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quarta-feira, 8 de novembro de 2023

O BOLSONARISMO NO ITAMARATY DE LULA - Ana Clara Costa (Piauí)


O BOLSONARISMO NO ITAMARATY DE LULA

Gestão petista deu destino menos implacável a embaixadores engajados no governo anterior

Ana Clara Costa|

Piauí, 08 nov 2023_09h36 

https://piaui.folha.uol.com.br/itamaraty-lula-diplomatas-bolsonarismo-cargos/?utm_source=pushnews&utm_medium=pushnotification


Quando Jair Bolsonaro ganhou a eleição em 2018 e Ernesto Araújo assumiu o Itamaraty, Mauro Vieira, hoje chanceler de Lula, era embaixador do Brasil nas Nações Unidas, em Nova York. Vieira foi enviado ao cobiçado posto na cidade americana por determinação de Michel Temer, assim que o emedebista assumiu o governo, depois do impeachment. O diplomata era ministro das Relações Exteriores de Dilma Rousseff, mas tinha relações tão cordiais com o MDB que Temer até cogitou mantê-lo na chefia do Itamaraty. Não fez o convite porque o posto foi reivindicado pelo PSDB, que participou do enclave para derrubar a petista. Assumiu José Serra.

Vieira partiu para Nova York com poder, mas não se esqueceu dos amigos de outrora. Quando, em 2016, Dilma decidiu fazer uma peregrinação junto aos organismos internacionais para denunciar que sofreu um golpe, o secretário-geral do Itamaraty tucano, Marcos Galvão, avisou as representações brasileiras na ONU que não recebessem a ex-presidente, como forma de invalidar seu discurso. A embaixada em Genebra cumpriu à risca a ordem. Mas Vieira não só a recebeu em Nova York, como a hospedou em sua residência, juntamente com sua comitiva, que incluía o assessor internacional petista Marco Aurélio Garcia. Dizia que, em sua embaixada, mandava ele.

Sob Bolsonaro, Vieira ainda permaneceu alguns meses em Nova York. Sua partida foi selada quando o diplomata se insurgiu contra uma orientação vinda de Brasília. O Itamaraty de Ernesto Araújo ordenou que o Brasil mudasse seu voto sobre o embargo americano a Cuba – o país historicamente, em todos os governos, votava contra o embargo. Vieira enviou três telegramas a diferentes departamentos da chancelaria brasileira informando as razões pelas quais o voto não deveria ser mudado. Ao assinar os telegramas, colocou apenas suas iniciais, e não as de seus subordinados – o que seria praxe nesse tipo de documento. Queria que a culpa da insubordinação recaísse apenas sobre si. Seus apelos não funcionaram, o Brasil mudou o voto e, poucas semanas depois, seu nome foi designado para comandar a embaixada de Zagreb, na Croácia, um posto sem muita importância. Os outros dois ex-chanceleres da petista também foram transferidos para lugares distantes e de menor relevância para a diplomacia brasileira: Antonio Patriota foi despachado para o Cairo, no Egito, e Luiz Alberto Figueiredo, para o Catar.

A atitude persecutória de Araújo tinha um agravante. Vieira foi um dos principais apoiadores de sua carreira diplomática. Quando foi embaixador em Washington, em 2010, o diplomata convidou Araújo para integrar sua equipe de assessores diretos. Nesse período vivendo nos Estados Unidos iniciou-se sua inflexão ao olavismo. Quando Vieira virou chanceler de Dilma, em 2015, trouxe Araújo para trabalhar em seu gabinete. Em uma entrevista à repórter Consuelo Dieguez, da piauí (O chanceler do regressopiauí_151, abril de 2019)Araújo contou que, justamente nesse período em que se adensavam as manifestações contra a petista, ele um dia deixou o gabinete e fora para a rua gritar “Fora Dilma”. “Foi libertador poder gritar pelo impeachment de Dilma, por Lula na cadeia”, disse o chanceler, à época, à repórter. Com Temer, Araújo, já convertido ao radicalismo olavista e tendo publicado textos que reforçavam sua visão, foi promovido a embaixador.

De volta ao poder, Mauro Vieira decidiu desde a largada que evitaria o revanchismo. Seu intuito era acalmar os ânimos na instituição, uma das mais afetadas pela agenda bolsonarista de combate ao que entendem por “globalismo”. De tanto conceder, porém, Vieira também acabou desagradando os que não capitularam sob Bolsonaro – e agora reclamam dos postos prestigiados de alguns de seus apoiadores e da falta de punição. A começar pelo próprio Araújo, que embora tenha feito o que fez na instituição e, depois da vitória de Lula tenha dito em uma live que o novo governo deveria ser derrubado, mantém-se, para todos os efeitos, na carreira. Hoje licenciado e sem remuneração, vive em Hartford, nos Estados Unidos, onde sua mulher, Maria Eduarda Seixas Corrêa, tem um cargo consular.

Carlos Alberto França, que o sucedeu na chancelaria, tornou-se embaixador do governo Lula no Canadá. Vive em Ottawa. Nestor Forster, nomeado por Bolsonaro para comandar a embaixada brasileira em Washington e conhecido por ter apresentado Araújo ao olavismo, foi transferido para o mesmo país: é cônsul em Vancouver. Ambas as nomeações são vistas por alguns diplomatas da instituição como prêmios, em razão da localização geográfica privilegiada. Internamente, a explicação é que França ajudou a construir uma boa transição. Procurou Celso Amorim logo após a vitória de Lula e se colocou à disposição para ajudar. Enquanto muitos ministros de Bolsonaro nem sequer participaram da transmissão de posse, França compareceu à sua e fez um discurso avaliado pelos pares como ponderado. Apesar do ambiente político ainda conflagrado, o ex-chanceler tinha esperanças de ser enviado a algum país europeu. Ganhou o Canadá, o que terminou recebendo de bom grado, embora tenha feito pedidos para cargos de seus subordinados que não foram acatados.

Outro expoente do bolsonarismo, o diplomata Marcos Sperandio, que foi chefe do cerimonial do Palácio do Planalto depois que França, que ocupava o cargo, virou chanceler, está num posto de prestígio na embaixada em Washington. É um dos quatro ministros-conselheiros da embaixadora Maria Luiza Viotti. Ele fora transferido ainda durante o governo Bolsonaro, num posto que fora criado justamente para a sua nomeação. Antes, Forster, que antecedeu Viotti, só dispunha de três ministros-conselheiros.

Apesar do descontentamento de alguns diplomatas, Vieira tem tido o aval de Lula para manter sua posição. Ao assumir, preservou no posto o embaixador brasileiro em Madri, Orlando Leite Ribeiro, que foi secretário da então ministra da Agricultura, Tereza Cristina, antes de ser enviado à Espanha pelo ex-presidente. Vieira tampouco removeu o embaixador brasileiro em Portugal, Raimundo Carreiro, ex-ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), indicado ao cargo por Bolsonaro e amigo de José Sarney.

Quando Lula reclamou com o chanceler sobre haver apoiadores do ex-presidente em bons postos diplomáticos, Vieira respondeu que, se fosse remover todos que serviram ao governo anterior, muitos cargos ficariam vazios. Lula retrucou que quando fosse a Portugal e Espanha, não desejava encontrar-se com os respectivos embaixadores ao longo da viagem. E assim foi feito. Lula tampouco quis cruzar com Nestor Forster quando viajou a Washington, em fevereiro deste ano. Para evitar maiores desconfortos, o então embaixador, que ainda não havia sido removido do cargo, tirou férias durante a visita do presidente.

Outra designação que tem causado polêmica é a do embaixador Eduardo Saboia, que em 2013 ajudou na fuga do ex-senador boliviano Roger Pinto Molina, que estava asilado havia quinze meses na embaixada brasileira em La Paz. Molina fazia oposição a Evo Morales e a atitude de Saboia, que também serviu no gabinete de Celso Amorim quando ele era chanceler de Lula, acabou motivando a queda de Antonio Patriota do posto de ministro. Dilma determinou que Saboia fosse punido, ficando sem designação durante todo o seu governo.

Sob Temer, o diplomata foi tirado do limbo. Bolsonaro também o manteve em bons postos e, em 2022, foi designado para chefiar a secretaria de Ásia e Pacífico do Ministério. Vieira manteve a nomeação. Quando, na cúpula dos Brics, em Joanesburgo, em agosto deste ano, Dilma Rousseff cruzou olhares com Saboia, reclamou com Lula, de forma bastante enfática, que o diplomata estivesse ali depois de tudo o que ocorreu no passado. Afirmou sentir-se desrespeitada. Celso Amorim presenciou as críticas, mas deu de ombros, dizendo que o Itamaraty já não era mais sua atribuição. Vieira soube do ocorrido, mas mesmo assim o manteve no posto, onde Saboia permanece até hoje.

 

Obolsonarismo foi um período difícil para a diplomacia brasileira por exigir que, em muitos casos, diplomatas fossem cobrados a sair em defesa do ex-presidente. Contudo, segundo membros da instituição ouvidos pela piauí, havia formas de navegar a tormenta com relativa dignidade, mantendo o mínimo de imparcialidade. Não foi o caso do embaixador Frederico Arruda, que serviu o governo Bolsonaro em Londres e foi um dos defensores mais fervorosos do ex-presidente. Arruda trabalhou na assessoria internacional de Michel Temer e fora despachado para Londres numa vaga interina ainda durante a gestão do emedebista, em 2016. Fez duras críticas a Dilma na imprensa britânica até ser empossado embaixador, de fato, em 2018. Seu nome teve amplo apoio do Senado, que tem o papel de avalizar todos os chefes de embaixadas.

Em junho de 2020, quando o jornal britânico Financial Times fez um editorial relatando temor pela democracia brasileira no auge das manifestações estimuladas por Bolsonaro contra o STF, durante a pandemia, Arruda rapidamente se manifestou. Numa carta ao jornal, disse que o FT “superdramatizava” a situação e que Bolsonaro em nenhum momento atentou contra as instituições. No ano anterior, ao The Guardian, Arruda escreveu condenando parlamentares britânicos que criticavam as razões da prisão de Lula. Em setembro de 2022, durante o velório da Rainha Elizabeth, recebeu o pastor Silas Malafaia, cabo eleitoral, com pompa e circunstância. De sua sacada em Londres, durante a mesma viagem, Bolsonaro fez um discurso de campanha, dizendo: “Não tem como eu não ganhar no primeiro turno”. Arruda foi tirado de Londres este ano, mas segue embaixador do governo Lula – agora na Austrália.

Um dos poucos, de fato, punidos foi Luís Fernando Serra, que comandava a embaixada em Paris. Serra esticou a corda como nenhum outro membro da Casa. No auge da pandemia, em maio de 2020, enviou carta ao jornal Le Monde dizendo que a conduta de Bolsonaro era exemplar, que ele jamais negara a gravidade do vírus e que os que atentavam contra a população eram justamente os governadores brasileiros, que desejavam desestabilizar o governo. Serra também condenava as medidas de isolamento social. No ano seguinte, quando os hospitais brasileiros não suportaram o número de internações e os cemitérios criaram valas para enterrar mortos, Serra culpou a esquerda pela falta de estrutura hospitalar.

Em 2020, convidado para comparecer a um Congresso brasilianista em Paris, Serra declinou sua presença ao saber que haveria uma homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018. 

Serra foi tirado de Paris ainda no final de 2022 e transferido para a representação do Itamaraty no Rio de Janeiro – o equivalente ao “Departamento de Escadas e Corredores”, maneira jocosa com que os diplomatas se referem a quando um de seus pares fica sem função na Casa. Deve aposentar-se compulsoriamente em dezembro, quando completa 74 anos.

 

 

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

O resgate do caçador de Bruxas: Vasco Leitão da Cunha - Ana Clara Costa (Piauí)

Correções da História 

O RESGATE DO CAÇADOR DE BRUXAS

Um diplomata quer reescrever a história do chanceler da ditadura

Ana Clara Costa 

PIAUÍ, Edição 205, Outubro 2023


Vasco Leitão da Cunha era considerado um diplomata brilhante quando assumiu interinamente o Ministério da Justiça, em 1942, auge do Estado Novo, e deu voz de prisão ao poderoso chefe da polícia de Vargas, Filinto Müller, que torturava opositores com choque elétrico. Esse ato de coragem marcou a biografia de Leitão da Cunha, mas acabou obscurecido por sua atuação como chanceler do marechal Humberto Castello Branco, cargo que assumiu logo depois do golpe de 1964.

Sob seu comando, o Itamaraty abandonou os preceitos da Política Externa Independente, em vigor desde 1961, para adotar o alinhamento automático com os Estados Unidos. Nos vinte meses em que permaneceu no cargo, Leitão da Cunha removeu de postos-chave dezenas de servidores considerados simpatizantes da esquerda e autorizou a cassação de quatro diplomatas: Antônio Houaiss, Jayme de Azevedo Rodrigues, Jatyr de Almeida Rodrigues e Hugo Gouthier de Oliveira Gondim.

Nas últimas décadas, pouco se falou de Leitão da Cunha. Até que, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro colocou Ernesto Araújo à frente do Ministério das Relações Exteriores, que passou a promover pesquisas e debates sobre temas caros à direita. O diplomata Henri Carrières – genro do ex-astrólogo Olavo de Carvalho, o mentor de Ernesto Araújo – propôs um mergulho na até então pouco conhecida gestão de Leitão da Cunha na ditadura.

Com o apoio da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), entidade de pesquisa ligada ao Itamaraty, Carrières percorreu os arquivos diplomáticos dos anos iniciais do regime. O seu objetivo era mostrar que o legado do diplomata ia além da colaboração com a ditadura. Por isso, a maior parte dos documentos reunidos por ele busca revelar as diretrizes da política externa nas relações com os Estados Unidos, a Europa Ocidental e os países do bloco socialista. Alguns de seus achados, no entanto, confirmam que Leitão da Cunha perseguiu colegas que não marchavam no passo do novo governo.


Carrières organizou A gestão de Vasco Leitão da Cunha no Itamaraty e a política externa brasileira, coleção de documentos diplomáticos inéditos dos anos de 1964 e 1965. Em dois volumes que somam 1 140 páginas, a obra foi publicada pela Funag em 2021. O chanceler de Castello Branco também foi o tema da tese que Carrières desenvolveu no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, defendida neste ano, e para a qual ele teve acesso a escritos pessoais do ex-chanceler.

Na organização e nos comentários do livro, Carrières enaltece o trabalho de Leitão da Cunha na política externa, mas as orientações para o expurgo político que ele promoveu no Itamaraty também se revelam. Um relatório classificado como secreto e sem data, mas atribuído ao período de Leitão da Cunha, descreve o “comunismo no Ministério das Relações Exteriores”.

Segundo Carrières, o documento foi “possivelmente” elaborado pela Comissão de Investigações, um departamento criado pelo chanceler, na esteira do Ato Institucional nº 1, para perseguir opositores do regime. “O problema da esquerdização, no Itamaraty, não é recente. Data de alguns anos o indício da existência de uma célula com nítidos objetivos comunistas. Concretamente, o assunto alcançou grande evidência quando uma carta, de texto suspeito, atribuída ao cônsul João Cabral de Melo Neto […] motivou instauração de rigoroso inquérito.” Essa passagem do relatório referia-se a um grupo de diplomatas de esquerda – entre eles, o poeta João Cabral – conhecido no Itamaraty como “célula Bolívar”. No início dos anos 1950, os membros do grupo foram investigados e temporariamente afastados de seus cargos. Dois deles mais tarde seriam cassados pela ditadura: Houaiss e Almeida Rodrigues.

Outro documento secreto incluído no livro descreve as gestões de Leitão da Cunha sobre o governo uruguaio para controlar as atividades de João Goulart, deposto em 1964, e outros asilados políticos que viviam no país. Num ato mais generoso do chanceler, um telegrama secreto orienta a emissão de um salvo-­conduto a Miguel Arraes, governador cassado de Pernambuco, para que ele pudesse deixar o Brasil com destino à Argélia, na condição de asilado.

Procurado pela piauí para comentar o resgate biográfico de Leitão da Cunha, Carrières não respondeu aos contatos da reportagem. O acesso à sua tese no Curso de Altos Estudos também foi negado. Considerado pelos seus pares como um servidor técnico, qualificado e com passagens bem-sucedidas pela Índia e pelo Reino Unido, Carrières é casado com Maria Inês de Carvalho, filha de Olavo de Carvalho. Trabalhou na assessoria internacional de Michel Temer. Quando todo o gabinete do emedebista foi exonerado na posse de Bolsonaro, Carrières saiu junto. Mas logo foi chamado de volta ao Palácio do Planalto para trabalhar na equipe de Filipe Martins, olavista convicto e assessor internacional de Bolsonaro, que conhecia bem o trabalho do diplomata. Depois, Carrières foi direcionado a um posto na Embaixada do Brasil em Washington, sob a batuta do embaixador Nestor Forster, outro reconhecido admirador de Olavo de Carvalho. Hoje, Carrières dá expediente na embaixada em Assunção, no Paraguai, onde vive com a mulher e os seis filhos. O casal é ultracatólico e educa os filhos em casa.

A trajetória profissional de Leitão da Cunha merece ser mais bem conhecida. Um dos maiores diplomatas de sua geração – nasceu em 1903, no Rio de Janeiro –, ele serviu na Argélia durante a Segunda Guerra Mundial, como delegado brasileiro junto ao Comitê Francês de Libertação Nacional, e lá se tornou próximo do general Charles de Gaulle. Integrou a delegação brasileira na primeira Assembleia Geral das Nações Unidas, em Londres, em 1947. Foi embaixador brasileiro em Cuba durante a revolução, pela qual chegou a ter simpatia – até compreender que Fidel Castro conduziria a ilha para o socialismo. Apesar de seu anticomunismo, Vasco Leitão foi embaixador em Moscou durante o governo João Goulart.

No entanto, a caça às bruxas que Vasco Leitão promoveu no Itamaraty salta aos olhos. Na contramão da releitura de Carrières sobre o personagem, o historiador Rogério de Souza Farias, da Universidade de Brasília, mergulhou em outros arquivos pouco explorados do período da ditadura e descobriu que as quatro cassações realizadas pelo chanceler não foram exigidas pelos militares. (Ele prepara um livro sobre seus achados, ainda sem previsão de lançamento.) Um exemplo: nas cinco oportunidades em que pôde deliberar sobre o caso de Azevedo Rodrigues, Leitão da Cunha defendeu a aplicação da penalidade mais severa. E não havia delito recente para justificar a punição dos outros três diplomatas – Houaiss, Almeida Rodrigues e Gondim –, que foi amparada em fatos antigos.

A pesquisa de Farias aponta que Houaiss foi aposentado por Leitão da Cunha em razão da alegada participação na “célula Bolívar”, já examinada no processo que se encerrara uma década antes. Até a consulta que o Itamaraty fez ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em 1964 para saber se havia fatos desabonadores sobre Houaiss voltou vazia. Mesmo assim, o chanceler enviou a Castello Branco o pedido de cassação, sem que fosse analisada a defesa do diplomata. Farias também descobriu que parte dos depoimentos usados para embasar a cassação de Houaiss foi, na verdade, deturpada, pois eram originalmente em defesa do diplomata.

Em 1983, um ano antes de sua morte, Vasco Leitão da Cunha deu um depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas. Alegou que, longe de perseguir diplomatas de esquerda, sua gestão os salvou de um expurgo ainda mais drástico. “Pude fazer uma proteção em torno do Itamaraty. Uma trincheira”, disse. E, assim, aquilo que o ex-chanceler chamou de “punição revolucionária” teria ficado em “termos aceitáveis”. No mesmo depoimento, Leitão da Cunha elogiou Houaiss: “Ele é generoso. Fala comigo.”

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-resgate-do-cacador-de-bruxas/?utm_campaign=a_semana_na_piaui_184&utm_medium=email&utm_source=RD+Station 

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Brasil-China: a grande batalha do 5G - Ana Clara Costa (Piaui)

 LIÇÃO DAS BRAVATAS

Os bastidores de como o governo cedeu à chinesa Huawei

Ana Clara Costa 

Piauí, Edição 182, novembro 2021

 

 

O dia 24 de novembro de 2020 era aguardado com certa dose de receio pelos interessados no leilão do 5G, a nova e rapidíssima tecnologia da internet que o Brasil implantará a partir de 2022. A razão da expectativa era um fato insólito: o ministro das Comunicações, Fábio Faria, levaria integrantes da Anatel, a agência que regula as telecomunicações, para uma reunião com o presidente Jair Bolsonaro e o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

 

A apreensão era justificada. Nunca antes um presidente da República convocou ao seu gabinete conselheiros da Anatel, uma agência independente do governo, e, para completar, eram cada vez mais ruidosos os rumores de que Bolsonaro queria banir a chinesa Huawei do leilão do 5G. Influenciado pela pregação norte-americana, desconfiava que a Huawei poderia usar sua rede para fins de espionagem no Brasil. Diante disso, supunha-se que a reunião incomum contemplaria um pedido que não estava previsto em lei: que a Anatel vetasse a participação da empresa chinesa.

 

Na noite anterior à reunião, um episódio agregara dose extra de tensão: o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) publicara uma série de tuítes críticos à China sobre o 5G. Em um deles, dizia que o Brasil apoiava “o projeto dos Estados Unidos para o 5G” e “sem a espionagem da China”. Não eram os primeiros ataques a Pequim. Em março daquele ano, reverberando o que Donald Trump dizia em Washington, o deputado usara o Twitter para culpar a China pelo coronavírus, recebendo uma resposta enérgica da Embaixada Chinesa, que o acusara de ter contraído “vírus mental” e estar “infectando a amizade” entre Brasil e China. Na ocasião, Bolsonaro teve de telefonar ao primeiro-ministro Xi Jinping para colocar panos quentes.

 

Mas, em novembro, ninguém sabia se o “vírus mental” não se espalhara pelo governo. A ideia de levar a turma da Anatel ao Palácio do Planalto partiu de Faria, que liderava as tratativas sobre o leilão do 5G. Ao chegar ao local, o ministro estava acompanhado de seu então secretário-executivo, Vitor Menezes, do secretário de Telecomunicações da pasta, Arthur Coimbra, do presidente da Anatel, Leonardo Euler, e de três dos quatro conselheiros da agência, Carlos Baigorri, Emmanoel Pereira, e Abraão Balbino. Ficaram cerca de trinta minutos na sala de espera da Presidência. Cientes dos rumores e da lambança diplomática de Eduardo Bolsonaro, os conselheiros já haviam definido que dariam razões técnicas para declinar um eventual pedido de exclusão da Huawei do edital do leilão. A principal delas: a Anatel é um órgão regulatório, não de segurança. Estava impedida, portanto, de deliberar sobre temas que não eram de sua competência.

 

 

 

Quando finalmente entrou no gabinete, a comitiva foi recebida com cordialidade pelo presidente, que falou de futebol antes de entrar no tema principal. O ministro Faria apresentou os técnicos e fez deferência especial ao conselheiro Baigorri, relator do edital do 5G. Bolsonaro então lançou, de forma evasiva, o seguinte comentário: “Esse negócio de 5G é importante. Tem muita pressão aí, dos americanos, e discussão com os chineses…”

 

O presidente não mencionou os tuítes do filho e, surpreendentemente, demonstrava não estar muito interessado em discutir o 5G em detalhes. Antecipando-se a um eventual pedido incômodo, Baigorri foi direto ao ponto. “Tem muita pressão mesmo, presidente”, disse ele. “Mas não temos como fazer nada a respeito da Huawei via edital. Precisa ser por decreto”, afirmou, referindo-se ao instrumento que só o presidente da República poderia editar. Baigorri então explicou que qualquer restrição à empresa teria de ter fundamento técnico. O general Heleno, sentado ao lado de Baigorri, assentiu: “Realmente, não dá para ser por edital. Se não for decreto, cai na Justiça no dia seguinte, com decisão de primeira instância.”

 

Nesse momento, o ministro Faria revelou a solução que já estava sendo preparada nos escaninhos de seu ministério, em conjunto com o GSI. “Não se preocupe, presidente. Inclusive, já temos uma minuta de decreto para quando o senhor quiser discutir o assunto com o GSI.” Faria tinha a minuta em mãos, mas não a mostrou aos presentes. Dias depois, o texto seria compartilhado com alguns técnicos. Redigido com base em uma instrução normativa lançada pelo GSI sete meses antes, dizia que só poderiam fornecer equipamentos para a rede 5G as empresas que apresentassem regras de governança específicas, como a publicação de seu quadro societário.

 

A regra atingia a Huawei em cheio. Embora tenha sido fundada pelo engenheiro e ex-militar Ren Zhengfei, um proeminente membro do Partido Comunista Chinês, a empresa informa em seu site que é “totalmente comandada por seus funcionários”. Dos seus 194 mil trabalhadores, quase 100 mil são acionistas, segundo a companhia. A Huawei diz ainda que “nenhuma agência do governo ou organização externa” detém suas ações. Contudo, como emite apenas bonds ao mercado e não tem ações listadas em bolsa, a empresa jamais precisou abrir seu quadro de sócios ou submeter-se à auditoria externa de firmas conhecidas, como a PwC, a Deloitte, a Ernst & Young ou a KPMG. Por isso, ninguém jamais conseguiu confirmar a real participação do governo na empresa.

 

A reunião terminou em meia hora, sem que Bolsonaro tivesse feito qualquer outro comentário sobre o assunto. Mas a existência de uma minuta de decreto alarmou os técnicos, em especial Leonardo Euler, o presidente da Anatel, que verbalizou seu estado de choque. Para o ministro Faria e seus auxiliares, Euler era visto como o elemento “chinês” na agência, em razão de sua amizade com um dos interlocutores da Huawei em Brasília, o ex-deputado Daniel Vilela (MDB-GO) – que foi justamente quem o indicou para presidir a agência no final do governo de Michel Temer, em 2018. Por essa razão, Faria não quis mostrar a minuta durante a reunião. Temia que Euler pudesse repassar as informações à chinesa. Em entrevista à piauí sobre o 5G, quando foi indagado sobre o episódio da minuta, Euler afirmou desconhecer o documento e se limitou a dizer que o papel da agência é técnico, não político. “A discussão do 5G tem as vertentes geopolítica, econômica e técnica. A vertente geopolítica extrapola a atuação da agência. O espaço para a discricionariedade da Anatel encontra limites em suas próprias competências legais. Ela implementa políticas públicas formuladas pelo Executivo.”

 

 A história da minuta do decreto rapidamente circulou entre os interessados no leilão – sobretudo as operadoras de telefonia e os diplomatas chineses. Por ser uma fabricante, e não uma operadora, a Huawei não poderia participar do certame, apenas vender seus equipamentos para que as teles oferecessem internet aos seus clientes. Por isso, as operadoras, principalmente a Claro, cujo modelo de negócio está voltado para a massificação de sua rede, não desejavam a exclusão da Huawei – o que elevaria o custo de instalação do 5G. Em razão da produção em larguíssima escala e dos subsídios do governo chinês, os equipamentos da Huawei têm preço até 40% inferiores aos das principais concorrentes, como a sueca Ericsson e a finlandesa Nokia.

 

Além disso, segundo a Anatel, cerca de 40% dos equipamentos usados pelas empresas de telecom nas redes de 3G e 4G no Brasil são fabricados pela Huawei – uma realidade que se materializou sem que nenhuma autoridade brasileira tenha reclamado até agora de suspeita de espionagem. Em função disso, as operadoras temiam que a exclusão da chinesa as obrigasse a substituir parte dos aparelhos já em uso, agravando os custos ainda mais. Nem mesmo a Ericsson, que contratara uma consultoria para acompanhar o tema do 5G no Brasil, desejava o veto. Na Suécia, a empresa defendeu, sem sucesso, que a chinesa não fosse banida do 5G. Sua razão era pragmática: temia ser retaliada em seus negócios na China. Por coerência, resolveu manter a mesma posição no Brasil e defender a inclusão da Huawei.

 

 A notícia da minuta movimentou o lobby das operadoras no Congresso, que arregaçou as mangas para tentar impedir o veto à Huawei. O governo da China, por sua vez, passou a pressionar seus parceiros comerciais no Brasil, notadamente no agronegócio, para que fizessem chegar ao Palácio do Planalto seu descontentamento. Os exportadores de carne foram avisados pelos importadores chineses de que seria difícil manter o acesso ao mercado interno se a Huawei fosse vetada. O Brasil é um dos países que detêm o maior número de estabelecimentos habilitados a fornecer carne aos chineses (102 no total). A diplomacia de Pequim fazia questão de frisar que esse setor específico se beneficiaria muito do constante aumento do nível de renda da população chinesa, que passaria a consumir cada vez mais carne.

 

A pressão chegou à Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), que representa o lobby dos grandes vendedores, e à Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), que atua em nome dos abatedouros. Ambas acionaram a ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM-MS), que, segundo um ex-auxiliar de Bolsonaro, chegou a receber um telefonema de seu homólogo chinês, Tang Renjian, avisando que a China gostaria de competir em condição de igualdade com as demais empresas interessadas no 5G. O ex-senador Blairo Maggi, um dos maiores produtores de soja do país, entrou no circuito para interceder em favor dos chineses, conversando com Tereza Cristina. O embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming, o mesmo que respondeu com dureza às provocações de Eduardo Bolsonaro, procurou a ministra para despejar sua insatisfação. A senadora Kátia Abreu (PP-TO) e o deputado Fausto Pinato (PP-SP), então presidente da Frente Parlamentar Brasil-China e da Comissão de Agricultura da Câmara, falavam sem nenhum pudor que haveria retaliação se a China não estivesse no 5G. 

 

A senadora Kátia Abreu não quis dar entrevista à piauí alegando não estar interessada em falar “do passado”. O deputado Fausto Pinato, advogado e empresário nascido em Fernandópolis (SP), integra a bancada ruralista desde seu primeiro mandato, em 2015. Apoiou a eleição de Bolsonaro e celebrou a aproximação do governo com os Estados Unidos. Hoje, mudou de opinião. “Eu sou de direita assumido. Direita moderada. Eu não defendo o regime chinês. O que eu defendo é: se a melhor parceria para o agro é com a China, ótimo. Se a melhor parceria para o 5G for a China, ótimo também. Se não for a China e for outro país, ótimo. Temos de ser pragmáticos. Não dá para embarcar na ideologia do pessoal da terra plana”, diz.

 

Pinato também ouvia as associações ligadas à exportação de carne, em especial a Abiec, reclamarem do governo nos bastidores, mas não ousavam fazer o mesmo em público. “Todo mundo ficava quieto publicamente”, relembra o deputado. “Só se falava a portas fechadas. Na hora de se expor, era eu na Câmara, a Kátia Abreu no Senado e a ministra Tereza Cristina sempre agindo via embaixada para colocar panos quentes, dizendo: ‘O problema são os filhos, não ele.’ A Abiec e o setor como um todo falavam à boca pequena que estava errado. Mas não queriam brigar publicamente em favor da China porque o Bolsonaro está dando tudo o que eles querem.” O deputado e ex-ministro da Agricultura Neri Geller (PP-MT) também guarda recordações pouco saudosas daqueles dias. “O quanto nós trabalhamos para conquistar esses mercados, quantas viagens para a China!”, lembra o político, que também é produtor rural e expoente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). “Eu sou da base. Não estou fazendo crítica sistemática, mas apenas pontual. A política externa, nesse caso, foi muito equivocada. Graças a Deus a ministra Tereza pacificou as coisas. Senão teria sido muito pior”, diz.

 

Para o agronegócio, brigar com a China é uma estupidez. É para os chineses que vão 35% de suas exportações. No caso da soja, 70% do que é exportado vão para os portos chineses. A China importa mais que o dobro do segundo maior parceiro do agro brasileiro, que é a União Europeia, destino de 15% da produção nacional. E, para o governo, se indispor com a China também é uma estupidez. Entre janeiro e agosto deste ano, o saldo da balança comercial brasileira com a China resultou num superávit de 35 bilhões de dólares – o que corresponde a 67% do superávit total do Brasil. Os chineses são, de longe, o parceiro comercial mais relevante do Brasil, superando com folga os Estados Unidos, com quem o Brasil registra déficit, pois importa mais do que exporta. 

 

Estava criado o confronto entre o comércio e a ideologia.

 

A participação chinesa no 5G havia se tornado um dilema estratégico para os países que seguem o modelo do capitalismo ocidental. Além dos Estados Unidos, nações como Alemanha, Austrália, Nova Zelândia, Reino Unido, França, Espanha e Itália já haviam banido a chinesa, aprovando leis restritivas ao setor de telecom ou estabelecendo regras que, na prática, impediam a Huawei de fornecer seus equipamentos. No Japão, de cujos semicondutores a China é grande compradora, não há empecilho legal para a presença da Huawei, mas o país se alinhou politicamente a Washington na questão do 5G e tem fornecedores locais para suprir boa parte de sua demanda interna. Na Alemanha, as regras são as seguintes: a Huawei pode participar, desde que crie uma subsidiária alemã, com capital aberto na Bolsa de Frankfurt e auditoria feita por uma firma especializada – requisitos que, pelas razões já descritas, a chinesa não quer cumprir.

 

Em meio à disputa entre Estados Unidos e China, a diplomacia norte-americana tentou convencer as demais potências mundiais de que Pequim acessava dados de usuários ilegalmente. O argumento principal é que a Huawei está submetida à Lei de Inteligência Nacional, em vigor desde 2017 na China, segundo a qual qualquer organização ou cidadão deve apoiar, ajudar e cooperar com o trabalho da inteligência do Estado chinês. Em 2019, a Huawei apresentou um parecer de um escritório de advocacia chinês mostrando que a lei não se aplicaria às subsidiárias nem aos seus funcionários no exterior. Mas o documento não convenceu pois a legislação também prevê que o trabalho de “inteligência” seria uma obrigação legal de todo cidadão chinês, mesmo fora da China. Antes dessa lei, em meados de 2011, a Huawei convidou o governo norte-americano a inspecionar in loco as instalações da companhia em Shenzhen. O Comitê de Inteligência da Câmara, liderado pelo Partido Republicano, topou a oferta. No ano seguinte, publicou um relatório de 52 páginas. Dizia – e isso, ressalte-se, antes da lei de inteligência – não ser possível confiar que a Huawei não estivesse sob influência do governo.

 

A pressão norte-americana chegou ao Brasil logo na primeira reunião que Bolsonaro teve com Trump, em sua visita a Washington, em 2019. Entre os principais assuntos tratados, estava a participação da Huawei no 5G. Em setembro de 2020, quando visitou o Brasil, o então secretário de Estado, Mike Pompeo, fez questão de falar sobre a “importância de manter o futuro do Brasil livre do Partido Comunista Chinês”. Antes da visita, Pompeo fez uma carta pública em que instava o Brasil a assinar o “Clean Network” (Rede Limpa), acordo criado pelos Estados Unidos para reunir os países que baniram a Huawei e compensá-los financeiramente por eventuais perdas decorrentes de sanções chinesas. Em novembro, enquanto promovia uma cachoeira de mentiras para provar que sua derrota eleitoral fora uma fraude, Trump mandou um representante ao Brasil, Keith Krach, para reforçar a pressão pelo veto à China.

 

As autoridades chinesas, por sua vez, também entraram em campo para dissipar a percepção de que faziam espionagem. Numa reunião virtual em 18 de setembro de 2020, o chanceler Ernesto Araújo recebeu um recado de seu contraparte chinês Wang Yi. O chinês iniciou a conversa lembrando o vigor das exportações brasileiras de carne bovina e suína para a China, e ressaltou os esforços do seu país para criar uma iniciativa global para coibir a “insegurança digital”. No glossário sutil da diplomacia, estava claro que se referia aos riscos de retaliação comercial em caso de banimento da Huawei. Num despacho diplomático sigiloso endereçado à Embaixada Brasileira em Pequim, ao qual a piauí teve acesso, Araújo relatou a conversa assim: “Limitei-me a mencionar que se trata de discussão premente e a informar que a proposta chinesa [sobre segurança digital] será examinada com a devida atenção.”

 

Em outubro, a diplomacia brasileira mostrava preocupação com o assunto. Em outro telegrama diplomático, dessa vez despachado pela Embaixada Brasileira em Nova Delhi, o embaixador André Corrêa do Lago relatava que a Índia vivia um dilema parecido com o do Brasil. Na implantação de sua rede de 5G, os indianos tentavam equilibrar riscos à segurança de dados, alinhamento político com os Estados Unidos e presença forte da China no setor de tecnologia local, onde 25% dos equipamentos da infraestrutura de 3G e 4G são chineses. (Em maio deste ano, a Índia decidiu correr o risco de eventuais sanções comerciais e vetou a Huawei no seu 5G.)

 

Enquanto as pressões se multiplicavam no Brasil, Bolsonaro resolveu que o assunto seria tratado apenas pelo ministro Fábio Faria. “Ninguém vem falar de 5G comigo e não está aberta a agenda para quem quer que seja a pessoa, a não ser que ela venha acompanhada do ministro Fábio Faria, das Comunicações”, disse, em dezembro de 2020. Na verdade, estava irritado com seu vice, Hamilton Mourão. Em 2019, Mourão visitou a China, onde foi recebido por Xi Jinping com honras de chefe de Estado. Bolsonaro ficou enciumado. No Brasil, Mourão recebeu o embaixador chinês ao menos duas vezes e, naquele dezembro, falou publicamente contra o veto à Huawei, dizendo que encareceria o 5G. Fábio Faria sentiu-se atropelado, e Bolsonaro quis cortar as asas do vice.

 

O presidente estava numa encruzilhada. Ou se rendia à posição do agronegócio e à proeminência da China no comércio externo brasileiro, ou se rendia às principais potências mundiais, sob liderança dos Estados Unidos, e à ala ideológica de seu governo, que insistia em dizer que o Brasil não dependia da China, mas a China é que dependia do Brasil. Acuado pela sucessão de bravatas que ele próprio patrocinara, do “comunavírus” à “vachina chinesa”, Bolsonaro não sabia o que fazer – e não fez nada. Enquanto a minuta do decreto pairava no ar, as semanas se passavam sem uma decisão.

 

Até que Bolsonaro foi abalroado por dois fatos com os quais não contava: Donald Trump teve que engolir a derrota, e o mundo passou a correr atrás de vacinas para combater a pandemia. Com a vitória do democrata Joe Biden, a posição dos Estados Unidos em relação à China se manteve inalterada, mas esfriou em relação ao Brasil. O governo brasileiro ficou inseguro de depender da ajuda norte-americana em caso de retaliação chinesa. “Quando o Trump perde e a Covid-19 retoma mais forte, em 2021, o Brasil passa a depender dos insumos da China para a vacina”, explica Thiago de Aragão, diretor da consultoria Arko Advice e especializado em relações internacionais pela universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. “O jogo virou completamente. A dependência da China cresceu e ficou caro demais para o governo bancar a restrição ao 5G. O governo teve uma oportunidade política de criar o veto à China antes da derrota do Trump e não a aproveitou. Ficou tarde demais.”

 

O retorno da pandemia, associado à disputa de Bolsonaro com o governador paulista João Doria para ser o primeiro a vacinar, empurrou o governo brasileiro para o colo da China. No dia 11 de dezembro, menos de três semanas depois da reunião da minuta do decreto, Ernesto Araújo enviou um telegrama em caráter “urgentíssimo” à Embaixada em Pequim dando instruções para que fossem realizadas “gestões urgentes junto às autoridades chinesas” a fim de que a empresa Wuxi Biologics pudesse exportar ao Brasil a substância ativa (também chamada de IFA) para a fabricação de doses da vacina AstraZeneca. “Solicito informar com a brevidade possível a reação das autoridades chinesas”, escreveu o chanceler.

 

Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que fez parceria com a Universidade de Oxford para produzir a AstraZeneca, toda a documentação para importar o IFA já tinha sido enviada à China, incluindo o parecer favorável da Anvisa à importação. No entanto, o governo chinês exigiu uma burocracia extra: um pedido oficial do governo brasileiro que fizesse referência à emergência sanitária e confirmasse que o destino do IFA era realmente a Fiocruz. Tratava-se de um trâmite incomum, mas que foi cumprido pelo Itamaraty com rapidez.

 

No dia 6 de janeiro de 2021, quase um mês depois do apelo de Ernesto Araújo, o IFA ainda não havia sido despachado para o Brasil. O encarregado de negócios da Embaixada Brasileira em Pequim, Celso de Tarso Pereira, relatou as dificuldades. Primeiro, o pessoal do posto diplomático tentou agendar uma reunião entre o então ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, e sua contraparte chinesa, o ministro Ma Xiaowei. Os chineses declinaram, dizendo que o tema não estava sob a alçada de Xiaowei. Então, os diplomatas brasileiros começaram a buscar a área responsável, mas ficavam sendo encaminhados de um órgão para outro.

 

Perdidos no labirinto burocrático, os diplomatas entraram em contato diretamente com a Wuxi Biologics e com a própria filial da AstraZeneca na China, no intuito de encurtar caminhos. Em vão. “Seguiram-se telefonemas e trocas de mensagens diárias com diplomatas chineses”, escreveu Pereira. “Até agora, contudo, não foram franqueadas informações concretas sobre o processo. Mesmo o acesso direto ao diretor do Departamento de Organizações Internacionais, a quem, entende-se, caberia dar o parecer da chancelaria sobre o caso, tem sido dificultado.”

 

Lendo-se os telegramas, fica-se com a impressão de que os diplomatas em Pequim não perceberam que, por trás da burocracia, havia uma retaliação pela ameaça à Huawei. Em 15 de janeiro, com os trâmites ainda paralisados, Ernesto Araújo, o criador do neologismo “comunavírus”, enviou carta ao chanceler chinês pedindo polidamente que intercedesse pelo Brasil. “Ficaria muito grato se pudesse contar com a intervenção de Vossa Excelência para a obtenção da autorização da referida exportação. Trata-se de insumos essenciais para a manufatura no Brasil de parte importante da cobertura vacinal de que os brasileiros necessitam”, escreveu Araújo.

 

Na mesma época, o Chile recebeu cerca de 4 milhões de doses da vacina chinesa Sinopharma, sem enfrentar tamanha burocracia. A Turquia, no entanto, que esperava 20 milhões de doses da Sinovac, também lidava com atrasos semelhantes ao brasileiro – e havia indícios de que também se tratava de uma retaliação. Uma reportagem do jornal The Washington Post, publicada em 7 de abril, especulou que Pequim estava pressionando a Turquia pela extradição de imigrantes da etnia uigur, uma maioria muçulmana que a China persegue de modo implacável. Fiel à sua discrição, a China jamais admitiu que retaliava o Brasil pela Huawei ou a Turquia pelos uigures.

 

A pressão por meio do comércio exterior é prática recorrente, e não apenas do governo chinês. “A União Europeia usa esse expediente na África, ameaçando retirar o dinheiro destinado aos países africanos se eles não votarem de forma coordenada na Organização Mundial do Comércio”, afirma o ex-secretário de Comércio Exterior Welber Barral, hoje sócio da consultoria BarralMJorge. “Mas, no caso da China, tudo é muito mais organizado e menos transparente. A estratégia de pressão é mais centralizada, e os atores privados obedecem com muito mais efetividade do que num país como os Estados Unidos, onde há debates internos, oposição, um setor privado com maior autonomia. Poucos países têm o poder de pressão da China”, explica Barral.

 

Embora o decreto do 5G não tenha prosperado, o setor de proteína animal permanece sob pressão incomum. Os embarques de carne para a China foram paralisados em setembro depois que se detectaram dois casos atípicos de vaca louca (não se tratava de uma contaminação generalizada, mas de casos pontuais, decorrentes do envelhecimento do animal). Dentro da Abiec, acredita-se que a China tenha aproveitado a oportunidade para tentar derrubar o preço do produto no mercado internacional e, de quebra, retaliar o Brasil em razão dos ataques vindos do governo. “A questão técnica está resolvida porque já ficou provado que são dois casos atípicos”, diz o deputado Neri Geller. “Por que o mercado permanece fechado, então? É rescaldo da discussão ideológica dos últimos dois anos. Com a mudança no comando do Itamaraty, melhorou muito. Mas o passado pesa”, diz. A ministra Tereza Cristina tentou viajar à China para mitigar o problema, mas, até o fechamento desta edição, não recebera aval de Pequim para embarcar.

 

Só o Itamaraty de Ernesto Araújo não entendeu o jogo – ou fingiu não entender. No dia 20 de janeiro, em audiência na Câmara dos Deputados, o chanceler chegou a dizer que não havia identificado “nenhum problema de natureza política em relação ao fornecimento desses insumos provenientes da China”. E ainda detalhou: “Nem nós no Itamaraty aqui de Brasília nem a nossa Embaixada em Pequim nem outras áreas do governo identificaram problemas de natureza política, diplomática. Não identificamos nenhum percalço nesse sentido.” Tanto havia percalço que, naquele mesmo mês, até o próprio ministro Fábio Faria já apoiava o pleito da China. E a minuta do decreto presidencial contra a Huawei foi para a gaveta – de onde nunca mais saiu.

 

“Não existe coincidência aí”, diz um aliado de primeira ordem do presidente, que falou com a piauí na condição de anonimato para não ser excluído do rol de amigos. “O presidente conseguiu evitar se curvar à pressão chinesa durante muito tempo. Mas os atores a favor da China foram mais fortes. A ministra Tereza e a bancada do agronegócio ganharam reforços quando o Fábio Faria e o Bruno Dantas [ministro do Tribunal de Contas da União] também passaram a pressionar em favor da China. Ficou insuportável. O presidente não teve como resistir.” Ele relata ainda que, em uma das reuniões ministeriais ocorridas em janeiro, Tereza Cristina foi taxativa: “Se não flexibilizar no 5G, não vai ter respirador nem vacina”, disse a ministra. Consultada pela piauí, ela não quis falar.

 

 No dia 5 de fevereiro, a China despachou para o Brasil um primeiro lote de 90 litros de insumos para a fabricação da AstraZeneca pela Fiocruz. No final daquele mês, foi autorizado o envio de outros 180 litros, que permitiram a fabricação de cerca de 9 milhões de doses da vacina. Um técnico que acompanhou as discussões do caso resumiu assim o desfecho das negociações: “O assunto do decreto morreu, a vacina foi liberada.”

 

Pouco antes da liberação dos insumos pela China, no dia 2 de fevereiro, o ministro Fábio Faria liderou uma comitiva de umas dez pessoas para visitar as fábricas das principais fornecedoras de equipamentos para o 5G – na Suécia, na Finlândia, na Coreia do Sul, no Japão e, claro, na China. Era a “missão 5G”. Convidou três ministros do TCU (aos quais caberia aprovar o edital), o almirante Flávio Rocha, secretário de Assuntos Estratégicos do governo, que faria o papel de olhos e ouvidos de Bolsonaro, e o ministro da Defesa Walter Braga Netto, que poderia sanar suas dúvidas sobre segurança de dados. Braga Netto mandou em seu lugar o general Ivan Corrêa Filho, comandante de “Comunicações e Guerra Eletrônica” do Exército. Os destinos asiáticos não estavam contemplados na primeira concepção do roteiro, que incluía apenas Suécia e Finlândia, países com os quais o Brasil pretendia negociar. Depois da retaliação chinesa sobre o IFA, o ministro Faria incluiu a Ásia na viagem que duraria onze dias.

 

A comitiva voou a bordo de um Embraer Legacy 600 da Força Aérea Brasileira. Em Estocolmo, primeira parada, ficaram hospedados no hotel Radisson, quatro estrelas, visitaram a Ericsson, tiveram encontros com membro do governo sueco, e uma parte da comitiva partiu para uma visita à residência de Marcus Wallenberg, vice-presidente do conselho do conglomerado Investor AB, fundo que controla não só a Ericsson, mas também a AstraZeneca. Wallenberg vive em Täcka Udden, numa propriedade de estilo francês-renascentista comprada por sua família em 1888. O almirante Flávio Rocha ficou impressionado, não tanto pela conversa sobre o 5G, mas pela decoração de inspiração naval da residência. Os Wallenberg descendem de negociadores navais, e todos os homens da família são obrigados a se alistar na Marinha sueca antes de ingressar nos negócios.

 

Em Helsinque, capital da Finlândia, a comitiva foi recebida pelo presidente da Nokia, Pekka Lundmark, quando deu-se o primeiro contratempo: um dos tripulantes do voo da FAB testara positivo para a Covid-19. Em função disso, a passagem pela Coreia do Sul, em razão de restrições impostas pelo país para evitar o risco de contágio, teve de ser cancelada. A comitiva seguiu direto para o Japão. Em Tóquio, ficaram hospedados no bairro de Ginza, numa área elegante da cidade, encontraram-se com autoridades japonesas e visitaram as instalações da Fujitsu e da NEC, fabricantes menores de componentes para o 5G.

 

O grupo só desembarcou em Shenzhen, no sudeste da China, na noite do dia 10. E teve uma deferência especial, que demonstra o interesse chinês: foram dispensados da quarentena de 21 dias exigida de todos que chegassem do exterior. A Embaixada Brasileira em Pequim alertara o ministro Faria de que seria difícil conseguir contornar a regra de quarentena, algo proibido até mesmo aos membros da cúpula do governo. Os diplomatas relataram ainda que a comitiva corria o risco de ser retida ainda no aeroporto ao desembarcar. Foi o embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming, um alto membro do Partido Comunista, que conseguiu a façanha de liberar os brasileiros da exigência. Em contrapartida, toda a missão teve de ficar confinada em uma mesma residência em Shenzhen, sem autorização para sair. Só puderam se locomover em vans selecionadas pela Huawei.

 

Na manhã seguinte à chegada dos brasileiros, 8h30 em ponto, o grupo teve uma reunião virtual com o fundador e presidente da Huawei, Ren Zhengfei, que estava resguardado desde o início da pandemia. Sua última aparição pública ocorrera em 21 de janeiro de 2020, quando esteve no Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, e foi entrevistado pelo historiador israelense Yuval Harari.

 

Depois da reunião com Zhengfei, a comitiva fez um tour pelo campus tecnológico da Huawei, onde recebeu horas de demonstrações da tecnologia 5G, e conheceu um laboratório de segurança cibernética e proteção de dados – essa parte específica do roteiro foi pedida pelo Ministério da Defesa. Foi o último compromisso da “missão 5G”, que deixou a China naquela mesma noite, menos de 24 horas depois do desembarque. Segundo o relatório da viagem apresentado ao Ministério das Comunicações, a turma estava tão exausta que pediu para pernoitar nas escalas em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, e em Argel, na Argélia.

 

Apesar da mobilização brasileira para ir à China e da disposição chinesa em receber a comitiva, o ministro Fábio Faria ainda negava que a viagem tivesse qualquer intuito de pacificação política. Dizia aos seus auxiliares que, se fosse uma missão política, eles teriam ido a Pequim – e teriam sido recebidos pelo chanceler Wang Yi.

 

Mesmo sem escala em Pequim, a visita da comitiva brasileira ajudou a serenar os ânimos. No início de março, a pedido da China, houve uma videoconferência entre o número dois da Embaixada Chinesa em Brasília, Qu Yuhui, e diplomatas do Itamaraty. Segundo um telegrama a que a piauí teve acesso, o chinês elogiou a passagem da comitiva brasileira pela China e tomou a iniciativa de tocar no assunto da Huawei. Disse que eram “encorajadores os sinais de que nenhuma empresa será impedida, a priori, de participar do processo”.

 

No mês seguinte, com Ernesto Araújo já demitido da chancelaria, o clima ficou ainda mais ameno. Carlos Alberto França, o novo chanceler, recebeu uma ligação de acolhida do seu colega chinês, Wang Yi. A conversa telefônica foi testemunhada pelo chefe de gabinete de França, o embaixador Achilles Zaluar, e pela secretária de Negociações Bilaterais na Ásia, Pacífico e Rússia, a embaixadora Márcia Donner Abreu. Wang Yi disse que a China continuaria a importar produtos agrícolas brasileiros e que o país tinha interesse em “ampliar a cooperação em telecomunicações e 5G”. Ao relatar a conversa em telegrama à Embaixada Brasileira em Pequim, França disse ter notado que a “missão 5G” em Shenzhen havia sido “exitosa”.

 

O problema é que a base bolsonarista, incitada contra a China desde a campanha eleitoral de Bolsonaro, continuava o barulho. Nas redes sociais, diziam que a vacina CoronaVac, de origem chinesa, era ineficaz e não perdiam uma oportunidade para denunciar a espionagem chinesa no 5G. O deputado Fausto Pinato, que tentava aplainar o caminho para a Huawei, era chamado de “lobista do regime comunista”. Intrigado com a omissão de Bolsonaro em censurar um comportamento que dinamitaria as relações com a China, ele foi ao Palácio do Planalto para uma reunião com o então ministro da Secretaria de Governo, o general Luiz Eduardo Ramos.

 

Pinato rememora: “Ramos então me disse: você sabe que é difícil, esse pessoal não gosta da China, é coisa pessoal. Ou seja: por uma questão pessoal estava prejudicando o país?” O próprio deputado conhecia o assunto. Em outubro de 2019, ele acompanhara a viagem da comitiva presidencial à China. Ele lembra que, durante a viagem, o general Augusto Heleno e o próprio Bolsonaro temiam pela segurança de seus dados pessoais. “Eles são tão neuróticos que confundem a ficção com a realidade. Ficavam o tempo todo preocupados de usarem seus próprios telefones.” E nem mesmo o Ministério da Defesa conseguiu até hoje provar o risco de insegurança cibernética. Convocados para falar na Câmara dos Deputados sobre os riscos do leilão do 5G, os militares, diz Pinato, “não apresentaram nenhuma prova de vazamento ilícito de dados”.

 

Era perceptível que a paranoia não estava limitada à base bolsonarista até que apareceu uma evidência concreta. No final de abril, quando parecia que as coisas podiam se manter sob controle, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse num evento que o coronavírus havia sido “inventado” pela China. O estrago estava feito, mas ficou pior. Em seguida, Bolsonaro, compartilhando a ideia de Guedes, disse que o coronavírus estava aí para ser usado numa “guerra química”. Não chegou a mencionar a China, mas deixou implícito que a tal arma saíra dos laboratórios de Pequim. O deputado Pinato se recorda do episódio: “Depois de todo o nosso esforço, vinha o Bolsonaro ou algum ministro e colocava tudo a perder. Ficamos com cara de palhaços.”

 

Desde sua visita à China, o ministro Fábio Faria sabia que o Brasil não tinha condições de impor aos chineses as mesmas restrições que outros países impuseram. Mas achava que uma liberação total à Huawei colocaria o Brasil numa posição de vulnerabilidade no mundo. Além das elevadas considerações de caráter geopolítico, havia ainda a banalidade da política interna: os bolsonaristas mais carnívoros, dentro e fora do governo, precisavam receber alguma coisa com a aparência de filé para, pelo menos, fazer de conta que tiveram uma vitória. Faria, ele mesmo, teve uma ideia.

 

Em conversa com os técnicos do seu ministério, ele sugeriu que fosse acrescida ao edital do leilão uma nova exigência: a rede de 5G que servisse o Executivo, o Legislativo e o Judiciário teria de ser construída por empresas que seguissem regras compatíveis com companhias de capital aberto. A regra excluía a Huawei, mas a exclusão seria restrita apenas à infraestrutura da rede dos três poderes da República. Era o que, internamente, o governo passou a chamar de “rede privativa”. Também ficaria contemplada nessa regra a rede 5G na região do programa Amazônia Conectada, numa tentativa de atenuar os temores conspiratórios dos militares de que a China poderia ameaçar a soberania nacional em solo amazônico.

 

A Anatel foi informada da novidade e incluiu-a no texto do edital do leilão. Em seguida, o documento foi submetido à avaliação do TCU. A resposta da área técnica do tribunal saiu só no início de agosto, depois de uma análise criteriosa: apontava uma série de erros no edital, como a omissão de não obrigar as operadoras a fornecerem internet de alta velocidade para as escolas públicas. Sobre a “rede privativa”, o edital dizia, sem meias-palavras: que era ilegal. Só seria legal se fosse implantada por meio de licitação ou parceria público-privada – e não um leilão. Os ministros não são obrigados a seguir a avaliação da área técnica. Por isso, a “rede privativa” entrou no edital do leilão mesmo assim. No fim de agosto, depois de incluírem às pressas a internet para as escolas públicas, o edital estava aprovado no TCU.

 

 O técnico do TCU, responsável pelo relatório, reforçou, com certa dose de resignação, que todos os pontos que haviam sido descritos e trabalhados ao longo de quatro meses por sua equipe eram importantes para o leilão. “Tudo que estava no relatório era muito relevante”, afirma Uriel Papa, secretário da área de Infraestrutura do TCU. Internamente, os ministros já estavam convictos de que o leilão tinha de ser aprovado o quanto antes, alegando que a pandemia já havia atrasado demais o cronograma, e avaliavam que a área técnica havia sido dura em seu relatório porque estava ressentida. Na avaliação de um dos ministros, que pediu à piauí que seu nome não fosse revelado, os técnicos se aborreceram por não terem sido ouvidos durante o processo. Somente em julho deste ano, quando o relatório da área técnica estava prestes a ser concluído, Uriel Papa foi convidado a ir a uma viagem organizada pelo ministro Faria. Visitou as instalações de 5G e rede privativa em Washington, nos Estados Unidos. A cortesia, contudo, não alterou o tom do relatório.

 

 A inclusão da “rede privativa” no edital foi apenas uma forma de satisfazer o apetite do bolsonarismo. A proposta da rede exclusiva poderia ser executada pelo governo sem edital nem leilão. A lei de licitações prevê que o governo tem a prerrogativa de escolher a empresa de sua preferência para realizar determinados serviços. Na infraestrutura do 5G, por exemplo, bastaria que escolhesse, no caso específico da rede para os três poderes, qualquer empresa que não a Huawei. A diferença é que essa saída, já prevista em lei, não daria o discurso que a base bolsonarista exige. Para a Huawei, foi uma excelente solução. Estima-se que a “rede privativa”, que contempla também a Amazônia, corresponderá a apenas 5% dos investimentos previstos para toda a rede nacional. A empresa chinesa, no final das contas, ficará com o filé.

 

Depois de todo o barulho sobre a China, o Brasil acabou se colocando numa posição ímpar. Entre as quinze maiores economias do mundo, é um dos únicos países que vai aceitar, com restrição mínima, o fornecimento de equipamentos da Huawei na sua infraestrutura de 5G. Os outros – Estados Unidos, Alemanha, México, Reino Unido, Índia, França, Austrália, Itália e Espanha – impuseram veto total ou critérios difíceis de serem cumpridos. O Japão, apesar da ausência de restrições, é um dos mais ativos no acordo da Clean Network. O Canadá ainda não bateu o martelo, mas aposta-se que seguirá alinhado com os Estados Unidos. A Coreia do Sul e a Rússia, que completam a lista dos grandes, são as exceções e não devem banir a Huawei. Em 2019, o Reino Unido chegou a dizer que autorizaria equipamentos da empresa chinesa em até 35% de suas redes de 5G, uma vitória tão significativa que o fundador da Huawei disse que fora a sua “batalha de Stalingrado”. Mas, neste ano, sob pressão do Partido Conservador, o primeiro-ministro Boris Johnson voltou atrás.

 

É uma disputa de gigantes. China e Estados Unidos estão brigando para saber quem vai controlar a nova geração de redes de comunicação ultra velozes. Num futuro cada vez mais próximo, a automação de processos simples (como dirigir um carro) e complexos (como fazer uma cirurgia cardíaca) poderão ser feitos remotamente. Essa perspectiva torna a espionagem de dados um trunfo para quem rouba e um perigo para quem é roubado. As agências de inteligência dos Estados Unidos e do Reino Unido avaliam que, embora a Huawei possa estar bem-intencionada, o modelo de governo chinês a impediria de agir com independência caso fosse requisitada a fornecer dados de usuários.

 

Desde que os Estados Unidos passaram a questionar a idoneidade da Huawei, no início da década de 2010, a empresa vem negando o uso de sua rede para propósitos ilícitos. Zhengfei, o fundador, também nega que sua empresa tenha participação acionária do governo, embora uma reportagem do Wall Street Journal tenha apontado que a companhia acumulou 75 bilhões de dólares em financiamento estatal, subsídios e benefícios fiscais ao longo das últimas três décadas. A Huawei negou ao WSJ que recebe tratamento diferenciado do governo. Em outra reportagem, publicada pela BBC, Zhengfei foi questionado sobre o fato de uma das ex-presidentes da Huawei, Sun Yafang, ter trabalhado no Ministério de Segurança chinês. O empresário respondeu que a suspeita não era justa. A piauí pediu uma entrevista com o representante da Huawei no Brasil, mas a empresa não quis falar.

 

Depois que sua filha e ex-diretora financeira da Huawei passou três anos presa no Canadá a pedido da Justiça norte-americana, acusada de fraude, lavagem de dinheiro e espionagem industrial, Zhengfei adotou uma postura mais beligerante em relação aos Estados Unidos. Criou um plano de comunicação para defender a imagem da empresa na mídia internacional, brigar na Justiça para ter o direito de vender no mercado norte-americano e investir em tecnologia. Ganhar o mercado brasileiro nunca foi sua “batalha de Stalingrado”, mas era fundamental em sua estratégia mundial.

 

O leilão do 5G é um evento singular que marcará um ponto de inflexão nas telecomunicações, segundo o empresário Roberto Nogueira, presidente da Brisanet, empresa de telecom que cresceu a partir década de 2000 investindo em fibra ótica no Nordeste e, agora, depois de captar mais de 1 bilhão de reais na bolsa de valores, poderá disputar lotes no leilão ao lado das grandes, como Vivo, Claro, Tim e da mineira Algar. “É um momento único. Estamos vivendo a década da transformação da infraestrutura de telecomunicações. Os cabos desaparecem e entra a fibra ótica na banda larga das residências, o 5G passa a entregar internet móvel de alta performance. Tudo isso abrirá caminho para uma transformação de logística e serviços nas próximas décadas”, explica Nogueira. Segundo ele, participar do leilão do 5G é fundamental porque não haverá outro parecido nas próximas duas décadas.

 

A Algar, que foi uma das primeiras clientes da Huawei no Brasil, quando ainda estava em vigor a tecnologia de segunda geração, chamada de GSM, nos anos 2000, não tem reclamações a fazer da empresa, embora tenha, ao longo do tempo, migrado sua rede para a Nokia. “Foi uma experiência ímpar. Boa tecnologia, bom serviço, bom suporte”, diz o presidente da empresa, Jean Carlos Borges. Contudo, ele relata que com a chegada das redes 3G e 4G, os equipamentos mais voltados para a tecnologia de dados, e menos para telecom, passaram a interessar mais à sua empresa – daí a migração para a Nokia, que ofereceu uma combinação entre tecnologia e preço que lhe pareceu mais vantajosa. “Hoje, esses equipamentos das duas fabricantes coexistem”, explica.

 

Embora se fale no “leilão do 5G”, o que o governo leiloará para as operadoras neste mês de novembro é o “espectro”, uma espécie de tubulação por onde passam os dados. O 5G é a tecnologia que transporta esses dados dentro do espectro. Serão leiloadas, portanto, faixas maiores e menores dessa tubulação. As maiores faixas serão, em sua maioria, de abrangência nacional. Mas haverá um lote separado para empresas que desejam operar em apenas uma região, como é o caso da Brisanet e da Algar. Elas ocuparão um espectro menor dentro da tubulação. Quando todas as fases do certame forem concluídas, a nova tecnologia começará a chegar aos usuários a partir do ano que vem.

 

 As operadoras têm até julho de 2022 para construir a infraestrutura nas 26 capitais e no Distrito Federal e entregar o novo serviço. Embora o 5G para a telefonia móvel seja a grande novidade, o aumento da rede de fibra ótica será obrigatório para drenar o volume colossal de dados em circulação. Ou seja, o investimento em fibra ótica também será fundamental para promover a universalização da internet de alta velocidade no Brasil. As operadoras terão de investir na fibra tanto quanto na internet móvel 5G, elevando em dez vezes o cabeamento da rede de banda larga fixa no Brasil.

 

O Brasil já está conectado: 83% dos domicílios têm algum acesso à internet, mas apenas 44% têm um computador. Conclui-se, portanto, que a conectividade no país se apoia, sobretudo, na internet móvel, por celular — com planos majoritariamente pré-pagos e de baixo volume de dados. O 5G transformará essa realidade porque permitirá que a população de baixa renda consiga acessar aplicativos que exigem elevado fluxo de dados, como os de streaming de vídeos — que servem tanto para o entretenimento quanto para a educação online. Embora Bolsonaro tenha se centrado na influência chinesa ao longo de todo o debate sobre o 5G, a realidade é que, no Brasil, as dificuldades reais são outras — e o inimigo é interno.

 

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