O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Piauí. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Piauí. Mostrar todas as postagens

domingo, 14 de janeiro de 2024

Do Piauí, o mais novo diplomata estudava 12horas por dia e se inspira em Alberto da Costa e Silva - Yala Sena (Cidade Verde)

Do Piauí, o mais novo diplomata estudava 12horas por dia e se inspira em Alberto da Costa e Silva

Fotos: Renato Andrade/Cidadeverde.com

Por Yala Sena

Filho de professora, o mais novo diplomata aprovado para o Itamaraty, Luis Marcelo Gomes Mendes Leite, de 22 anos, atribui sua vitória a disciplina, foco e estudos. 

Segundo ele, a rotina de leituras e preparação chegava a mais de 12 horas por dia e disse que uma das suas inspirações é o diplomada, poeta, ensaísta e historiador Alberto da Costa e Silva que morreu em novembro do ano passado de causas naturais aos 92 anos. Alberto é filho do poeta Da Costa de Silva. 

Luís Marcelo conta que foi aprovado no concurso para ser diplomata aos 19 anos e realizou as três fases, que foram bastantes criteriosas, chegando a escrever cerca de 24 textos em línguas inglês, português, espanhol e francês. 

“A emoção que sentir foi de alívio (risos). Eu vivi uma rotina muito difícil, estudava em média 12 horas por dia. Fiquei feliz, mas aliviado”, disse sorrindo acrescentando. “Abri mão de quase tudo. Tudo que fazia em minha vida era pautado em como impactar para prova. Saia poucos com meus amigos, passei muito tempo sem rede social, abdiquei de vida noturna e se saísse era coisas leves. Tinha uma rotina de acordar 5h da manhã, ia para a academia e começava a estudar e só parava à noite”. 

Luís Marcelo informou que a posse está prevista para acontecer em fevereiro e depois irá fazer um curso de formação em Brasília.

O diplomata é um servidor que trabalha para promover as relações entre o Brasil e outros países. O salário inicial é de R$ 20.900.  Ele disse que Berlim é um posto diplomático que tem simpatia. 

“O que mais me ajudou foi a oportunidade que o Dom Barreto me deu como monitor e posteriormente me efetivaram como professor de História Mundial das turmas de pré-vestibular e é um assunto que cai na minha prova e isso era positivo já que comentava com os alunos e revisava”. 

Conselho para os interessados: “comece logo”

O piauiense deu conselho para as pessoas que desejam seguir a carreira de diplomata. Segundo ele, é preciso ter foco, estudar bastante e o mais cedo possível buscar informações. 

“Uma coisa que queria era alguém ter me dito antes: comece logo. Ai! a pessoa diz:’ ah! mas eu não sei como?’: comece, vai atrás, busque informações, tente saber o que a prova exige, como é a rotina de uma pessoa que se prepara a sério para isso,  ter um foco e é importante buscar apoio psicológico e apoio da família. A gente até brinca, que primeiro, é preciso passar na prova. Eu era muito pragmático, tudo que fazia eu imaginava o que eu iria ganhar em termo de preparação de melhora de nota para a prova”.  Durante a entrevista, Luís Marcelo estava acompanhado da mãe Márcia Valéria Gomes Mendes Leite, do pai Marcelo Roger Leite e da irmã Isadora Mendes Leite. 

“Está sendo surpreendente. Eu não tenho palavras para descrever o sentimento de felicidade que ele alcançou. Ele é um menino dedicado e disciplinado. Tudo foi ele. Me sinto muito orgulhosa de ser mãe dele”, disse a mãe Maria Valéria. Ela disse que não está ainda preparada para ver o filho pelo mundo.

 

        Ver essa foto no Instagram                      

Uma publicação compartilhada por TV Cidade Verde (@tvcidadeverde)

 

 

Foto arquivo pessoal 

Matéria original 

O mais novo diplomata do Brasil é filho do sol, do Equador. Luis Marcelo Gomes Mendes Leite, de 22 anos, realizou um feito histórico e é o mais novo piauiense a entrar no serviço diplomático brasileiro. O estado tem se destacado na formação de profissionais precoces, já que em 2013, outro piauiense, Pedro Felipe de Oliveira Santos, ganhou destaque nacional por ser o juiz federal mais novo do Brasil ao passar no concurso aos 25 anos. 

Luis Marcelo foi aprovado na terceira e última fase do Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD), processo seletivo para ingresso na carreira de diplomata. Ele foi aluno e monitor do Instituto Dom Barreto. 

O diplomata é um servidor público que trabalha para promover as relações entre o Brasil e outros países. Trata-se de um profissional de carreira lotado no Ministério das Relações Exteriores (MRE), também conhecido como Itamaraty.

Seu local de trabalho pode variar ao longo de sua trajetória, sendo possível exercer atividades dentro ou fora do Brasil. 

Os pré-requisitos para ser um diplomata são: ser brasileiro nato, possuir uma graduação no ensino superior (em qualquer curso) e passa no concurso. Luis é formado em comércio exterior. 

A aprovação do piauiense viralizou na  rede social com muitos comentários elogiando o feito dele.

Os internautas chamam o piauiense de “gênio”, “gigante”, “orgulho demais” e “Meus parabéns!!! Orgulho de ter um piauiense no Itamaraty, ainda mais sendo o mais novo do país!”

O governador Rafael Fonteles também comemorou a aprovação do piauiense. 

“Parabéns ao piauiense Luis Marcelo Gomes Mendes Leite, aprovado na 3ª fase do Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, aos 22 anos de idade, se tornando a pessoa mais nova no serviço diplomático brasileiro! Que essa seja uma trajetória de muito sucesso, Luis!

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

O resgate do caçador de Bruxas: Vasco Leitão da Cunha - Ana Clara Costa (Piauí)

Correções da História 

O RESGATE DO CAÇADOR DE BRUXAS

Um diplomata quer reescrever a história do chanceler da ditadura

Ana Clara Costa 

PIAUÍ, Edição 205, Outubro 2023


Vasco Leitão da Cunha era considerado um diplomata brilhante quando assumiu interinamente o Ministério da Justiça, em 1942, auge do Estado Novo, e deu voz de prisão ao poderoso chefe da polícia de Vargas, Filinto Müller, que torturava opositores com choque elétrico. Esse ato de coragem marcou a biografia de Leitão da Cunha, mas acabou obscurecido por sua atuação como chanceler do marechal Humberto Castello Branco, cargo que assumiu logo depois do golpe de 1964.

Sob seu comando, o Itamaraty abandonou os preceitos da Política Externa Independente, em vigor desde 1961, para adotar o alinhamento automático com os Estados Unidos. Nos vinte meses em que permaneceu no cargo, Leitão da Cunha removeu de postos-chave dezenas de servidores considerados simpatizantes da esquerda e autorizou a cassação de quatro diplomatas: Antônio Houaiss, Jayme de Azevedo Rodrigues, Jatyr de Almeida Rodrigues e Hugo Gouthier de Oliveira Gondim.

Nas últimas décadas, pouco se falou de Leitão da Cunha. Até que, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro colocou Ernesto Araújo à frente do Ministério das Relações Exteriores, que passou a promover pesquisas e debates sobre temas caros à direita. O diplomata Henri Carrières – genro do ex-astrólogo Olavo de Carvalho, o mentor de Ernesto Araújo – propôs um mergulho na até então pouco conhecida gestão de Leitão da Cunha na ditadura.

Com o apoio da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), entidade de pesquisa ligada ao Itamaraty, Carrières percorreu os arquivos diplomáticos dos anos iniciais do regime. O seu objetivo era mostrar que o legado do diplomata ia além da colaboração com a ditadura. Por isso, a maior parte dos documentos reunidos por ele busca revelar as diretrizes da política externa nas relações com os Estados Unidos, a Europa Ocidental e os países do bloco socialista. Alguns de seus achados, no entanto, confirmam que Leitão da Cunha perseguiu colegas que não marchavam no passo do novo governo.


Carrières organizou A gestão de Vasco Leitão da Cunha no Itamaraty e a política externa brasileira, coleção de documentos diplomáticos inéditos dos anos de 1964 e 1965. Em dois volumes que somam 1 140 páginas, a obra foi publicada pela Funag em 2021. O chanceler de Castello Branco também foi o tema da tese que Carrières desenvolveu no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, defendida neste ano, e para a qual ele teve acesso a escritos pessoais do ex-chanceler.

Na organização e nos comentários do livro, Carrières enaltece o trabalho de Leitão da Cunha na política externa, mas as orientações para o expurgo político que ele promoveu no Itamaraty também se revelam. Um relatório classificado como secreto e sem data, mas atribuído ao período de Leitão da Cunha, descreve o “comunismo no Ministério das Relações Exteriores”.

Segundo Carrières, o documento foi “possivelmente” elaborado pela Comissão de Investigações, um departamento criado pelo chanceler, na esteira do Ato Institucional nº 1, para perseguir opositores do regime. “O problema da esquerdização, no Itamaraty, não é recente. Data de alguns anos o indício da existência de uma célula com nítidos objetivos comunistas. Concretamente, o assunto alcançou grande evidência quando uma carta, de texto suspeito, atribuída ao cônsul João Cabral de Melo Neto […] motivou instauração de rigoroso inquérito.” Essa passagem do relatório referia-se a um grupo de diplomatas de esquerda – entre eles, o poeta João Cabral – conhecido no Itamaraty como “célula Bolívar”. No início dos anos 1950, os membros do grupo foram investigados e temporariamente afastados de seus cargos. Dois deles mais tarde seriam cassados pela ditadura: Houaiss e Almeida Rodrigues.

Outro documento secreto incluído no livro descreve as gestões de Leitão da Cunha sobre o governo uruguaio para controlar as atividades de João Goulart, deposto em 1964, e outros asilados políticos que viviam no país. Num ato mais generoso do chanceler, um telegrama secreto orienta a emissão de um salvo-­conduto a Miguel Arraes, governador cassado de Pernambuco, para que ele pudesse deixar o Brasil com destino à Argélia, na condição de asilado.

Procurado pela piauí para comentar o resgate biográfico de Leitão da Cunha, Carrières não respondeu aos contatos da reportagem. O acesso à sua tese no Curso de Altos Estudos também foi negado. Considerado pelos seus pares como um servidor técnico, qualificado e com passagens bem-sucedidas pela Índia e pelo Reino Unido, Carrières é casado com Maria Inês de Carvalho, filha de Olavo de Carvalho. Trabalhou na assessoria internacional de Michel Temer. Quando todo o gabinete do emedebista foi exonerado na posse de Bolsonaro, Carrières saiu junto. Mas logo foi chamado de volta ao Palácio do Planalto para trabalhar na equipe de Filipe Martins, olavista convicto e assessor internacional de Bolsonaro, que conhecia bem o trabalho do diplomata. Depois, Carrières foi direcionado a um posto na Embaixada do Brasil em Washington, sob a batuta do embaixador Nestor Forster, outro reconhecido admirador de Olavo de Carvalho. Hoje, Carrières dá expediente na embaixada em Assunção, no Paraguai, onde vive com a mulher e os seis filhos. O casal é ultracatólico e educa os filhos em casa.

A trajetória profissional de Leitão da Cunha merece ser mais bem conhecida. Um dos maiores diplomatas de sua geração – nasceu em 1903, no Rio de Janeiro –, ele serviu na Argélia durante a Segunda Guerra Mundial, como delegado brasileiro junto ao Comitê Francês de Libertação Nacional, e lá se tornou próximo do general Charles de Gaulle. Integrou a delegação brasileira na primeira Assembleia Geral das Nações Unidas, em Londres, em 1947. Foi embaixador brasileiro em Cuba durante a revolução, pela qual chegou a ter simpatia – até compreender que Fidel Castro conduziria a ilha para o socialismo. Apesar de seu anticomunismo, Vasco Leitão foi embaixador em Moscou durante o governo João Goulart.

No entanto, a caça às bruxas que Vasco Leitão promoveu no Itamaraty salta aos olhos. Na contramão da releitura de Carrières sobre o personagem, o historiador Rogério de Souza Farias, da Universidade de Brasília, mergulhou em outros arquivos pouco explorados do período da ditadura e descobriu que as quatro cassações realizadas pelo chanceler não foram exigidas pelos militares. (Ele prepara um livro sobre seus achados, ainda sem previsão de lançamento.) Um exemplo: nas cinco oportunidades em que pôde deliberar sobre o caso de Azevedo Rodrigues, Leitão da Cunha defendeu a aplicação da penalidade mais severa. E não havia delito recente para justificar a punição dos outros três diplomatas – Houaiss, Almeida Rodrigues e Gondim –, que foi amparada em fatos antigos.

A pesquisa de Farias aponta que Houaiss foi aposentado por Leitão da Cunha em razão da alegada participação na “célula Bolívar”, já examinada no processo que se encerrara uma década antes. Até a consulta que o Itamaraty fez ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em 1964 para saber se havia fatos desabonadores sobre Houaiss voltou vazia. Mesmo assim, o chanceler enviou a Castello Branco o pedido de cassação, sem que fosse analisada a defesa do diplomata. Farias também descobriu que parte dos depoimentos usados para embasar a cassação de Houaiss foi, na verdade, deturpada, pois eram originalmente em defesa do diplomata.

Em 1983, um ano antes de sua morte, Vasco Leitão da Cunha deu um depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas. Alegou que, longe de perseguir diplomatas de esquerda, sua gestão os salvou de um expurgo ainda mais drástico. “Pude fazer uma proteção em torno do Itamaraty. Uma trincheira”, disse. E, assim, aquilo que o ex-chanceler chamou de “punição revolucionária” teria ficado em “termos aceitáveis”. No mesmo depoimento, Leitão da Cunha elogiou Houaiss: “Ele é generoso. Fala comigo.”

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-resgate-do-cacador-de-bruxas/?utm_campaign=a_semana_na_piaui_184&utm_medium=email&utm_source=RD+Station 

sábado, 8 de abril de 2023

Como representantes da sociedade civil pediram ajuda aos EUA para barrar um golpe de Estado de Bolsonaro no Brasil - João Paulo Charleaux (Piauí)

 questões da democracia 

O DIA EM QUE BRASILEIROS PEDIRAM AJUDA AOS ESTADOS UNIDOS PARA BARRAR UM GOLPE DE BOLSONARO

Comitiva driblou vigilância do Itamaraty e conseguiu se reunir com autoridades americanas

João Paulo Charleaux Piauí, 06 abr 2023

https://piaui.folha.uol.com.br/o-dia-em-que-brasileiros-pediram-ajuda-aos-estados-unidos-para-barrar-um-golpe-de-bolsonaro/


Um grupo de mais ou menos vinte brasileiros viajou aos Estados Unidos em julho de 2022 para convencer o governo americano a impedir que o então presidente, Jair Bolsonaro, desse um golpe de Estado no Brasil. A comitiva desembarcou em Washington no dia 24 de julho. Ao longo de seis dias, foi recebida a portas fechadas pelo Departamento de Estado e por sete parlamentares do Partido Democrata, incluindo um dos membros da comissão parlamentar que investigava a invasão ao Capitólio, ocorrida em 6 de janeiro de 2021, e que, naquele momento, buscava conexões entre as armações antidemocráticas de membros das famílias Trump e Bolsonaro.

A ideia era mostrar ao governo dos Estados Unidos que Bolsonaro tinha a intenção de empastelar as eleições presidenciais de outubro daquele ano e já dispunha dos meios para alcançar esse fim. A mensagem era de que, em Brasília, políticos de extrema direita contavam com o apoio das Forças Armadas, das forças policiais e de um número crescente de civis que tinham se armado para pôr abaixo a democracia no maior país da América do Sul. Os membros da comitiva queriam uma chance de explicar cara a cara aos americanos que o Brasil, sozinho, não tinha capacidade de conter aquele golpe, e só uma pressão internacional contundente poderia impedir que o pior acontecesse na reta final da disputa eleitoral.

O tempo era curto. No momento em que a comitiva brasileira pôs os pés em Washington, faltavam 70 dias para o primeiro turno. A agenda era difícil, porque pressupunha que autoridades oficiais do governo americano, como os membros do Departamento de Estado, abririam as portas para um grupo de brasileiros que não estava revestido de nenhum cargo diplomático e governamental, ou mesmo de um mandato público. Eram apenas líderes de organizações da sociedade civil.

No dia marcado, 26 de julho, às oito da manhã, a comitiva saiu do Hotel State Plaza e cobriu a pé as três ou quatro quadras até um dos edifícios do Departamento de Estado, em Washington. Do lado de dentro do prédio, o encontro aconteceu com membros do Brazil Desk – nome dado aos diplomatas e outros burocratas americanos responsáveis pelas relações com o Brasil –, além de membros dos departamentos de Assuntos Multilaterais, Direitos Humanos, Organismos Internacionais e Hemisfério Ocidental, que também se perfilaram à mesa para ouvir a comitiva.

Até a reunião ter início, alguns colegas jornalistas brasileiros receberam com desconfiança a informação de que aquela agenda ambiciosa de fato seria cumprida. Eles tinham razão para desconfiar. Afinal, foi mantido segredo sobre alguns dos nomes dos interlocutores e sobre parte dos locais dos encontros, fazendo tudo parecer excessivamente misterioso ou simplesmente pouco crível nessa agenda. Mas o mistério tinha uma razão de ser: os organizadores da comitiva temiam que o embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nestor Forster, um conhecido militante bolsonarista, contactasse uma a uma as autoridades que tinham manifestado interesse em receber o grupo brasileiro, com o intuito de demovê-las da ideia às vésperas desses encontros. Forster era conhecido em Washington por desacreditar organizações brasileiras tidas por Bolsonaro como inimigas.

Mas a comitiva conseguiu passar por baixo do radar do Itamaraty – ou pelo menos dos setores bolsonaristas que tinham se incrustado na estrutura da política externa brasileira – para cumprir aquela agenda. Uma vez abertas as portas e iniciados os encontros, ficou claro que havia um grande desafio a cumprir: era preciso redobrar as manifestações americanas em defesa da democracia do Brasil e fazer com que essas declarações tivessem de fato poder dissuasório sobre os golpistas. Ou seja, fazer com que o governo americano vociferasse ameaças críveis de retaliação caso o resultado das eleições fosse desrespeitado no Brasil.

Se você perguntasse àquela altura à diplomacia americana quantas vezes ela tinha saído em defesa da democracia no Brasil, durante os anos Bolsonaro, os funcionários te enviariam oito links contendo transcrições de declarações públicas feitas por diferentes autoridades do governo dos EUA. Se você pedisse um comentário adicional, eles diriam não ter nada a acrescentar.

A primeira dessas manifestações públicas tinha ocorrido ainda em 9 de agosto de 2021 – portanto, quase um ano antes da visita dessa comitiva a Washington. Naquela data, Juan Gonzalez, um americano nascido em Cartagena, na Colômbia, que, no governo Biden, assumiu o posto de diretor sênior para o Hemisfério Ocidental no Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, apareceu usando pela primeira vez uma formulação de frase que seria repetida à exaustão nos meses seguintes: fulano expressa, manifesta ou reitera a “confiança no sistema eleitoral brasileiro”.

 

Ogoverno Biden temia que a invasão ao Capitólio, ocorrida em Washington, em 6 de janeiro de 2021, se repetisse no Brasil; o que, de fato, acabaria ocorrendo em 8 de janeiro de 2023. A preocupação com a erosão da democracia era tão grande que, antes de completar seu primeiro ano na Casa Branca, Biden promoveu uma Cúpula pela Democracia, com a participação de mais de cem países, incluindo o Brasil de Bolsonaro. Por causa da pandemia, o encontro foi virtual. O presidente brasileiro mandou um recado por vídeo repleto de generalidades sobre um tema pelo qual ele demonstrou, demonstra e viria a demonstrar reiteradas vezes ter desprezo.

Da primeira declaração de Gonzalez, em agosto de 2021, até o primeiro encontro pessoal entre Biden e Bolsonaro, em Los Angeles, na Cúpula das Américas, em 9 de junho de 2022, passou-se quase um ano sem que os EUA fizessem qualquer nova declaração pública mais contundente em relação ao risco de um golpe no Brasil. Depois desses meses de banho-maria, o então presidente brasileiro parece ter se sentido seguro o bastante para tentar seu lance mais audaz até então: no dia 7 de julho de 2022, um mês depois de ter sido recebido por Biden em Los Angeles, Bolsonaro anunciou que reuniria dentro do Palácio da Alvorada, em Brasília, todas as representações diplomáticas estrangeiras para denunciar ao mundo alguma coisa bombástica sobre o sistema eleitoral brasileiro. “Será um convite a todos eles”, disse Bolsonaro referindo-se ao corpo diplomático internacional. “O assunto será um PowerPoint, nada pessoal meu, para nós mostrarmos tudo que aconteceu nas eleições de 2014, 2018, documentado, bem como essas participações dos nossos ministros do TSE [Tribunal Superior Eleitoral], que são do Supremo, sobre o sistema eleitoral”, anunciou o então presidente, com a habitual falta de clareza com a qual tornou conhecidos seus pronunciamentos.

A reunião com os embaixadores ocorreu no dia 18 de julho de 2022. Mais ou menos quarenta diplomatas estiveram presentes, num anúncio explícito de que, se Lula ganhasse, não tomaria posse. Ninguém sabia de que forma Bolsonaro implementaria o golpe que estava anunciando ao mundo, mas já não havia dúvidas de que esse golpe viria. No dia seguinte, a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil divulgou um comunicado no qual afirmou que “as eleições brasileiras, conduzidas e testadas ao longo do tempo pelo sistema eleitoral e instituições democráticas, servem como modelo para as nações do hemisfério e do mundo”. Era uma resposta clara, agressiva e imediata às ameaças de Bolsonaro.

Foi uma semana depois dessa reunião de Bolsonaro com os embaixadores que a comitiva da sociedade civil brasileira se sentou à mesa com o pessoal do Departamento de Estado, em Washington. Nos Estados Unidos o Departamento de Estado é o responsável pela condução institucional da política externa americana, equivalente ao Itamaraty. Mas, ao contrário do que ocorre no Brasil, o Congresso americano tem um peso enorme na formulação e na condução da agenda de política externa. E os parlamentares que têm assento nas comissões de política externa da Câmara e do Senado têm conexões fortes e constantes com suas bases eleitorais. No caso da América Latina, esse lobby vem forte da parte dos cubanos que vivem na Flórida, por exemplo. Colombianos, mexicanos e venezuelanos também são atuantes. Mas os brasileiros exercem pouco esse papel. A comitiva brasileira quis, de maneira algo quixotesca, compensar de forma episódica essa falta de lobby constante.

 

Depois da primeira investida no Departamento de Estado, o grupo passou a se encontrar com os parlamentares num Capitólio ainda simbolicamente fumegante depois da invasão trumpista. Os brasileiros se sentaram numa sala de um dos anexos do Capitólio e esperaram em silêncio pela chegada do personagem mais influente naquela história toda. Jamie Raskin era um democrata que estava na crista da onda, participando de todos os noticiários e talk shows noturnos. Ele integrava a comissão parlamentar de investigação do 6/1, como ficou conhecida a invasão ao Capitólio.

Raskin entrou na sala ladeado por um grupo de assessores. O deputado tem uma testa larga encimada por uma cabeleira negra e ondulada, puxada para trás – um traço extinto hoje pela luta que trava contra um câncer. Na hora em que Raskin entrou na sala, tive a impressão de estar diante de um palhaço de algum circo antigo, um clown sem maquiagem, no sentido das linhas de expressão do rosto e do jeito serelepe de se mover, como quem domina a cena e chama para si, naturalmente, o rufar dos tambores.

Todos se sentaram ao redor de uma longa mesa. Raskin ficou de pé. O deputado posicionou-se atrás da cadeira reservada para si e apoiou os braços no espaldar alto. Enquanto ouvia os brasileiros se apresentando, um depois do outro, ele ficava empinando a cadeira, num jogo distraído de balanço, para frente e para trás. A atitude me pareceu excessivamente informal, o que costuma acontecer com pessoas que, quando encontram brasileiros, acham que estão lidando com gente que vive numa eterna escola de samba. A impressão foi confirmada por um comentário qualquer feito por Raskin a respeito de o segurança dele querer um Brasil estável porque era naturalmente destino de suas férias de fim de ano. Os assessores riram. Os membros da comitiva, nem tanto.

Há um jogo combinado nessas situações: o deputado ou senador finge prestar toda a atenção do mundo no que está sendo dito, mas, em algum momento, quando a conversa começa a ficar enfadonha, algum assessor irrompe na sala e diz que vai começar uma votação importantíssima no plenário. O congressista sai fora e deixa um ajudante – pessoa, claro, da maior confiança e competência, alguém sobre quem se possa dizer que “falar com ele é o mesmo que falar comigo. Sinto muito. O dia a dia aqui no Congresso tem dessas coisas. Vocês vão me desculpando. Mas fiquem à vontade” e zaz, vai embora.

Raskin tinha preparado a cena, como indicava o fato de sequer ter se sentado. O que ele não esperava é que Anielle Franco, uma das pessoas que faziam parte da comitiva brasileira, estaria contando a ele sobre como a irmã dela, Marielle Franco, tinha sido morta a tiros junto com o motorista, Anderson Gomes, em março de 2018, na mesma Rio de Janeiro para a qual o segurança risonho do deputado queria viajar.

Como esperado, o assessor irrompeu no salão na hora H, abrindo com pressa as pesadas portas de madeira que vão do chão ao teto, e começou a dizer algo como: “deputado, vai começar a votação em plenário”, mas Raskin parece ter mudado a cena e, como um clown acrobático e habilidoso, improvisou ali mesmo todo o script de sua escapada. Ele fez um gesto com as mãos, sinalizando ao assessor que não iria sair dali por nada, pois estava vidrado no relato de Anielle sobre a violência das milícias fluminenses contra alguém que, como ele, era uma parlamentar. A comitiva tinha fisgado a atenção do deputado.

O segundo ato não tardou. Alguém no grupo citou de passagem que Eduardo Bolsonaro desembarcou em Washington dois dias antes da invasão ao Capitólio. Raskin aparentemente nunca tinha ouvido essa informação. Ele olhou para um dos assessores, como se perguntasse: “Como não sabemos disso? Do que se trata? Como assim?” O deputado mostrou-se interessado em saber quais as ligações entre Trump e de seu ex-assessor de campanha Steve Bannon com a família Bolsonaro. Ninguém soube dar detalhes sobre essas ligações, porque esses detalhes não são conhecidos. O filho do presidente chegou a Washington e esteve na Casa Branca às vésperas do 6/1, mas não se sabe ao certo o que ele pode ter feito por lá, além de encontrar, falar e ouvir. Uma jornalista brasileira que cobre o Congresso americano e estava presente nessa reunião deu um passo à frente e começou a brifar Raskin e seus assessores sobre esses fatos. “Nós precisamos investigar isso”, ele respondeu.

A declaração de Raskin foi mal interpretada no Brasil. O integrante da CPI do Capitólio estava dizendo que queria investigar de que forma Trump e Bannon podiam estar exportando o know-how golpista americano. Raskin não tinha poderes para investigar um cidadão brasileiro em sua CPI, ainda mais esse cidadão sendo o presidente de um outro país ou o filho do presidente. Mas foi inútil tentar aclarar, pois em poucos minutos todos os portais brasileiros traziam a notícia de que a Câmara dos EUA queria incluir Eduardo Bolsonaro nas investigações sobre o ataque ao Capitólio, o que, claro, não aconteceu.

Terminada a reunião, eu conversei com Raskin no corredor. E ele me disse o seguinte: “Esta reunião foi muito educativa e deixou claro que as forças democráticas do Brasil temem que algo similar ao que aconteceu em 6 de janeiro de 2021 nos EUA se repita em seu próprio país. Por isso estão em contato com partidos políticos, movimentos e cidadãos do mundo todo para que se unam a eles em defesa da democracia constitucional e das eleições.”

Algo semelhante foi dito pelo senador Bernie Sanders, uma espécie de Pepe Mujica americano, no que diz respeito à mescla de idade, militantismo e vibração jovial com as causas que fazem a cabeça das esquerdas latino-americanas. Sanders deu enorme espaço e atenção aos membros da comitiva. “O que eu ouvi, infelizmente, soa muito familiar para mim, por causa dos esforços de Trump e de seus amigos para minar a democracia americana. Não estou surpreso que Bolsonaro esteja tentando fazer o mesmo no Brasil. Esperamos muito que o resultado das eleições seja reconhecido e respeitado, e que a democracia prevaleça, de fato, no Brasil”, disse já no corredor.

 

Aagenda se estendeu para muito além disso. Houve visitas ainda aos deputados Hank Johnson, Mark Takano e Sheila Cherfilus McCormick. A comitiva teve reuniões ainda com assessores dos senadores Patrick Leahy, presidente do Senado, e Ben Cardin, além de alguns embaixadores de países-membros da OEA (Organização dos Estados Americanos), que pediram para não serem identificados, e também pela CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) – estes dois últimos seriam atores decisivos caso houvesse qualquer impasse na apuração dos votos e os relatórios dos observadores internacionais fizessem o caso parar na OEA, em Washington.

Um aspecto curioso é o de que o grupo de peticionários brasileiros era formado apenas por representantes de organizações da sociedade civil. Não eram embaixadores, doutores ou deputados, mas líderes de organizações não governamentais ligadas aos indígenas, aos movimentos negros, além de feministas e pessoas dedicadas à defesa mais abrangente dos direitos humanos, da democracia e da liberdade de expressão – em suma, o grupo era formado pelo que, no violento jogo de dardos do bolsonarismo, corresponderia ao centro do alvo.

Ao todo, foram reunidas para a viagem dezenove organizações desse tipo, como os institutos Marielle Franco, Vladimir Herzog e da Mulher Negra, a Comissão Arns e o Pacto pela Democracia, além de siglas ligadas às quilombolas, às lésbicas, aos gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos. A maior parte dos membros eram jovens mulheres – algumas delas, indígenas; outras, negras – que figuravam como estrelas ascendentes da pauta identitária que tem marcado as agendas das esquerdas não só no Brasil, mas nos EUA também. Essas organizações são mantidas e incentivadas por aportes vindos de uma mescla de financiadores estrangeiros tradicionais, como a Open Society Foundations, do magnata George Soros, e por fundos formados por abastadas famílias brasileiras que simpatizam com essas causas, sendo o Galo da Manhã, que hoje administra a filantropia da família Bracher, um dos principais financiadores brasileiros do setor.

A articulação da viagem foi assumida por uma organização chamada WBO (Washington Brazil Office), um “think tank” que mistura pesquisa, produção de informação e lobby político, e sobrevive de recursos de origem semelhante à das demais organizações. O WBO teve um parto lento: começou a ser gestado em 2020, foi constituído formalmente em 2021 e teve seu lançamento público em 2022. A organização nasceu para fazer a ponte entre esses movimentos brasileiros e os interlocutores em Washington, sendo comandado por duas figuras: o brasileiro Paulo Abrão e o americano James Naylor Green. Abrão foi secretário nacional de Justiça da presidente Dilma Rousseff, além de ter sido secretário executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), em Washington. Green é filho de uma engajada família quaker de Baltimore, que militou contra a ditadura brasileira nos anos 1970 e 1980, antes de tornar-se um dos mais prestigiados brasilianistas americanos, professor na Universidade Brown e autor de diversos livros influentes sobre política, história e cultura brasileira. Embora seja um militante aguerrido do movimento gay, Green chegou a ser tomado pelo colunismo político-social brasileiro como amante de Dilma por tê-la acompanhado em passeios por Nova York em 2017, quando ela viajou aos EUA para dar palestras e espairecer do golpe baixo sofrido no ano anterior.

O meio-campo da comitiva levada a Washington pelo WBO era formado por figuras mais ou menos anônimas. Mas, pelas laterais do grupo, avançavam conhecidos ex-membros de governos petistas – além de Abrão, faziam parte da comitiva Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, que tinha sido secretário de direitos humanos de Dilma e assessor especial da Casa Civil do governo Lula, e Paulo Vannuchi, membro da Comissão Arns que foi ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos do governo Lula. O trio formado por Abrão, Sottili e Vannuchi se enquadraria no que as novas esquerdas resumiriam como “homens brancos velhos e influentes” do setor. Eles emprestaram credibilidade ao lobby pela democracia em Washington, mas souberam dar palco e passagem à nova geração, mais bem talhada para o figurino em voga.

A mescla dos perfis dos membros da comitiva era a seguinte: os mais velhos já tinham feito parte de governos petistas no passado. Os mais novos tinham uma ambição latente de vir a ocupar cargos públicos num eventual governo Lula, no futuro. A comitiva refletia, portanto, essa tensão que as esquerdas vivem, tendo de um lado um setor mais tradicional, formado principalmente por homens brancos de sólida carreira acadêmica e militância política, com origem no movimento sindical ou na luta contra a ditadura e pela transição democrática; e, de outro, jovens ligadas às questões de gênero e de raça, às pautas indígenas e de meio ambiente, às causas das novas esquerdas, chamadas frequentemente de “identitárias”. Na ala antiga, estavam homens como Sottili e Vannuchi. Na ala nova, mulheres como Sheila de Carvalho e Anielle Franco – a primeira foi a Washington representando o Instituto de Referência Negra Peregum e o grupo de advogados denominado Prerrogativas, ou simplesmente Prerrô, que se tornou mais conhecido por questionar juridicamente a prisão de Lula na Operação Lava Jato. A segunda viajou representando o Instituto Marielle Franco. Mais tarde, terminada a viagem da comitiva, debelado o golpe e sacramentada a vitória de Lula, Carvalho seria nomeada assessora especial do ministro da Justiça, Flávio Dino, e Anielle se tornaria ministra da Igualdade Racial.

Com tantos ex e futuros membros de governos petistas, tornava-se difícil explicar que aquela não era uma comitiva que tinha ido a Washington para militar em causa própria. Esse era, então, o primeiro desafio: deixar claro que, embora os membros da comitiva tivessem um lado ideológico e até, em alguns casos, um lado partidário, o objetivo da visita não era defender Lula, mas o processo eleitoral como tal, que, se respeitado cabalmente, provavelmente resultaria num terceiro mandato do líder petista, conforme as pesquisas indicavam. De forma simples, o pedido era para que os interlocutores americanos reconhecessem o resultado da eleição de outubro tão logo ele fosse anunciado, fosse quem fosse o vencedor, para evitar que, nas primeiras horas após a apuração, Bolsonaro e seus seguidores tentassem de alguma forma virar a mesa à força.

Afastar as suspeitas de partidarismo era só um dos desafios. O outro era debelar uma contradição implícita: aquele era um grupo de pessoas de esquerda que estava indo pedir ao governo dos EUA que tomasse uma atitude em relação à dinâmica da política interna do Brasil. O antecedente não era nada bom porque, no Brasil, ainda ecoava com força o papel nefasto que os americanos tinham desempenhado em 1964, quando deram apoio ao golpe que engendrou uma ditadura de 21 anos.

Entre 1964 e 2022, muita coisa havia mudado nas relações entre os dois países. Mas, entre as coisas que permaneciam inalteradas, a desconfiança da esquerda brasileira em relação ao governo americano era uma das principais. Não havia muito espaço no dito setor progressista brasileiro para varrer para debaixo do tapete o passivo da Guerra Fria.

Cinquenta e oito anos antes da visita dessa comitiva a Washington, os EUA tinham penhorado apoio ao golpe que depôs João Goulart no Brasil. A chamada Operação Brother Sam consistia em sinalizar aos militares golpistas brasileiros que eles teriam apoio de forças americanas, caso encontrassem resistência inesperada de parte de tropas leais a Jango, em março de 1964. A Marinha dos EUA planejava, naquela época, deslocar do Caribe para a costa brasileira uma porção de navios. No fim, nada disso foi necessário. Como se sabe hoje, não houve resistência ao golpe. O apoio militar americano limitou-se, naquele momento, a dar respaldo, a mostrar que a maior potência do mundo estava do lado dos golpistas, contra Jango e contra a esquerda brasileira.

Poucos membros da comitiva de julho de 2022 gostariam de ver as coisas postas dessa forma, mas o fato é que aquele era um grupo de esquerdistas brasileiros indo a Washington pedir que os EUA tomassem alguma atitude em relação aos rumos da política interna do Brasil. Num certo sentido, era uma Operação Brother Sam ao contrário só que, dessa vez, com os americanos se colocando ao lado da democracia.

 

Averdade é que a comitiva até tinha membros petistas e lulistas, mas ela não era uma panfletagem por um e por outro. Ela também pedia ajuda ao governo americano, mas não era um convite à intervenção. Essas duas nuances eram importantes do lado brasileiro da história. Do lado americano, o problema estava no fato de que todos os deputados e senadores contactados pela comitiva eram membros do Partido Democrata, o que poderia fazer parecer que tudo não passava de uma grande ação entre amigos esquerdistas.

Para diluir o peso do Partido Democrata naquilo tudo, tentou-se até incluir a deputada republicana Liz Cheney como interlocutora. Liz é uma combativa política conservadora nascida num ninho de falcões em Madison, capital do estado de Wisconsin. O pai dela é Dick Cheney, um dos arquitetos da Guerra do Iraque, que foi ministro da Defesa de George Bush e vice-presidente de George W. Bush. Naquele momento, Liz figurava como um dos maiores desafetos de Donald Trump, por ter criticado duramente a campanha golpista do ex-presidente americano. Ela passou a liderar a dissidência a Trump no campo republicano, e foi nessa condição que assumiu o cargo de vice-presidente da comissão que investigava a invasão ao Capitólio de 6 de janeiro. Tentou-se uma aproximação da comitiva com Liz, mas o convite não prosperou.

(Incluir Liz Cheney na agenda foi a primeira sugestão que me lembro de ter feito a Paulo Abrão quando ele me convidou para embarcar nessa comitiva como assessor de imprensa do WBO.)

O resultado mais visível de todo esse périplo foi uma série de iniciativas parlamentares – cartas, moções, declarações, manifestações com os mais diversos nomes – nas quais a Câmara e o Senado dos EUA pediam que o presidente Joe Biden pressionasse Bolsonaro para que ele não desse um golpe. A carta mais contundente nesse sentido foi assinada por 39 parlamentares e pediu que Biden deixasse “inequivocamente claro para o presidente Bolsonaro, seu governo e as forças de segurança que o Brasil se encontrará isolado dos EUA e da comunidade internacional de democracias caso haja tentativas de subverter o processo eleitoral do país”.

Esse foi o tamanho da pressão pública americana nos campos legislativo, diplomático e midiático. Já no campo militar, é difícil saber quantas e quais mensagens foram dadas, e de que forma. O fato mais contundente nessa área foi a vinda de Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional dos EUA, a Brasília, no dia 5 de agosto de 2022. Não há muita informação pública sobre o conteúdo das conversas, mas a lista de autoridades bolsonaristas visitadas por Sullivan na ocasião dá uma boa medida dos interesses discutidos. Além de Bolsonaro, o conselheiro de segurança da Casa Branca esteve com o almirante Flávio Rocha, então secretário especial de Assuntos Estratégicos do governo brasileiro; Walter Braga Netto, secretário da Defesa; Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional; e Hamilton Mourão, vice-presidente da República. Tudo isso, tendo a tiracolo o mesmo Gonzalez que havia sido responsável pela primeira manifestação pública dos EUA sobre a confiabilidade das urnas, em 9 de agosto de 2021.

Já empossado presidente, Lula foi a Washington em 9 de fevereiro, onde foi recebido por Biden e por parlamentares como Sanders, que meses antes tinham se engajado de corpo inteiro na pressão internacional pelo respeito ao resultado das eleições. As organizações que participaram da comitiva da sociedade civil até tentaram incluir na agenda de Lula algum encontro, qualquer evento ou menção mais formal a todo o esforço que havia sido feito em julho de 2022. Mas aquele já não era o Lula candidato, mas um presidente revestido de formalidades e de interesses muito vinculados ao protocolo do Itamaraty e às pressões dos demais ministros de seu gabinete. 

Do lado das organizações, correu uma brisa de ressentimento, do tipo: “agora empossado, ele não pode se esquecer de nós, da sociedade civil, sob risco de tomar um golpe, que nem a Dilma”. Coisas assim. Mas foram murmúrios. Muita gente que militava nesses movimentos sociais conseguiu ou viria a conseguir cargos no governo. Tudo se assentou, de uma forma ou de outra. E agora, passado o pior, a esquerda brasileira terá pelo menos quatro anos para se decidir sobre o que foi tudo isso: uma revisão, uma reciclagem, um amadurecimento, um olhar mais aberto às nuances do papel que os EUA desempenharam no passado e desempenham hoje em relação ao Brasil, às esquerdas latino-americanas? Ou um soluço pontual numa longa história indigesta e imutável? O registro dos fatos ocorridos em Washington em julho de 2022 talvez possam oferecer elementos novos para quem se propõe a interpretar essa história.


sábado, 25 de fevereiro de 2023

O golpismo na América do Sul patrocinado pela ditadura militar brasileira - Walter Sotomayor (Piauí)

 

arquivos do golpismo
Uma solução rápida e satisfatória
Na piauí_197, um trecho exclusivo do livro Relaciones Brasil-Bolivia: La Construcción de Vínculos, de Walter Sotomayor, conta como as Forças Armadas brasileiras ajudaram a promover o golpe de 1971 na Bolívia. Confira aqui.
WALTER SOTOMAYOR

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/uma-solucao-rapida-e-satisfatoria/

Mas, só para assinantes.


quarta-feira, 15 de setembro de 2021

A ferida aberta do Itamaraty : José Jobim, patrono da turma de 2021 - Ricardo Lessa (Piauí)

José Jobim, antes de ingressar na diplomacia, já no Estado Novo, foi jornalista, e correspondente de vários jornais brasileiros na Europa, mas viajou ao redor do mundo, entrevistando gente famosa, inclusive Madame Chiang Kai-Shek, em  Xangai.

Entrevistou o diplomata e político português Affonso Costa, negociador dos acordos de Paris de 1919, presidente da Liga das Nações e primeiro ministro de Portugal antes da ditadura do Estado Novo (original), de Salazar, e publicou o livro A Verdade sobre Salazar: entrevistas concedidas em Paris pelo Sr. Affonso Costa (RJ: Calvino Filho, 1934), e de Paris embarcou para a Alemanha nazista, da cuja viagem resultou o livro Hitler e seus Comediantes (RJ: Cruzeiro do Sul, 1934). 

Mais tarde, trabalhou com Oswaldo Aranha e publicou o livro Brazil in the Making (NY: McMillan, 1942).

Paulo Roberto de Almeida

anais da diplomacia 

A ferida aberta do Itamaraty 

Homenagem feita por jovens diplomatas a José Jobim, morto pela ditadura, constrange o governo e reaviva o caso, até hoje não esclarecido 

Ricardo Lessa 
Revista Piauí, 15 set 2021 _ 15h31 

ILUSTRAÇÃO: CARVALL

Os alunos do curso de preparação para a carreira diplomática, realizado pelo Instituto Rio Branco, são mais famosos pela sutileza do que por atos de bravura. No último 1º de setembro, porém, foram mais do que corajosos: escolheram como patrono da turma 2020/2021 José Pinheiro Jobim, único diplomata morto pela ditadura militar. Em março de 1979, o corpo de Jobim foi encontrado na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, com sinais de violência. Assim como o jornalista Vladimir Herzog três anos e meio antes, Jobim estava enforcado numa árvore baixa, com os joelhos curvados. Para acentuar a ousadia, os formandos escolheram como paraninfa da turma a embaixadora Maria Celina de Azevedo Rodrigues, filha de um embaixador cassado pela ditadura, Jaime de Azevedo Rodrigues.

O ministro das Relações Exteriores, Carlos França, representou o governo e discursou na solenidade, para a qual os vinte alunos puderam convidar apenas duas pessoas cada. Não houve cobertura da imprensa. Formado na turma Ulysses Guimarães de 1993, fato que fez questão de lembrar, França distribuiu de maneira equânime elogios ao presidente ausente e aos novos integrantes da carreira diplomática. Afeitos às mensagens das entrelinhas, alguns alunos identificaram tons de ameaça nas alusões do ministro à necessária coesão da instituição. Outros enxergaram um pequeno broche do exército na lapela do chefe de gabinete do chanceler, Achilles Zaluar, um dos três que sentaram à mesa da cerimônia.

Faz três anos que os formandos do Itamaraty tentam emplacar o nome de José Jobim como patrono. Em 2019, o nome dele foi derrotado em votação apertada – 16 a 14 – pelo de Aracy Guimarães Rosa, funcionária do Itamaraty que ajudou a salvar judeus na Alemanha nazista, trazendo-os para o Brasil, embora houvesse, durante o governo Vargas, restrições à entrada de judeus no país. Em 2020, o homenageado foi o poeta e diplomata João Cabral de Mello Neto, que deixou Jobim em segundo lugar na votação. Este ano, finalmente, o diplomata paulista venceu por 12 a 7 (e uma abstenção) a embaixadora Vera Pedrosa.

A turma de formandos do Instituto Rio Branco, com o ministro Carlos França no centro (de máscara cinza). Foto: Ministério das Relações Exteriores

A ausência de Bolsonaro foi apenas a demonstração mais evidente do incômodo que a homenagem a Jobim causou na linha dura das Forças Armadas e no Itamaraty. Mesmo após a saída de Ernesto Araújo, continua existindo uma ala bolsonarista radical dentro do Ministério das Relações Exteriores. A lembrança do diplomata morto pelos militares cutuca uma ferida não cicatrizada na instituição, que separa, de um lado, os herdeiros dos torturadores dos porões da ditadura, que ajudaram a montar a lista de cassações no Itamaraty, e, de outro, suas vítimas e respectivos descendentes.

Jobim mexeu ainda em outra perigosa casa de marimbondos, cuidadosamente mantida encoberta até hoje: a papelada sobre a maior e mais vistosa obra do período militar, ainda hoje não totalmente paga, a Usina de Itaipu, antes conhecida como Sete Quedas. Por ter servido em 1958 como ministro-conselheiro na Embaixada Brasileira em Assunção, no Paraguai, Jobim tornou-se um expert no assunto. Às vésperas do golpe militar, em fevereiro de 1964, foi indicado pelo presidente João Goulart como representante do Brasil na Comissão Especial de negociação com o Paraguai, para aproveitamento do Rio Paraná.

Construída na fronteira entre os dois países, a Usina de Itaipu, além de ter provocado intensas paixões no Paraguai e nos países vizinhos, reacendendo memórias de guerras do século XIX, despertou interesses econômicos das principais potências mundiais. Mesmo servindo em outra embaixada – a de Bogotá, na Colômbia –, Jobim foi designado para acompanhar o então ministro da Justiça e Negócios Interiores, Juracy Magalhães, ao Paraguai, em junho de 1966, no encontro de Foz do Iguaçu. Ali, junto ao chanceler paraguaio, foi assinada a Ata das Cataratas, abrindo caminho para a construção da usina.

 Ligado pelo sobrenome do meio ao senador gaúcho Pinheiro Machado (assassinado em 1915), que exerceu grande influência no Itamaraty durante o início da República, Jobim se sentia suficientemente seguro, até uma semana antes de ser morto, para viajar até Brasília e assistir à transmissão de cargo entre dois amigos embaixadores: Azeredo da Silveira, o chanceler de Geisel, e Ramiro Saraiva Guerreiro, seu sucessor, escolhido por Figueiredo.

Jobim era ligado a famílias tradicionais na política brasileira. Irmão de Danton, ex-senador e ex-presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), era também tio do ex-presidente Fernando Collor, já que sua esposa Lígia era irmã de Dona Leda, mãe de Collor. Além disso, Jobim tinha parentesco com o ex-ministro da Justiça Nelson Jobim (1995-97), sem falar do primo mais famoso, Antônio Brasileiro – o Tom –, e do não menos célebre João (Jobim) Saldanha, jornalista e ex-técnico da Seleção Brasileira de futebol.

As relações familiares não pouparam a vida do diplomata. Mas, aparentemente, serviram para atrapalhar a recente campanha do ex-presidente Fernando Collor, que se ofereceu para ser ministro das Relações Exteriores quando Ernesto Araújo dava sinais de exaustão no cargo, no começo deste ano. A linha dura não esquece. Primo-irmão da filha de Jobim, o ex-presidente costumava ser cordial nos encontros de família, mas ultimamente vem se tornando mais distante. “Passou a me ignorar, mas não me faz falta”, comenta a jornalista e advogada Lygia Jobim, filha do diplomata, que leva o nome da mãe, mas com outra grafia.

A viagem a Brasília de seu pai, em março de 1979, não aparentava a Lygia nada de anormal. Ela soube depois, porém, que durante a cerimônia de transmissão de cargo, no dia 15 daquele mês, Jobim teria comentado numa roda de conversa que estava escrevendo suas memórias e revelaria uma parte encoberta das negociações entre paraguaios, brasileiros e fornecedores estrangeiros que disputavam a obra de Itaipu. O preço final da usina, algo em torno de 30 bilhões de dólares, segundo denúncias da época, teria sido inflado por desvios de verba tanto para o lado paraguaio quanto para o brasileiro.

O fato de Jobim e seu irmão Danton terem sido jornalistas e militado no Partido Comunista Brasileiro durante a juventude não contribuiu muito para que eles conquistassem a simpatia dos militares que tomaram o poder em 1964. Naquela época, estava ainda recente na memória de todos os conflitos em torno de Suez (1956), que terminaram com a nacionalização do canal pelo coronel egípcio Gamal Abdel Nasser. Já havia começado também a construção da represa de Assuã, no Egito (1958), com apoio técnico e financiamento da União Soviética. Soviéticos e alemães disputavam grandes obras de eletricidade mundo afora. Os dois lados queriam fornecer as gigantescas turbinas para o que seria então a maior usina hidrelétrica do mundo (Itaipu foi, de fato, a maior do mundo até o ano de 2006, quando foi superada pela usina de Três Gargantas, na China).

Uma demonstração da importância da obra de Itaipu foi a visita ao Brasil de Ernst von Siemens, dono da empresa alemã que leva seu nome, quase simultaneamente à passagem de missão da Energo-Mach Export, soviética, em 1972. A cooperação com o país comunista foi cogitada pelos brasileiros mesmo após o golpe de 1964. O então ministro do Planejamento, Roberto Campos, manteve conversas com os soviéticos e chegou a visitar Moscou em 1965, a convite da fabricante de turbinas. Mesmo anos depois, em 1972, uma delegação econômica soviética foi recebida pelo então ministro da Fazenda Delfim Netto.

Entre os militares, no entanto, começou a correr o boato de que Jobim teria beneficiado interesses dos soviéticos nas negociações de Itaipu. A Siemens, por sua vez, fazia seu lobby junto ao então embaixador brasileiro em Buenos Aires, Pio Corrêa. Fato é que a Siemens ganhou a concorrência da usina, e Pio Corrêa deixou a carreira diplomática em 1969 para assumir o posto de presidente da empresa alemã no Brasil, onde permaneceu até 1983, quando foi instalada em Itaipu a primeira turbina fabricada pela Siemens.

 Quando soube da morte do pai, Lygia Jobim estava grávida de três meses e tentou desde o primeiro momento saber quem tinha o tinha matado e por quê. Escreveu ao então presidente Figueiredo e procurou ajuda entre os diplomatas conhecidos. Na ocasião, Lygia era casada com o dono da editora Civilização Brasileira, Ênio da Silveira (1925-1996), outro alvo dos grupos terroristas que soltaram bombas em redações, bancas de jornais, editoras, OAB e, finalmente, fracassaram no atentado ao Riocentro da noite de 30 de abril de 1981.

Não foi surpresa que não tenha conseguido avançar na investigação. O corpo de seu pai foi convenientemente deixado na região da delegacia comandada por Ruy Dourado, na Barra da Tijuca, no Rio. Famoso pela fidelidade ao grupo que atuava nos porões do regime, Dourado, conforme descobriu anos depois a Comissão da Verdade, trabalhou na Embaixada Brasileira em Montevideo quando ela foi ocupada por Pio Corrêa, entre 1964 e 1966. O nome do embaixador foi citado como colaborador da CIA em um livro escrito por Philip Agee, ex-agente da companhia de inteligência americana.

Apesar dos esforços da filha de Jobim, pouco se sabe até hoje sobre quem matou e quem mandou matar o diplomata. A certidão de óbito da época pedia exames complementares para determinar a exata causa da morte. A promotora Telma Musse Diuana, que atuou no inquérito aberto para apurar o caso, pediu, em 1985, o arquivamento do processo devido à impossibilidade de se avançar nas investigações. Ela disse, no processo, estar plenamente convencida de que o embaixador José Jobim foi vítima de um crime de homicídio.

A Comissão Nacional da Verdade, que funcionou de 2011 a 2014, tirou a morte de Jobim do esquecimento e incluiu seu nome na relação das pessoas assassinadas pela ditadura militar. Alguns anos mais tarde, em 2018, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) retificou o atestado de óbito de Jobim, no qual passou a constar como culpado pela sua morte, aos 69 anos, “o Estado brasileiro”, por razões políticas.

A homenagem da turma do Itamaraty a Jobim é considerada por Lygia, sua filha, mais do que merecida. Mas ela relembra também que sua luta de mais de quarenta anos para descobrir os mandantes do homicídio permanece inconclusa. Os papéis originais guardados por seu pai em uma mala para a elaboração de suas memórias sobre Itaipu nunca foram encontrados. As novas regras de transparência nos negócios levaram a Siemens a pagar uma multa de 1,6 bilhão de dólares aos Estados Unidos e à Alemanha por pagamentos ilegais a autoridades de quarenta países. O capítulo Itaipu, entretanto, ainda não foi aberto.


segunda-feira, 20 de abril de 2020

Uma esfinge na Presidência - Miguel Lago (Piaui)


REvista PIAUÍ, EDIÇÃO 163 | ABRIL_2020

tempos da peste

UMA ESFINGE NA PRESIDÊNCIA

Bolsonaro precisa do impeachment para fazer sua revolução

MIGUEL LAGO

O saldo nas redes: a internet permite falar com um público muito mais diverso, entretanto também traz uma dificuldade extra – a fragilidade e a superficialidade do engajamento ILUSTRAÇÃO: REINALDO FIGUEIREDO_2020
Em um mito grego, um monstro chamado Esfinge aterroriza a cidade de Tebas com um enigma: “Que criatura pela manhã tem quatro pés, à tarde tem dois e à noite tem três?” Ao que adiciona: “Decifra-me ou devoro-te.” O mesmo faz Jair Messias Bolsonaro nos dias que correm: lança um enigma às instituições para ver se elas respondem. Se não o fizerem, serão devoradas.
Nas últimas semanas, o presidente fez acenos aos seus seguidores e os encorajou a participar das manifestações de 15 de março contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Ele próprio compareceu em uma delas e cumprimentou o público. Chegou a compartilhar um vídeo em que elogiava a iniciativa ao se dirigir a militares, policiais e empresários. Não fosse o coronavírus, teríamos visto um número muito maior de pessoas manifestando-se a favor do presidente e contra as instituições da República.
A atuação de Bolsonaro foi criticada pelo estamento político. O ministro Celso de Mello, do STF, declarou que o presidente não estava à altura do cargo; o governador de São Paulo, João Doria, criticou aquilo que chamou de “governo de ódio”. No dia da manifestação, Davi Alcolumbre, presidente do Senado, e Rodrigo Maia, presidente da Câmara, criticaram a atuação de Bolsonaro na saúde pública, uma vez que, ao participar dos protestos e saudar os manifestantes, o presidente da República desrespeitou os protocolos do próprio Ministério da Saúde para conter a epidemia de coronavírus.
Em entrevista à CNN Brasil, foi dado ao presidente um largo tempo de tevê para que esclarecesse sua atitude. Bolsonaro provocou Alcolumbre e Maia convidando-os a comparecerem nas manifestações também, dizendo que política se faz por intermédio do povo. Por fim, disse que as negociações políticas não poderiam ser feitas nos bastidores e sim publicamente, com a participação da população. O discurso da ligação direta entre o líder e o povo, que ignora a intermediação das instituições, é a definição mais clássica de populismo.
O fato de o presidente incitar subversão aos poderes instituídos pela Constituição faz parte de um movimento mais antigo, que remonta aos tempos de campanha, quando, repetidas vezes, ele desacreditou os procedimentos, os pesos e contrapesos da República. Esse movimento coloca as instituições diante de um enigma: como evitar que Bolsonaro destrua as instituições sem estimular, com isso, a adesão popular ao presidente?
Repreender exemplarmente Bolsonaro pode aumentar o ódio da parcela da população que o apoia. Deixá-lo falar abertamente contra as instituições democráticas pode levar descrédito a essas mesmas instituições. Mas o enigma de Bolsonaro subiu um degrau quando ele próprio, presidente do país, apoiou manifestações que pedem o fechamento do Congresso e do Supremo. É um ponto-limite que exige uma resposta firme do Congresso.
Do ponto de vista institucional, a resposta mais adequada talvez seja o impeachment, como sugeriu o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel – ex-aliado do presidente, eleito graças ao poderio cibernético do clã Bolsonaro. O Congresso instauraria um processo de impedimento como resposta para mostrar que as instituições não tolerarão qualquer discurso e ação golpista por parte do Executivo.
Tal medida configuraria uma decisão acertada, que reafirmaria o equilíbrio de poderes: impedir que um eleito de perfil totalitário se torne um totalitário de fato. A medida transmitiria em alto e bom som ao país a mensagem de que as instituições de controle são mais fortes do que os arroubos ditatoriais do Executivo, e por conseguinte as instituições sairiam mais fortalecidas. Existe, inclusive, embasamento jurídico para fundamentar o pedido, segundo juristas. No entanto, do ponto de vista político, aos olhos dos simpatizantes do presidente, um pedido de impedimento confirmaria a tese de que o Congresso e o STF querem inviabilizar o seu governo. Consequentemente, esses seguidores se voltariam contra as instituições em definitivo, abrindo ainda mais espaço para a radicalização.
Uma alternativa, que evitaria a radicalização do movimento anti-Congresso e anti-STF, seria criticar publicamente essas posturas, sem tomar qualquer medida concreta contra as ações do presidente – caminho que, aparentemente, os líderes do Congresso decidiram seguir. Dessa maneira, a bandeira principal do séquito bolsonarista não encontraria fundamentação, e o discurso que teima na tese da perseguição ao presidente seria esvaziado. Entretanto, essa medida coloca as instituições numa postura passiva, contribuindo para a normalização do discurso antidemocrático.
O enigma, portanto, não pode ser esclarecido recorrendo às ferramentas clássicas da ciência política. É melhor analisá-lo à luz do ativismo digital.

Ahistória política dirá se Bolsonaro prepara um golpe de Estado, um autogolpe, para ser mais preciso. Como qualquer líder populista, ele cria uma conexão direta com a população, visando colocá-la contra o Congresso, enquanto busca o apoio das Forças Armadas para fechá-lo. O presidente peruano Alberto Fujimori, populista eleito como outsider da política, deu um autogolpe em 1992 e fechou o Congresso.
Mas não acho que Bolsonaro busque um autogolpe, que é um estratagema daqueles que falharam em criar um movimento verdadeiramente popular e precisam recorrer a uma força desproporcionalmente maior que a do regime vigente. Militares dão golpes, pois são politicamente medíocres. Empresários dão golpes, pois também são politicamente medíocres. O udenismo (corrente política relacionada à União Democrática Nacional, legenda de direita que existiu de 1945 a 1965) precisou de golpes para sobreviver, pois sempre foi incapaz de conquistar a maioria da população.
A ciência política nos mostrará, no entanto, que basta olhar o mundo atual para verificar que golpes de Estado não são mais dispositivos úteis para subverter as democracias liberais. No livro Como as Democracias Morrem, os professores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, da Universidade Harvard, traçam paralelos entre as táticas hoje utilizadas por lideranças iliberais em diferentes partes do mundo. Nas Filipinas, o presidente Rodrigo Duterte persegue jornalistas e prende adversários políticos. Na Índia, o premiê Narendra Modi, oriundo do grupo nacionalista hindu responsável pelo assassinato de Mahatma Gandhi, aproveitou sua reeleição para estimular expurgos e limitar os direitos da minoria muçulmana (que é do tamanho da população brasileira). Na Turquia, o presidente Recep Erdoğan censura acadêmicos que ousam falar do genocídio da população armênia realizado pelo governo otomano na segunda década do século XX. Na Venezuela, Nicolás Maduro mantém seus adversários políticos na prisão. Nos Estados Unidos, Donald Trump avança sobre as regras do bom convívio democrático. No Reino Unido, o premiê Boris Johnson desafia a convenção política, colocando em risco a credibilidade da monarquia. Casos semelhantes ocorrem em El Salvador, Egito, Hungria, Polônia e, é claro, no Brasil. Nenhum desses governantes precisou recorrer ao golpismo militar, bastando a eles ir erodindo pouco a pouco as instituições, com método, rito e calma.
O liberalismo está morrendo em todas as partes, e no Brasil não é diferente. Bolsonaro se diferencia, porém, dos outros líderes iliberais por ter se recusado a estabelecer uma aliança sólida com o estamento político, ainda que esse fosse o desejo mais íntimo desse estamento. Se tivesse comprado o apoio de parte das pessoas que ocupam posições estratégicas, por meio da distribuição de cargos, de emendas ou de doações eleitorais, teria certamente conseguido acelerar de maneira mais eficiente a erosão democrática. Bolsonaro fez isso apenas com o Exército agraciando centenas de militares com cargos comissionados e outros privilégios. O caminho da cooptação do estamento político foi seguido pelas principais lideranças radicais no mundo, menos pela nossa. Há quem atribua falta de capacidade de negociação a Bolsonaro, mas eu concluo que se trata de uma estratégia extremamente calculada da parte dele.
Bolsonaro não quer que a democracia morra como aspiram outros líderes, em diferentes países. Ele apenas busca outro formato de democracia. Bolsonaro não precisa dar um golpe porque pode fazer uma revolução autoritária. A primeira revolução verdadeira da história do Brasil. Muito mais profunda do que a ocorrida em 1930, quando, apesar da bagunça, no fundo tudo se resumia a uma disputa entre elites estaduais. Muito mais verdadeira que o golpe de 1964, em que as Forças Armadas apenas cumpriram o papel daquilo que é esperado de quase todos os Exércitos que, como o brasileiro, não lutam guerras: derrubar regimes democráticos e populares. Trata-se de uma revolução de fato, e não apenas da transformação de um regime democrático em regime autoritário, como ocorre nos países acima citados.

Opresidente está conectado, mas difere de outros arquétipos de políticos autoritários. Em um texto que publiquei no site da piauí (“Bolsonaro traz o futuro prometido”) pouco antes do segundo turno da eleição de 2018 e quando já se apontava a dominância eleitoral de Bolsonaro, escrevi o seguinte: “O marco zero do futuro será o dia 28 de outubro de 2018. Um futuro que se desenha também para outras nações, mas do qual os pioneiros somos nós. O Brasil é a vanguarda de um novo modo de fazer política, da concretização de um novo programa de verdade que encerra o ciclo histórico do Iluminismo. A destruição do liberalismo global começa aqui.”
O filósofo Luciano Floridi, da Universidade de Oxford, defende a tese de que sociedades hiperconectadas vivem a transição da história para a hiper-história, uma nova era da humanidade em que as categorias de pensamento e de exercício da política são refundadas à luz das novas tecnologias. De acordo com o pensador, nessa nova era não há mais distinção entre o real e o virtual, entre o offline e o online, e as pessoas já não confiam tanto nas instituições, mas confiam nos perfis das redes sociais. Seguindo essa lógica, afirmei no texto de 2018 que Bolsonaro seria o primeiro chefe de Estado da hiper-história, em todo o mundo.
A ciência política institucional foi incapaz de prever o fenômeno Bolsonaro porque ele não se enquadra em nenhuma evidência que consta da literatura acadêmica, mas acredito que as ferramentas do ativismo digital são úteis para compreender o fenômeno. Sua vitória eleitoral se deu exclusivamente graças às redes sociais, contradizendo os cinco pontos determinantes para o sucesso eleitoral usualmente apontados pelos politólogos. Até 2018, a empiria demonstrava que, para um candidato sair vencedor, precisaria ter uma boa performance durante seu tempo de televisão, firmar-se na memória dos eleitores, saber lidar com a estrutura partidária, construir alianças regionais e obter uma boa estrutura de financiamento da campanha. E de preferência conseguir sair-se bem em todos esses itens.
Bolsonaro tinha muito menos dinheiro, menos tempo de televisão e uma estrutura partidária praticamente nula se comparada à da maioria dos candidatos. Tampouco dispunha de um histórico de gestão memorável que pudesse impulsionar os votos. Dentre os líderes iliberais do mundo, tanto Erdoğan quanto Modi haviam feito gestões de sucesso em governos locais antes de serem eleitos para o Executivo nacional. O húngaro Viktor Orbán tinha uma estrutura partidária formada há décadas e com larga participação em governos locais e no Parlamento. Duterte contava com o apoio de uma ampla coalizão, que incluía até partidos de esquerda.
Donald Trump ao menos tinha financiamento, exposição e alianças durante as prévias do Partido Republicano e fez uso extensivo das redes sociais para vencê-las. Mas a imagem de Trump como empresário bem-sucedido foi construída pela televisão, sendo ele portanto muito mais um depositário da videocracia do que da era digital. Uma vez escolhido nas prévias, Trump foi abraçado pelos republicanos e teve à sua disposição toda a máquina do partido nas eleições gerais de 2016.
Bolsonaro é o primeiro líder a governar exclusivamente por meio das redes sociais. Sua postura beligerante não tem similar, mesmo entre outros líderes iliberais, que acabaram por estabelecer alianças com o estamento político para ir corroendo a democracia por dentro. Se o Partido Republicano ofereceu resistência a Trump durante a campanha de 2016, isso deixou de ocorrer depois que ele assumiu a Presidência. Apesar das barbaridades cometidas por ele, apenas os senadores Mitt Romney e John McCain, este já falecido, foram capazes de enfrentá-lo. O mesmo se pode dizer do estamento político em países como a Turquia e a Hungria.
Ao contrário desses exemplos externos, Bolsonaro não fez essa aliança. E isso ocorreu não por resistência do Congresso ou dos partidos políticos, mas por decisão deliberada dele próprio. O presidente não apenas nunca teve um partido e uma base legislativa sólidos, como atualmente nem sequer está filiado a um partido. Como se elegeu graças ao fenômeno digital, é neste que ele constrói seu modo de governar. Se for bem-sucedido, o Brasil definitivamente será o primeiro país a ter sua vida política determinada pelos parâmetros da hiper-história.

Bolsonaro provou haver uma nova forma de ser eleito, e agora tateia na busca de uma nova forma de governabilidade própria à era digital. Sua estratégia – típica do ativismo – é tentar converter o apoio que tem nas redes online em mobilização offline e constante. Existem três grandes desafios para quem pratica o ativismo em tempos de mídias sociais: primeiro, a formação de uma base de apoio que chamaremos de constituency; segundo, de canal; e terceiro, de continuidade e profundidade do engajamento.
No tempo da tevê e da comunicação de massa, o importante era falar para o maior número de pessoas, seguindo a lógica do broadcasting – de um para muitos. As redes sociais funcionam a partir da lógica do multicasting – de muitos para um. Ou seja, o que importa é conseguir falar com constituencies específicas. É complexo chegar nelas, pois as redes sociais replicam a atomização da sociedade em uma plataforma. Cada pessoa é um perfil que se relaciona a distância e transacionalmente com outro perfil – um e outro refletindo os seus gostos particulares, sua personalidade e sobretudo sua opinião. A arquitetura de redes sociais está desenhada de tal modo que elas estimulam a hiperindividualização: por um lado, o perfil (a pessoa) é estimulado a revelar constantemente suas preferências, por outro tende a apenas se comunicar com aqueles que pensam de forma parecida com ele – fenômeno chamado pelo empresário e ativista Eli Pariser de filter bubble (bolha de filtro).
Do ponto de vista do ativista que quer formar um movimento, as redes sociais são difíceis de penetrar. Mas existem duas estratégias para romper a filter bubble e alinhar audiências diferentes. A primeira é conquistar seguidores a partir de suas opiniões. Sabe-se que algumas plataformas de redes sociais privilegiam o conteúdo que gera mais interação logo depois de sua postagem. Isso favorece postagens que chamem muito a atenção, entre outros motivos por serem sensacionalistas ou contrariarem o “senso comum” e o “politicamente correto”. Quanto mais absurdo o conteúdo da mensagem, mais interações ela gera. Quanto mais interações, maior o seu alcance. Quanto mais numerosa a audiência, maior a capacidade de reunir seguidores.
A segunda estratégia é fidelizar esses seguidores, criando proximidade com ele. A partir do momento em que obtém muitos seguidores, o perfil se torna um influencer, isto é, um perfil seguido por muitos perfis. Manter esses seguidores ativos e sempre em interação é fundamental. De modo que o melhor a fazer é compartilhar tudo que se pode, o tempo todo, trazendo o seguidor para mais perto, quase como se ele assistisse a um reality show do qual o influencer é a estrela, capaz de dar opiniões instantâneas sobre tudo que está sendo debatido, de compartilhar momentos íntimos de sua vida e aproximar os seguidores cada vez mais de seu dia a dia.
Bolsonaro se constituiu como um brilhante influencer, e foi assim que se elegeu. Para fidelizar o público e mantê-lo constantemente engajado foi necessário criar uma trajetória de herói que as pessoas pudessem acompanhar: com adversários, obstáculos, provações e grandes emoções. Mas não basta ser apenas um influencer extraordinariamente ativo: o segredo é fundir diversas filter bubbles em uma só, cujo único denominador comum é o influencer. Assim, este se transforma em canal de comunicação e principal fonte de informação. É como se fosse um mundo paralelo, um simulacro de realidade, em torno do qual giram uma miríade de blogs, perfis e influencers. Durante as eleições, Bolsonaro se constituiu como um canal assim e soube habilmente fundir bolhas diferentes: dos neoudenistas da luta contra a corrupção aos neopentecostais e aos fascistas.
Desde sua eleição, Bolsonaro tem como meta se constituir como canal dominante de uma parcela importante da população. Cada ato seu na Presidência é pensado como um modo de consolidar e expandir uma gigantesca filter bubble que dele dependa. Para isso foi necessário abrir uma guerra contra a imprensa e contra as instituições, transformando qualquer crítica ou denúncia de corrupção a ele dirigida em mensagem inválida para seu público. O objetivo da Presidência com suas “pautas-bomba” não é aprová-las, mas apenas gerar discórdia.
Todas seguem sempre o mesmo fio lógico: quanto mais propostas absurdas são apresentadas, mais a imprensa e as demais instituições são obrigadas a criticar e tentar impedir os atos do presidente. Dessa maneira, a narrativa de Bolsonaro de que é perseguido pela mídia e as instituições se confirma o tempo todo para o público de seus canais na internet. Dentre todas as pautas-bomba, talvez a mais reveladora tenha sido a tentativa de nomear Eduardo Bolsonaro embaixador dos Estados Unidos. Não acredito, sinceramente, que Bolsonaro quisesse nomear o filho embaixador: queria apenas forçar uma enxurrada de críticas de seus previsíveis opositores. Fato é que nenhuma das “pautas-bomba” foi aprovada pelo Congresso, o que leva a nossa elite intelectual e a imprensa a elogiarem a resistência das instituições.

Alguns analistas políticos dizem que as instituições estão resistindo, dado que Bolsonaro não conseguiu emplacar nada além de parte da agenda econômica – e isso é verdade. Outros afirmam que as instituições não estão aumentando o custo do golpismo de Bolsonaro: as declarações do presidente e de seus ministros não costumam surtir nenhum efeito prático – e estes também têm razão. As instituições estão bloqueando as ações concretas, mas deixando passar declarações totalmente absurdas. Ou seja, exercem o contrapoder de um lado, e deixam de exercê-lo de outro.
O ano de 2019 foi marcado por esse estranho equilíbrio geral. Detrás das aparentes batalhas se justapuseram confortavelmente dois conceitos diferentes de comunicação e dois conceitos diferentes de poder. As instituições saíram ganhando nesse conflito, mas Bolsonaro também foi vencedor. O importante para Bolsonaro não é aprovar políticas públicas, apenas autorizar um horizonte aspiracional às suas bases políticas. Bolsonaro ganha apenas propondo. O Congresso ganha apenas impedindo que seja aprovado. Todos ganham.
No ativismo digital, trabalha-se com a noção de “curva de engajamento”: sabe-se que para manter as pessoas engajadas e a audiência atenta é necessário oferecer ações sempre mais profundas para seus seguidores. Se no início um seguidor curtiu os posts de Bolsonaro, ele rapidamente passou a assistir todos os vídeos de Bolsonaro, para em seguida se informar unicamente por meio de blogs bolsonaristas, e por fim ir às ruas no dia 15 de março defender o presidente. Essa foi a curva traçada por Bolsonaro: começar como influencer, que em seguida se torna canal dominante para, ao final, galvanizar esse canal em uma infraestrutura de mobilização constante. “Infraestrutura de mobilização” é aquilo que permite conformar maiorias políticas. Na revolução bolsonariana, as eleições não servem para conformar maiorias, apenas para legitimar institucionalmente a capacidade de organização e mobilização dessas infraestruturas armadas na internet. É por meio delas que pretendem viabilizar uma nova forma de governo que não passe pelas instituições, mas apenas pela vontade de minorias politicamente organizadas. Governar para aqueles que gritam mais alto.
As bases às quais Bolsonaro acena são sempre as compostas por pessoas em posição de poder: brancos, homens, heterossexuais e gente armada, como militares e policiais. O denominador comum desses grupos é o poder que exercem sobre a sociedade.
De um lado, Bolsonaro se aliou aos pequenos poderes; de outro, aos grandes, como o empresariado e o mercado financeiro. Ele teve a inteligência de entender que seria necessário deixar os grandes poderes agirem livremente, de modo que não impedissem a sua revolução. Apesar de nacionalista e intervencionista, Bolsonaro entregou as chaves da economia a esses grandes poderes como jamais nenhum governo liberal e conservador foi capaz de fazer. A aliança dos pequenos poderosos da sociedade com os grandes poderosos do capital, numa sólida formação de maioria política conectada e engajada 24 horas por dia, tornou-se um movimento impossível de ser detido.
A crise do coronavírus abriu uma possibilidade extraordinária para o presidente expandir a sua bolha para camadas mais populares. Consciente de que a única chance de o país não viver um colapso na saúde pública são as medidas de distanciamento social implementadas por governos locais, Bolsonaro faz uma aposta arriscada porém certeira: criticar essas medidas para tomar a frente da revolta popular que, na ausência de uma política assistencial para compensar as perdas de renda provocadas pelas medidas de contenção ao vírus, inevitavelmente emergirá. Bolsonaro joga com essa convulsão e, quando ela ocorrer, poderá dizer que ele sempre alertou para os perigos da “histeria” dos governadores e da imprensa, canalizando a onda de revolta em favor de sua figura. Os vilões que causaram a crise econômica serão as instituições e a imprensa que exageraram e agiram com paranoia.
O equilíbrio geral de 2019 não pode se sustentar em 2020, pois todo engajamento de rede social é superficial e efêmero. Se a internet permite falar com um público muito mais diverso, também traz uma dificuldade extra: a fragilidade e a superficialidade do engajamento. Como manter as pessoas engajadas ao longo do tempo? Para engajar seus seguidores de maneira concreta e profunda, Bolsonaro precisa subir mais um degrau.
Uma lição básica de todo ativismo digital é que, para converter uma audiência passiva em um movimento ativo, é necessário que exista um ponto de tomada de decisão real. Esse ponto imprime urgência e gera no público o que os ativistas chamam de “medo de perder”, isto é, o medo que as pessoas têm de ver uma situação se deteriorar, seja por uma perda de direito, de status ou ainda de poder. No ativismo, as pessoas se cansam quando são instadas a se mobilizar em cima de suposições e teorias conspiratórias. Para fazer o caldo entornar, é preciso uma ameaça concreta e urgente. Bolsonaro perderá tração sobre sua filter bubble se ficar repetindo o mesmo discurso em que se faz vítima da perseguição do Congresso, do STF e da mídia sem ter nenhuma fundamentação concreta. É necessário que um fato novo emerja e gere urgência nas bases do bolsonarismo.
A instauração de um processo de impeachment é o ponto de decisão urgente que Bolsonaro precisa para conseguir mobilizar de maneira profunda e constante a integralidade de seus apoiadores. Com isso, ele ganhará seis meses de intensa mobilização de suas bases, com engajamento cada vez mais profundo dos seguidores. Terá vilões perfeitos que estarão explicitamente engajados em derrubá-lo. Com o impeachment, Bolsonaro coloca as instituições contra a parede e põe em marcha a revolução.
Assim deve ser lido o pronunciamento de Bolsonaro da noite do dia 24 de março: como um apelo desesperado à instauração do processo de impeachment contra ele. A sua atuação na crise do coronavírus, contrariando as recomendações das autoridades sanitárias e científicas, segue o mesmo vetor estratégico das pautas-bomba, das suas declarações anti-democráticas, da convocação de manifestações contra as instituições. A cada nova polêmica, ele elege um novo adversário e o instiga a uma atuação mais enérgica. Se suas ameaças contra as instituições democráticas ou nosso patrimônio ambiental não foram motivos suficientes para o impedimento, Bolsonaro dobra a aposta agora e se apresenta como uma ameaça sanitária. Desse modo, obriga os adversários que ele mesmo escolhe – o Congresso, o Supremo, a imprensa, e agora também os governadores – a tomarem uma medida mais drástica contra a sua atuação.
O enigma colocado ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal é ingrato. Se estes promoverem o impedimento de Bolsonaro, fortalecerão o movimento revolucionário do presidente, levando o país ao caos geral. Se não instaurarem logo um processo de impeachment, terminarão por normalizar mais uma medida autoritária de Bolsonaro, deteriorando a credibilidade das instituições e pavimentando o solo para a construção orgânica da revolução. Não há outro desfecho possível do bolsonarismo que não a guerra. Se for derrotado em 2022, Bolsonaro não aceitará o resultado das urnas. Qualquer que seja a resposta dada pelas instituições, o presidente-esfinge as devorará.
O ano de 2020 parece um remake do 1938 europeu, com atores de qualidade inferior. A ambição colonial de Hitler e Mussolini na Europa já estava clara quando o primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain concedeu à Alemanha nazista a anexação da Tchecoslováquia em troca da paz no continente. Naquele momento, o então parlamentar Winston Churchill fez uma afirmação que se confirmaria: “Entre a desonra e a guerra, eles [os ingleses] escolheram a desonra e terão a guerra.” Resta saber se Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre estão mais para Chamberlain ou Churchill.

Miguel Lago

MIGUEL LAGO

Cientista político, é cofundador da rede Meu Rio e diretor da ONG Nossas