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sexta-feira, 9 de maio de 2025

Conselheiros do Príncipe: de Maquiavel a Lula 3 - Paulo Roberto de Almeida

Conselheiros do Príncipe: de Maquiavel a Lula 3

Paulo Roberto de Almeida

        No capítulo 22 da sua magnífica obra, dedicada ao aconselhamento dos príncipes, Maquiavel se refere aos seus ministros: La scelta dei ministri non è una cosa da poco per il principe; essi saranno buoni o cattivi a seconda della sua capacità di sceglierli bene. (“A escolha dos ministros não é uma coisa menor para o príncipe; eles serão bons ou maus, dependendo de sua capacidade de bem escolhê-los.”)
        Como escreveu Niccolò, os ministros são bons ou não, segundo a prudência do príncipe. “E a primeira conjetura que se faz da inteligência de um senhor, resulta da observação dos homens que o cercam; quando são capazes e fiéis, sempre se pode reputá-lo sábio, porque soube reconhecê-los competentes e conservá-los. Mas quando os que o cercam não são assim, sempre se pode fazer mau juízo do príncipe, porque o primeiro erro por ele cometido reside nessa escolha.”
        Ter, junto de si, assessores competentes é, obviamente, do interesse primordial do próprio príncipe, como bem sabia Maquiavel. Deles dependerá, finalmente, toda a obra de importância a ser realizada em favor dos seus súditos ou cidadãos, conforme o caso. Como o príncipe só consegue se ocupar pessoalmente dos grandes assuntos do estado – segurança, defesa, relações exteriores, estabilidade do valor da moeda, manutenção de um ambiente receptivo para os negócios dos particulares, visando à maior riqueza e prosperidade do principado –, não podendo ele, em consequência, dar atenção à administração diária das pequenas coisas, torna-se imprescindível a assistência de pessoas habilitadas em todas as matérias que não dependem diretamente dele, mas que exigem um conhecimento técnico especializado ou que requerem políticas setoriais específicas. Secretários, ministros, chefes de área, ou de departamentos, não importa o nome que tenham, são pessoas versadas no seu campo de atuação e, via de regra, competentes para o exercício das funções para as quais foram designadas pelo príncipe.
        Não se compreende, assim, um soberano que escolha seus secretários apenas por indicação de terceiros, por recomendação de chefes de partidos, ou ainda para contentar algum amigo necessitado de emprego público. A rigor, o secretário não pode ser amigo, pois, caso o seja, fica mais difícil cobrar resultados ou despedi-lo em caso de incompetência. Essa incompetência é tanto mais disseminada quanto maiores forem os cargos de livre provimento do príncipe ou de seus conselheiros imediatos. Daí o interesse do príncipe em restringir ao máximo esses cargos.
        Quando Brasília foi fundada, dezenove prédios oficiais orlavam a Esplanada dos Ministérios, sendo quatro deles dedicados aos militares (e muitos se exerceram, logo em seguida, como conselheiros dos seus “príncipes-generais”). Os anos foram passando e os ministérios se acumulando, chegando ao dobro disso nos anos recentes, se espalhando por anexos improvisados ou por escritórios em vários pontos da capital. Cabendo ao príncipe receber a todos, tardaria algumas semanas para se entreter com cada um detalhadamente.
        Uma das políticas setoriais mais relevantes, em qualquer época, sempre foi a externa, dividida, como necessário, em duas vertentes: o conteúdo estrito da política, determinado pelo próprio príncipe, e a diplomacia, ou seja, seu lado operacional, geralmente a cargo de um corpo profissional, bastante competente para as tarefas da área. Durante todo o Império, na Velha República e mesmo de 1946 em diante, os ministros eram geralmente políticos eleitos, ou magistrados e outras personalidade de alta cultura e educação, para bem representar o país no exterior. A diplomacia geralmente ficava mesmo a cargo do secretário geral da pasta. Mas foi justamente no período da ditadura militar quando muitos diplomatas profissionais foram designados para a chancelaria, uma comprovação de que soldados e diplomatas são “duas almas quase gêmeas”, dedicados à defesa dos interesses nacionais em suas respectivas funções a serviço do Estado: hierarquia e disciplina são os dois dogmas que os unem.
        Depois da volta de políticos e outras personalidades à diplomacia da Nova República, os governos do PT fizeram novamente apelo aos diplomatas profissionais para o cargo de chanceler, provavelmente por carecerem de quadros competentes nos temas internacionais. Mas esses governos, dada a natureza “gramsciana” do partido e suas concepções políticas conhecidas no espectro ideológico, também trouxeram uma inovação indesejada para a política externa do país: sua partidarização e uma inclinação por teses e posturas que já eram anacrônicas bem antes da implosão final do socialismo, justamente na década posterior à sua fundação. Muitos militantes, futuros quadros dirigentes, passaram por Cuba ou confirmaram uma retardada adesão às velhas teorias do anti-imperialismo tipicamente latino-americano.
Uma prática geralmente seguida nas presidências brasileiras, desde a era Vargas, foi a dos chefes de Estado contarem com experientes assessores diplomáticos junto a si, no próprio palácio de governo, geralmente na Casa Civil ou em algum outro cargo especial. Assim foi praticamente durante toda a República de 1946 e também sob o regime militar. Sarney, na redemocratização, começou com o embaixador Rubens Ricupero, e os presidentes seguintes também contaram com diplomatas de relevo em suas assessorias especiais.
        A primeira ruptura com essa prática começou exatamente com os governos do PT, a partir de 2003: durante os treze anos dos três mandatos e meio das administrações petistas, um apparatchik do PT monopolizou essa assessoria, Marco Aurélio Garcia, um fellow traveler dos comunistas cubanos, por eles designado para coordenar o Foro de São Paulo, uma espécie de Cominform castrista numa era em que a própria União Soviética e o socialismo real estavam se desfazendo. Sua “competência” para dirigir nacos da política externa era tão “especializada” que os diplomatas profissionais o apelidaram de “chanceler para a América do Sul”. Não obstante a limitação geográfica, sua preeminência sobre certas decisões da política externa lulopetista se estendeu a diversas outras áreas, sendo que várias delas não emanavam da chancelaria, mas eram determinadas na própria presidência, ao arrepio do Itamaraty.
        Marco Aurélio Garcia se exerceu até o impeachment de Dilma Rousseff e veio a falecer um ano depois. Os conselheiros diplomáticos de Michel Temer foram todos diplomatas, mas os do governo seguinte, um parêntese na história da diplomacia, foram tão abomináveis que nem merecem ser lembrados, a começar pelo próprio chanceler acidental, teleguiado por uma tropa de amadores que levou o Brasil a um completo isolamento internacional. Por paradoxal que possa parecer, o chanceler mais longevo da história do Itamaraty, que serviu fielmente a Lula 1 e Lula 2 – e a Dilma como ministro da Defesa –, retornou ao Palácio do Planalto na exata função do apparatchik que serviu aos governos petistas até 2016, mais um sinal de que o PT realmente carece de quadros competentes na área internacional.
Não é segredo para ninguém que ambos, o aparatchik e o profissional, conduziram, naqueles anos, uma diplomacia ao gosto do príncipe, feita certamente de muito ativismo. Mas a “altivez” alegada consistiu bem mais numa aliança com ditaduras execráveis, na região e fora dela, numa época em que a ascensão econômica da China e a retomada do crescimento mundial permitiram uma projeção inédita do Brasil em várias frentes. Essa fase foi marcada pela estabilidade que tinha sido criada pelo tripé macroeconômico dos tucanos e por uma face mais “risonha” da globalização, quando a Rússia ainda pertencia ao G8 e a China, recém-admitida na OMC, em 2001, começava a fortalecer seus músculos econômico-comerciais.
        Muito diferente é a situação internacional, e a do próprio Brasil, na atualidade. O cenário é mais desafiador, e as exigências diplomáticas bem mais difíceis, numa conjuntura de dissociação, ou de ruptura aberta, entre os dois grandes polos da governança global: de um lado, a velha hegemonia “ocidental”, que muitos julgam já declinante (sobretudo no atual governo); de outro, os dois impérios autocráticos, que parecem ter colocado o Brics a seu serviço, e que pretendem seduzir novos candidatos dentre os países do chamado Sul Global. Desde a invasão e anexação ilegais da Crimeia pela Rússia de Putin, e a guerra de agressão que ele deslanchou contra a Ucrânia, com a explícita complacência da China – que talvez visse na aventura de Putin um “laboratório avançado” para algo similar em Taiwan –, a agenda mundial se viu não apenas fragmentada, mas praticamente despedaçada por um bizarro projeto de formação de uma “nova ordem global multipolar”, ideia à qual Lula parece ter aderido desde a campanha presidencial de 2022.
        Numa tal conjuntura, e admitindo o pressuposto que a política externa profissional já foi escanteada pela diplomacia presidencial excessivamente personalista do próprio Lula, a função de um assessor presidencial deveria ser literalmente estratégica para conduzir os interesses nacionais em face dessa multiplicidade de crises diplomáticas, na própria região e ao redor do mundo: guerras na Europa e no Oriente Médio, crises com a Argentina, com a Nicarágua e, sobretudo, no caso da fraude eleitoral chavista na Venezuela, iniciativas próprias no G20, no Mercosul, no Brics, presença nos encontros do G7, ademais da guerra comercial persistente entre os EUA e a China, para nada dizer das sanções econômicas e diplomáticas contra a Rússia de Putin (as quais o Brasil vem eludindo desde o governo Bolsonaro).
        O retorno da “ativa e altiva” não se confirmou como esperado. Ao contrário: a liderança e a credibilidade diplomática do Brasil vêm sendo postas em questão na própria região e no mundo, em vista dos improvisos do presidente e os passos mais do que incertos dados pelo assessor presidencial em várias dessas crises e desafios. O PT, aliás, não ajuda em nada para uma condução propriamente profissional da política externa, adotando diretivas e “conselhos” absolutamente contrários aos que seriam e são recomendados pelo Itamaraty.
        O assessor presidencial sempre foi considerado, pelo lado da mídia, como o verdadeiro chanceler de Lula 3: talvez fosse o caso de revisar esse título, mais de origem jornalística do que propriamente efetivo, com base no bizarro modus operandi da diplomacia presidencial. Com efeito, o chanceler real tem sido o próprio Lula, que também parece atuar como uma espécie de “conselheiro dos conselheiros do príncipe”, aliás, orgulhoso de sê-lo, ao distribuir prodigamente recomendações a seus ministros, em monocráticas reuniões.
Maquiavel provavelmente não aprovaria...

Paulo Roberto de Almeida, diplomata e professor
[Brasília, 25 agosto 2024]

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