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quarta-feira, 8 de novembro de 2023

O BOLSONARISMO NO ITAMARATY DE LULA - Ana Clara Costa (Piauí)


O BOLSONARISMO NO ITAMARATY DE LULA

Gestão petista deu destino menos implacável a embaixadores engajados no governo anterior

Ana Clara Costa|

Piauí, 08 nov 2023_09h36 

https://piaui.folha.uol.com.br/itamaraty-lula-diplomatas-bolsonarismo-cargos/?utm_source=pushnews&utm_medium=pushnotification


Quando Jair Bolsonaro ganhou a eleição em 2018 e Ernesto Araújo assumiu o Itamaraty, Mauro Vieira, hoje chanceler de Lula, era embaixador do Brasil nas Nações Unidas, em Nova York. Vieira foi enviado ao cobiçado posto na cidade americana por determinação de Michel Temer, assim que o emedebista assumiu o governo, depois do impeachment. O diplomata era ministro das Relações Exteriores de Dilma Rousseff, mas tinha relações tão cordiais com o MDB que Temer até cogitou mantê-lo na chefia do Itamaraty. Não fez o convite porque o posto foi reivindicado pelo PSDB, que participou do enclave para derrubar a petista. Assumiu José Serra.

Vieira partiu para Nova York com poder, mas não se esqueceu dos amigos de outrora. Quando, em 2016, Dilma decidiu fazer uma peregrinação junto aos organismos internacionais para denunciar que sofreu um golpe, o secretário-geral do Itamaraty tucano, Marcos Galvão, avisou as representações brasileiras na ONU que não recebessem a ex-presidente, como forma de invalidar seu discurso. A embaixada em Genebra cumpriu à risca a ordem. Mas Vieira não só a recebeu em Nova York, como a hospedou em sua residência, juntamente com sua comitiva, que incluía o assessor internacional petista Marco Aurélio Garcia. Dizia que, em sua embaixada, mandava ele.

Sob Bolsonaro, Vieira ainda permaneceu alguns meses em Nova York. Sua partida foi selada quando o diplomata se insurgiu contra uma orientação vinda de Brasília. O Itamaraty de Ernesto Araújo ordenou que o Brasil mudasse seu voto sobre o embargo americano a Cuba – o país historicamente, em todos os governos, votava contra o embargo. Vieira enviou três telegramas a diferentes departamentos da chancelaria brasileira informando as razões pelas quais o voto não deveria ser mudado. Ao assinar os telegramas, colocou apenas suas iniciais, e não as de seus subordinados – o que seria praxe nesse tipo de documento. Queria que a culpa da insubordinação recaísse apenas sobre si. Seus apelos não funcionaram, o Brasil mudou o voto e, poucas semanas depois, seu nome foi designado para comandar a embaixada de Zagreb, na Croácia, um posto sem muita importância. Os outros dois ex-chanceleres da petista também foram transferidos para lugares distantes e de menor relevância para a diplomacia brasileira: Antonio Patriota foi despachado para o Cairo, no Egito, e Luiz Alberto Figueiredo, para o Catar.

A atitude persecutória de Araújo tinha um agravante. Vieira foi um dos principais apoiadores de sua carreira diplomática. Quando foi embaixador em Washington, em 2010, o diplomata convidou Araújo para integrar sua equipe de assessores diretos. Nesse período vivendo nos Estados Unidos iniciou-se sua inflexão ao olavismo. Quando Vieira virou chanceler de Dilma, em 2015, trouxe Araújo para trabalhar em seu gabinete. Em uma entrevista à repórter Consuelo Dieguez, da piauí (O chanceler do regressopiauí_151, abril de 2019)Araújo contou que, justamente nesse período em que se adensavam as manifestações contra a petista, ele um dia deixou o gabinete e fora para a rua gritar “Fora Dilma”. “Foi libertador poder gritar pelo impeachment de Dilma, por Lula na cadeia”, disse o chanceler, à época, à repórter. Com Temer, Araújo, já convertido ao radicalismo olavista e tendo publicado textos que reforçavam sua visão, foi promovido a embaixador.

De volta ao poder, Mauro Vieira decidiu desde a largada que evitaria o revanchismo. Seu intuito era acalmar os ânimos na instituição, uma das mais afetadas pela agenda bolsonarista de combate ao que entendem por “globalismo”. De tanto conceder, porém, Vieira também acabou desagradando os que não capitularam sob Bolsonaro – e agora reclamam dos postos prestigiados de alguns de seus apoiadores e da falta de punição. A começar pelo próprio Araújo, que embora tenha feito o que fez na instituição e, depois da vitória de Lula tenha dito em uma live que o novo governo deveria ser derrubado, mantém-se, para todos os efeitos, na carreira. Hoje licenciado e sem remuneração, vive em Hartford, nos Estados Unidos, onde sua mulher, Maria Eduarda Seixas Corrêa, tem um cargo consular.

Carlos Alberto França, que o sucedeu na chancelaria, tornou-se embaixador do governo Lula no Canadá. Vive em Ottawa. Nestor Forster, nomeado por Bolsonaro para comandar a embaixada brasileira em Washington e conhecido por ter apresentado Araújo ao olavismo, foi transferido para o mesmo país: é cônsul em Vancouver. Ambas as nomeações são vistas por alguns diplomatas da instituição como prêmios, em razão da localização geográfica privilegiada. Internamente, a explicação é que França ajudou a construir uma boa transição. Procurou Celso Amorim logo após a vitória de Lula e se colocou à disposição para ajudar. Enquanto muitos ministros de Bolsonaro nem sequer participaram da transmissão de posse, França compareceu à sua e fez um discurso avaliado pelos pares como ponderado. Apesar do ambiente político ainda conflagrado, o ex-chanceler tinha esperanças de ser enviado a algum país europeu. Ganhou o Canadá, o que terminou recebendo de bom grado, embora tenha feito pedidos para cargos de seus subordinados que não foram acatados.

Outro expoente do bolsonarismo, o diplomata Marcos Sperandio, que foi chefe do cerimonial do Palácio do Planalto depois que França, que ocupava o cargo, virou chanceler, está num posto de prestígio na embaixada em Washington. É um dos quatro ministros-conselheiros da embaixadora Maria Luiza Viotti. Ele fora transferido ainda durante o governo Bolsonaro, num posto que fora criado justamente para a sua nomeação. Antes, Forster, que antecedeu Viotti, só dispunha de três ministros-conselheiros.

Apesar do descontentamento de alguns diplomatas, Vieira tem tido o aval de Lula para manter sua posição. Ao assumir, preservou no posto o embaixador brasileiro em Madri, Orlando Leite Ribeiro, que foi secretário da então ministra da Agricultura, Tereza Cristina, antes de ser enviado à Espanha pelo ex-presidente. Vieira tampouco removeu o embaixador brasileiro em Portugal, Raimundo Carreiro, ex-ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), indicado ao cargo por Bolsonaro e amigo de José Sarney.

Quando Lula reclamou com o chanceler sobre haver apoiadores do ex-presidente em bons postos diplomáticos, Vieira respondeu que, se fosse remover todos que serviram ao governo anterior, muitos cargos ficariam vazios. Lula retrucou que quando fosse a Portugal e Espanha, não desejava encontrar-se com os respectivos embaixadores ao longo da viagem. E assim foi feito. Lula tampouco quis cruzar com Nestor Forster quando viajou a Washington, em fevereiro deste ano. Para evitar maiores desconfortos, o então embaixador, que ainda não havia sido removido do cargo, tirou férias durante a visita do presidente.

Outra designação que tem causado polêmica é a do embaixador Eduardo Saboia, que em 2013 ajudou na fuga do ex-senador boliviano Roger Pinto Molina, que estava asilado havia quinze meses na embaixada brasileira em La Paz. Molina fazia oposição a Evo Morales e a atitude de Saboia, que também serviu no gabinete de Celso Amorim quando ele era chanceler de Lula, acabou motivando a queda de Antonio Patriota do posto de ministro. Dilma determinou que Saboia fosse punido, ficando sem designação durante todo o seu governo.

Sob Temer, o diplomata foi tirado do limbo. Bolsonaro também o manteve em bons postos e, em 2022, foi designado para chefiar a secretaria de Ásia e Pacífico do Ministério. Vieira manteve a nomeação. Quando, na cúpula dos Brics, em Joanesburgo, em agosto deste ano, Dilma Rousseff cruzou olhares com Saboia, reclamou com Lula, de forma bastante enfática, que o diplomata estivesse ali depois de tudo o que ocorreu no passado. Afirmou sentir-se desrespeitada. Celso Amorim presenciou as críticas, mas deu de ombros, dizendo que o Itamaraty já não era mais sua atribuição. Vieira soube do ocorrido, mas mesmo assim o manteve no posto, onde Saboia permanece até hoje.

 

Obolsonarismo foi um período difícil para a diplomacia brasileira por exigir que, em muitos casos, diplomatas fossem cobrados a sair em defesa do ex-presidente. Contudo, segundo membros da instituição ouvidos pela piauí, havia formas de navegar a tormenta com relativa dignidade, mantendo o mínimo de imparcialidade. Não foi o caso do embaixador Frederico Arruda, que serviu o governo Bolsonaro em Londres e foi um dos defensores mais fervorosos do ex-presidente. Arruda trabalhou na assessoria internacional de Michel Temer e fora despachado para Londres numa vaga interina ainda durante a gestão do emedebista, em 2016. Fez duras críticas a Dilma na imprensa britânica até ser empossado embaixador, de fato, em 2018. Seu nome teve amplo apoio do Senado, que tem o papel de avalizar todos os chefes de embaixadas.

Em junho de 2020, quando o jornal britânico Financial Times fez um editorial relatando temor pela democracia brasileira no auge das manifestações estimuladas por Bolsonaro contra o STF, durante a pandemia, Arruda rapidamente se manifestou. Numa carta ao jornal, disse que o FT “superdramatizava” a situação e que Bolsonaro em nenhum momento atentou contra as instituições. No ano anterior, ao The Guardian, Arruda escreveu condenando parlamentares britânicos que criticavam as razões da prisão de Lula. Em setembro de 2022, durante o velório da Rainha Elizabeth, recebeu o pastor Silas Malafaia, cabo eleitoral, com pompa e circunstância. De sua sacada em Londres, durante a mesma viagem, Bolsonaro fez um discurso de campanha, dizendo: “Não tem como eu não ganhar no primeiro turno”. Arruda foi tirado de Londres este ano, mas segue embaixador do governo Lula – agora na Austrália.

Um dos poucos, de fato, punidos foi Luís Fernando Serra, que comandava a embaixada em Paris. Serra esticou a corda como nenhum outro membro da Casa. No auge da pandemia, em maio de 2020, enviou carta ao jornal Le Monde dizendo que a conduta de Bolsonaro era exemplar, que ele jamais negara a gravidade do vírus e que os que atentavam contra a população eram justamente os governadores brasileiros, que desejavam desestabilizar o governo. Serra também condenava as medidas de isolamento social. No ano seguinte, quando os hospitais brasileiros não suportaram o número de internações e os cemitérios criaram valas para enterrar mortos, Serra culpou a esquerda pela falta de estrutura hospitalar.

Em 2020, convidado para comparecer a um Congresso brasilianista em Paris, Serra declinou sua presença ao saber que haveria uma homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018. 

Serra foi tirado de Paris ainda no final de 2022 e transferido para a representação do Itamaraty no Rio de Janeiro – o equivalente ao “Departamento de Escadas e Corredores”, maneira jocosa com que os diplomatas se referem a quando um de seus pares fica sem função na Casa. Deve aposentar-se compulsoriamente em dezembro, quando completa 74 anos.

 

 

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Por que a tal de ‘nova ordem mundial’ é uma má ideia? - Paulo Roberto de Almeida (Crusoé)

 Um trabalho publicado ainda no mês de abril, mas que ainda não tinha sido divulgado por inteiro, por ser exclusivo da revista Crusoé: 

4374. “Por que a tal de ‘nova ordem mundial’ é uma má ideia?”, Brasília, 26 abril 2023, 4 p. Artigo publicado na revista Crusoé (9/06/2023; link: https://oantagonista.uol.com.br/mundo/crusoe-por-que-a-tal-de-nova-ordem-mundial-e-uma-ma-ideia-2/). Relação de Publicados n. 1511.


Por que a tal de 'nova ordem mundial' é uma má ideia?

  

Paulo Roberto de Almeida, Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Publicado na revista Crusoé (9/06/2023; link: https://oantagonista.uol.com.br/mundo/crusoe-por-que-a-tal-de-nova-ordem-mundial-e-uma-ma-ideia-2/). 

 

Qualquer sugestão, proposta, imposição ou surgimento de uma nova ordem política e econômica, a mais forte razão, uma ordem que seja global, implica, necessariamente, a ruptura com a ordem pré-existente, em curso ou vigência num determinado período ou região. Normalmente, quaisquer ordens existentes são naturalmente transformadas ao cabo ou progressivamente a partir de mudanças estruturais nos sistemas econômicos e regimes políticos sobre os quais se sustentavam durante certo tempo. Mudanças “transformacionais” sempre ocorreram ao longo de toda a história humana, mesmo naqueles impérios mais solidamente estabelecidos ao longo de séculos. As rupturas são mais raras, sobrevindo como resultados de grandes catástrofes, guerras civis ou de agressão por um império mais forte.

 

Quais foram as grandes rupturas da ordem mundial na história?

Estados-nacionais constituem um tipo de organização estatal relativamente recente na história da humanidade. Anteriormente, povos, etnias, religiões, reinos e comunidades de diversas origens e formação viviam, sobreviviam ou se transformavam em ritmos e interações relativamente erráticas, mais frequentemente sob o domínio de impérios, que sempre foram mais resilientes do que pequenas unidades políticas. O conceito de Estado nacional deriva dos acordos de Westfália, em 1648, que passaram a reconhecer certos direitos e soberanias dos poucos Estados que deles participaram no século XVII. Eles são quase contemporâneos da expansão e consolidação de um dos mais longevos impérios desde a era moderna: o império otomano, que quase conquistava Viena por essa época e que durou cerca de 600 anos até ser dissolvido ao final da Grande Guerra de 1914-18. Antes disso, os impérios com maior destaque na história do mundo foram o romano (seis séculos desde 300 a.C.) e o chinês, que se arrastou por 26 dinastias desde 2 mil anos a.C. até o início do século XX. 

Cada um dos impérios relativamente organizados e resilientes nasceram, perduraram e desapareceram em meio a grandes rupturas da ordem que eles tinham conseguido estabelecer nos seus períodos respectivos de dominação bem-sucedida. O próprio Império Celeste foi por duas vezes transformado por invasões de povos estrangeiros: os mongóis, no século XII, que formaram o maior império do mundo nos 300 anos seguintes, e os manchus, que substituíram a dinastia Ming no século XVII. O grande Império Mughal, da Índia, foi conquistado pela Companhia Britânica das Índias Orientais, antes de ser cedido/vendido, ao Império britânico, o maior império da era contemporânea até seu desmembramento no pós-Segunda Guerra. As rupturas mais evidentes numa história mais regional do que global são relativamente poucas.

Na sequência da dissolução do Império romano do Ocidente – o do Oriente durou mil anos mais, como relatou Edward Gibbon –, os territórios atuais da Europa ocidental e central se fragmentaram em contínuas guerras, aparentemente unificadas pela fé cristã e por uma aparência de Sacro Império Romano-Germânico e pela dominação tanto espiritual quanto temporal da Santa Sé. A primeira ruptura da ordem política nas comunidades cristãs se deu a partir do revisionismo protestante, contra o império católico comandado a partir de Roma, por papas nem sempre muito cristãos. As guerras de religião que se disseminaram a partir do desafio de Lutero (e de outros exegetas da fé cristã) foram responsáveis por imensas destruições no coração da Europa até que o respeito à soberania respectiva de cada Estado cristão foi consagrado pelos tratados de Westfália. 

O Sacro Império Romano-Germânico sobreviveu precariamente durante quase dois séculos, até ser declarado extinto por Napoleão, cujas invasões (Itália, Prússia, países ibérios, até a Rússia) alteraram completamente o mapa da Europa e até do mundo (independências das colônias ibero-americanas). Uma nova ordem, quase global, foi então estabelecida formalmente em Viena, em 1815, no seguimento das guerras napoleônicas, num contexto de domínio generalizado das novas potências europeias sobre grande parte do mundo. Essa ordem, apenas ligeiramente perturbada pela primeira guerra da Crimeia (1853-55), persistiu por quase um século, até ser desmantelada completamente na Grande Guerra de 1914-18, quando pela primeira vez se tentou estabelecer um sistema multilateral, a Liga das Nações, para garantir a paz e a segurança internacionais. A experiência não foi das bem-sucedidas, pois que três tentativas de restabelecer o equilíbrio de potências e a cooperação econômica sob o signo do padrão ouro fracassaram completamente em seus objetivos: a conferência monetária de Gênova (1922), a comercial de Genebra (1927) e a econômico-financeira de Londres (1934). A partir daí, o mundo entrou num vórtice de guerras locais até o precipício.

O fracasso se deu basicamente em função das potências revisionistas do entre guerras, todas elas de tendências autoritárias e expansionistas: depois do desafio bolchevique à ordem capitalista, a tentativa mussolinista de reconstruir a grandeza do antigo império romano, o ímpeto revanchista da Alemanha hitlerista, desejosa de se vingar das humilhações infringidas pelo Tratado de Versalhes (1919) e o desejo dos militaristas fascistas do Japão de estabelecer o seu próprio domínio na Ásia Pacífico e na China, em substituição ao imperialismo das potências ocidentais, todos esses processos precipitaram a maior catástrofe bélica e humana jamais vista na história. Ela deu lugar a uma nova ordem mundial, forjada em Bretton Woods, formalizada em San Francisco e que se manteve num contexto de bipolaridade geopolítica e nuclear até 1991. Essa ordem durou algumas décadas, mas já tem desafios.

 

O que são potências revisionistas? Qual a experiência histórica com elas?

Potências revisionistas costumam ser impérios ascendentes, ou Estados nacionais fortes o bastante para elevar a sua voz no plano externo, e que, descontentes com a estrutura de poder que encontraram em seu processo de ascensão, decidem contestar a ordem existente. Em quase todas as ocasiões, o resultado de ambições não acomodadas numa acomodação e num confronto interimperial, o resultado foi o deslanchar de conflitos bélicos que podem chegar a um equilíbrio de forças total ou parcialmente novo. Assim ocorreu no contexto das guerras napoleônicas, do início do século XIX, assim como no fracasso do equilíbrio de potências europeias um século depois, que redundou na primeira tentativa de estabelecimento de um sistema multilateral para administrar, ainda que de forma oligárquica, paz e segurança internacional. A Liga das Nações era uma promessa de gestão de conflitos que jamais chegou a ser eficaz para os objetivos a que se propunha: não conseguiu responder a contento nem na invasão da Manchúria pelo Japão em 1931, nem na da Abissínia (o único Estado africano membro da Liga) massacrada pela Itália em 1937, nem nas crises sucessivas criadas por Hitler desde sua ascensão ao poder, inclusive no apoio bélico ao general Franco na guerra civil que destruiu a República espanhola entre 1936 e 1939.

Não foi possível, a despeito de todas as concessões, contentar todas as potências ascendentes, possuindo novas aspirações de um lugar ao sol, no quadro da dominação de poucos imperialismos europeus sobre a maior parte das periferias fornecedoras de matérias primas. O resultado traduziu-se na espiral agônica dos fascismos expansionistas que engolfou quase todo o mundo entre 1937 (invasão do resto da China pelo Japão) e entre 1939-1945, até sua derrota completa na maior conflagração bélica da história, com destruição generalizada na Europa e na Ásia e consequências para o resto do mundo. 

Não obstante oito décadas de paz relativa – não esquecendo as guerras por procuração no intervalo –, o mundo parece aproximar-se de um novo período de tensões causada por potências revisionistas: a Rússia, desejosa de se vingar das humilhações sofridas depois do desmantelamento do império soviético, em 1991, a China, descobrindo que o império americano deseja conter sua ascensão, e disposta a nunca mais sofrer as humilhações impostas pelas potências ocidentais e pelo Japão desde o declínio do Celeste Império, na dinastia Qing. Estaríamos chegando perto de uma nova ruptura da ordem mundial? 

 

O Brasil precisa de uma nova ordem global? Tem algo a ganhar com isso?

O Brasil foi um dos países “periféricos” e “subdesenvolvidos” que mais se beneficiou com a nova ordem surgida nos estertores da Segunda Guerra, em Bretton Woods, para sua estrutura econômica, San Francisco para seu sistema (precário) de preservação da paz e da segurança internacionais, além de mecanismos próprios para a cooperação entre Estados. Mesmo sem ser um grande comerciante global, soube aproveitar as possibilidades de explorar suas vantagens comparativas para se tornar, atualmente, um dos grandes celeiros globais. Também acolheu enormes volumes de investimentos diretos estrangeiros para dinamizar sua pobre indústria do início do século XX. E também completou a “substituição de importações” no campo científico ao importar muitos cérebros para suas universidades e mandar milhares de estudantes graduados completarem especializações no exterior. 

Que razões teria para o projeto de substituir a ordem que garantiu razoavelmente sua gradual ascensão a uma das mais importantes economias do mundo por uma outra ordem global que resultasse de um novo conflito geopolítico de resultados imprevisíveis? Algum interesse maior de natureza tão fundamental que não permitisse acomodar suas aspirações nos quadros existentes da ordem de Bretton Woods e da ONU? Estruturas orgânicas à parte, essa nova ordem, tal como vem sendo proposta por duas grandes autocracias não ocidentais, teria condições de preservar seus outros vetores no terreno dos valores e princípios que fundamentam sua adesão a um regime democrático, a um Estado de Direito garantidor das liberdades e de adequada defesa dos direitos humanos, numa sociedade aberta às diferenças e ao respeito das individualidades? Trata-se de uma aposta arriscada, que não deveria ser sequer considerada por um governo representativo de nossas aspirações democráticas.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4374: 26 abril 2023, 4 p.

Publicado na revista Crusoé, 9/06/2023, link: https://crusoe.uol.com.br/edicoes/267/por-que-a-tal-de-nova-ordem-mundial-e-uma-ma-ideia/?utm_source=crs-site&utm_medium=crs-login&utm_campaign=redir

 


domingo, 12 de março de 2023

Diplomacia de Lula 3: la nave va..., mas para onde? (artigos para a revista Crusoé) - Paulo Roberto de Almeida

 Diplomacia de Lula 3: la nave va..., mas para onde?

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Artigo para a revista Crusoé, 14 fevereiro 2023. Publicado sob o título: “A mesma coisa, tudo de novo”, Revista Crusoé (17/02/2023; link: https://crusoe.uol.com.br/edicoes/251/a-mesma-coisa-tudo-de-novo/). 

Relação de Originais n. 4320; Publicados n. 1493. 

 

Lula em seu discurso de posse, em 1º de janeiro

A grande prioridade da política externa durante o meu governo será a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social.

Para isso é essencial uma ação decidida de revitalização do Mercosul, enfraquecido pelas crises de cada um de seus membros e por visões muitas vezes estreitas e egoístas do significado da integração.

O Mercosul, assim como a integração da América do Sul em seu conjunto, é sobretudo um projeto político. Mas esse projeto repousa em alicerces econômico-comerciais que precisam ser urgentemente reparados e reforçados.

Cuidaremos também das dimensões social, cultural e científico-tecnológica do processo de integração. Estimularemos empreendimentos conjuntos e fomentaremos um vivo intercâmbio intelectual e artístico entre os países sul-americanos.

Apoiaremos os arranjos institucionais necessários, para que possa florescer uma verdadeira identidade do Mercosul e da América do Sul. Vários dos nossos vizinhos vivem hoje situações difíceis.

Contribuiremos, desde que chamados e na medida de nossas possibilidades, para encontrar soluções pacíficas para tais crises, com base no diálogo, nos preceitos democráticos e nas normas constitucionais de cada país.

O mesmo empenho de cooperação concreta e de diálogos substantivos teremos com todos os países da América Latina.

Procuraremos ter com os Estados Unidos da América uma parceria madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo. Trataremos de fortalecer o entendimento e a cooperação com a União Europeia e os seus Estados-Membros, bem como com outros importantes países desenvolvidos, a exemplo do Japão.

Aprofundaremos as relações com grandes nações em desenvolvimento: a China, a Índia, a Rússia, a África do Sul, entre outros.

Reafirmamos os laços profundos que nos unem a todo o continente africano e a nossa disposição de contribuir ativamente para que ele desenvolva as suas enormes potencialidades.

Visamos não só a explorar os benefícios potenciais de um maior intercâmbio econômico e de uma presença maior do Brasil no mercado internacional, mas também a estimular os incipientes elementos de multipolaridade da vida internacional contemporânea.

A democratização das relações internacionais sem hegemonias de qualquer espécie é tão importante para o futuro da humanidade quanto a consolidação e o desenvolvimento da democracia no interior de cada Estado.

Vamos valorizar as organizações multilaterais, em especial as Nações Unidas, a quem cabe a primazia na preservação da paz e da segurança internacionais.

As resoluções do Conselho de Segurança devem ser fielmente cumpridas. Crises internacionais... devem ser resolvidas por meios pacíficos e pela negociação.

Defenderemos um Conselho de Segurança reformado, representativo da realidade contemporânea com países desenvolvidos e em desenvolvimento das várias regiões do mundo entre os seus membros permanentes.

Enfrentaremos os desafios da hora atual como o terrorismo e o crime organizado, valendo-nos da cooperação internacional e com base nos princípios do multilateralismo e do direito internacional.

Apoiaremos os esforços para tornar a ONU e suas agências instrumentos ágeis e eficazes da promoção do desenvolvimento social e econômico do combate à pobreza, às desigualdades e a todas as formas de discriminação, na defesa dos direitos humanos e na preservação do meio ambiente.

 

Tudo bem, com esses grandes objetivos ambiciosos do governo Lula na política externa? Não? Mas, espera aí: esse foi efetivamente o discurso de posse de Lula em 1º. de janeiro, mas em 2003, não o de 2023! Que coisa! Parecia tudo tão certinho, tão dentro do espírito e da letra da “diplomacia altiva e ativa”, como a classificou diversas vezes o chanceler designado, agora apenas assessor de assuntos internacionais na presidência.

Vinte anos depois, o que poderia ser dito dos grandes objetivos do governo Lula em matéria de política externa, e quais foram os seus resultados práticos, nestas duas décadas de intensa presença do Brasil e de Lula no cenário internacional?

Vamos então, para sermos honestos, verificar o que de verdade disse Lula em 1º. de janeiro de 2023: 

Os olhos do mundo estiveram voltados para o Brasil nestas eleições. O mundo espera que o Brasil volte a ser um líder no enfrentamento à crise climática e um exemplo de país social e ambientalmente responsável, capaz de promover o crescimento econômico com distribuição de renda, combater a fome e a pobreza, dentro do processo democrático.

Nosso protagonismo se concretizará pela retomada da integração sul-americana, a partir do Mercosul, da revitalização da Unasul e demais instâncias de articulação soberana da região. Sobre esta base poderemos reconstruir o diálogo altivo e ativo com os Estados Unidos, a Comunidade Europeia, a China, os países do Oriente e outros atores globais; fortalecendo os Brics, a cooperação com os países da África e rompendo o isolamento a que o país foi relegado.

 

Tudo se encaixa nos mesmos objetivos fixados vinte anos atrás, pois não? Com exceção das referências à Unasul e aos Brics, naquele 1º. de janeiro inexistentes, e à Comunidade Europeia (que já tinha virado União Europeia desde 1993), todo o resto é perfeitamente compatível com as ambições grandiosas da “ativa e altiva”, não é mesmo? 

Que coincidência! Como diriam franceses e americanos, déjà vu all over again, isto é, a mesma coisa, tudo de novo! Mas o que resultou, de fato, de todo aquele programa de reforma e de reforço do Mercosul, de integração da América do Sul e da América Latina, de reforma da Carta da ONU e da recomposição do seu Conselho de Segurança? Como andou a cooperação com os países da África, do Oriente Médio e da Ásia? 

Nem tudo foi perdido, ao que parece: em 2009, a China já tinha suplantado os Estados Unidos ao assumir o primeiro lugar no comércio exterior do Brasil, e atualmente, ela sozinha faz o dobro dos intercâmbios mantidos com os dois parceiros seguintes, os Estados Unidos e a União Europeia, justamente, sendo que a Ásia Pacífico, em nossos dias, ocupa lugar preeminente no comércio internacional do Brasil. Mas também é um fato que foi o agronegócio sozinho que alcançou esses resultados, pois que não existem acordos de livre comércio, do Brasil ou do Mercosul, com aqueles países, e é também verdade que todas as vendas estão baseadas essencialmente em commodities, cujos preços e volumes exportados não dependem em nada do governo, qualquer governo, pois que todos os movimentos dependem totalmente da dinâmica dos mercados, das ambições ricardianas dos empresários do agronegócio e das tradings, não do ativismo da diplomacia ou das iniciativas de tecnocratas governamentais.

E quanto ao reforço do Mercosul, da integração sul-americana e da união da América Latina? O bloco e toda a região nunca estiveram tão fragmentados e desunidos quanto hoje, e vários países buscaram suas próprias soluções, alguns a caminho da Ásia Pacífico, justamente, outros ingressando na OCDE, esse “clube de países ricos”, como ainda agora os petistas se referem depreciativamente a esse excelente foro de consulta e de coordenação das melhores práticas em políticas econômicas, macro e setoriais, baseado em Paris, e que, nos últimos vinte anos, passou de duas dúzias de membros a quase o dobro desse total. O próprio Brasil, mas não os petistas da “ativa e altiva”, buscou integrar-se ao foro, objetivo que parece permanecer em banho-maria atualmente, como aliás foi o caso durante os 13 anos e meio dos mandatos lulopetistas no comando do país. 

E no que se refere ao grande objetivo de uma associação comercial entre o Mercosul e a União Europeia, que já era o objetivo fixado em meados dos anos 1990, quando também havia o projeto americano de uma Área de Livre Comércio das Américas, tal como proposto pelo presidente Bill Clinton na cúpula de Miami, em dezembro de 1994? Está certo que na primeira gestão de Celso Amorim, como chanceler, no governo Itamar Franco, o Brasil já propunha uma Alcsa, também uma área de livre comércio, mas que seria exclusivamente sul-americana, objetivo que parece ter sido desprezado por todos os parceiros da região. Recorde-se, também, que a associação do Mercosul à UE permaneceu vinte anos no banho-maria, justamente, depois que os três grandes concorrentes na liderança sul-americana – Hugo Chávez da Venezuela, Nestor Kirchner da Argentina, e o próprio Lula – se encarregaram de implodir a Alca na cúpula de Mar del Plata, em 2005, como orgulhosamente o reconheceram tanto Lula quanto Amorim. Foi só depois, sob a administração “neoliberal” de Michel Temer que o projeto de ingresso na OCDE e as negociações com a UE foram ultimados, a ponto de o famoso acordo inter-regional ter sido assinado nos primeiros seis meses do governo dito ultraliberal de Bolsonaro, projetos não bem acolhidos pelos petistas de volta ao poder (pois que não sabem se, um e outro, colocarão em risco a outrora poderosa indústria brasileira). 

O que resultou, por outro lado, do ativismo dos megaencontros entre dirigentes da América do Sul e seus contrapartes da África e do Oriente Médio e do norte da África, os países africanos e árabes, tão afanosamente cortejados pela “ativa e altiva”, essa grande diplomacia que partia de uma entidade perfeitamente fantasmagórica, o tal de Sul Global? Parece que a era da “nova geografia do comércio internacional”, orgulhosamente anunciada por Celso Amorim naqueles anos, tardou a se realizar. Na verdade, ela se realizou plenamente, mas foi bem mais a “nova geografia” do comércio de manufaturados exportados pela Ásia Pacífico, com a China na cabeça, na direção dos mercados desenvolvidos do Norte Global, pois que o Mercosul e os latino-americanos continuaram exportando commodities para todos os mercados, inclusive para os desprezados hegemônicos, as potências coloniais do passado, e imperialistas do presente.

Quanto ao grandioso objetivo de reformar a Carta da ONU, de fazer parte de um Conselho de Segurança ampliado e de caminhar no sentido da criação de uma “nova ordem global”, baseada na “multipolaridade” do famoso Sul Global (que, curiosamente, englobaria as duas grandes autocracias do Brics), parece que ele fez chabu, depois que os companheiros preservaram a “neutralidade” ativamente pró-Putin que já vinha do desastroso, e muito pouco diplomático, governo anterior. Esse “Ocidente”, também desprezado pelos lulopetistas, pois que supostamente comprometido com os arrogantes projetos unilateralistas da Otan, não se mostra disposto a reduzir seu apoio defensivo à Ucrânia, descartando completamente esse bizarro “clube da paz” que o grande líder dos emergentes pretendia formar para “dialogar” com Putin, um dos companheiros de Lula na criação original do Bric, entre 2006 e 2009. 

O grupo foi ampliado em 2011 para Brics, pelas mãos da China, que parece mais interessada em fazê-lo ainda maior (com Argentina, Egito, Argélia, México, Indonésia como possíveis novos membros), a ponto de convertê-lo em entidade concorrente à neoliberal e ocidental OCDE. O Brasil de Lula 3 vai aceitar a transformação do bloco em instrumento dos interesses nacionais da China, e também da Rússia, que precisa desesperadamente do apoio do maior número possível de “neutros”, para compensar as ativas maiorias que, na ONU (CSNU, AGNU e Conselho de Direitos Humanos), condenaram sua execrável guerra de agressão ao pacífico país vizinho? Já na última resolução da Assembleia das Nações Unidas, em novembro de 2022, declarando a Rússia culpada pela guerra e decidindo que ela deveria pagar reparações à Ucrânia, apenas 94 países votaram a favor da resolução, com 14 votos contrários e 73 abstenções, o maior número nesta última categoria, desde as resoluções anteriores, claramente de condenação à guerra de agressão de Putin.

Para onde irá a “nave” da nova-velha diplomacia do Brasil de Lula 3, na defesa da paz e da segurança internacional, da integração regional, da “nova ordem mundial”? Aguardemos os próximos capítulos, pois ainda faltam a viagem à China e a cúpula do Brics...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4320: 14 fevereiro 2023, 5 p.

 

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

A diplomacia de Lula, 2023-2026: mais do mesmo? - Paulo Roberto de Almeida

A diplomacia de Lula, 2023-2026: mais do mesmo?  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Comentários a respeito de temas de política externa apresentados em discurso na COP-27, realizada no Egito, a convite do jornalista Duda Teixeira.

Emissão no YouTube do programa Latitude, 22/11/2022:


https://youtu.be/O7tzEZV3P9Q

Também postado em pdf na plataforma Academia.edu, link: https://www.academia.edu/91326453/4275_A_diplomacia_de_Lula_2023_2026_mais_do_mesmo_2022_

  

Em discurso por ocasião da COP-27, Lula abordou diferentes temas de política doméstica, inclusive econômica, mas também de política externa. Aproveitando as declarações mais representativas de seu pronunciamento no campo da diplomacia, formulo em seguida a cada uma delas, algumas observações sobre suas implicações respectivas.

 

1. Quero dizer que o Brasil está de volta. Está de volta para reatar os laços com o mundo e ajudar novamente a combater a fome no mundo. Para cooperar outra vez com os países mais pobres, sobretudo da África, com investimentos e transferência de tecnologia.

PRA: Lula quer recolocar o Brasil no mapa dos protagonistas das relações internacionais, e uma das configurações desse novo papel é o de prestador de cooperação ao desenvolvimento, um status que, desde o surgimento da ONU, estava bem delimitado, e dividido, em três categorias de países: os desenvolvidos, os socialistas e os em desenvolvimento, grupo ao qual pertencíamos e que parece que ainda pertencemos, a despeito de um dos mais bem sucedidos processos de industrialização na periferia. Essa distinção dos grupos da ONU se consolidou a partir da descolonização nos anos 1960, quando também se formou o chamado G77, o grupo dos países em desenvolvimento, que reivindicavam um tratamento preferencial e mais favorável em termos de comércio e transferência de tecnologia, além da própria assistência ao desenvolvimento, objeto de um Comitê na OCDE, o CAD, justamente o Comitê de Assistência ao Desenvolvimento.

            Ainda antes das independências africanas, um economista britânico de origem húngara, Peter Bauer, que trabalhava na África oriental inglesa na segunda metade dos anos 1950, recomendou às potências colonialistas que se preparassem para a autonomia reorganizando seus laços com as futuras ex-colônias. Ele recomendou que as metrópoles coloniais abrissem seus mercados aos produtos africanos e declarou, explicitamente: “Não ajudem a África, ela não precisa de ajuda; ela precisa de comércio livre e desimpedido”. O contrário ocorreu, através dos vários acordos preferenciais neocoloniais comunitários: Lomé, Yaoundé e o esquema mais amplo do ACP prevendo redução de tarifas, mas não comércio livre. A África teve sua agricultura estrangulada pela política protecionista das grandes potências, e a ajuda assistencial se disseminou sem grandes efeitos sobre as estruturas sociais.

            Nessa época, o Brasil ainda era um receptor líquido de ajuda ao desenvolvimento, especialmente para o Nordeste, inclusive contra a fome, tanto de fontes multilaterais, como o Banco Mundial e da AID, como de fontes bilaterais, como a USAID. Paulatinamente, o Brasil se tornou um país plenamente industrializado, mas nunca deixou de reivindicar esse status de país em desenvolvimento, tanto para não ser graduado no Gatt – ou seja, perder os tratamentos especiais de redução tarifária no Sistema Geral de Preferências – quanto para continuar reivindicando transferência de tecnologia para outros objetivos, e isso ainda hoje, como no combate ao desmatamento e na implementação de políticas de sustentabilidade.

            Nos anos FHC, o Brasil deu um grande salto nessa dimensão, e criou a ABC, Agência Brasileira de Desenvolvimento, que passou a prestar assistência e transferência de tecnologia a países ainda mais pobres, geralmente num sistema triangular, ou seja, com financiamento de países mais ricos, mas com a mobilização de agências públicas brasileiras detentoras de expertise em diferentes setores, como a Embrapa, por exemplo.

            Nos dois primeiros mandatos de Lula, de 2003 a 2010, essa cooperação, sobretudo em direção da África, foi muito ampliada, pois Lula acredita que o Brasil tem uma enorme dívida histórica com relação ao continente, pelo legado da escravidão, um tema controverso e ainda não equacionado nas instâncias internacionais. O fato é que o Brasil ampliou muito sua ajuda humanitária e assistência ao desenvolvimento em diversos países africanos, em especial nos chamados PALOPs, os países africanos de língua portuguesa. Muitos países ricos fazem a mesma coisa, ou seja, prestam assistência ao desenvolvimento a países mais pobres. Nas últimas décadas, organismos multilaterais e países doadores despejaram dezenas de bilhões de dólares nesse tipo de assistência, nem sempre com resultados tangíveis ou isentos de corrupção. 

            Um economista americano, que durante mais de dez anos trabalhou nesse tipo de missão, William Easterly, chegou à conclusão de que os países que receberam um maior volume de ajuda foram justamente os que menos cresceram, na África ou em outras regiões pobres, e que muito dessa ajuda pode ter sido mal-empregada, ou até objeto de corrupção. O livro se chama, numa alusão a um famoso poema do colonialista britânico Rudyard Kipling, The White Man's Burden: Why the West's Efforts to Aid the Rest Have Done So Much Ill and So Little Good, e já deve ter sido traduzido para o português. 

            O Brasil quer se inserir nessa grande corrente de ajuda humanitária e de assistência ao desenvolvimento, mesmo quando grande parte de sua população carece de segurança alimentar e sofre com nossa negligência histórica no tocante a saneamento básico, água potável e infraestrutura de saúde ou educacional. Creio que temos condições de fazê-lo, mas de preferência num sistema que evite desvios e corrupção como muitas vezes observado por especialistas como William Easterly e outros. 

 

2. Para estreitar novamente relações com nossos irmãos latino-americanos e caribenhos, e construir junto com eles um futuro melhor para nossos povos. 

PRA: A diplomacia lulopetista sempre foi caracterizada por essa mania do Sul Global, ou a chamada diplomacia Sul-Sul, que considero uma miragem e um reducionismo geográfico incompatível com as tradições universalistas e ecumênicas de nossa diplomacia profissional. Existe, sim, uma prescrição constitucional, no Artigo 4º. da CF-1988, que comanda ao Brasil essa missão de buscar a integração latino-americana. Mas, esse parágrafo único, ali colocado pelo saudoso senador Franco Montoro, não constitui uma obrigação, ou seja, um ordenamento compulsório, e sim uma recomendação. Ele diz: “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.” 

            É normal que, sendo a América do Sul nossa circunstância geográfica incontornável, o Brasil tente conformar um espaço econômico integrado na América do Sul, mas isso não tem nada a ver com a vaga noção de uma América Latina e Caribe irmanados num mesmo projeto de união política e econômica, o que está muito além da capacidade do Brasil fazer. De resto, nada a objetar a estreitar relações com esses países, sobretudo os da América do Sul, mas isso não pode ser uma repetição da miopia geográfica e diplomática do Sul Global, que é uma ficção inventada por acadêmicos, com escasso retorno nos temas mais relevantes para as relações internacionais do Brasil. Devemos buscar estreitar relações com todos os países do mundo, em especial com aqueles que representem fontes de aportes relevantes para nosso processo de desenvolvimento, sem quaisquer discriminações políticas, geográficas ou ideológicas. Essa mania de latino-americanidade me parece apenas isso, uma mania.

 

3. Para lutar por um comércio justo entre as nações, e pela paz entre os povos. Voltamos para ajudar a construir uma ordem mundial pacífica, assentada no diálogo, no multilateralismo e na multipolaridade.

PRA: Essa noção de “comércio justo” é absolutamente irrelevante e até mesmo irracional. Existe comércio, ponto; alguém oferta, outro compra, com base nos critérios de preço e qualidade. Qualquer critério além disso não faz nenhum sentido no plano da economia e do comércio internacional. Dito isto, faz parte da tradição diplomática do Brasil trabalhar pela paz e pela cooperação do desenvolvimento mundial, com base no direito internacional e no absoluto respeito da Carta da ONU, algo que não é observado, atualmente, por um dos parceiros do Brasil no âmbito do BRICS, a Rússia de Putin. Lula não inventou nada no que se refere a construção da paz, de uma ordem pacífica, baseada no diálogo e no multilateralismo.

            Já a tal “multipolaridade” é uma velha mania do PT e dos antiamericanos de maneira geral de achar que o mundo vive numa tal de unipolaridade, que eles costumam chamar de arrogância imperial. Essa situação correspondeu a uma fase muito específica da ordem mundial, o pós-guerra fria, a implosão do socialismo e a reconversão dos antigos países socialistas em bons alunos da economia de mercado, com exceções. Os Estados Unidos então, como no imediato pós-Segunda Guerra, apareciam como o país mais poderoso do planeta, e a Rússia, fracionada em 15 repúblicas a partir da dissolução da União Soviética, tinha um PIB menor do que o do Brasil. Mas isso foi temporário, na década de 1990 e poucos anos mais, embora os EUA tenham permanecido como a maior potência econômica e militar do planeta. Mas, a partir da incorporação da China – até o século XVIII a maior economia do planeta e uma das mais avançadas em termos científicos e tecnológicos – à OMC, em 2001, ela deu um enorme salto de desenvolvimento, justamente devido à consolidação de seu status como economia de mercado plenamente inserida na economia global. Hoje ela já superou o PIB de todos os países do G7, com exceção dos EUA, mas poderá também ultrapassá-los em mais alguns anos, mas isso não em PIB per capita, o que deve demorar mais um século para ser alcançado, se alguém dia o for. 

            A tal de multipolaridade se refere, na verdade, à recusa de um único e grande poder hegemônico, o que de fato não existe mais. Mas se formos pensar além do poderio econômico e militar, cabe perguntar quais seriam as preferências do Brasil em termos de valores e princípios, de respeito ao Direito Internacional e a um conjunto de normas relativas a direitos humanos e à democracia que acompanham os países mais relevantes na ordem mundial. O que se configura, aparentemente, na presente conjuntura de transformação histórica das relações internacionais, caracterizada justamente pela ascensão econômica, tecnológica e militar da China, e de uma recuperação da Rússia de seu antigo torpor econômico e militar, durante a fase de ajustes pós-socialistas, é a de uma nova divisão do mundo entre as potências ocidentais e essas outras duas potências, com sócios menores, que não representam, efetivamente, aqueles valores que estão associados às nossas tradições e que estão inclusive balizadas na Constituição, ou sejam, um sistema democrático, de eleições livres, de pleno respeito aos direitos humanos e à livre iniciativa. 

Qualquer multipolaridade deve levar em conta não apenas o equilíbrio de poderes no mundo, mas também o pleno respeito de princípios e valores que são os que mais prezamos e defendemos. Alianças com ditaduras não são a melhor maneira de promover tais valores. Isso é especialmente válido quando um dos nossos sócios no Brics violentou flagrantemente a Carta da ONU e os mais elementares dispositivos do Direito Internacional, na sua guerra de agressão contra um vizinho, perpetrando os mais bárbaros crimes de guerra, possíveis crimes contra a humanidade e, certamente, crimes contra a paz mundial, os mesmos crimes pelos quais foram julgados e condenados os criminosos nazistas em Nuremberg, em 1946. O Brasil não poderia ficar indiferente em face de tal situação e me parece que ele não só hesitou, e até recuou, no presente governo, como corre o risco de preservar a mesma postura equivocada no próximo governo. Nem o Estado Novo de Getúlio Vargas ousou romper nossa doutrina jurídica quando da invasão da Polônia pela Alemanha hitlerista em 1939 e quando da invasão e anexação dos três países bálticos pela União Soviética em 1940; continuamos reconhecendo seus governos no exílio, pois que a ocupação de seus respectivos territórios equivalia a um ato de força, sempre condenado pela diplomacia brasileira. 

 

4. Voltamos para propor uma nova governança global. O mundo de hoje não é o mesmo de 1945. É preciso incluir mais países no Conselho de Segurança da ONU e acabar com o privilégio do veto, hoje restrito a alguns poucos, para a efetiva promoção do equilíbrio e da paz. 

PRA: O Brasil – pelas vozes de seus diplomatas e militares – sempre teve essa aspiração de pertencer ao círculo decisório do poder mundial, antigamente consubstanciado na aventura da Liga das Nações, a partir de 1945 e mais recentemente, representado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Trata-se, sem dúvida alguma de um resquício da Segunda Guerra Mundial, mas realisticamente seria muito difícil acreditar que grandes potências pudessem aceitar um status plenamente igualitário com todos os demais membros da ONU. O CSNU é oligárquico e assim permanecerá, ainda que se faça uma reforma da Carta da ONU e se amplie o número de seus integrantes, com ou sem o direito de veto (o que aliás perturba enormemente qualquer decisão que se tenha de tomar em caso de conflitos entre Estados, ou até mesmo dentro de Estados, nos quais o CSNU tenha de interferir, o que depende dos interesses e do acordo unânime dos cinco membros permanentes). Esse privilégio abusivo está, pois, condenado a perdurar durante algum tempo mais, que não sabemos quanto será.

            Agora, o argumento usado pelo Brasil para legitimar sua aspiração a ser admitido nesse cenáculo decisor é algo hipócrita, pois se diz que é para “democratizar as relações internacionais. Ora, o ingresso de mais cinco ou seis membros permanentes no Conselho de Segurança não tornará o órgão mais democrático, apenas ampliará a oligarquia, inclusive num provável duplo status, os com direito a veto e os sem esse direito. Por outro lado, essa ampliação pode, sim, tornar o CSNU mais representativo, mas o mais provável é que isso complique ainda mais qualquer decisão que envolva interesses desses membros em alguma região do planeta ou em relação a algum país determinado. Ou seja, a ampliação do Conselho de Segurança pode não contribuir para que seu papel seja exercido da maneira mais expedita possível. 

De toda forma, parece impossível, nas circunstâncias presentes, que os cinco atuais membros permanentes aceitem renunciar ao direito de veto, quando seus interesses estiverem envolvidos diretamente. O que teria de haver seria uma enorme pressão de todos os demais 190 países membros para que esse direito de veto não possa ser exercido quando um dos cinco membros violar diretamente a Carta da ONU, ou a paz internacional. Isso também parece impossível de ser alcançado, pois todos os cinco precisariam estar de acordo com essa limitação de poder, mesmo que a Assembleia Geral aprove uma resolução nesse sentido em quase total unanimidade. 

Quando ao Brasil, pessoalmente não considero prioritário esse assunto na agenda de nossos principais objetivos diplomáticos. Acredito que se, e quando, a reforma da Carta da ONU for feita, o Brasil é um candidato natural a uma das vagas, desde que colabore o mais intensamente possível com os objetivos ali inscritos: paz e cooperação internacional, respeito aos seus princípios e valores, que são também os nossos, algo que esteve longe de ocorrer no governo Bolsonaro. Considero que o objetivo mais prioritário do Brasil seja o seu próprio desenvolvimento econômico e social, o que reforçará ainda mais essa pretensão, que repito, não considero importante no momento presente. Mas é uma aspiração válida, desde que tenhamos condições de ajudar ainda mais eficazmente outros países, e participar mais intensamente das missões de paz da ONU. Tudo isso custa dinheiro e talvez não seja o que esteja sobrando no Brasil nos próximos anos.

 

5. A desigualdade entre ricos e pobres manifesta-se até mesmo nos esforços para a redução das mudanças climáticas. O 1% mais rico da população do planeta vai ultrapassar em 30 vezes o limite das emissões de gás carbônico necessário para evitar que o aumento da temperatura global ultrapasse a meta de 1,5 grau centígrado até 2030. Por isso, a luta contra o aquecimento global é indissociável da luta contra a pobreza e por um mundo menos desigual e mais justo.

PRA: Existe muito de politicamente correto em toda essa movimentação em torno do conceito fetiche de nossa época, a tal de sustentabilidade. De toda forma, não se trata de uma agenda da qual possamos nos afastar ou nos abstermos. Ela reproduz em certa medida o mesmo divisor político que existe no sistema multilateral desde décadas: os países ricos teriam a obrigação de ajudar os países pobres, pelo comércio, pela promoção da saúde e da educação e, agora, pela preservação da sustentabilidade ambiental, reduzindo ou eliminando o aquecimento global.

            Pode até ser uma reivindicação legítima, mas não creio que o Brasil deva considerar que se trata de uma obrigação dos países ricos – uma divisão que já não faz muito sentido – ajudá-lo a cumprir um dever de casa, que podemos fazer por nossa própria conta. O Brasil tem um Estado razoavelmente organizado e capacitado a executar tarefas que são do nosso próprio interesse desempenhar.

 

6. Estamos abertos à cooperação internacional para preservar nossos biomas, seja em forma de investimento ou pesquisa científica. Mas sempre sob a liderança do Brasil, sem jamais renunciarmos à nossa soberania.

PRA: Essa questão da soberania sobre a Amazônia é parecida com o nacionalismo míope dos que consideram que cada Estado tem um poder absoluto sobre sua jurisdição territorial, podendo dispor dele na indiferença sobre seus efeitos sobre outros países. A Amazônia tem um papel específico nos equilíbrios climáticos do planeta, e isso precisa ser reconhecido pelo Brasil, aliás no seu próprio interesse. O mito, ou ameaça, da internacionalização da Amazônia durante muito tempo serviu de biombo para o descumprimento de tarefas que seriam da nossa própria competência exercer, daí o interesse estrangeiro sobre a região. Se formos olhar a história retrospectivamente, veremos que a Amazônia foi um pouco mais próspera quando ela estava de fato internacionalizada, durante o boom da borracha; depois disso ela entrou em decadência, e se tentou resgatá-la da maneira mais errada possível, com a devastação conduzida como política de Estado durante a ditadura militar, que também criou um enclave artificial, a Suframa e a Zona Franca de Manaus, que não corresponde em nada à utilização de suas vantagens comparativas naturais, e que podem ser potencializadas por investimentos estrangeiros na prospecção, estudo, pesquisa e utilização dos recurso da biodiversidade para fins produtivos. O nacionalismo tacanho não ajuda em nada a Amazônia. 

 

7. Enfatizo ainda que em 2024 o Brasil vai presidir o G20. Estejam certos de que a agenda climática será uma das nossas prioridades.

PRA: O G20 está se tornando um fórum burocratizado como são muitos outros foros multilaterais ou regionais, com muito baixa expectativa de que avancem projetos concretos que possam mudar o mundo. Muita retórica, enormes declarações e palavras de boa vontade, com poucos efeitos sobre a condição real dos países pobres. A agenda ambiental estará, mais uma vez, no centro das atenções, se a tensão entre as grandes potências não trouxer outro assunto mais candente. O Brasil vai “brilhar” nessa G20, pois sua diplomacia e seu presidente se esforçarão ao máximo para serem politicamente corretos e cordatos com todo mundo, mesmo com os violadores da Carta da ONU e do Direito Internacional.

            Lula teve pouco impacto no G20, que só foi formado após a crise de 2008, mas ele sempre adorou participar de conclaves internacionais – esteve como convidado no G7 diversas vezes, mas reclamava que era apenas para a “sobremesa” –, onde exerceu os seus dotes de grande “discurseiro”, como sempre fez no ambiente doméstico. Podemos ter certeza de que se excederá no próximo ano, com pretensões a estadista mundial, o que é bom para o Brasil e dos brasileiros, assim como para a autoestima dos diplomatas, que precisam disso, depois de quatro anos de humilhações sob o mandato de um destruidor da diplomacia.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4275: 19 novembro 2022, 8 p.