituições representativas - pilares da democracia israelense. Talvez aqui seja válida a conhecida frase atribuída a Victor Hugo. “Nada é tão poderoso como uma ideia cujo tempo chegou”. 

 

Sérgio Florêncio

Brasília, 30 de novembro de 2023

Portal da revista Interesse Nacional


quinta-feira, 2 de novembro de 2023

NA GUERRA DA PROPAGANDA NÃO TEM SAÍDA PARA ISRAEL - Augusto de Franco

NA GUERRA DA PROPAGANDA NÃO TEM SAÍDA PARA ISRAEL

Augusto de Franco

1 - Israel está perdendo a guerra da propaganda, uma vez que, ocupando o mesmo território, não há como distinguir os combatentes do Hamas, que são para todos os efeitos civis, dos civis palestinos não combatentes. 

2 - Todo o ataque de Israel será divulgado como ataque contra civis: não há instalações militares identificáveis em Gaza, os jihadistas não usam uniformes, seus bunkers são prédios civis, em geral escondidos em hospitais, escolas, mesquitas e, inclusive, sedes de organizações humanitárias internacionais.

3 - E ainda há os túneis que, como os próprios líderes do Hamas declaram, não foram feitos para proteger a população civil não-combatente de Gaza e sim para esconder os combatentes terroristas, guardar suas armas e os recursos roubados da ajuda humanitária internacional (água potável, combustível, alimentos e medicamentos).

4 - Mesmo com todo apoio das grandes nações democráticas, Israel não pode aguentar semanas ou meses desse tipo de exposição midiática, que apresenta Israel ao mundo como genocida. O show da vítima, repetido diariamente, com a contabilidade macabra das crianças mortas, das gestantes e dos doentes, dos idosos e das pessoas com necessidades especiais cruelmente assassinados, será devastador. 

5 - E não há contabilidade séria dos mortos e feridos anunciados pela propaganda do Hamas. A cada dia se acrescentam automaticamente mais mil civis mortos, dos quais 70% são de criancinhas indefesas. Militantes anti-imperialismo americano e anti-colonialismo europeu, alocados em organizações humanitárias e nas burocracias da ONU, lavam essas informações fraudulentas do Hamas, autorizando a imprensa mundial a repetir os números. Não há nome, sobrenome, fotos individuais dos mortos, não há nada - mas isso não importa.

6 - Ou seja, não tem saída. Não há como virar essa narrativa que vai se tornando hegemônica. Mesmo que os bombardeios israelense sejam paralisados, a divulgação do genocídio cometido por Israel e pelos judeus, não vai parar nas próximas décadas.

7 - Os chefes militares israelenses e a extrema-direita nacionalista no governo Bibi podem não gostar disso, mas deverão ser obrigados a engolir a realidade. Claro que, passada a fase mais crítica do conflito, o atual governo de Israel deve ser deposto pelas forças democráticas da própria sociedade israelense, sua política de ocupação da Cisjordânia deve ser radicalmente modificada e deve ser anunciado um plano para a criação do embrião de um Estado democrático de direito na Palestina.

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Guerra Hamas-Israel: duro discurso do Brasil no Conselho de Segurança da ONU (FSP)

 O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, fez um duro discurso em nome do Brasil no Conselho de Segurança da ONU nesta segunda-feira (30). 

FSP, 31/10/2023

Na véspera do fim da presidência brasileira do órgão, o chanceler disse que o conselho tem "repetida e vergonhosamente fracassado" em sua resposta ao conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas. Vieira afirmou que, enquanto mais de 8.000 palestinos foram mortos em Gaza, incluindo 3.000 crianças, "o Conselho de Segurança faz reuniões e ouve discursos, sem ser capaz de tomar uma decisão fundamental: acabar com o sofrimento humano em terreno". "Tanques e tropas estão no terreno em Gaza, e o tempo para agir está acabando. 

Minhas perguntas a todos vocês são: se não agora, quando? Quantas vidas mais serão perdidas até que nós finalmente passemos do discurso para a ação?", questionou o brasileiro. Desde a eclosão do conflito, quatro resoluções foram propostas no órgão mais importante da ONU: duas pela Rússia, que não obtiveram o número mínimo de votos, uma pelo Brasil, vetada pelos EUA, e uma americana, vetada por Rússia e China. 

 "Nós continuamos em um impasse em razão de divergências internas, particularmente entre alguns dos membros permanentes, e graças ao uso persistente do Conselho para alcançar seus próprios propósitos, em vez de colocar a proteção de civis acima de tudo", disse o ministro, em alusão ao embate entre americanos, chineses e russos. Os três países, mais França e Reino Unido, têm assento permanente no Conselho e, portanto, poder de vetar resoluções. Os europeus, no entanto, não fazem uso do instrumento desde 1989. 

Com o acirramento do antagonismo entre Washington, de um lado, e Moscou e Pequim, de outro, a guerra de vetos tem levado o Conselho a uma paralisia nos principais conflitos atuais: Ucrânia versus Rússia e Israel versus Hamas. "As graves e sem precedentes crises humanas diante de nós exigem que rivalidades estéreis sejam abandonadas. O fato de o Conselho não ser capaz de cumprir sua responsabilidade de salvaguardar a paz e a segurança internacionais devido a antigos antagonismos é moralmente inaceitável", completou Vieira. 

 Ele fez um apelo para que os membros mostrem vontade política para fazer concessões e sejam "minimamente equilibrados e inclusivos em seu diagnóstico" e próximos passos. O pedido mira, novamente, os membros permanentes, sobretudo EUA e Rússia. Enquanto americanos são fortes aliados de Israel e vêm sendo criticados pelo apoio a Tel Aviv diante do desastre humanitário em Gaza, russos são acusados de não trabalharem por uma solução, apresentando resoluções unilaterais com objetivo meramente retórico. 

 O custo do fracasso em responder à crise, afirmou Vieira, vai recair também sobre "o multilateralismo, as Nações Unidas e este conselho, em particular". Em aparente ato falho, o ministro falou inicialmente "Estados Unidos" (United States, em inglês) em vez de "Nações Unidas" (United Nations). Ao final do discurso, após ser alertado pelo embaixador brasileiro na ONU, Sérgio Danese, ele repetiu a frase para fazer a correção. Vieira defendeu que uma resolução precisa ser aprovada para permitir o fim das hostilidades e, assim, a entrada de ajuda humanitária em Gaza, assim como condições de trabalho para os envolvidos no resgate de reféns e no trabalho humanitário. 

 Diante das divergências em torno da linguagem a ser utilizada –muitos países, como os árabes, Rússia e China, pedem um cessar-fogo, termo rejeitado pelos americanos, que concordaram com "pausa humanitária"—, o ministro defendeu que a violência precisa acabar "por meio de qualquer modalidade que possa ser acordada sem mais delongas". Até agora, a ajuda humanitária que chegou a Gaza, viabilizada por um acordo costurado por americanos com Egito, Israel e ONU, é insuficiente, criticou o diplomata: "pouco mais que uma oportunidade de foto [marketing]". Além da entrada de suprimentos, como alimentos e combustível, e acesso de pessoal humanitário, o diplomata enfatizou a evacuação de cidadãos estrangeiros em Gaza. 

Um grupo de cerca de 30 brasileiros está na região, sem conseguir sair. Sem citar Israel explicitamente, o brasileiro afirmou que, enquanto todo Estado tem o direito de defender seus cidadãos –justificativa de Tel Aviv para a ofensiva em Gaza–, as ações devem ser "consistentes com o direito internacional humanitário, em especial os princípios de distinção, proporcionalidade, precaução, necessidade militar, e humanidade". "O Brasil condena fortemente ações que borrem a linha entre civis e combatentes", disse.  

O ministro destacou que 35% dos 250 vetos por membros permanentes do Conselho de Segurança foram em temas relacionados ao Oriente Médio. Como a Folha mostrou, o conflito entre Israel e Palestina é o que mais sofre bloqueios no órgão, sobretudo pelos EUA. "Isso reflete a ineficiência do sistema de governança e a falta de representatividade de certas partes do mundo nesse organismo", ecoando as críticas de longa data do Brasil à composição do Conselho de Segurança e a pressão por sua reforma. Na semana passada, durante café com jornalistas, o presidente Lula (PT) também criticou o Conselho, e disse que a rejeição da resolução brasileira mostra por que o país quer acabar com o poder de veto pelos membros permanentes. 

 Em conjunto com os outros nove membros não permanentes, o Brasil trabalha na proposta de uma quinta resolução sobre o conflito. Ainda não há, contudo, previsão de votação do texto, em negociação. 


sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Declaração do Brasil na sessão do CSNU que não aprovou o projeto brasileiro de Resolução sobre a guerra Hamas-Israel - Sérgio França Danese (NY)

 Ministério das Relações Exteriores

Assessoria Especial de Comunicação Social

 

Nota nº 473

18 de outubro de 2023

 

 Declaração do Representante Permanente do Brasil na ONU sobre a proposta de resolução S/2023/773, sobre a crise israelo-palestina

 

Statement by His Excellency, Ambassador Sérgio França Danese, Permanent Representative of Brazil to the United Nations

 Draft resolution S/2023/773, Security Council

(Versão original em inglês)

 

At last Friday's closed consultations, Council members asked for Brazil's leadership, in our capacity as presidency in October, to facilitate a Council response to the escalating crisis in Israel and Palestine, in particular its humanitarian aspects.

We heeded the call with a sense of urgency and responsibility. In our view, the Council had to take action and do so very quickly. Council paralysis in the face of a humanitarian catastrophe is not in the interest of the international community.

Therefore, throughout last weekend and the following days, we worked very hard, through extensive and collaborative engagement with Council members, to help build a unified position.

While making a good faith effort to accommodate different - sometimes opposing - positions, our focus was and remains on the critical humanitarian situation on the ground. Political realism guided us, but our sight was always set on the humanitarian imperative. Exactly as in other very sensitive files on the Council”s agenda in which Brazil had a special role to play, international humanitarian law and human rights law provided a clear framework for action.

Our proposed text unequivocally condemned all forms of violence against civilians, including the heinous acts of terrorism by Hamas and the taking of hostages. It called for their immediate and unconditional release. It also called on all parties to strictly abide by their international legal obligations, in particular those relating to the protection of civilians, civilian infrastructure and humanitarian personnel. The draft resolution also stressed the urgent need for humanitarian access to civilians.

The text incorporated urgent and multiple calls by the UN and many other actors for humanitarian pauses to allow for the delivery of aid and the voluntary safe passage of civilians. It encouraged the establishment of humanitarian corridors and other mechanisms to facilitate the smooth delivery of aid.

The draft further reflected the ethical necessity to provide civilians in Gaza with electricity, water, fuel, food and medical supplies. The necessity to be protected from forced relocation when the prevailing conditions on the ground do not ensure a safe and secure displacement.

Thus, faced with heinous terrorist acts against Israeli civilians, with the forceful reaction to such acts and an ever growing humanitarian disaster imposed on Gaza, the Council response we proposed was robust and balanced.

We are grateful to all Council members who engaged with us since last Friday and demonstrated a sincere and practical commitment to multilateralism.

Sadly, very sadly, the Council was yet again unable to adopt a resolution on the Israeli-Palestinian conflict. Again, silence and inaction prevailed.

To no one's true, long-term interest.

While we deeply regret that collective action is made impossible in the Security Council, we do hope that efforts by other actors will yield positive results.

They must be prompt, effective and substantial. Hundreds of thousands of civilians in Gaza cannot wait any longer. Actually, they have waited for far too long. To no avail.

I thank you.

 

* * * * 

 

Declaração do Representante Permanente do Brasil na ONU, Embaixador Sérgio França Danese, sobre a proposta de resolução S/2023/773, sobre a crise israelo-palestina

Versão em português 

 

Nas sessões de consultas fechadas da sexta-feira passada, os membros do Conselho requisitaram a liderança do Brasil, como presidente de turno no mês de outubro, para facilitar uma resposta do Conselho à escalada da crise em Israel e na Palestina, em particular seus aspectos humanitários.

Nós atendemos ao chamado com um senso de urgência e responsabilidade. Em nossa opinião, o Conselho tinha de agir, e tinha de fazê-lo muito rapidamente. A paralisia do Conselho diante de uma catástrofe humanitária não é do interesse da comunidade internacional.

Portanto, durante todo o último fim de semana e nos dias seguintes, nós trabalhamos muito, mediante um engajamento amplo e colaborativo com os membros do Conselho, para ajudar a construir uma posição unificada.

Ao fazer um esforço de boa-fé para acomodar posições diferentes - às vezes opostas -, nosso foco esteve e continua a estar na grave situação humanitária no terreno. O realismo político nos orientou, mas a nossa a visão sempre esteve voltada para o imperativo humanitário. Exatamente como em outros dossiês sensíveis na agenda do Conselho, nos quais o Brasil cumpriu um papel especial, o direito internacional humanitário e o direito internacional dos direitos humanos forneceram parâmetros claros para a ação.

O texto que propusemos condenava inequivocamente todas as formas de violência contra civis, inclusive os atos hediondos de terrorismo por parte do Hamas e a tomada de reféns. O texto conclamava à libertação imediata e incondicional desses reféns. Também conclamava todas as partes a cumprirem rigorosamente as suas obrigações internacionais, em particular as relacionadas com a proteção de civis, infraestrutura civil e pessoal humanitário. O projeto de resolução também salientava a necessidade urgente de acesso humanitário aos civis.

O texto incorporava apelos múltiplos e urgentes da ONU e de muitos outros atores em prol de pausas humanitárias para permitir a entrega de ajuda e a passagem voluntária e segura de civis. Encorajava o estabelecimento de corredores humanitários e outros mecanismos para facilitar a prestação de ajuda humanitária sem obstáculos.

O projeto refletia ainda a necessidade ética de fornecer aos civis em Gaza eletricidade, água, combustível, alimentos e suprimentos médicos. A necessidade de serem protegidos contra deslocamentos forçados quando as condições no terreno não garantem um deslocamento seguro.

Assim, confrontados com atos terroristas hediondos contra civis israelenses, com a forte reação contra tais atos e com um desastre humanitário cada vez maior imposto sobre Gaza, a resposta que propusemos para o Conselho foi robusta e equilibrada.

Somos gratos a todos os membros do Conselho que se engajaram conosco desde sexta-feira passada e demonstraram um compromisso sincero e prático com o multilateralismo.

Infelizmente, muito infelizmente, o Conselho foi mais uma vez incapaz de adotar uma resolução sobre o conflito israelo-palestino. Mais uma vez, o silêncio e a inação prevaleceram.

Algo que não serve ao interesse verdadeiro e de longo prazo de ninguém.

Embora lamentemos profundamente que a ação coletiva tenha se tornado impossível no Conselho de Segurança, esperamos que os esforços de outros atores possam produzir resultados positivos.

Eles devem ser rápidos, eficazes e substanciais. Centenas de milhares de civis em Gaza não podem esperar mais. Na verdade, eles já esperaram demais. E em vão.

Obrigado.

 

[Nota publicada em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-do-representante-permanente-do-brasil-na-onu-sobre-a-proposta-de-resolucao-s-2023-773-sobre-a-crise-israelo-palestina