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quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

A nossa extrema-direita – e as deles - Demétrio Magnoli (Interesse Nacional)

Uma única correção a este artigo de Demetrio Magnoli: o artigo de Ernesto Araujo, Trump e o Ocidente”. Cadernos de Política Exterior, v. 3, n. 6, IPRI/FUNAG, Brasília, é de 2017, não de 2018. Eu era editor dos Cadernos nessa época, mas retirei o meu nome do expediente, não por causa da bizarrice, mas de outra questão.

Paulo Roberto de Almeida


A nossa extrema-direita – e as deles

Demetrio Magnoli

Interesse Nacional, janeiro de 2024

 

 Demétrio Magnoli é sociólogo, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, colunista dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, comentarista internacional na GloboNews.

 

 

O triunfo eleitoral de Donald Trump, em 2016, ativou os alarmes: as democracias ocidentais enfrentavam o desafio da ascensão do populismo de direita. Na Europa, partidos populistas de direita obtiveram, em 2018, perto de 15% dos votos totais, contra menos de 5% em 1998 – e alguns deles tinham forte presença nos gabinetes de governo. Por isso, naquele ano, a vitória do extremista Jair Bolsonaro parecia significar a inserção do Brasil numa tendência mais geral.

Sem surpresa, fixou-se uma narrativa predominante que inscreve a extrema-direita bolsonarista no panorama internacional do avanço da direita populista. O argumento deve ser divido em duas teses distintas: 1) o bolsonarismo articula-se politicamente com correntes internacionais da extrema-direita; 2) as raízes ideológicas do bolsonarismo são similares às das principais correntes internacionais da extrema-direita.

A primeira tese é factualmente comprovável – mas tende a superestimar a relevância dessas articulações. A segunda tese é basicamente equivocada: o bolsonarismo não é mera expressão nacional das ideias que movem o populismo de direita nos EUA ou na Europa.

 Deus e Pátria

“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. A invocação da fé religiosa pontilhou os discursos oficiais do governo Bolsonaro, do presidente à ministra dos Direitos Humanos, passando por Ernesto Araújo, seu primeiro ministro das Relações Exteriores. Paralelamente, o governo insistiu nos ícones da nacionalidade. Como esquecer a frustrada iniciativa do ministro da Educação de solicitar às escolas vídeos de professores e alunos entoando o hino nacional, durante o hasteamento do auriverde pendão da esperança? Ou a conclamação do porta-voz presidencial, general Otávio Rêgo Barros, para “toda a sociedade prostrar-se diante da bandeira ao menos uma vez por semana”?

É um equívoco transferir a ladainha carola e “nacionalisteira” para o arquivo morto dos anacronismos. Há um sentido mais profundo no recurso exaustivo a tais referências: nos EUA, primeiro, e no Brasil, depois, o populismo de direita encontrou uma refutação eficaz do multiculturalismo.

Há décadas, as elites políticas liberais e de esquerda substituíram o discurso universalista (cidadãos) pelo discurso multiculturalista (minorias). A diferença converteu-se em valor supremo, enquanto dissolvia-se a aspiração à igualdade (de direitos, de oportunidades). A nação deu lugar a uma miríade de grupos singulares (negros, mulheres, gays). A ideia de direitos universais (educação, saúde, previdência, transportes) deu lugar à chamada discriminação positiva (leis e regras específicas, cotas de gênero ou de “raça”). Deus e a pátria fazem seu caminho no espaço aberto por essa abdicação histórica.

A estratégia manipula poderosos signos de igualdade. O “Brasil acima de tudo” cumpre dupla função. Na sua face oculta, tenta identificar a pátria ao governo, um expediente autoritário clássico. Mas, na sua face pública, veicula uma mensagem inclusiva: todos – ricos e pobres, homens e mulheres, “brancos” e “negros” – pertencem igualmente à comunidade nacional. O nacionalismo da direita populista carrega as sementes da xenofobia (diante do imigrante) e da intolerância política (diante das oposições). Ao mesmo tempo, oferece um abrangente manto comum – e, com ele, a promessa de resgate dos fracos e humilhados.

As religiões monoteístas deitaram raízes pois ofereciam uma base pétrea de legitimidade aos governantes (um Deus no céu, um imperador na Terra) e, simultaneamente, a esperança de justiça aos desamparados (todos são filhos do mesmo Deus). O “Deus acima de todos” também desempenha dois papeis. Numa ponta, corrói a laicidade estatal e propicia o acesso das igrejas à mesa do poder. Na outra, apela ao sentido popular de igualdade: nenhuma ovelha do rebanho será deixada para trás.

Deus, a bandeira e o hino são chaves narrativas compartilhas por Trump, nos EUA, Vladimir Putin, na Rússia, Recep Erdogan, na Turquia, Viktor Orbán, na Hungria, e a coalizão Meloni/Salvini, na Itália. Nesse plano mais genérico, Bolsonaro participa do movimento geral da direita populista.

Num artigo de ressonâncias místicas, publicado em novembro de 2018, Ernesto Araújo encontrou no “Deus de Trump” o motor da história.[1] O “pan-nacionalismo”, a identidade cristã, Spengler e a xenofobia unem-se como escudos contra o “cosmopolitismo” e o “liberalismo”. Três meses depois, Eduardo Bolsonaro tornou-se o “representante na América Latina” do movimento de partidos populistas de direita articulado por Steve Bannon. Era o ensaio de uma “Internacional dos nacionalistas”, uma contradição em termos fadada ao insucesso.

A geringoça andou um pouco. Na visita presidencial aos EUA, em março de 2019, a comitiva brasileira ofereceu um jantar que teve Bannon como convidado especial. Depois, em abril, Eduardo Bolsonaro fez um giro europeu de encontros com líderes da direita nacionalista, iniciado por uma visita ao então co-primeiro-ministro italiano Matteo Salvini. Mas o Movimento de Bannon logo desandou, esbarrando nas divergências entre os líderes da direita europeus e na resistência de vários deles a se submeterem ao ideólogo americano.

Sob o patrocínio de Trump e de Orbán, no lugar da “Internacional dos nacionalistas”, nasceu uma “Internacional cristã”: a International Religious Freedom (Belief Alliance).[2] Sob o manto da liberdade de crença, a aliança reuniu, além das lideranças políticas cristãs que a conceberam, correntes religiosas conservadoras hindus, muçulmanas e judaicas. Araújo participou de sua estruturação, em 2020.[3] Entretanto, suas atividades só deslancharam após a demissão do ministro, no início do ano seguinte. A articulação contou com a entusiasmada adesão do Brasil – mas basicamente a cargo de Damares Alves, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, com discreta participação do Itamaraty.[4]

O “Deus de Trump” produziu escassos frutos, do ponto de vista dos alinhamentos geopolíticos internacionais. A política externa bolsonarista, enunciada aos brados por Araújo, praticamente limitou-se a visitas, encontros e conferências sectárias, além de frequentes votos antiliberais em fóruns internacionais. Muita fumaça, pouco fogo.

 Ideia fora de lugar

O bolsonarismo foi descrito como expressão brasileira da onda nacionalista e populista que varre o Ocidente. No fundo, porém, o bolsonarismo é uma exceção.

A poesia épica do populismo de direita nasce na gramática do medo. Nos EUA e na Europa, a angústia, a insegurança diante do futuro alimentou a onda populista em curso, que ainda não dá sinais consistentes de retrocesso. Nesse sentido genérico, o Brasil acompanhou a tendência internacional. Bolsonaro foi catapultado ao Planalto por eleitores temerosos, inseguros, indignados. Mas, por aqui, os eleitores não foram seduzidos pela narrativa ideológica do bolsonarismo. O voto negativo, não a adesão política, definiu o triunfo de um líder carente de bases sociais sólidas. Aí reside nossa excepcionalidade.

O grande tropeço da globalização, iniciado em 2008, deflagrou a ascensão do populismo nacionalista. Trump venceu no Colégio Eleitoral apoiando-se na baixa classe média branca submetida à corrosão da indústria tradicional. A crise do euro, seguida por longos programas de austeridade econômica, inflou o balão dos partidos da nova direita europeia. Dos megafones de Trump, Salvini, Le Pen, Farage, Orbán e tantos outros emanaram as conclamações antiliberais do nativismo, da xenofobia e do protecionismo.

No Brasil, Bolsonaro também emergiu do caos: a depressão econômica armada pelas estratégias fiscais do lulo-dilmismo. A campanha bolsonarista apertou as teclas sensíveis da corrupção e da criminalidade, mas o triunfo eleitoral derivou do colapso catastrófico do sistema político. Lá fora, uma corrente histórica profunda impulsiona a nova direita nacionalista. Aqui, um cruzamento de circunstâncias fortuitas colocou um político obscuro na cadeira presidencial.

A extrema-direita brasileira é uma ideia fora de lugar: a imitação sem disfarce de um discurso elaborado nos EUA ao longo de mais de dois séculos. Lá, a noção de liberdade foi moldada em oposição aos conceitos de democracia e igualdade perante a lei. A “liberdade dos estados” funcionou como oposição à existência de uma Constituição nacional, depois como alicerce do sistema escravista e, finalmente, como moldura das leis de segregação racial. Hoje, reciclada, a reivindicação fundamenta as legislações destinadas a restringir o acesso às urnas em estados controlados pelos republicanos.

No Brasil, uma semana antes do 7 de setembro de 2021, a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) publicou o manifesto do bolsonarismo.[5] A Fiesp e a Febraban haviam ensaiado discurso da democracia, curiosamente definida como “harmonia entre os Poderes”. Em contraponto, a Fiemg intitulou sua declaração com a senha de combate da extrema-direita: Manifesto pela Liberdade.

Um centro de comando único, uma espécie de Comitê Central, esculpiu os discursos do bolsonarismo. Assim como o texto da Fiemg, as bandeiras dos atos bolsonaristas daquele 7 de setembro sofreram uma padronização, organizando-se em torno da senha principal. Tudo – os ataques ao STF, as injúrias contra governadores e parlamentares, a contestação das urnas eletrônicas – foi recoberto por uma mão de tinta fresca que exibia a palavra liberdade.

“Assistimos a uma sequência de posicionamentos do Poder Judiciário que acabam por tangenciar, de forma perigosa, o cerceamento à liberdade de expressão no país”, escreveram os industriais mineiros para condenar o inquérito das fake news – e, de passagem, oferecer um apoio implícito ao pedido de impeachment do juiz Alexandre de Moraes. Liberdade, desdobrada em “liberdade de expressão” e “liberdades individuais”, era esta a mensagem.

A senha emergiu, igualmente, em textos assinados pelo ministro da Defesa, Braga Netto, um expoente da agitação bolsonarista entre os militares. Na nota de repúdio às declarações do senador Omar Aziz (7 de julho), o general proclamou que “as Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”.[6] Duas semanas depois, em nota de desmentido de ameaças de golpe (22 de julho), expressou o compromisso das Forças Armadas com “a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro”.[7]

A Constituição atribui às Forças Armadas as missões de “defesa da Pátria”, “garantia dos poderes constitucionais” e, por iniciativa de um deles, proteção “da lei e da ordem”. A “liberdade do povo brasileiro” era uma invenção (in)constitucional de Braga Netto –  ou melhor, dos mestres ideológicos que o controlavam. Mas, aqui, o que importa é registrar a consistência do discurso bolsonarista.

Liberdade – não democracia. A opção tem significado e implicações. O conteúdo da liberdade depende do ponto de vista do sujeito do discurso. Democracia, porém, tem conteúdo objetivo: o sistema de governo baseado na vontade da maioria filtrada por leis e instituições que limitam o poder dos governantes, asseguram os interesses permanentes da sociedade e protegem os direitos da minoria. Fora da democracia, liberdade é privilégio de uma minoria que tem poder. Os arautos bolsonaristas da “liberdade” são os saudosistas da ditadura militar que acalentaram o sonho de um golpe contra as liberdades democráticas.

 Aliança profana

Paulo Guedes, o superministro da Economia,  definiu o governo Bolsonaro como uma aliança entre conservadores e liberais.[8] Era, claro, um álibi destinado a justificar sua própria adesão ao presidente extremista – mas também um duplo equívoco conceitual. A extrema-direita bolsonarista não é conservadora, mas reacionária: defende uma ruptura com a democracia e um retrocesso à “idade de ouro” da ditadura militar. Já o liberalismo econômico do governo resumia-se a uma fantasia destinada a recobrir políticas fiscais populistas que desmoralizaram o teto de gastos e tentativas de subordinar a Petrobras às necessidades reeleitorais do presidente.

A “santa aliança” de Guedes deflagrou um debate público sobre as relações entre liberalismo e democracia. “É natural que a Fiesp assine um manifesto em defesa da democracia, já que não existe liberalismo, economia de mercado ou propriedade privada, valores tão caros à entidade e ao setor industrial, sem que exista segurança jurídica, cujo pilar essencial é a democracia e o Estado de Direito”, declarou Josué Gomes da Silva, presidente da entidade empresarial paulista no início da campanha eleitoral de 2022.[9]

O manifesto cumpria um papel positivo, mas a justificativa continha uma imprecisão conceitual: o liberalismo não precisa, necessariamente, da democracia.

O liberalismo tomou de assalto o Ocidente no século XIX, antes do advento das democracias contemporâneas. Os princípios liberais clássicos – os direitos individuais, as liberdades civis e políticas, o secularismo, o livre mercado – estabeleceram-se em regimes políticos aristocráticos ou oligárquicos. A democracia chegou depois.

Democracia supõe o direito universal de voto, algo que só se difundiu ao longo do século XX. Os sistemas pioneiros de governo liberais baseavam-se no consentimento de uma minoria que gozava do privilégio de plenos direitos políticos. Durante um longo período, massas de pobres eram excluídas do voto por muralhas ligadas à propriedade ou à renda e as mulheres simplesmente não tinham direito de voto.

O rótulo democracia liberal indica uma ruptura. O liberalismo sofreu uma revolução interna para adaptar-se ao advento da democracia de massas. Nesse passo, tornou-se menos “puro” na esfera econômica, pois teve que admitir as intervenções estatais destinadas a combater a pobreza extrema e as mais clamorosas desigualdades sociais.

Nem todos curvaram-se aos novos tempos. Uma corrente de economistas liberais, aferrada ao dogma da absoluta liberdade de mercado, enxergou na democracia liberal um malévolo disfarce do socialismo. Dessa crença nasceu uma atração por regimes autoritários dispostos a conduzir programas de radical liberalização econômica.

No ponto de partida, o pensamento liberal enxergava as liberdades políticas e econômicas como partes indissociáveis de uma mesma doutrina. Milton Friedman, pai-fundador da Escola de Chicago, desafiou essa tradição ao operar como conselheiro do ditador chileno Augusto Pinochet e do regime totalitário chinês. A liberdade, imaginava Friedman, floresce na esfera econômica, alastrando-se mais tarde pela esfera política.

A dissociação teórica entre as duas esferas propiciou um álibi político à corrente de liberais que enxergam a democracia como valor secundário ou mesmo como obstáculo à promoção irrestrita da liberdade de mercado. A adesão de significativa parcela do empresariado brasileiro à candidatura de Bolsonaro em 2018 encontra aí uma base ideológica.

Guedes falou em “democracia responsável”, conectando-se a uma extensa tradição autoritária de adjetivação da democracia.[10] Nesse passo, reuniu-se com personagens como Oliveira Salazar (“democracia orgânica”), Erdogan (“democracia conservadora”) e Putin (“democracia soberana”). Os falsos liberais brasileiros, sempre dispostos a conciliar com o populismo econômico, aliaram-se aos reacionários saudosistas da ditadura militar. A aliança profana entre Bolsonaro e Guedes ilumina a singularidade brasileira: nos EUA e na Europa, a direita nacionalista e a extrema-direita abominam o liberalismo.

A atual direita republicana nos EUA, ainda liderada por Trump, deita raízes no nativismo, na xenofobia e no isolacionismo. Contudo, no plano econômico, prega o protecionismo comercial e aponta a globalização (às vezes, nas formas da China e do México) como responsável pelas agruras que afligem o “americano esquecido”.

Os partidos da direita populista europeia que ascenderam recentemente deitam raízes em correntes profundas das histórias nacionais. A Reunião Nacional francesa deriva tanto da nostalgia do regime colaboracionista de Vichy quanto do neocolonialismo poujadista. O Vox, na Espanha, nutre-se da memória do franquismo. O Irmãos da Itália, de Giorgia Meloni, engaja-se na atualização do mussolinismo. Todos eles, porém, encontram-se no pátio da “democracia iliberal” pregada por Orbán.

Aliança entre liberais de araque e reacionários saudistas. A extrema-direita bolsonarista é, em parte, uma imitação. Mas, no fundo, é uma colcha de retalhos incongruentes e um fenômeno singular.   n


[1]. “Trump e o Ocidente”. Cadernos de Política Exterior, v. 3, n. 6, IPRI/FUNAG, Brasília, 2018.

[2]. https://bit.ly/3xMH3Hk

[3].  https://bit.ly/3ZdmdMZ

[4]. https://bit.ly/3ZcVbFD

[5].  Manifesto pela Liberdade, FIEMG. https://bit.ly/3KEK3NI

[6].  Nota Oficial – Ministério da Defesa, 7/7/2021. https://bit.ly/3Z2TQRW

[7]. Nota Oficial – Ministério da Defesa, 22/7/2021. https://bit.ly/3ZnzYci

[8]. O Estado de S. Paulo, 22/2/2022. https://bit.ly/3SroO3T

[9]Folha de S. Paulo, 4/8/2022. https://bit.ly/3ZmKJeU

[10]Valor, 26/11/2019. http://glo.bo/41ugLaH

 

 

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

O BOLSONARISMO NO ITAMARATY DE LULA - Ana Clara Costa (Piauí)


O BOLSONARISMO NO ITAMARATY DE LULA

Gestão petista deu destino menos implacável a embaixadores engajados no governo anterior

Ana Clara Costa|

Piauí, 08 nov 2023_09h36 

https://piaui.folha.uol.com.br/itamaraty-lula-diplomatas-bolsonarismo-cargos/?utm_source=pushnews&utm_medium=pushnotification


Quando Jair Bolsonaro ganhou a eleição em 2018 e Ernesto Araújo assumiu o Itamaraty, Mauro Vieira, hoje chanceler de Lula, era embaixador do Brasil nas Nações Unidas, em Nova York. Vieira foi enviado ao cobiçado posto na cidade americana por determinação de Michel Temer, assim que o emedebista assumiu o governo, depois do impeachment. O diplomata era ministro das Relações Exteriores de Dilma Rousseff, mas tinha relações tão cordiais com o MDB que Temer até cogitou mantê-lo na chefia do Itamaraty. Não fez o convite porque o posto foi reivindicado pelo PSDB, que participou do enclave para derrubar a petista. Assumiu José Serra.

Vieira partiu para Nova York com poder, mas não se esqueceu dos amigos de outrora. Quando, em 2016, Dilma decidiu fazer uma peregrinação junto aos organismos internacionais para denunciar que sofreu um golpe, o secretário-geral do Itamaraty tucano, Marcos Galvão, avisou as representações brasileiras na ONU que não recebessem a ex-presidente, como forma de invalidar seu discurso. A embaixada em Genebra cumpriu à risca a ordem. Mas Vieira não só a recebeu em Nova York, como a hospedou em sua residência, juntamente com sua comitiva, que incluía o assessor internacional petista Marco Aurélio Garcia. Dizia que, em sua embaixada, mandava ele.

Sob Bolsonaro, Vieira ainda permaneceu alguns meses em Nova York. Sua partida foi selada quando o diplomata se insurgiu contra uma orientação vinda de Brasília. O Itamaraty de Ernesto Araújo ordenou que o Brasil mudasse seu voto sobre o embargo americano a Cuba – o país historicamente, em todos os governos, votava contra o embargo. Vieira enviou três telegramas a diferentes departamentos da chancelaria brasileira informando as razões pelas quais o voto não deveria ser mudado. Ao assinar os telegramas, colocou apenas suas iniciais, e não as de seus subordinados – o que seria praxe nesse tipo de documento. Queria que a culpa da insubordinação recaísse apenas sobre si. Seus apelos não funcionaram, o Brasil mudou o voto e, poucas semanas depois, seu nome foi designado para comandar a embaixada de Zagreb, na Croácia, um posto sem muita importância. Os outros dois ex-chanceleres da petista também foram transferidos para lugares distantes e de menor relevância para a diplomacia brasileira: Antonio Patriota foi despachado para o Cairo, no Egito, e Luiz Alberto Figueiredo, para o Catar.

A atitude persecutória de Araújo tinha um agravante. Vieira foi um dos principais apoiadores de sua carreira diplomática. Quando foi embaixador em Washington, em 2010, o diplomata convidou Araújo para integrar sua equipe de assessores diretos. Nesse período vivendo nos Estados Unidos iniciou-se sua inflexão ao olavismo. Quando Vieira virou chanceler de Dilma, em 2015, trouxe Araújo para trabalhar em seu gabinete. Em uma entrevista à repórter Consuelo Dieguez, da piauí (O chanceler do regressopiauí_151, abril de 2019)Araújo contou que, justamente nesse período em que se adensavam as manifestações contra a petista, ele um dia deixou o gabinete e fora para a rua gritar “Fora Dilma”. “Foi libertador poder gritar pelo impeachment de Dilma, por Lula na cadeia”, disse o chanceler, à época, à repórter. Com Temer, Araújo, já convertido ao radicalismo olavista e tendo publicado textos que reforçavam sua visão, foi promovido a embaixador.

De volta ao poder, Mauro Vieira decidiu desde a largada que evitaria o revanchismo. Seu intuito era acalmar os ânimos na instituição, uma das mais afetadas pela agenda bolsonarista de combate ao que entendem por “globalismo”. De tanto conceder, porém, Vieira também acabou desagradando os que não capitularam sob Bolsonaro – e agora reclamam dos postos prestigiados de alguns de seus apoiadores e da falta de punição. A começar pelo próprio Araújo, que embora tenha feito o que fez na instituição e, depois da vitória de Lula tenha dito em uma live que o novo governo deveria ser derrubado, mantém-se, para todos os efeitos, na carreira. Hoje licenciado e sem remuneração, vive em Hartford, nos Estados Unidos, onde sua mulher, Maria Eduarda Seixas Corrêa, tem um cargo consular.

Carlos Alberto França, que o sucedeu na chancelaria, tornou-se embaixador do governo Lula no Canadá. Vive em Ottawa. Nestor Forster, nomeado por Bolsonaro para comandar a embaixada brasileira em Washington e conhecido por ter apresentado Araújo ao olavismo, foi transferido para o mesmo país: é cônsul em Vancouver. Ambas as nomeações são vistas por alguns diplomatas da instituição como prêmios, em razão da localização geográfica privilegiada. Internamente, a explicação é que França ajudou a construir uma boa transição. Procurou Celso Amorim logo após a vitória de Lula e se colocou à disposição para ajudar. Enquanto muitos ministros de Bolsonaro nem sequer participaram da transmissão de posse, França compareceu à sua e fez um discurso avaliado pelos pares como ponderado. Apesar do ambiente político ainda conflagrado, o ex-chanceler tinha esperanças de ser enviado a algum país europeu. Ganhou o Canadá, o que terminou recebendo de bom grado, embora tenha feito pedidos para cargos de seus subordinados que não foram acatados.

Outro expoente do bolsonarismo, o diplomata Marcos Sperandio, que foi chefe do cerimonial do Palácio do Planalto depois que França, que ocupava o cargo, virou chanceler, está num posto de prestígio na embaixada em Washington. É um dos quatro ministros-conselheiros da embaixadora Maria Luiza Viotti. Ele fora transferido ainda durante o governo Bolsonaro, num posto que fora criado justamente para a sua nomeação. Antes, Forster, que antecedeu Viotti, só dispunha de três ministros-conselheiros.

Apesar do descontentamento de alguns diplomatas, Vieira tem tido o aval de Lula para manter sua posição. Ao assumir, preservou no posto o embaixador brasileiro em Madri, Orlando Leite Ribeiro, que foi secretário da então ministra da Agricultura, Tereza Cristina, antes de ser enviado à Espanha pelo ex-presidente. Vieira tampouco removeu o embaixador brasileiro em Portugal, Raimundo Carreiro, ex-ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), indicado ao cargo por Bolsonaro e amigo de José Sarney.

Quando Lula reclamou com o chanceler sobre haver apoiadores do ex-presidente em bons postos diplomáticos, Vieira respondeu que, se fosse remover todos que serviram ao governo anterior, muitos cargos ficariam vazios. Lula retrucou que quando fosse a Portugal e Espanha, não desejava encontrar-se com os respectivos embaixadores ao longo da viagem. E assim foi feito. Lula tampouco quis cruzar com Nestor Forster quando viajou a Washington, em fevereiro deste ano. Para evitar maiores desconfortos, o então embaixador, que ainda não havia sido removido do cargo, tirou férias durante a visita do presidente.

Outra designação que tem causado polêmica é a do embaixador Eduardo Saboia, que em 2013 ajudou na fuga do ex-senador boliviano Roger Pinto Molina, que estava asilado havia quinze meses na embaixada brasileira em La Paz. Molina fazia oposição a Evo Morales e a atitude de Saboia, que também serviu no gabinete de Celso Amorim quando ele era chanceler de Lula, acabou motivando a queda de Antonio Patriota do posto de ministro. Dilma determinou que Saboia fosse punido, ficando sem designação durante todo o seu governo.

Sob Temer, o diplomata foi tirado do limbo. Bolsonaro também o manteve em bons postos e, em 2022, foi designado para chefiar a secretaria de Ásia e Pacífico do Ministério. Vieira manteve a nomeação. Quando, na cúpula dos Brics, em Joanesburgo, em agosto deste ano, Dilma Rousseff cruzou olhares com Saboia, reclamou com Lula, de forma bastante enfática, que o diplomata estivesse ali depois de tudo o que ocorreu no passado. Afirmou sentir-se desrespeitada. Celso Amorim presenciou as críticas, mas deu de ombros, dizendo que o Itamaraty já não era mais sua atribuição. Vieira soube do ocorrido, mas mesmo assim o manteve no posto, onde Saboia permanece até hoje.

 

Obolsonarismo foi um período difícil para a diplomacia brasileira por exigir que, em muitos casos, diplomatas fossem cobrados a sair em defesa do ex-presidente. Contudo, segundo membros da instituição ouvidos pela piauí, havia formas de navegar a tormenta com relativa dignidade, mantendo o mínimo de imparcialidade. Não foi o caso do embaixador Frederico Arruda, que serviu o governo Bolsonaro em Londres e foi um dos defensores mais fervorosos do ex-presidente. Arruda trabalhou na assessoria internacional de Michel Temer e fora despachado para Londres numa vaga interina ainda durante a gestão do emedebista, em 2016. Fez duras críticas a Dilma na imprensa britânica até ser empossado embaixador, de fato, em 2018. Seu nome teve amplo apoio do Senado, que tem o papel de avalizar todos os chefes de embaixadas.

Em junho de 2020, quando o jornal britânico Financial Times fez um editorial relatando temor pela democracia brasileira no auge das manifestações estimuladas por Bolsonaro contra o STF, durante a pandemia, Arruda rapidamente se manifestou. Numa carta ao jornal, disse que o FT “superdramatizava” a situação e que Bolsonaro em nenhum momento atentou contra as instituições. No ano anterior, ao The Guardian, Arruda escreveu condenando parlamentares britânicos que criticavam as razões da prisão de Lula. Em setembro de 2022, durante o velório da Rainha Elizabeth, recebeu o pastor Silas Malafaia, cabo eleitoral, com pompa e circunstância. De sua sacada em Londres, durante a mesma viagem, Bolsonaro fez um discurso de campanha, dizendo: “Não tem como eu não ganhar no primeiro turno”. Arruda foi tirado de Londres este ano, mas segue embaixador do governo Lula – agora na Austrália.

Um dos poucos, de fato, punidos foi Luís Fernando Serra, que comandava a embaixada em Paris. Serra esticou a corda como nenhum outro membro da Casa. No auge da pandemia, em maio de 2020, enviou carta ao jornal Le Monde dizendo que a conduta de Bolsonaro era exemplar, que ele jamais negara a gravidade do vírus e que os que atentavam contra a população eram justamente os governadores brasileiros, que desejavam desestabilizar o governo. Serra também condenava as medidas de isolamento social. No ano seguinte, quando os hospitais brasileiros não suportaram o número de internações e os cemitérios criaram valas para enterrar mortos, Serra culpou a esquerda pela falta de estrutura hospitalar.

Em 2020, convidado para comparecer a um Congresso brasilianista em Paris, Serra declinou sua presença ao saber que haveria uma homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018. 

Serra foi tirado de Paris ainda no final de 2022 e transferido para a representação do Itamaraty no Rio de Janeiro – o equivalente ao “Departamento de Escadas e Corredores”, maneira jocosa com que os diplomatas se referem a quando um de seus pares fica sem função na Casa. Deve aposentar-se compulsoriamente em dezembro, quando completa 74 anos.

 

 

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

O destino da nação: declínio ou renovação da democracia brasileira? - Paulo Roberto de Almeida (2020)

 Um texto escrito dois anos atrás, que caberia revisar à luz da conjuntura deste final do pior governo que tivemos desde o primeiro governador geral do Brasil, D. Tomé de Souza, em 1549, ou seja, desde sempre.

Texto disponível neste link da plataforma Academia.edu:

https://www.academia.edu/90543389/O_destino_da_nacao_declinio_ou_renovacao_da_democracia_brasileira_2020_

destino da nação: declínio ou renovação da democracia brasileira?

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivo: Notas para desenvolvimento oral no quadro de debates no âmbito do projeto BNFB; finalidadepalestra-debate, 8/09/2020; 16h00]

 

 

Sumário: 

1. Prolegômenos conceituais preliminares

2. A História não se repete, nem mesmo como farsa

3. O que fazer na ausência de algum estadista circunstancial?

4. Uma nova Idade das Trevas?

 

 

1. Prolegômenos conceituais preliminares

Sou bastante cético quanto ao primeiro B do projeto “Bolsonarismo Novo Fascismo Brasileiro”, provavelmente contra a opinião de certa parte dos cientistas políticos de nossa torre de marfim acadêmica, atualmente mais parecida a uma Torre de Babel no que concerne justamente a interpretação desse fenômeno. Recuso-me a atribuir tanta honra (invertida) a essa espécie de lumpen-fascismo, quando ele talvez não mereça sequer uma nota de rodapé nos futuros livros de história do Brasil a serem escritos até o final do século XXI.

Será que essa doença política superficial – uma mera alergia de pele? –, incômoda neste momento, desaparecerá sem deixar muitos traços na epiderme da sociedade brasileira, ao lhe aplicarmos uma pomada eleitoral em 2022? Ou será que ela persistirá por pelo menos mais um período de mandato presidencial – graças ao sucesso temporário dos remédios distributivos que estarão sendo aplicados neste terceiro ano de desgoverno – até que o fracasso previsível do populismo de direita conduza o país aos mesmos impasses econômicos já produzidos por certos populismos de esquerda?

Difícil dizer agora: não sou profeta, e não tenho os dons prospectivos de certos cientistas políticos, que se exercem nas artes difíceis de prever resultados eleitorais com tal distanciamento no tempo. Tampouco pretendo entrar num debate terminológico sobre a natureza mais ou menos fascista do “bolsonarismo”, em vista da imensa confusão já criada entre os que defendem tal analogia conceitual e aqueles que, independentemente da essência real desse fenômeno, já lhe reconhecem uma organicidade própria. 

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Íntegra do texto disponível neste link da plataforma Academia.edu:


https://www.academia.edu/90543389/O_destino_da_nacao_declinio_ou_renovacao_da_democracia_brasileira_2020_

sábado, 18 de junho de 2022

Prognosticando um trimestre de confusão - Paulo Roberto de Almeida

Prognosticando um trimestre de confusão:

Ao que tudo indica, o psicopata perverso está criando, estimulando e fabricando todo tipo de provocação, de forma deliberada, de molde a suscitar reações do Judiciário (no Legislativo, a CD já é conivente) e assim atingir seu objetivo de produzir caos para invocar a necessidade de “lei e ordem”, que ele próprio sabota continuamente. STF e TSE não podem cair nessa trampa, pois é isso que o candidato a Mussolini de araque pretende.

Teremos três meses de muita tensão no país, e talvez muitos recomendem liquidar a fatura no primeiro turno. 

Pode ser, mas o país continuará infelizmente dividido, pois a barbárie dos milicianos políticos já contaminou largos estratos da população. Para isso também contribuiu a política divisiva do “nós e eles” iniciada e estimulada pelos companheiros sectários durante anos e anos. 2018 já foi o resultado disso, junto com a corrupção deslavada dos lulopetistas e seus associados do Centrão, que nunca se ausentaram de quaisquer governos.

Como diria Lupiscínio, é preciso ter “nervos de aço”, ou pelo menos a cabeça fria.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 18/06/2022

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Embaixador do Brasil na França culpa esquerda por hospitais lotados (Metropoles)

Correto! A esquerda tem um poder extraordinário no Brasil: ela ordenou que milhares de pessoas, em lugar de trabalhar, como sugeriu o atilado e clarividente presidente, fossem aglomerar em frente a hospitais reivindicando, não um trabalho, mas essas coisas inadequadas, como tubos de oxigênio e atendimento imediato. A esquerda deveria ser encaminhada a campos de reeducação pelo trabalho, como o bom Stalin fazia com os recalcitrantes. Elementar caros franceses...

Paulo Roberto de Almeida 

 Embaixador do Brasil na França culpa esquerda por hospitais lotados


Diplomata Luis Fernando Serra chegou a ser cogitado para assumir o Itamaraty, no lugar de Ernesto Araújo

Flávia Said
Metropoles14/04/2021 7:45 

O embaixador do Brasil na França, Luis Fernando Serra, afirmou à imprensa em Paris que a culpa por hospitais lotados hoje no país é da falta de investimentos da esquerda em saúde.

O diplomata foi convidado a participar da emissão da BMFTV na noite de terça-feira (13/4), depois de a França anunciar a suspensão de voos ao Brasil. Serra chegou a ser cotado para substituir Ernesto Araújo como chanceler. Ele é benquisto no Palácio do Planalto por defender o governo federal, inclusive em protestos diante da embaixada.

Ao tratar da crise de Covid-19 no Brasil, Serra não indicou qual seria a responsabilidade do presidente da República.

“Se os hospitais estão lotados é por causa dos 24 anos da esquerda no Brasil, que não construiu hospitais suficientes”, afirmou, segundo reportagem do portal UOL. “Não é por conta de o presidente se recusar a confinar o país?”, questionou o repórter.

Para o embaixador, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não pode ser responsabilizado. Ele citou decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que conferiu a estados e municípios poder para estipular medidas restritivas locais.

“O STF decidiu que o presidente não tem o poder de confinar”, afirmou. “Isso precisamos dizer. Ele não teve o poder de confinar”, continuou. A rede de TV francesa ainda mostrou um trecho de um discurso de Bolsonaro no qual o presidente, em março, diz que o país precisa parar de chorar. “Você entende isso?”, perguntou o repórter ao diplomata.

“Claro que entendo. Ele é solidário e quer que as pessoas trabalhem”, respondeu o embaixador. Segundo ele, o confinamento impede os brasileiros de trabalhar e 35 milhões de pessoas precisam de renda diária para sobreviver. “Não há a cobertura social que existe na Europa”, justificou. Ele ainda alegou que, se não forem autorizadas a sair, essas pessoas “morrem de depressão ou de fome”.

Suspensão de voos
O embaixador disse que não considerava a interrupção da ligação aérea entre França e Brasil como uma sanção, mas foi incisivo em alertar ao apresentador que ele deveria entender que o turismo não representa uma parte significativa da economia nacional.

“Não dependemos do turismo. Recebemos apenas 6,5 milhões estrangeiros que visitam o Brasil, um país de beleza extraordinária, enquanto a França recebe 95 milhões de estrangeiros. O peso do turismo não é enorme”, alegou.

Na entrevista, Serra foi confrontado com os dados de mortes por Covid-19 no Brasil e, diante do comentário do jornalista francês de que existe uma percepção de que Bolsonaro “não faz muita coisa” para lidar com a pandemia, o embaixador subiu o tom.

“Você acha que ele faz pouca coisa? Então, vou te dizer uma coisa: o Brasil é o quarto, quinto país do mundo que mais vacinou. Você sabia disso? Fale isso, fale isso!”, insistiu o diplomata.

Ele ressaltou o número de vacinados no Brasil, mas não fez referência ao acordo entre o Instituto Butantan, ligado ao governo paulista, e a farmacêutica chinesa Sinovac, que fornece 80% dos imunizantes hoje aplicados no país.

“O presidente vacinou 30 milhões de brasileiros. E, por conta desse dado, nós somos o quinto país que mais vacinou, depois dos EUA, China, Índia e Reino Unido. Você não acha que esse é um bom resultado?”, retrucou.

https://www.metropoles.com/brasil/embaixador-do-brasil-na-franca-culpa-esquerda-por-hospitais-lotados


sábado, 3 de abril de 2021

Digressões sobre o livro de Idelber Avelar, “Ele em Nós”, por Marcelo Franco

Valeria por um longo artigo-resenha, com derivações para todo um universo literário e histórico realmente existente, em torno do livro de Idelber Avelar, mas é muito mais do que isso: é matéria para todo um curso de semiologia política, mas que dificilmente passaria pelo comitê de sábios da Fefelech. Fica portanto para reflexão pessoal e para reflexões solitárias de quem leva livros a sério. Coisa difícil hoje em dia. Faltam-nos Wilson Martins, Otto Maria Carpeaux e críticos rigorosos, mesmo dispersivos, como o aqui presente. Parabéns Marcelo Franco.

Paulo Roberto de Almeida

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Marcelo Franco (via Facebook):

Escrever textão sem nexo tem suas vantagens: as (merecidas) críticas serão poucas...

1.

Li “Ele em Nós: Retórica e Antagonismo Político no Brasil do Século XXI”, de Idelber Avelar, e aqui confesso uns três ou quatro espantos. Listo-os: 1) é um livro que tenta compreender o Brasil recente pela análise do discurso político, categoria que, mesmo velhinha, parece ligeiramente esquecida aqui no Berço Esplêndido (há um bocado de livros sobre “análise do discurso” como teoria; não tantos, contudo, de estudos de caso com esse referencial, ou assim me parece quando miro o horizonte desde onde me encontro, no Planalto Central — ressalto, todavia, que sou míope a não mais poder —; como atestado de idade, pensemos apenas em Victor Klemperer e seu estudo da propaganda nazista a partir de uma linguagem própria, à qual chamou, em latim, “Lingua Tertii Imperii”); 2) o fato de que Avelar, mesmo oriundo da academia, escreva sem aquele patoá acadêmico ininteligível, patoá que é doce herança frankfurtiana, nunca itabirana; 3) evidentemente, como a análise se dá pela retórica, louvo a coragem de não se jogar para a plateia e os pares, descartando-se a assunção prévia de conceitos fixos e palavras-mantra como “golpe” e que tais (imagino que as redes sociais do autor recebam, por isso, um rosário de xingamentos diários); 4) a lembrança, nem sempre presente em análises políticas, de que a existência de relação de causa e efeito apenas como consequência temporal não é algo com que se possa trabalhar de modo lógico (o que o faz evitar aquela falácia de nome curioso, “post hoc ergo propter hoc”, comum noutras pragas, digo, plagas). 


Três ou quatro espantos, eu escrevi? Há mais, há mais: 5) tudo somado, temos a construção de uma análise do período 2013-2020, e mesmo de épocas anteriores, muito mais coerente do que outras que se leem aqui e ali; 6) a proeza de se escrever um livro durante a epidemia — não sou acadêmico, claro está, mas mesmo assim a minha produção no período me vexa: respirei, paguei impostos, assisti a filmes idiotas e bebi algum vinho. E, não menos assombroso, nota-se a gigantesca quantidade de reportagens, livros e artigos pesquisados para a obra final — desacostumei-me com isso, pois no meu métier, digamos assim, boa parte da produção acadêmica repete o que já se dissera antes, levando o dito e o repetido a se comunicarem e, num moto-contínuo de citações, lantejoulas, rapapés e salamaleques, justificarem-se a si mesmos.


O livro fez formigar em mim as células cinzentas adormecidas pelos filmes, impostos e vinhos; como “o pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a voar”, cometi um tortuoso e enovelado brainstorming (não uma resenha, que demandaria mais certezas e menos dúvidas de minha parte). E é também brainstorming porque o livro bole com ideias que me são caras (“bole” é de lascar, mas minhas sinapses não encontrarão, hoje, algum sinônimo com mais eufonia). Antecipo-me, assim, às reclamações e cartinhas ao editor: provavelmente, escreverei (escrevi) mais sobre outros assuntos e não acerca do livro, usando-o como liga para amarrar pensamentos um tanto desconexos, tão desconexo quanto eu me sinto neste dia chove-não-chove, em que o bacalhau devorado ainda não me assentou bem.


O livro de Idelber Avelar, afirmo — agora com certeza —, é um marco teórico excepcional para outros tantos livros que poderão testar premissas semelhantes, baseadas na retórica política. Que ele siga o seu caminho e gere bons frutos, pois a seiva é boa.


(Ah, sim, como meus dois ou três leitores haverão de notar, quase não uso aí abaixo exemplos políticos brasileiros, isso para evitar os chutes abaixo da cintura e os dedos nos olhos que costumam acompanhar qualquer expressão mais clara de ideias e opiniões.)


2.

Pesado, medido e lido o danado do livro, admito: fosse eu acadêmico e houvesse menos vinho e filmes idiotas no mundo, talvez eu espalhasse uns poréns e todavias entre os espantos. Por exemplo, acerca da estrutura discursiva brasileira construída sobre hipérboles (“Brasil Grande”, entre outras), reconheço que gostaria de ler alguma comparação com outros países, porque hipérboles constituem o cimento normal de boa parte de qualquer exercício político, uma espécie de andaime retórico comum aos nossos representantes, da Austrália à Groenlândia e não só do Oiapoque à Marilena Chauí (eu sei, eu sei, o livro não se propôs a isso).


Já no capítulo sobre “lexicocídio”, neologismo cunhado por Idelber para narrar o esvaziamento de palavras por abandono ou sobreuso, “fascismo” é o termo que logo se destaca como exemplo (o lugar de honra não é imerecido, veremos adiante). Entretanto, algumas — poucas — palavras e expressões são igualmente postas de moldo solto no livro, como “extrema” (para qualificar parte da direita), “populismo” (usado à esquerda e à direita) e “fake news”, isso apesar de, logo na primeira página da introdução, lermos que “as palavras importam” e que há necessidade de rigor no trato com a linguagem, mesmo que isso signifique a perda de parte de interlocutores. Nada grave, claro: são manias minhas de quase-velho que costuma ler com lupa. E não há, ou não me recordo de ter lido, a palavra genocídio no livro, outra que se tornou um significante oco em busca de significados (para que me poupem de linchamentos, anuncio que pedir rigor no uso de “genocídio” não equivale a concordar com a gestão da crise epidêmica). “Populismo”, “extremo”, “bibliocida” (alegada característica da coalização vencedora da eleição de 2018), “fake news” (en passant, registre-se), “negacionismo” (também, creio, somente de passagem, no epílogo) e, por que não, “genocídio”: seis significantes vazios em busca, à moda de Pirandello, de um autor, ou seja, de quem lhes traga seus significados perdidos. Claro, eu bem o sei: se os significados com os quais concordo estivessem no livro, eu seria, no lugar de Idelber, o seu autor — sua proposta foi outra.


3.

“Bibliocida” merece um pouquinho de musculatura semântica. Um desvio, por assim dizer, porque o termo não é central em “Eles em Nós”. Sem problema: um bom livro também nos abre veredas de pensamento nem sempre antevistas pelo autor, justamente o que se dá aqui.


Se não equívoco, “bibliocida” é um termo redutor, tanto quanto “anti-intelectualismo”. Bem sabemos que há mesmo quem busque as trevas, o que não impede que exista quem reaja contra governos de tecnocratas, sinônimo de descarte da arena política, lugar próprio para que os desacordos morais se esmurrem e estapeiem. Ainda não chegamos ao ponto de desistir de eleições para entregar o governo ao Conselho Federal de Medicina e à Faculdade de Economia da USP.


Há então graus, infere-se, de bibliocídio, ou antes, nem todo anti-intelectualismo é bibliocídio. É aqui que também se percebe o descuido, em outros livros, com o termo “populismo”, que tomou a mesma direção de “fascismo”, uma estrada rumo à imprecisão que George Orwell já notara na década de 40. Para o sociólogo Frank Furedi, por exemplo, a democracia ganha com o que se chama populismo; o sentimento antipopulista de intelectuais e articulistas de jornais, bem notou Furedi em “Democracy Under Siege”, equivale ao pensamento antidemocrático de um aristocrata inglês da primeira metade do século 19, porque se acredita que a democracia seria apenas um meio e não também um fim em si mesma, daí vindo a crítica aristocrática contra os “excessos democráticos”, crítica hoje abrigada sob o manto menos chamativo da rejeição ao que dizem ser “os excessos populistas”. Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, à esquerda, também tentaram compreender o populismo (ou “populismos”) com bons olhos, por exemplo. Os jornais, não obstante, berram diariamente: está tudo errado, a democracia morrerá amanhã por uma morte de mil cortes (cortes populistas, ao que parece). Dito de outra maneira: como dar um sentido unívoco e sempre negativo a “populismo” se Jan-Werner Müller e outros teóricos estão longe de pisar em chão comum? Se existem “quatro peronismos” (Alejandro Horowicz) e “três kirchnerismos” (Matías Kulfas), vamos nos contentar apenas com esse populismo que nos empurram como uma das pragas bíblicas, bem ali entre gafanhotos e águas corrompidas? Não menos relevante, foi Millôr Fernandes quem apontou a nossa tendência de pretender “revogar o povo”?


Bola pra frente. O canadense Mathieu Bock-Côté também mostra, por outros meios (“O Império do Politicamente Correto”), que a reação contra alguns intelectuais pode ser um tipo de luta contra a promoção da infalibilidade de teorias gestadas sabe-se lá como — e as consequentes ações políticas delas advindas. Nas últimas décadas, a mídia e a academia transformaram o debate político num monólogo, e quem tem o poder de moldar o espaço cívico público e dele expulsar aquele que quebrar “códigos” exerce a real hegemonia ideológica. Não à toa, hoje ouvimos coisas como “lugar de fala”, “microagressão”, “cultura do cancelamento” e “apropriação cultural”, técnicas, em grande parte, para impedir qualquer discussão política não pré-formatada (por isso, dada uma população desconfiada, o poder prescritivo das mídias vai se perdendo com o aparecimento das redes sociais — e aqui fica explicada a virulência dos ataques contra as tais “fake news”, expressão imprecisa e larga o bastante para abranger notícias realmente falsas mas também qualquer fato ao qual a mídia tradicional não tenha imposto o seu selo de veracidade e respeitabilidade, bem como a criação de “fact checkers”, no fundo uma estratégia para garantir o monopólio da credibilidade). “Não é que os processos por bruxaria tenham desaparecido, apenas se modernizaram”, resume Bock-Côté — e ele ainda afirma: “A mídia distribui os papéis entre os heróis e os vilões, escolhe seus campeões, designa os que deverão sofrer de má reputação, distingue os políticos socialmente aceitáveis dos que não o são, os filósofos eminentes e os polemistas de categoria inferior, os intelectuais que inspiram confiança e aqueles cujas ideias são rançosas”. Lutar contra esse estado de coisas talvez seja um “bibliocídio” aceitável.


Vê-se que tudo conspira contra quem se engaje, pensa Bock-Côté, na contranarrativa prescrita por uma estrutura midiática que autoriza até mesmo quem deva ser o “oponente respeitável”, um tipo que nunca sairá das linhas traçadas à sua volta — quando se tem o poder de afirmar o que é ou não aceitável num debate, sair dos marcos regulatórios é garantia de ser tratado com desdém ou até mesmo como bufão. Não duvidemos: parte do que assistimos atualmente no mundo é uma tentativa de reestruturação do espaço público para expulsar a parcela da população que se fez audível (com ideias boas ou ruins, o que não vem ao caso aqui). Quer me parecer, então, que a mídia e a academia, em pânico, tentam redefinir os “códigos de respeitabilidade” que moldam o debate cívico — daí o motivo de se teorizar tanto sobre o espaço público, criando-se catracas morais para o acesso a ele. A conversa dita democrática é muito menos aleatória do que parece; quando ela foge das linhas demarcadas, ouve-se um berro de desespero: é preciso “recuperar a razão”, diz-se, justamente para colocar mais cal nas linhas do campo — e por “razão” deve-se entender apenas um único modo de compreender o mundo.


Por sua vez, Jeffrey K. Tulis, da Universidade do Texas, apontou, em “The Rhetorical Presidency”, que nos Estados Unidos, pelos menos desde Woodrow Wilson, os presidentes livraram-se das amarras formais de uma presidência “dignificada” e distante para conversarem ao pé do ouvido com o povo. A presidência, antes encarnada num paletó e numa gravata, transformou-se numa conversa ao pé da lareira, e foi Wilson, democrata (portanto não trazendo, para alguns, o pecado original de ser republicano), quem legitimou os meios que Donald Trump utilizou de modo exagerado e com certa eficiência — se a televisão tornou os presidentes mais sujeitos a roteiros previamente aprovados, os tuítes de Trump pareciam o mostrar tal como ele é, com alguma sinceridade, mesmo que se diga ser uma “falsa sinceridade” (para usar um oximoro — outra categoria estudada por Avelar), plenamente adequeada à ideia de que nossos líderes devam ser sempre populares; a linha entre ser popular e ser populista, não nos esqueçamos, depende da cabeça de cada cientista político e, obviamente, das preferências ideológicas de jornalistas. Vale dizer: também a “presidência retórica” torna borrado o que se entende por populismo.


Daí podermos afirmar que exista certa desconfiança ante tantas certezas que se despejam no rio político, e separar o esgoto tratado nem sempre é tarefa fácil. Como então ter “bibliocídio” como conceito conglobante de atividades distintas? De vez em quando, nunca é despiciendo lembrar, artigos deliberadamente absurdos, escritos para comprovar como parte da ciência foi deturpada pela ideologia, são aceitos por revistas antes sérias, cegas que estão ao mundo real. O mais famoso, hoje mitológico, foi o artigo do físico Alan Sokal propondo que a gravitação quântica seria uma construção social e linguística. Foi publicado sem cortes. Sokal mais tarde escreveria, com Jean Bricmont, “Imposturas Intelectuais: O Abuso da Ciência pelos Filósofos Pós-Modernos”, esticando a sua ideia inicial. Peter Boghossian, James Lindsay e Helen Pluckrose também conseguiram publicar vários artigos desse tipo; em um deles, afirmavam que o pênis, outra “construção social”, seria a força responsável pela mudança climática; em outro, abordaram a “cultura canina do estupro”. O campeão da categoria talvez tenha sido “Our Struggle is My Struggle”, publicado em “Affilia”, uma reescrita do capítulo 12 de “Minha Luta”, de Hitler, em que os autores substituíram “nacional-socialismo” por “feminismo” e “judeus” por “privilégio” — e o artigo foi igualmente publicado.


Evidentemente, Karl Popper já nos ensinou (“A Lógica do Conhecimento Científico”) sobre a falibilidade do conhecimento: uma teoria ainda não refutada está apenas corroborada, admitindo-se ainda que poderá ocorrer sua refutação por testes mais minuciosos. O curioso é que, justamente onde a possibilidade de testes mais minuciosos é menor, existam mais declarações de certeza — assim, se nas ditas ciências humanas ou sociais há tantas declarações de certeza, infere-se que talvez seja porque certezas trazem poder, algo que os ideólogos, inclusive aqueles instalados na casta administrativa, compreendem muito bem.


Disso decorre que, se antes se combatia a democracia até mesmo de forma armada, hoje se questiona a sua autoridade moral, pondo-se em cheque a capacidade de todos nós de pensar e agir responsavelmente. Furedi, com acerto, aponta que o pânico em relação a uma onda populista levando à “morte” ou ao “fim da democracia”, títulos comuns de livros neste nosso amedrontado século 21, é, no fundo, muito mais ansiedade pela perda da autoridade das elites — nós, cidadãos, seriamos incapazes de atuar de acordo com a sabedoria dos nossos superiores morais e intelectuais. E, lembrei-me agora, o jornalista David Halberstam descreveu, em “The Best and the Brightest”, como acadêmicos e intelectuais instalados nos governos Kennedy e Lyndon Johnson tiveram ideias “brilhantes”, geralmente contrárias ao bom senso, que pioraram bastante a situação dos Estados Unidos no Vietnã.


Sim, há perigo na esquina para a democracia; ele vem em parte, creio, da animosidade contra o “kratos” (poder) do “demos” (povo). Colecionador de livros antigos que sou, ainda assim tenho dificuldade em reduzir “bibliocídio” a um significado unívoco. 


(Pois é: uma tema não central em “Eles em Nós” me trouxe até aqui: o pensamento parece uma coisa à toa...)


4.

Voltemos a “fascismo”, que Avelar usa corretamente como um exemplo de lexicocídio. Outro desvio que tomo, porque o termo é exemplificativo no livro e não um dos seus temas.


Nesse pântano de conceitos em que vivemos, é digno de nota que até Umberto Eco, logo ele, professor de semiótica, tenha confundindo alhos com bugalhos numa conferência que proferiu, creio que em 1995, na Columbia University, depois transformada em livro (“O Fascismo Eterno”, devidamente relançado, pós-Trump, em vários países). O italiano afirmou que o termo “fascismo” seria bastante adaptável porque podemos retirar algumas características de um regime fascista e ele permanecerá tão fascista quanto era antes. Eco fornece, assim, uma lista de características do “fascismo eterno” e nos assegura de que qualquer uma delas já cria uma “nebulosa fascista”. O “culto à tradição”, por exemplo, ou “o apelo às classes médias frustradas”. Notaram? Um conservador tradicionalista será ipso facto fascista. Uma crise econômica real, que gere frustrações reais na classe média, será utilizada por líderes fascistas com fins autoritários e divisivos. E o italiano, homem de seu tempo, não se esquece de Freud: os “jogos de guerra fascistas” se devem, escreve ele, a uma invidia penis permanente. Como Eco desenvolve as características que cita com exemplos quase sempre patológicos, é fácil imaginar o leitor impressionável encontrando ecos — digamos assim — fascistas em qualquer governo ou maluco de esquina. Para nos convencer dessa estranha tese, Eco, claro, logo de cara dá uma carteirada ocular: ele esteve lá, na Itália de Mussolini — uma forma não muito sutil de dizer que sabe mais.


O historiador Emilio Gentile, em “Chi è Fascista”, contrapõe-se a Umberto Eco. Na tradução espanhola: “Introducir la eternidad en la historia humana, atribuir la eternidad a un fenómeno histórico, aun con las mejores intenciones, implica una grave distorción del conocimiento histórico. Sin considerar, además, que este atributo de eternidad se ha reservado solo para el fascismo, porque no circulan tesis sobre el ‘jacobinismo eterno’, el ‘liberalismo eterno’, el ‘nacionalismo eterno’, el ‘socialismo eterno’, el ‘bolchevismo eterno’, el ‘anarquismo eterno’, etcétera. En realidad, la tesis del eterno retorno del fascismo se basa en la utilización de analogías, que por lo general solo producen falsificaciones del conocimiento histórico”. E dá o xeque: “Si existe un fascismo que vuelve perpetuamente, esto quiere decir que el antifascismo está destinado a una continua derrota”.


Desviei-me? Desviei-me. É hora de voltar à vereda principal do livro de Idelber Avelar.


5.

Dito tudo isso, o livro mostra a que veio e, assim, também confesso: houvesse em mim engenho e arte, eu partiria dele, de seus marcos teóricos, para outras análises que, tanto quanto a pita, abundam no exterior e resistem a dar as caras, de modo sistemático, entre nós — como escrevi, livros da qualidade de “Eles em Nós” abrem outras tantas veredas de possibilidades analíticas (todo conhecimento é cumulativo, pois não?). Retórica e medo na política brasileira, digamos — por exemplo, Frank Furedi, de novo ele (um tipo bastante polêmico, reconheço), escreveu o excelente “How Fear Works: Culture of Fear in the Twenty-First Century”), que poderíamos ter como marco para o estudo da nossa prática eleitoral. Talvez um dicionário de significantes vazios que teimam em se esvaziar ainda mais a cada novo artigo na mídia tradicional. Que tal o discurso jurídico brasileiro condicionado por variáveis políticas? “Pacto de amnésia”, expressão que está em “Eles em Nós”, ou supressão do discurso, para ficarmos com “discurso”, como algo nem sempre condenável no contexto nacional — eis outro tema. Mais: o papel das editoras que nos trouxeram, com anos de atraso, livros de pensadores liberais (no sentido clássico) e conservadores, gente como Roger Scruton, Russell Kirk, Thomas Sowell, Michael Oakeshott e mais outros tantos, na formatação de uma nova retórica política brasileira deste século 21. Ou ainda o léxico como campo de batalha em que vicejam tribunais de exceção na mídia (não no sentido jurídico, portanto) para “crimes” de fala instituídos depois das próprias falas serem proferidas. As possibilidades são várias, bem veem; contudo, eu sou, ai de mim, um pobre homem da Póvoa do Varzim, digo, de Palmeiras de Goiás — pensarei nesses temas apenas sob o chuveiro e jamais cometerei um livro sobre qualquer um deles. 


6.

Pensemos no medo e no mencionado “How Fear Works: Culture of Fear in the 21st Century”, de Frank Furedi. O medo, escreve ele, tornou-se tão politizado que não nos perguntamos se devemos ou não recear algo, mas sim de quem ou do que temos de sentir medo. Em termos eleitorais, claro está, é um boa estratégia inculcar nos eleitores algum medo do adversário político. Os psicanalistas diriam que esse inculcado medo das políticas públicas do adversário seria um caso de introjeção. Façamos um teste e tentemos nos lembrar da última campanha eleitoral em que não ouvimos a palavra medo — eu não consigo me recordar. Obviamente, como vivemos numa época em que as campanhas são permanentes, é preciso incutir esse medo também de modo permanente.


7.

Dissecando um pouco mais essas tantas possibilidades, vejamos a retórica jurídica, base daquilo que se convencionou chamar ativismo judicial. O campo é fértil para o estudo da sua interseção com a política. Por exemplo, essa retórica trabalha com categorias sobre as quais se impõe algum grau de infalibilidade: nunca se pode deixar de obedecer uma constituição e é recomendável a existência de uma corte constitucional com poder de declaração de inconstitucionalidade de leis aprovadas por maiorias parlamentares (vale dizer: pelos representantes do povo democraticamente eleitos). Sem questionamentos? Não exatamente. Até juristas já duvidam dos poderes infalíveis das cortes constitucionais, como Jeremy Waldron. (A propósito: logo chegaremos a sete mil ações diretas de inconstitucionalidade e cerca de mil arguições de descumprimento de preceito fundamental, dois instrumentos com os quais o Supremo Tribunal Federal trabalha, ajuizadas desde 1988.) Quanto à obediência à Constituição, deixo aqui uma pergunta feita por Louis Michael Seidman em “On Consitutional Desobedience”: “The test for constitutional obligation arises when one thinks that, all-things-considered, the right thing to do is X, but the Constitution tells us to do not-X. It is only in this situation that constitutional obligation really has bite. It is only then that if we obey the Constitution, we are doing so for the sole reason that we are bound to obey. But who in their right mind would do this? If we are convinced after taking everything into account that one course of action is right, why should we take another course of action just because of words written down on a piece of paper more than two hundred years ago?”. O pensamento...


Na seara do discurso jurídico, não há somente essas veredas. Ainda está para ser escrita a história da sustentação dessa retórica que habilita juristas como jogadores do time político. Um roteiro da trajetória para tanto, seguido por muitos países a partir de 1945 (outro livro que não escreverei): 1) faça constituições longas;2) enche-as de princípios amplíssimos, como “dignidade”, uma categoria moral e até religiosa que tem contornos jurídicos borrados; 3) aumente-as com o que se chama “bloco de constitucionalidade”: tratados internacionais e afins; 4) dê ao tribunal constitucional inúmeros instrumentos de controle de constitucionalidade para aferir a validade de normas com esses padrões gigantescos; 5) junte uma pitada de Direito Constitucional comparado, hoje chamado “diálogo entre cortes constitucionais”, aos padrões decisórios nacionais; 6) crie técnicas de controle temporal e de conteúdo das decisões das cortes constitucionais, como modulação e sentenças aditivas (termos técnicos; ao Google, portanto); 7) transforme situações políticas em princípios jurídicos duvidosos, como “proibição do retrocesso”; 9) ensine aos estudantes de Direito que nada disso possa ser repensado.


Com uma pitada de pânico e outra de ânimo tíbio, aguardaremos, assim, que ações constitucionais nos salvem de nós mesmos e nos encaminhem para “o lado correto da História”, certos de que “não se pode tolerar a intolerância” (desde que “intolerância” seja definida de modo amplíssimo, claro) e de que o animal que criou o Renascimento, a polifonia e foi à Lua seja incapaz de funcionar sem um tutor judicial.


Um livro a ser escrito, não? Quem se habilita?


8.

Desviei-me novamente. De volta à vaca fria, então. Num dos capítulos do livro de Idelber Avelar, a retórica construída sobre oximoros é o alicerce para a análise do tratamento político da questão amazônica  (“oximoro” sem acento mesmo, rimando com nome de juiz). Há achados preciosos, datas certas para a escalada de discursos contraditórios e consequências concatenadas. Quero crer, porém, que a forma como a ideia foi exposta dá a entender, talvez não de modo intencional, que estaríamos diante de fenômenos e epifenômenos eminentemente brasileiros, quando me parece que a retórica política não prescinde, em nenhum lugar, de certo chiaroscuro ambíguo e mesmo contraditório. Haverá sempre um “inimigo” a caçar pela manhã, daí o “medo” como categoria também discursiva, podendo o mesmo “inimigo” ser colega de caçada, e não um alvo, à tarde. Se alguns oximoros chegam à exaustão, como indica o livro, outros surgem para a manutenção de um sistema de antagonismo, sempre agravado pela ideia de política como uma luta pura entre Bem e Mal.


Assim como o senhor Jourdain de Molière, que famosamente se espantou ao descobrir que falara em prosa a vida toda, ainda há quem consiga "faire de la prose sans le savoir" e se espantar quando percebe que age de modo contraditório em política, porque, bem, porque a falta de coerência é tida como feia doença a ser escondida da família e de amigos. 


9.

Adiante e pé na tábua que São Paulo não pode parar. Graças aos céus da Louisiana, onde o autor mora, não houve, em “Eles em Nós”, o já costumeiro chororô contra aquilo que se diz ser “polarização”, palavrinha que aparece em doze de cada dez livros da categoria “ciência política apocalíptica”, assim mesmo, rimada para que eu não tenha de escrever “ciência política escatológica”, pois a ambiguidade de “escatologia” nos levaria a longas vertentes da prática política neste nosso Impávido Colosso. O livro é perpassado pela ideia de “administração de antagonismos”, que pressupõe, vivas e alvíssaras!, a existência da afamada polarização — de certo modo, o exercício político é naturalmente polarizado. 


Sendo polarizada, estranha-me (ou fica justificada?) a retórica política que, à moda de Robespierre e do Arroz Cristal, se creia pura e incorruptível (corrupção não somente em termos financeiros, bem entendido). Nesse sentido, se Trump foi errático, para alguns Obama era uma pose que discursava. Bill Clinton era dado a certa indisciplina priápica no Salão Oval, John Kennedy idem (e Kennedy também usava medicamentos não prescritos), Jimmy Carter microgerenciava toda a máquina do governo, Nixon abusava do álcool, Woodrow Wilson sofreu um derrame incapacitante no seu segundo mandato e deixou o governo meio que nas mãos da esposa, Ulysses Grant — o brilhante general da Guerra Civil — passou seu período como presidente entornando umas e outras. Somos nós todos umas carcaças defeituosas e costumamos calcular, na hora do voto, o preço da manutenção dos anéis e dos dedos, daí porque alguns governos, mesmo parecendo uma festa estranha e com gente esquisita, possam ser suportados estoicamente para que apenas os aneis nos sejam levados. Realpolitik na veia não consta do CID como doença psiquiátrica.


Mas a tal polarização é o alfa e ômega de todos os nossos problemas, dizem. Para que a minha caixa de comentários não se transforme num canal do Tietê, usarei novamente exemplos de outros países, não do Brasil. Nos Estados Unidos, essa utópica vertente apocalíptica lamenta o atual “bipartidarismo radicalizado”, como se todos devêssemos nos dar as mãos e cantar “Kumbaya” (música de acampamento) em torno de uma fogueira e sob o céu estrelado (e a imagem de quem nem sempre divergências se resolvem assim é — espanto! — de Obama). O problema: há os que dizem que o país esteja  perigosamente dividido, os que dizem que essa divisão já existia nos anos 90, aqueles que a levam à década de 60 and so on. Todo têm razão, digo eu. Nos anos 60 e 70, houve os assassinatos de JFK, Martin Luther King, Robert Kennedy e Malcolm X, Watergate, dois juízes indicados por Nixon para a Suprema Corte rejeitados pelo Senado, bombas em bancos e correios explodidas pelos Weathermen e outros grupos, o país sem acordo sobre a Guerra do Vietnã, a crise do petróleo, uma grande degradação urbana e reféns no Irã (parte dessa história está contada em “Days of Rage: America’s Radical Underground, the FBI, and the Forgotten Age of Revolutionary Violence”, de Bryan Burrough). Na década de 50, o presidente republicano Dwight Eisenhower era criticado por seus colegas de partido e tachado de ser “liberal”, o que o fez entrar num casamento político de conveniência com alguns democratas moderados. Franklin Delano Roosevelt nunca teve o apoio total dos americanos à participação dos Estados Unidos na Segunda Guerra antes do ataque a Pearl Harbor; antes disso, travou uma violenta guerra com a Suprema Corte, vezeira em declarar inconstitucionais as leis do New Deal (elaborou então um plano para aumentar o número de juízes, o que foi visto como uma interferência extrema). Que tal a eleição de 1912? Temos Theodore Roosevelt, candidato por um terceiro partido, dividindo os votos republicanos e permitindo a vitória do democrata Woodrow Wilson. Ah, sim, a Guerra Civil de 1861-1865 foi o paroxismo da divisão política americana, evidentemente, e depois dela o presidente Andrew Johnson salvou-se do impeachment por um voto. Em 1800 ocorreu a disputa entre Thomas Jefferson, John Adams e Aaron Burr pela presidência; Burr e Jefferson, como se sabe, empataram no colégio eleitoral, o que levou a disputa à Câmara de Deputados, onde somente na 36ª votação Jefferson se elegeu (tem quem pense que essa escolha evitou uma guerra civil). Há mais: Michael J. Faber afirma que os debates sobre a Constituição americana de 1787 foram “a mais divisiva guerra de palavras na história dos Estados Unidos (“An Anti-Federalist Constitution: The Development of Dissent in the Ratification Debates”). A Europa, por sua vez, viveu crises e guerras cada vez maiores entre 1900 e 1945 e depois suportou a tensão da Guerra Fria até 1989 (em 1961, tanques russos e americanos se encararam durante três dias em Berlim); há mesmo quem diga que 1914-1989 foram os anos de uma guerra prolongada. Tempos plácidos jamais existiram, bem se vê; no entanto, lemos todos os dias frases como “os Estados Unidos jamais estiveram tão polarizados”, talvez porque a pregação para a união de gente com ideologias díspares costuma ser pele de cordeiro para que se acuse o lado oposto — qualquer um — de radicalismo.


O belo poema de Kaváfis, “À Espera dos Bárbaros”, sempre lembrado em situações de falsas emergências nacionais, talvez caiba aqui, ressalvada a diferença de que Aníbal — os bárbaros, portanto —, a julgar pelos berros de qualquer oposição, a atual, a de 2015 (impeachment) ou a de 2005 (Mensalão), não está “ad portas”, mas já dentro de nossos domínios (os bárbaros são, dizem-nos, a maioria que elege aquele em quem não votamos — na famosa frase de Hillary Clinton sobre os eleitores de Trump, “essa gente desprezível”, ecoando, sem o saber, os “salauds” de Sartre). Como Kaváfis, contudo, também temos de nos perguntar: “Sem bárbaros, o que será de nós? / Ah! Eles eram uma solução”.


(Aposto minha coleção completa de Freud que o número de livros “eis-aqui-toda-a-verdade” — não é o estilo de “Eles em Nós”, que fique claro — crescerá até as eleições de 2022, depois até 2026, 2030... Sem bárbaros, o que será de nós?)


Foi por isso, como crítica à hipérbole do adversário como inimigo a ser abatido e à outra hipérbole da afirmação da pureza de ideias na própria ideologia política que se adota, que Valéry Giscard d’Estaign disse ao seu adversário socialista François Mitterrand, nas eleições presidenciais francesas de 1974, uma frase que já nasceu famosa: “O senhor não tem o monopólio do coração”. Não tinha, mas cada campo político segue nos servindo os mesmos pratos utópicos como se fossem iguarias de uma nouvelle cuisine.


Assim somos e assim seremos, contudo. O historiador Richard Hofstadter escreveu um livro que é hoje bastante lembrado, “The Paranoid Style in American Politics”. Identificamo-nos, não? Ter uma crença política e não enxergar uns complôs no campo inimigo, algumas conspirações e reuniões em horas mortas, ora, isso nos impõe uma racionalidade excessiva. Sejamos, Drummond, docemente hiperbólicos, não pornográficos.


10.

“Eles em Nós” é um livro que nos faltava: traz-nos precisão semântica e inspeção retórica dos meandros da nossa política recente. 


Talvez ele até mesmo nos ajude a reconhecer quem use a palavra “Führer” ou a expressão “filhote de Chávez” como quem diz “Hoje vai chover” e, junto com essa imprecisão discursiva, se intitule imbuído de intenções empáticas; imbuído de intenções empáticas, permita-se corrigir o semelhante humano por “pensar errado”, que se traduz apenas por “pensar diferente”. Permitindo-se a si mesmo querer corrigir o semelhante, até se pode escrever um artigo como aquele de um médico na “Folha”, semanas atrás, propondo-se algo que o articulista afirmou ser “o autoritarismo necessário”. Era prenhe de fins bonitos, o artigo, então o autoritarismo para corrigir quem tem um estar e agir no mundo distinto — os hereges! — estava (está) valendo.


Sim, voltemos à primeira página do livro: é preciso rigor no trato com a linguagem, em qualquer espectro político.


11.

Bom, alonguei-me e desviei-me do livro, distintos ouvintes da plateia, e portanto concluo (quanto aos desvios, a minha desculpa, dada láááá no início, é que este texto não é uma resenha, mas sim uma espécie de brainstorming).


Se “Imagine”, de John Lennon, subiu no telhado, o que faz parte do jogo político pendular, foi um alento ler um livro em que não há uma deslegitimação sistemática do pensamento político que praticou o ImagineAllThePeopleCídio: Avelar refaz, com perspectiva original e sem “a prioris”, os caminhos do nosso passado recente.

Por fim, já se viu que não escreverei os tais livros que sugeri ali acima e tampouco discorrerei a fundo sobre outros poréns que “Eles em Nós” me despertou, porque hoje fiquei de rever algum James Bond. Resta-me recomendar que o livro de Idelber Avelar seja adquirido, lido, sublinhado e destrinchado, pois é uma lufada de ar benfazejo na aragem do estado da arte da ciência política brasileira atual, que precisa(va) soltar amarras e inflar velas.


12.

Eu já havia mesmo encerrado, mas não gosto de números ímpares, então criei mais este item para nada acrescentar. Ademã.

Marcelo Franco (vis Facebook)