Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
domingo, 13 de outubro de 2024
Extrema-direita Notas sobre uma falsificação - AUGUSTO DE FRANCO
quinta-feira, 12 de setembro de 2024
A grande fratura da política brasileira - Paulo Roberto de Almeida
A grande fratura da política brasileira
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Nota sobre a divisão do país, iniciada sob o lulopetismo e agravada sob o bolsonarismo.
A grande divisão política, ideológica, partidária, no Brasil parece ter se agravado e se consolidado no Brasil nos últimos anos. Ela não começou, contudo, com o desafio da direita – tanto a extrema quanto a liberal – ao predomínio das esquerdas no cenário acadêmico e jornalístico do Brasil desde a explosão de protestos contra o governo Dilma em 2013. Ela começou bem antes, e vinha se afirmando no país desde os anos 1980, com a emergência do PT na política brasileira, se reforçou na redemocratização e praticamente se cristalizou nos anos 1990, época maior dos enfrentamentos entre duas linhas social-democráticas típicas na América Latina: a reformista-capitalista e a socialista-anticapitalista, representadas pelo PSDB e pelo PT respectivamente.
Essa divisão foi basicamente alimentada pelo sectarismo petista, organizada e dinamizada pelos “gramscianos” do PT, que são diferentes do núcleo sindicalista original do PT, imediatamente “assaltado” pelos “guerrilheiros reciclados” que voltaram do exílio na anistia do 1979 e logo penetraram e dominaram organicamente o PT, como uma das principais forças organizadas e empenhas na montagem do aparelho partidário de tipo “neobolchevique”. Foi essa combinação de representantes do sindicalismo alternativo e dos “gramscianos” das esquerdas derrotadas pelo regime militar que constituiu a força original do PT e que, junto com as bases populares que formaram o seu eleitorado – movimentos sociais, comunidades eclesiais de base, organizações comunitárias vinculadas à “Igreja progressista” (bispos da CNBB, de esquerda) –, estiveram na origem do primeiro e único partido de base ideológica e popular que efetuou sua “média marcha” em direção ao poder, vinte anos depois de sua fundação. Sindicalistas, gramscianos, intelectuais formaram a espinha dorsal do PT, que preservou a linhagem revolucionária estilo cubano, jamais efetuando a transição para a revolução reformista que marcou a transição para a modernidade dos velhos partidos marxistas da esquerda europeia em direção dos movimentos reformistas da II Internacional. O PT permaneceu deformadamente marxista, mimeticamente cubano e supostamente socialista.
Ao lado do populismo demagógico do seu principal líder – supostamente operário, mas na verdade um apparatchik sindicalista -, os intelectuais gramscianos levaram o PT aos seus primeiros triunfos eleitorais, ao mesmo tempo em que o líder se encarregava de construir uma imagem de líder social popular comprometido com as causas clássicas dos partidos socialistas: a luta pela igualdade social, pelos direitos dos trabalhadores, pelo reformismo radical de nítida feição estatizante e alinhado com as causas da revolução cubana na região. Esse foi o cenário no qual emerge e se consolida a fratura política nacional: de um lado o povo puro, classes C e D, inclusive E na parte urbana, de outro as elites, as oligarquias, os ricos em geral, responsáveis presumidos pela miséria e pelas desigualdades sociais.
A divisão “nós e eles”, o “povo” e as “elites” começa aí, num sentido classista típico, que torna praticamente impossível uma grande aliança entre petistas e tucanos para iniciar e empreender um conjunto de reformas modernizantes capazes de mudar o cenário político oligárquico tradicional em direção de uma coalizão de centro-esquerda, com condições de mudar o país, como feito em alguns experimentos da socialdemocracia europeia ou mesmo latina. O PT obstruiu completamente, pelo seu não aggiornamento, a possibilidade dessa união de cunho progressista, continuando a hostilizar as forças moderadas da esquerda tucana. O PSDB teve de se aliar à direita para realizar muitas das reformas constitucionais e outras que teriam de ser feitas, depois que uma Constituição elaborada antes da queda do muro de Berlim congelou no país um modelo estatizante, intervencionista, assistencialista, e que, na verdade, reproduziu velhos mecanismos da oligarquia tradicional numa roupagem de tipo socialista moderna.
Isso durou durante todos os anos 1990, depois os dois primeiros mandatos do PT, Lula 1 e 2, quando o sectarismo e os equívocos petistas levaram uma boa experiência de redistribuição social ao impasse de uma política econômica desastrosa, pelo excesso de gastos públicos e pelo intervencionismo exagerado na economia. A Grande Destruição Econômica do terceiro mandato petista abriu espaço para uma direita vingativa, ainda dividida em várias vertentes ideológicas, indo dos saudosistas da ditadura e dos fascistas involuntários (na verdade inconscientes) até os liberais moderados, mas que rejeitavam o molde petista na economia. Foi o agravamento, a exacerbação e o extremismo dessas correntes que inauguraram um outro tipo de divisão no país, não mais a “elite” e o “povo”, mas uma esquerda supostamente “comunista” e uma direita liberal e conservadora, sendo que esta nunca teve o seu equivalente de “intelectuais gramscianos” para oferecer-lhe uma doutrina política coerente ou capaz de organizar e conduzir um movimento reformista moderno, capitalista, liberal social avançado.
O extremismo venceu, pois que as direitas desorganizadas juntaram agora as velhas oligarquias, saudosistas da ditadura militar e os liberais muito fracos para dispor de seu próprio movimento ou partido capaz de levá-los ao poder. O petismo sectário criou e alimentou o antipetismo, onde vieram se abrigar todos aqueles que recusam o sectarismo petista, e com isso se consolidou a divisão do Brasil tal como a observamos atualmente. Os militares desempenharam um papel importante nessa ascensão da extrema-direita, pois eles reagiram contra o revanchismo das esquerdas a partir da Comissão Nacional da Verdade, que de fato só considerou os crimes da repressão do regime militar, deixando completamente de lado os movimentos guerrilheiros, que incitaram a repressão violenta da ditadura, atingindo inclusive o pacífico Partidão, totalmente descomprometido com a luta armada dos anos 1960-1970, núcleo do “guerrilheiros reciclados” que afluíram no PT.
Esse é o quadro da divisão atual entre duas metades do país, desiguais na composição social, na organização, nas doutrinas e nas motivações políticas estatais. Juntando tudo isso à casta política consolidada nas instâncias de representação e de comando político, temos o pior cenário de convivência política entre contrários, congelando os blocos opositores.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4729, 12 setembro 2024, 3 p.
quinta-feira, 4 de janeiro de 2024
A nossa extrema-direita – e as deles - Demétrio Magnoli (Interesse Nacional)
Uma única correção a este artigo de Demetrio Magnoli: o artigo de Ernesto Araujo, Trump e o Ocidente”. Cadernos de Política Exterior, v. 3, n. 6, IPRI/FUNAG, Brasília, é de 2017, não de 2018. Eu era editor dos Cadernos nessa época, mas retirei o meu nome do expediente, não por causa da bizarrice, mas de outra questão.
Paulo Roberto de Almeida
A nossa extrema-direita – e as deles
Demetrio Magnoli
Interesse Nacional, janeiro de 2024
■ Demétrio Magnoli é sociólogo, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, colunista dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, comentarista internacional na GloboNews.
O triunfo eleitoral de Donald Trump, em 2016, ativou os alarmes: as democracias ocidentais enfrentavam o desafio da ascensão do populismo de direita. Na Europa, partidos populistas de direita obtiveram, em 2018, perto de 15% dos votos totais, contra menos de 5% em 1998 – e alguns deles tinham forte presença nos gabinetes de governo. Por isso, naquele ano, a vitória do extremista Jair Bolsonaro parecia significar a inserção do Brasil numa tendência mais geral.
Sem surpresa, fixou-se uma narrativa predominante que inscreve a extrema-direita bolsonarista no panorama internacional do avanço da direita populista. O argumento deve ser divido em duas teses distintas: 1) o bolsonarismo articula-se politicamente com correntes internacionais da extrema-direita; 2) as raízes ideológicas do bolsonarismo são similares às das principais correntes internacionais da extrema-direita.
A primeira tese é factualmente comprovável – mas tende a superestimar a relevância dessas articulações. A segunda tese é basicamente equivocada: o bolsonarismo não é mera expressão nacional das ideias que movem o populismo de direita nos EUA ou na Europa.
■ Deus e Pátria
“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. A invocação da fé religiosa pontilhou os discursos oficiais do governo Bolsonaro, do presidente à ministra dos Direitos Humanos, passando por Ernesto Araújo, seu primeiro ministro das Relações Exteriores. Paralelamente, o governo insistiu nos ícones da nacionalidade. Como esquecer a frustrada iniciativa do ministro da Educação de solicitar às escolas vídeos de professores e alunos entoando o hino nacional, durante o hasteamento do auriverde pendão da esperança? Ou a conclamação do porta-voz presidencial, general Otávio Rêgo Barros, para “toda a sociedade prostrar-se diante da bandeira ao menos uma vez por semana”?
É um equívoco transferir a ladainha carola e “nacionalisteira” para o arquivo morto dos anacronismos. Há um sentido mais profundo no recurso exaustivo a tais referências: nos EUA, primeiro, e no Brasil, depois, o populismo de direita encontrou uma refutação eficaz do multiculturalismo.
Há décadas, as elites políticas liberais e de esquerda substituíram o discurso universalista (cidadãos) pelo discurso multiculturalista (minorias). A diferença converteu-se em valor supremo, enquanto dissolvia-se a aspiração à igualdade (de direitos, de oportunidades). A nação deu lugar a uma miríade de grupos singulares (negros, mulheres, gays). A ideia de direitos universais (educação, saúde, previdência, transportes) deu lugar à chamada discriminação positiva (leis e regras específicas, cotas de gênero ou de “raça”). Deus e a pátria fazem seu caminho no espaço aberto por essa abdicação histórica.
A estratégia manipula poderosos signos de igualdade. O “Brasil acima de tudo” cumpre dupla função. Na sua face oculta, tenta identificar a pátria ao governo, um expediente autoritário clássico. Mas, na sua face pública, veicula uma mensagem inclusiva: todos – ricos e pobres, homens e mulheres, “brancos” e “negros” – pertencem igualmente à comunidade nacional. O nacionalismo da direita populista carrega as sementes da xenofobia (diante do imigrante) e da intolerância política (diante das oposições). Ao mesmo tempo, oferece um abrangente manto comum – e, com ele, a promessa de resgate dos fracos e humilhados.
As religiões monoteístas deitaram raízes pois ofereciam uma base pétrea de legitimidade aos governantes (um Deus no céu, um imperador na Terra) e, simultaneamente, a esperança de justiça aos desamparados (todos são filhos do mesmo Deus). O “Deus acima de todos” também desempenha dois papeis. Numa ponta, corrói a laicidade estatal e propicia o acesso das igrejas à mesa do poder. Na outra, apela ao sentido popular de igualdade: nenhuma ovelha do rebanho será deixada para trás.
Deus, a bandeira e o hino são chaves narrativas compartilhas por Trump, nos EUA, Vladimir Putin, na Rússia, Recep Erdogan, na Turquia, Viktor Orbán, na Hungria, e a coalizão Meloni/Salvini, na Itália. Nesse plano mais genérico, Bolsonaro participa do movimento geral da direita populista.
Num artigo de ressonâncias místicas, publicado em novembro de 2018, Ernesto Araújo encontrou no “Deus de Trump” o motor da história.[1] O “pan-nacionalismo”, a identidade cristã, Spengler e a xenofobia unem-se como escudos contra o “cosmopolitismo” e o “liberalismo”. Três meses depois, Eduardo Bolsonaro tornou-se o “representante na América Latina” do movimento de partidos populistas de direita articulado por Steve Bannon. Era o ensaio de uma “Internacional dos nacionalistas”, uma contradição em termos fadada ao insucesso.
A geringoça andou um pouco. Na visita presidencial aos EUA, em março de 2019, a comitiva brasileira ofereceu um jantar que teve Bannon como convidado especial. Depois, em abril, Eduardo Bolsonaro fez um giro europeu de encontros com líderes da direita nacionalista, iniciado por uma visita ao então co-primeiro-ministro italiano Matteo Salvini. Mas o Movimento de Bannon logo desandou, esbarrando nas divergências entre os líderes da direita europeus e na resistência de vários deles a se submeterem ao ideólogo americano.
Sob o patrocínio de Trump e de Orbán, no lugar da “Internacional dos nacionalistas”, nasceu uma “Internacional cristã”: a International Religious Freedom (Belief Alliance).[2] Sob o manto da liberdade de crença, a aliança reuniu, além das lideranças políticas cristãs que a conceberam, correntes religiosas conservadoras hindus, muçulmanas e judaicas. Araújo participou de sua estruturação, em 2020.[3] Entretanto, suas atividades só deslancharam após a demissão do ministro, no início do ano seguinte. A articulação contou com a entusiasmada adesão do Brasil – mas basicamente a cargo de Damares Alves, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, com discreta participação do Itamaraty.[4]
O “Deus de Trump” produziu escassos frutos, do ponto de vista dos alinhamentos geopolíticos internacionais. A política externa bolsonarista, enunciada aos brados por Araújo, praticamente limitou-se a visitas, encontros e conferências sectárias, além de frequentes votos antiliberais em fóruns internacionais. Muita fumaça, pouco fogo.
■ Ideia fora de lugar
O bolsonarismo foi descrito como expressão brasileira da onda nacionalista e populista que varre o Ocidente. No fundo, porém, o bolsonarismo é uma exceção.
A poesia épica do populismo de direita nasce na gramática do medo. Nos EUA e na Europa, a angústia, a insegurança diante do futuro alimentou a onda populista em curso, que ainda não dá sinais consistentes de retrocesso. Nesse sentido genérico, o Brasil acompanhou a tendência internacional. Bolsonaro foi catapultado ao Planalto por eleitores temerosos, inseguros, indignados. Mas, por aqui, os eleitores não foram seduzidos pela narrativa ideológica do bolsonarismo. O voto negativo, não a adesão política, definiu o triunfo de um líder carente de bases sociais sólidas. Aí reside nossa excepcionalidade.
O grande tropeço da globalização, iniciado em 2008, deflagrou a ascensão do populismo nacionalista. Trump venceu no Colégio Eleitoral apoiando-se na baixa classe média branca submetida à corrosão da indústria tradicional. A crise do euro, seguida por longos programas de austeridade econômica, inflou o balão dos partidos da nova direita europeia. Dos megafones de Trump, Salvini, Le Pen, Farage, Orbán e tantos outros emanaram as conclamações antiliberais do nativismo, da xenofobia e do protecionismo.
No Brasil, Bolsonaro também emergiu do caos: a depressão econômica armada pelas estratégias fiscais do lulo-dilmismo. A campanha bolsonarista apertou as teclas sensíveis da corrupção e da criminalidade, mas o triunfo eleitoral derivou do colapso catastrófico do sistema político. Lá fora, uma corrente histórica profunda impulsiona a nova direita nacionalista. Aqui, um cruzamento de circunstâncias fortuitas colocou um político obscuro na cadeira presidencial.
A extrema-direita brasileira é uma ideia fora de lugar: a imitação sem disfarce de um discurso elaborado nos EUA ao longo de mais de dois séculos. Lá, a noção de liberdade foi moldada em oposição aos conceitos de democracia e igualdade perante a lei. A “liberdade dos estados” funcionou como oposição à existência de uma Constituição nacional, depois como alicerce do sistema escravista e, finalmente, como moldura das leis de segregação racial. Hoje, reciclada, a reivindicação fundamenta as legislações destinadas a restringir o acesso às urnas em estados controlados pelos republicanos.
No Brasil, uma semana antes do 7 de setembro de 2021, a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) publicou o manifesto do bolsonarismo.[5] A Fiesp e a Febraban haviam ensaiado discurso da democracia, curiosamente definida como “harmonia entre os Poderes”. Em contraponto, a Fiemg intitulou sua declaração com a senha de combate da extrema-direita: Manifesto pela Liberdade.
Um centro de comando único, uma espécie de Comitê Central, esculpiu os discursos do bolsonarismo. Assim como o texto da Fiemg, as bandeiras dos atos bolsonaristas daquele 7 de setembro sofreram uma padronização, organizando-se em torno da senha principal. Tudo – os ataques ao STF, as injúrias contra governadores e parlamentares, a contestação das urnas eletrônicas – foi recoberto por uma mão de tinta fresca que exibia a palavra liberdade.
“Assistimos a uma sequência de posicionamentos do Poder Judiciário que acabam por tangenciar, de forma perigosa, o cerceamento à liberdade de expressão no país”, escreveram os industriais mineiros para condenar o inquérito das fake news – e, de passagem, oferecer um apoio implícito ao pedido de impeachment do juiz Alexandre de Moraes. Liberdade, desdobrada em “liberdade de expressão” e “liberdades individuais”, era esta a mensagem.
A senha emergiu, igualmente, em textos assinados pelo ministro da Defesa, Braga Netto, um expoente da agitação bolsonarista entre os militares. Na nota de repúdio às declarações do senador Omar Aziz (7 de julho), o general proclamou que “as Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”.[6] Duas semanas depois, em nota de desmentido de ameaças de golpe (22 de julho), expressou o compromisso das Forças Armadas com “a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro”.[7]
A Constituição atribui às Forças Armadas as missões de “defesa da Pátria”, “garantia dos poderes constitucionais” e, por iniciativa de um deles, proteção “da lei e da ordem”. A “liberdade do povo brasileiro” era uma invenção (in)constitucional de Braga Netto – ou melhor, dos mestres ideológicos que o controlavam. Mas, aqui, o que importa é registrar a consistência do discurso bolsonarista.
Liberdade – não democracia. A opção tem significado e implicações. O conteúdo da liberdade depende do ponto de vista do sujeito do discurso. Democracia, porém, tem conteúdo objetivo: o sistema de governo baseado na vontade da maioria filtrada por leis e instituições que limitam o poder dos governantes, asseguram os interesses permanentes da sociedade e protegem os direitos da minoria. Fora da democracia, liberdade é privilégio de uma minoria que tem poder. Os arautos bolsonaristas da “liberdade” são os saudosistas da ditadura militar que acalentaram o sonho de um golpe contra as liberdades democráticas.
■ Aliança profana
Paulo Guedes, o superministro da Economia, definiu o governo Bolsonaro como uma aliança entre conservadores e liberais.[8] Era, claro, um álibi destinado a justificar sua própria adesão ao presidente extremista – mas também um duplo equívoco conceitual. A extrema-direita bolsonarista não é conservadora, mas reacionária: defende uma ruptura com a democracia e um retrocesso à “idade de ouro” da ditadura militar. Já o liberalismo econômico do governo resumia-se a uma fantasia destinada a recobrir políticas fiscais populistas que desmoralizaram o teto de gastos e tentativas de subordinar a Petrobras às necessidades reeleitorais do presidente.
A “santa aliança” de Guedes deflagrou um debate público sobre as relações entre liberalismo e democracia. “É natural que a Fiesp assine um manifesto em defesa da democracia, já que não existe liberalismo, economia de mercado ou propriedade privada, valores tão caros à entidade e ao setor industrial, sem que exista segurança jurídica, cujo pilar essencial é a democracia e o Estado de Direito”, declarou Josué Gomes da Silva, presidente da entidade empresarial paulista no início da campanha eleitoral de 2022.[9]
O manifesto cumpria um papel positivo, mas a justificativa continha uma imprecisão conceitual: o liberalismo não precisa, necessariamente, da democracia.
O liberalismo tomou de assalto o Ocidente no século XIX, antes do advento das democracias contemporâneas. Os princípios liberais clássicos – os direitos individuais, as liberdades civis e políticas, o secularismo, o livre mercado – estabeleceram-se em regimes políticos aristocráticos ou oligárquicos. A democracia chegou depois.
Democracia supõe o direito universal de voto, algo que só se difundiu ao longo do século XX. Os sistemas pioneiros de governo liberais baseavam-se no consentimento de uma minoria que gozava do privilégio de plenos direitos políticos. Durante um longo período, massas de pobres eram excluídas do voto por muralhas ligadas à propriedade ou à renda e as mulheres simplesmente não tinham direito de voto.
O rótulo democracia liberal indica uma ruptura. O liberalismo sofreu uma revolução interna para adaptar-se ao advento da democracia de massas. Nesse passo, tornou-se menos “puro” na esfera econômica, pois teve que admitir as intervenções estatais destinadas a combater a pobreza extrema e as mais clamorosas desigualdades sociais.
Nem todos curvaram-se aos novos tempos. Uma corrente de economistas liberais, aferrada ao dogma da absoluta liberdade de mercado, enxergou na democracia liberal um malévolo disfarce do socialismo. Dessa crença nasceu uma atração por regimes autoritários dispostos a conduzir programas de radical liberalização econômica.
No ponto de partida, o pensamento liberal enxergava as liberdades políticas e econômicas como partes indissociáveis de uma mesma doutrina. Milton Friedman, pai-fundador da Escola de Chicago, desafiou essa tradição ao operar como conselheiro do ditador chileno Augusto Pinochet e do regime totalitário chinês. A liberdade, imaginava Friedman, floresce na esfera econômica, alastrando-se mais tarde pela esfera política.
A dissociação teórica entre as duas esferas propiciou um álibi político à corrente de liberais que enxergam a democracia como valor secundário ou mesmo como obstáculo à promoção irrestrita da liberdade de mercado. A adesão de significativa parcela do empresariado brasileiro à candidatura de Bolsonaro em 2018 encontra aí uma base ideológica.
Guedes falou em “democracia responsável”, conectando-se a uma extensa tradição autoritária de adjetivação da democracia.[10] Nesse passo, reuniu-se com personagens como Oliveira Salazar (“democracia orgânica”), Erdogan (“democracia conservadora”) e Putin (“democracia soberana”). Os falsos liberais brasileiros, sempre dispostos a conciliar com o populismo econômico, aliaram-se aos reacionários saudosistas da ditadura militar. A aliança profana entre Bolsonaro e Guedes ilumina a singularidade brasileira: nos EUA e na Europa, a direita nacionalista e a extrema-direita abominam o liberalismo.
A atual direita republicana nos EUA, ainda liderada por Trump, deita raízes no nativismo, na xenofobia e no isolacionismo. Contudo, no plano econômico, prega o protecionismo comercial e aponta a globalização (às vezes, nas formas da China e do México) como responsável pelas agruras que afligem o “americano esquecido”.
Os partidos da direita populista europeia que ascenderam recentemente deitam raízes em correntes profundas das histórias nacionais. A Reunião Nacional francesa deriva tanto da nostalgia do regime colaboracionista de Vichy quanto do neocolonialismo poujadista. O Vox, na Espanha, nutre-se da memória do franquismo. O Irmãos da Itália, de Giorgia Meloni, engaja-se na atualização do mussolinismo. Todos eles, porém, encontram-se no pátio da “democracia iliberal” pregada por Orbán.
Aliança entre liberais de araque e reacionários saudistas. A extrema-direita bolsonarista é, em parte, uma imitação. Mas, no fundo, é uma colcha de retalhos incongruentes e um fenômeno singular. n
[1]. “Trump e o Ocidente”. Cadernos de Política Exterior, v. 3, n. 6, IPRI/FUNAG, Brasília, 2018.
[2]. https://bit.ly/3xMH3Hk
[3]. https://bit.ly/3ZdmdMZ
[4]. https://bit.ly/3ZcVbFD
[5]. Manifesto pela Liberdade, FIEMG. https://bit.ly/3KEK3NI
[6]. Nota Oficial – Ministério da Defesa, 7/7/2021. https://bit.ly/3Z2TQRW
[7]. Nota Oficial – Ministério da Defesa, 22/7/2021. https://bit.ly/3ZnzYci
[8]. O Estado de S. Paulo, 22/2/2022. https://bit.ly/3SroO3T
[9]. Folha de S. Paulo, 4/8/2022. https://bit.ly/3ZmKJeU
[10]. Valor, 26/11/2019. http://glo.bo/41ugLaH
sábado, 28 de maio de 2022
Apocalípticos e Bestializados: a conspiração para acabar com as conspirações - Martim Vasques da Cunha
MartimVasquesCunhaApocalipticosBestializados
Apocalípticos e Bestializados
Conheça o verdadeiro manda-chuva do governo Bolsonaro
Presto, Feb 26, 2021
“Porque nada há oculto que não deva ser descoberto, nada secreto que não deva ser publicado.”
Marcos 4:22
1.
No Brasil de Jair Bolsonaro, há uma união aparentemente insólita entre os evangélicos, os protestantes e os católicos. Apesar de serem vertentes religiosas que deveriam viver em uma rixa constante, elas estão num combate contra o que chamam de “a cultura da morte”. E o quartel-general desta estratégia se encontra no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado pela ministra e pastora Damares Alves.
Um dos motivos desta união é a figura enigmática de Antonio Donato Paulo Rosa, também conhecido entre seus desafetos como “São Moita”. Católico devoto – quase “obsessivo”, diriam alguns –, ele tem uma postura tão discreta que não seria um exagero compará-lo a J.D. Salinger. De tipo franzino, cabelos grisalhos, olhos claros (ninguém se lembra se são azuis ou verdes), pele muito branca e dono de uma voz anasalada, às vezes quase infantil, Donato não dá entrevistas (até o fechamento desta reportagem, tentou-se contactá-lo três vezes em um endereço eletrônico, disponibilizado no seu site www.cristianismo.org.br, mas não se obteve nenhuma resposta).
A sua única foto pública é de alguns anos atrás, tirada sem seu conhecimento, comendo um sanduíche em um bar da região da Bela Vista, em São Paulo (a responsável por tal feito foi a filha mais velha de Olavo de Carvalho, Heloísa de Carvalho Martin Ribas). Sua obra esparsa tem um único livro e poucos textos veiculados na internet, além de diversas aulas, divulgadas via e-mail por um núcleo reduzido de alunos, nas quais ele explica a sua perspectiva sobre o que acontece no mundo atual, tanto em termos políticos como religiosos. O alvo do seu projeto é justamente o combate contra a “cultura da morte” – uma expressão inspirada nas encíclicas do Papa João Paulo II. Ela é usada de modo insistente na obra de Donato e, por ser muito ampla de significado, abriga o aborto, a pedofilia, a ideologia de gênero e a destruição dos valores familiares.
O próprio Donato explicitou essas intenções a algumas pessoas que foram às suas aulas – a maioria delas ocorre em paróquias nobres da cidade de São Paulo, como a da Nossa Senhora do Brasil. Essas pessoas narram esses encontros em textos públicos que foram pescados ali e acolá na internet e nas redes sociais (em especial, no Facebook). Uma dessas testemunhas, Heloísa Gusmão, escreveu em uma carta aberta dirigida ao site católico Montfort em 2018 sobre o que acontecia nessas reuniões. Nelas, Donato alegava que “todo o seu segredo não se trata de uma sociedade secreta, mas de uma ação política, cuja discrição é essencial para que os esquerdistas não se alertem para a movimentação que ele faz”.
Essa ação política se traduz concretamente em um comando difuso que existe há 20 anos e que, de uma maneira ou de outra, sempre volta à figura de Donato. Sua origem remonta a 1993, no mestrado que ele fez na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, sob a orientação do professor Jean Lauand, então membro do Opus Dei, muito tempo antes deste se desvincular da organização católica (evento marcado pelo lançamento de um polêmico livro que conta os bastidores da instituição religiosa, em 2005).
O fruto desse estudo do mestrado, cujo tema era “O papel da contemplação na educação, segundo os escritos filosóficos de Santo Tomás de Aquino”, foi justamente o primeiro e único livro de Donato – A educação segundo a Filosofia Perene, depois publicado em edição particular em 1999. Depois, tanto o mestre como o discípulo se associaram a um grupo informal de pesquisas acadêmicas, também criado por membros do Opus Dei, sobre a obra do místico catalão humanista Raimundo Lúlio. Por coincidência, Donato manteve contato com outros dois orientandos de Lauand, mas que faziam parte de outras denominações religiosas – Enio Starosky, atual diretor do Colégio Luterano de São Paulo, e Rui Josgrilberg, professor da Universidade Metodista de São Paulo. Essa ala intelectual influencia fortemente o trabalho da organização não-governamental que faz a articulação da ala política, a LibCom, que seria, tal como as residências do Opus Dei, um centro de estudos e de formação, e tem o apoio de dois políticos – o deputado estadual Reinaldo Alguz e o deputado federal Enrico Misasi, eleitos por São Paulo pelo Partido Verde.
A ação de Donato nos corredores do poder continua até o ministério de Damares Alves, com dois alunos dele, Ellen Amâncio Moreira Silva Schelb e Rodrigo Rodrigues Pedroso, empregados como assessores especiais da ministra. Este último, aliás, é mais do que aluno; é também sócio de Donato na empresa Microbookstudio Software Ltda, aberta em 2002, e localizada numa rua do bairro Jardim Bonfiglioli, em São Paulo, responsável por hospedar o site que publica a obra de Donato e também por abrigar, por meio de links fechados, os áudios das suas aulas. (Ellen Schelb e Rodrigo Pedroso foram procurados em seus e-mails institucionais. Schelb não respondeu até a conclusão desta reportagem. Já Pedroso retornou com um pedido para que a “demanda fosse enviada ao departamento de imprensa” do Ministério, o que foi feito. Até o fechamento desta matéria, a assessoria não se pronunciou.)
Em registros públicos facilmente encontrados no site do Ministério, informa-se que tanto Donato como Pedroso já participaram juntos em reuniões de trabalho: a primeira foi em 20 de setembro de 2019; a segunda em 18 de dezembro de 2019 e uma terceira ocorreu em 12 de junho de 2020. Os assuntos iam de “interesses da vida e da família” ao “direito à vida”, passando pelo remédio Citotec (que provoca aborto espontâneo). Nesses três encontros oficiais, também estava presente a secretaria nacional da Família, Angela Gandra Martins, filha do jurista Ives Gandra Martins e irmã do ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Filho, ambos membros notórios do Opus Dei.
A presença de Antonio Donato em Brasília não se tornou constante somente por causa da simpatia com as iniciativas de Damares Alves. Ela já ocorria no passado. Em vários e-mails enviados aos seus alunos, em outubro de 2016, durante o governo Michel Temer, ele avisou o cancelamento de muitas aulas, alegando que “a Medida Provisória 746, que exigiu primeiro ações imediatas, e depois duas viagens que se acumularam com suas exigências, impediram que pudesse completar a edição da última aula de quinta feira [...]”. A medida em questão discorre sobre “a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, [que] altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e a Lei nº 11.494 de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, e dá outras providências”. Essa lei foi promulgada um mês antes da escrita das mensagens exibidas acima.
Em outro e-mail, de novembro de 2016, Donato explicou que se encontrou em Brasília com “um grupo de pessoas que trabalham a favor da vida” e que seria “necessária uma reunião hoje à noite para coordenar suas atividades. Não será possível por este motivo termos aula hoje à noite. Espero retomarmos na próxima segunda feira e que não nos deixemos abater por causa destes contratempos necessários. Na próxima segunda feira, pessoalmente, posso explicar melhor o que se terá feito em Brasília.”
2.
Com a ascensão de Jair Bolsonaro, coincidentemente a influência de Donato cresceu no ambiente religioso brasileiro. Apoiado por outras duas entidades católicas, o Centro Dom Bosco e a Liga Cristo Rei, ele passou a dar aulas não só para os católicos comuns, mas também para duas parlamentares ligadas explicitamente ao bolsolavismo (movimento informal vinculado ao filósofo Olavo de Carvalho), as deputadas federais Chris Tonietto (PSL) e Carolina De Toni (PSL). No primeiro Fórum Nacional da Liga Cristo Rei, ocorrido em 2017, “estava lá Donato a dar suas aulas secretas” e, “entre os palestrantes da Liga estavam nomes tarimbadíssimos do olavismo”, como “Allan dos Santos e Bernardo Küster”, segundo o relato público do jovem católico Filippe Irrazábal, lançado no Facebook no início de 2020.
A sombra do mestre misterioso não se estendeu apenas ao gabinete de Damares – ocorreu igualmente no Ministério da Educação (MEC). De acordo com Irrazábal, “alunos do Donato receberam cargos importantes no MEC. Um desses cargos foi para um dos líderes do CDB [Centro Dom Bosco] [...]. Claudio Titericz e André Melo eram outros alunos do Donato que receberam altos cargos no MEC. Quando um olavete era demitido do MEC pelo novo ministro Weintraub, André Melo logo o recontratava na TV Escola, que virou o bastião do Donato [...] dentro do MEC”.
A partir de março de 2020, com o anúncio da pandemia do coronavírus, ainda de acordo com Irrazábal, Donato enviou “vídeos no WhatsApp contra o distanciamento social e alertando para o ‘perigo de governo mundial’ por causa disto, até mesmo ligando para as pessoas”. Uma das fontes ouvidas pela reportagem – uma intelectual católica – confirmou a existência desses vídeos e dessas ligações. [1] A princípio, parece ser uma atitude bizarra para alguém que alega lutar contra a “cultura da morte” a qualquer custo. Porém, trata-se de uma ação muito coerente com a lógica intrínseca do seu pensamento – e que, se for analisada a contento, revela o que o poeta polonês Czeslaw Milosz disse sobre uma das tendências subterrâneas da modernidade. Trata-se do insólito fato de que “só na metade do século XX os habitantes de muitos países [ocidentais] compreenderam, em geral por meio do sofrimento, que complexos e difíceis livros de filosofia têm influência direta sobre seu destino”.
3.
Este é o caso de A educação segundo a Filosofia Perene, a obra que seria o fundamento das aulas que Antonio Donato daria para quem quisesse acompanhá-lo durante esses vinte anos de discreto magistério. O título faz referência à philosophia perennis, que, apesar de ser identificada com um conjunto de escritos de sabedoria que remonta aos movimentos esotéricos tradicionalistas surgidos no final do século 19 – e até mesmo erroneamente aos da Nova Era que fizeram sucesso entre as décadas de 1960 a 1980 – seria na verdade, segundo Donato, a reunião dos tratados dos grandes filósofos antigos e cristãos, como Platão, Aristóteles, Hugo de São Vítor e – o preferido do professor – Santo Tomás de Aquino.
O argumento geral da sua obra completa é o seguinte: o mundo moderno e democrático não possui mais condições de criar uma educação que faça o ser humano se tornar alguém dotado de virtude. Portanto, é fundamental um retorno à “filosofia perene” ensinada por Donato para a recuperação dessa qualidade, especialmente em um ambiente que já está nitidamente dominado pela “cultura da morte”. A educação, aqui, deixa de ser instrumental e voltada apenas para o mercado de trabalho – que desumanizaria o indivíduo – e partiria para um caminho moral, religioso e místico, cuja meta é a reconstituição de uma virtude heroica na alma do aluno.
Contudo, como tornar isso factível hoje em dia? Para Donato, a solução passaria por três fatores: buscar um exemplo de sociedade perfeita que já existiu na História; criar aos poucos um círculo de sábios virtuosos; e o questionamento de tudo o que existe na nossa sociedade, da política (com a crença ferrenha de que o governo mundial é uma espécie de “sistema do Anticristo”) à ciência moderna.
No primeiro item, Donato remonta à noção de um governo monárquico, inspirada nos escritos do cardeal e santo da Contra Reforma Roberto Bellarmino, célebre por ter participado no julgamento feito pela Igreja Católica contra ninguém menos que Galileu Galilei. Mas não se trata de uma monarquia que depende exclusivamente do rei secular; aqui, o monarca seria o Papa, o qual teria a virtude de comandar o governo perfeito que sempre foi a Igreja de Roma, pois esta foi criada por Deus. Esse exemplo deveria nortear o mundo democrático, que perdeu por completo a noção de integridade moral. Aqui teríamos o segundo fator: o papel do círculo de alunos, formatado pela filosofia perene, que ajudaria o comandante deste governo perfeito a torná-lo uma realidade – e, neste aspecto, todos os seus integrantes precisam entender que a luta deles não é contra meros seres humanos, mas sim contra o próprio mal que atua na Terra.
Não à toa que, dentro dessa linha de pensamento, há uma rejeição explícita da ciência moderna, especialmente na figura de Isaac Newton - o que nos leva ao terceiro ponto da solução proposta pela “filosofia perene”. O cientista inglês seria o principal culpado por perverter a noção da alma individual ao criar um sistema de mensuração da realidade que dependeria somente da exatidão técnica, abolindo assim qualquer perspectiva metafísica. É justamente por causa desse tipo de cosmologia, diz Donato, que surgem as ideias a favor da “cultura da morte”, em particular as que envolvem o aborto e a ideologia de gênero, pois elas perderam o sentido religioso do que significa a vida humana. O lado perigoso dessa afirmação é que, no momento em que se mais precisa das soluções dadas por este tipo de ciência – como numa pandemia, por exemplo –, torna-se perfeitamente inevitável questionar as medidas de distanciamento social (pois a Organização Mundial de Saúde [OMS] seria “globalista”), a existência do coronavírus (criado pela China “anticristã”) e até mesmo a eficácia das vacinas (cujo resultado será o controle populacional por meio da esterilização da humanidade).
Esse raciocínio encanta a todos que conhecem pessoalmente Donato – algo estimulado pela aura de segredo e de santidade que o cerca para quem participa (ou conhece) as suas aulas. Um dos seus ex-alunos disse a esta reportagem que, quando começou a ir a esses encontros, também frequentava o Curso Online de Filosofia (COF) de Olavo de Carvalho, e perguntou ao polêmico filósofo qual era a sua opinião sobre Antonio Donato. A resposta foi: “‘O Donato é um santo, quando encontrá-lo beije a mão dele’”. Além disso, esse ex-aluno disse que “tinha um conhecido que afirmou que o Donato lia sua mente nas reuniões, respondendo suas perguntas antes que ele as fizesse.”
Entretanto, a admiração de Carvalho por Donato não parece ser recíproca. O mesmo ex-aluno informou que, um dia, comentara “com Donato que estava transcrevendo suas aulas a partir das gravações, assim como eu fazia com as aulas do Olavo, já que também participava do COF. Ele não pareceu animado com a ideia, mas tentou ser gentil, mostrando algum interesse. Parecia que eu havia falado uma obscenidade. Todos [ali presentes] prenderam o ar, trocaram olhares significativos e me senti péssimo. Donato ficou impassível. Impossível dizer o que ele achava disso.”
“Para mim, ficou nítido que o objetivo daquelas aulas era criar um grupo que influenciasse a Igreja e a sociedade a longo prazo”, continuou a me dizer esse ex-aluno. Todos esses encontros não eram cobrados. Cada vez que algum estudante pedia a Donato um exemplar físico do seu livro (impresso com uma capa branca, só com o título em letras negras, sem o nome do autor ou qualquer informação biográfica), ele o enviava por correio sem custo nenhum, além de disponibilizá-lo gratuitamente em uma versão virtual tanto no seu site como numa cópia de CD em um documento PDF. Na carta pública que Heloísa Gusmão enviou à Montfort, ela escreveu que um dos motivos desse procedimento abnegado está na história mística, contada por Donato, sobre “uma de suas alunas [que] foi vender a primeira edição do livro numa faculdade de teologia para uma moça muito piedosa, com fama de santidade. A beata hesitou em comprar o livro, por ter pouco dinheiro, então disse que iria à Capela da faculdade perguntar a Jesus o que Ele achava da ideia. Não deram 15 minutos, a beatinha saiu correndo atrás da aluna do Donato, pedindo com muito entusiasmo: ‘Me vende o livro, me vende o livro! Jesus disse que tem pressa!’”.
Mesmo assim, segundo o ex-aluno, o clima entre os estudantes não era muito acolhedor: “A primeira coisa que notei é que ninguém daquele grupo dava o menor sinal de empatia comigo, exceto o próprio Donato. Senhorzinho amável, sempre perguntava os nossos nomes, quais eram nossas paróquias de origem, etc. Todas as tentativas de conversar com seus alunos eram desanimadoras. Isso fazia eu me sentir indesejado. Insisti nos encontros, pois as aulas tinham um conteúdo muito relevante pra mim. [...] Quem chegava [na sala] colocava seu e-mail em uma lista, onde se recebia as gravações das aulas.”
O escopo dessas conferências particulares – cada uma com a duração média de duas a três horas – é ambicioso. Donato vai do questionamento da ciência moderna em Isaac Newton, passando pela Constituição Americana, até a crítica das obras de Kant e Hegel, sempre com o fio comum de mostrar o que ele afirma ser “o controle das ideias a partir da criação política das grandes fundações globalistas”, como a Ford, a Rockfeller e a Templeton. Segundo suas próprias palavras, elas são as principais responsáveis pela sedimentação da “cultura da morte” no Brasil e no resto do mundo contemporâneo, e seriam o oposto do governo virtuoso que ele tenta criar com a ajuda dos seus alunos.
4.
As ideias aparentemente desconexas que rondam a obra de Antonio Donato só ganham coerência se entendermos que, no pensamento político moderno, houve três grandes ondas de imaginação, se aproveitarmos a hipótese do filósofo Leo Strauss. A primeira seria a do republicanismo, que deu origem à democracia liberal, e teria como representante Maquiavel; a segunda seria a do jacobinismo, moldada no pensamento de Jean Jacques Rousseau, e que culminou na visão revolucionária de Marx; e a terceira seria a do reacionarismo, que teria em Nietzsche o seu líder e em Heidegger um dos seus discípulos. Contudo, Strauss esqueceu-se de uma quarta onda, subterrânea, que lentamente minou as bases construídas pela democracia liberal e se apresentou como um contraponto ao jacobinismo e ao reacionarismo. Trata-se da imaginação apocalíptica, cujo principal pensador no século 20 seria o místico francês René Guénon, também arauto de uma philosophia perennis e que influenciou ninguém menos que Steve Bannon nos EUA (ex-estrategista de Trump), Aleksandr Dugin na Rússia (guru de Vladimir Putin que já fez duas visitas no Brasil) e, aqui, Olavo de Carvalho – além de, claro, Antonio Donato, ambos os maiores inspiradores do bolsonarismo.
Um dos episódios recentes que demonstra como essa onda subterrânea invade a democracia liberal é o movimento conspiracionista americano QAnon. Ele surgiu no público depois da eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, mais especificamente no dia 28 de outubro de 2017, quando um usuário anônimo, de codinome Q, escreveu de modo críptico que a ex-primeira dama e ex-Secretária de Estado Hillary Clinton seria presa dentro de três dias. O prazo final chegou, e nada aconteceu com ela. Mesmo assim, esse sujeito misterioso (que se inspirou no termo “Q Clearance”, “acesso confidencial”, muito usado nos serviços secretos de informação) continuou a espalhar suas pistas (apelidadas de “migalhas”) em sites obscuros como 4chan ou 8chan, que são plataformas de mensagens onde as pessoas podem conversar sem revelar suas identidades utilizando apenas pseudônimos.
Rapidamente, criou-se uma comunidade de seguidores – o QAnon – a qual construiu a seguinte visão de mundo – uma espécie de amálgama de histórias que já existiam há muitos anos no imaginário americano: a de que, durante séculos, a Terra foi comandada por uma casta antiga, secreta e mortal. Denominada “A Cabala” – depois transformada em “estado profundo” [deep state] e reduzida ao conhecido “establishment” –, trata-se de uma organização hierárquica que, no seu núcleo, seria satânica desde a origem. Ela é um grupo oculto que se imiscuiu em todas as instituições, como os bancos, a mídia e os governos, por meio de ações macabras de chantagem, pedofilia, sacrifício humano, e até mesmo canibalismo.
Entre seus principais membros, temos uma lista infinita, dividida em diversas seções: na política, temos Bill e Hillary Clinton, Barack e Michelle Obama, metade do Partido Republicano (especialmente os senadores John McCain e Mitt Romney) e, sem dúvida nenhuma, todo o Partido Democrata, que comanda a CIA, o FBI e a Agência de Segurança Nacional; na mídia, todos os órgãos jornalísticos estão envolvidos, sem contar Tom Hanks, Steven Spielberg e o bilionário acusado de ser o chefe de uma rede de tráfico de menores, o falecido Jeffrey Epstein; na tecnologia, o Vale do Silício em peso apoia essa iniciativa; na religião, o Papa Francisco; e no setor financeiro, as grandes fundações filantrópicas como Ford e Rockfeller, a família Rothschild, além da Organização das Nações Unidas (ONU), o Fórum Econômico Mundial e todos os participantes europeus que alguma vez foram a Davos, Suíça, para implementar a Nova Ordem Mundial (entre eles, George Soros está no topo). A meta da Cabala é a acumulação de poder a qualquer custo – e, de acordo com o QAnon, o detalhe mais macabro sobre essas pessoas é que elas são especialistas na paradoxal arte de esconder tudo isso à vista de todos [hiding in plain sight, em inglês].
O QAnon conseguiu ter um total de aproximadamente de 4,5 milhões de seguidores em páginas do Facebook e Twitter, segundo o jornal inglês The Guardian. No último ano, entretanto, a disseminação do seu pensamento aumentou ainda mais com o anúncio da pandemia do coronavírus. Além dos ataques constantes às redes secretas de abuso de menores e à imprensa, os entusiastas dessa comunidade também acreditam que a covid-19 é uma criação da Cabala para implementar, de uma vez por todas, o globalismo que fará todas as culturas, perdendo, assim, as suas características individuais. Isso seria definitivo com a distribuição de uma vacina que tornaria a humanidade estéril ou incapaz.
Pouco a pouco, o QAnon tornou-se o centro de narrativas que ainda carecem de comprovação factual, capazes de prejudicar a saúde pública no momento grave do surto do coronavírus, além de estimular atos públicos de violência – como o de um seguidor que, em 2018, foi preso por bloquear o trânsito em Nevada com um caminhão cheio de armas, exigindo a liberação dos relatórios do FBI a respeito dos e-mails interceptados de Hillary Clinton, escândalo que foi pivô nas eleições de 2016. Por esse motivo, o mesmo FBI decidiu incluir o QAnon na categoria de “ameaças terroristas domésticas”, especialmente por causa das teorias da conspiração que atiçam a ameaça do extremismo, quando indivíduos “alegam ser pesquisadores ou investigadores que destacam pessoas, negócios ou grupos acusados falsamente de estarem envolvidos em um esquema imaginário”. Indo pelo mesmo caminho de precaução, as empresas de tecnologia (Facebook, Twitter, TikTok e YouTube) removeram numa ação conjunta, entre julho e agosto de 2020, mais de 7.000 contas no Twitter e cerca de 790 grupos no Facebook, todos envolvidos direta ou indiretamente com o QAnon.
Apesar de todos esses alertas, ainda assim a conspiração para acabar com todas as conspirações triunfou no pleito eleitoral americano, em novembro do ano passado, com a vitória da republicana Marjorie Taylor Greene, para ser representante do estado da Georgia – por ironia, o mesmo tipo de establishment que o movimento tanto abomina. Ela foi a principal garota propaganda do QAnon e, entre as diversas declarações polêmicas dadas no passado ao negar a pandemia, a mais famosa delas após vencer a vaga foi a de que o uso de máscaras para proteção não teria nenhuma eficácia científica comprovada. E, como se não bastasse, vários membros desta organização subterrânea participaram na catastrófica invasão do Capítólio ocorrida no dia 6 de janeiro de 2021, sob incitação direta do então presidente Donald Trump.
Esses fatos descritos acima apenas comprovam que a cultura americana tem um fascínio duradouro pelo tema da paranoia. Desde da literatura de Don DeLillo, Philip K. Dick e Thomas Pynchon, passando pelo cinema de Alan J. Pakula, até as mensagens subliminares que podem ser descobertas nos álbuns de bandas de rock como Jefferson Airplane ou Nine Inch Nails, a conspiração sempre foi vista como uma espécie de discurso que se opunha ao governo burocrático o qual jamais pretendeu mostrar a verdade ao povo. O Estado e seus representantes de terno e gravata eram os inimigos a serem combatidos. Porém, com a eleição de Donald Trump em 2016, ocorreu uma reviravolta que, até agora, passou desapercebida: se antes a teoria conspiratória era uma espécie de complô que salvava a América das garras da tecnocracia corrupta, agora era o próprio governo que usava a desconfiança dos outros para permanecer no poder.
Não se trata de uma ideia nova, muito menos exclusiva do ex-presidente americano. Em 2008, os juristas Cass Sunstein (um democrata progressista) e Adrian Vermeule (um republicano católico) escreveram um artigo acadêmico intitulado “Teorias das Conspirações: Causas e Curas”. Eles explicaram no texto que, depois dos ataques de 11 de setembro, tornou-se fundamental entender o motivo de vários grupos marginais pretenderem culpar o governo americano pelo atentado terrorista contra o World Trade Center e o Pentágono. As teorias da conspiração não podiam ser desprezadas; elas deveriam ser combatidas porque, cedo ou tarde, prejudicariam o próprio funcionamento da sociedade. Por isso, os dois acadêmicos ofereceram uma solução insólita: a criação daquilo que eles chamaram de “infiltração cognitiva em grupos extremistas, elaborada para introduzir diversidade de informação nessas redes informais e assim expor suas teorias conspiratórias indefensáveis”. Em outras palavras: Sunstein e Vermeule acreditavam que a única maneira de acabar com uma conspiração seria estabelecer uma outra conspiração.
No mundo segundo o QAnon (e Trump), isso faz perfeito sentido. Com suas migalhas de pseudoconhecimento a se multiplicarem em progressão geométrica nas redes sociais, fica evidente que a intenção dessa comunidade é criar um novo discurso o qual não só transforma o presidente americano em um “salvador”, mas que também ele seja um obstáculo para o que seria a verdadeira conspiração, a mais nociva de todas: a da Cabala. Sua principal arma é estimular a imaginação – e, com isso, a esperança do sujeito que acredita que voltará a ter algum controle sobre sua situação política, social e econômica. Não à toa que o QAnon afirmava que Trump seria o responsável pela “tempestade” (storm) que enfim revelaria a todos as perversões dos integrantes do deep state. E mais: quem se inseria nesse grupo secreto era um eleito que viverá um novo “Grande Despertar” (The Great Awakening) – expressão histórica entre os americanos, a qual retrata o fervor religioso dos puritanos colonizadores nos séculos 17 e 18. Como bem escreveu o romancista Walter Kirn, o fascínio a respeito do QAnon se deve ao fato de que o seu líder misterioso sabe compartilhar como poucos a narrativa dele entre os leitores – e assim os transforma em seus parceiros. Ele lhes entrega o que promete: a possibilidade infinita de participar – e de alterar – os rumos da História.
No Brasil, um dos poucos na mídia que percebeu a importância do QAnon para alimentar a militância na fracassada campanha para a reeleição de Donald Trump foi o colunista da Folha de S. Paulo, Ronaldo Lemos. “Na prática o QAnon é uma rede articulada de produção de propaganda”, ele escreveu. “Em termos técnicos, é uma rede de Datti (Desinformação Adversarial, Táticas e Técnicas de Influência). Sua estratégia é uma das mais sofisticadas evoluções dos métodos de propaganda. Seu funcionamento ocorre por meio de um tripé de estratégias: (1) a coordenação entre pessoas anônimas pela rede, tática tornada famosa pelo grupo Anonymous (que o QAnon homenageia em seu nome); (2) a exploração de técnicas psicológicas como a chamada fixação funcional, muito comum em videogames; (3) os métodos desenvolvidos pelos chamados jogos de realidade alternativa (Alternative Reality Games), iniciados nos anos 2000 e aplicados à vida real com o auxílio da internet.”
Lemos chegou à mesma conclusão de Walter Kirn sobre a inventividade de quem participa dessa rede: “O QAnon influencia porque incentiva as pessoas a se tornarem ‘detetives’ na internet, em busca da ‘verdade’. Para isso, os mantenedores da estratégia espalham pistas muito bem escondidas pela rede. Um vídeo ali, uma informação em um site aqui, uma frase de um discurso político acolá. Ao não entregar a informação pronta, o [movimento] dá às pessoas uma sensação de inteligência e satisfação ao permitir que descubram ‘por si mesmas’ essa verdade oculta, cuidadosamente espalhada.” Em suma: com a ajuda de um imaginário deformado, não se trata mais de uma luta pelo poder por meio das categorias ultrapassadas de esquerda versus direita. Trata-se de uma luta a respeito de quem sobrevive no mundo da ficção e quem prevalece no mundo real.
Contudo, não devemos nos enganar na crença de que isso é algo que existe somente no território subterrâneo das ideias. Mesmo no ambiente religioso onde se movimenta o círculo íntimo de Antonio Donato, a imaginação apocalíptica que aquece o QAnon já alcançou a cúpula da Igreja Católica. Em outra carta aberta, lançada uma semana antes da data final para as eleições americanas de 2020, o arcebispo Carlo Maria Viganò e ex-núncio apostólico dos EUA, responsável por diversas críticas ao Papa Francisco, escreveu a ninguém menos que Donald Trump, afirmando que o republicano seria o “katechon” que impediria a realização de um plano macabro que mudaria o mundo como conhecemos. No caso, seu nome é o “Grande Recomeço” (The Great Reset), cuja principal meta é usar a pandemia do coronavírus, por meio de sucessivos lockdowns, para reelaborar a economia mundial e integrá-la de vez a um gigantesco governo globalista chefiado pela China. (De fato, há um livro com esse nome, co-escrito pelo criador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab – um dos maiores símbolos da Cabala –, lançado rapidamente em junho do ano passado, somente três meses depois da pandemia ter sido anunciada pela OMS.)
Para quem ainda não está acostumado com o vocabulário apocalíptico, katechon é uma expressão em grego, retirada da Segunda Epístola aos Tessalonicenses (atribuída ao apóstolo Paulo), e significa indistintamente “algo” que detém um poder e “contém” o definitivo triunfo do Espírito da impiedade (o Anticristo), travando assim “o seu aniquilamento pela força da boca do sopro do Senhor”. Aparentemente, segundo o italiano Massimo Cacciari, presume-se que os poderes que exerceriam esta função seriam o do Estado (na variação imperial ou “globalista”) e o da Igreja. Não é o que o arcebispo Viganò pensa: para ele, Donald Trump seria o único “poder que impediria” a destruição inevitável. Mais QAnon, impossível.
5.
Tanto o pensamento de Antonio Donato como o do QAnon são tipos de imaginação apocalíptica que se caracterizam, em sua essência, por uma atitude a qual, apesar de tomar emprestada o seu nome do famoso livro que fecha a Bíblia, é na verdade uma perversão dos seus ensinamentos. Neste caso, o seu seguidor fica obcecado com a proximidade indefinida do grande momento apocalíptico e isso o induz a ter um comportamento exaltado e extremo, que vai do ascetismo radical à generosidade extravagante, passando por atos violentos e a adoção de teorias conspiratórias. Trata-se de um pêndulo psicológico observado constantemente nas estruturas sociais dominadas por essa expectativa. De uma maneira ou outra, todas são profundamente antiautoritárias (ao menos a respeito das velhas autoridades). Geralmente começam como igualitárias radicais (por exemplo, contra a propriedade privada e a favor da propriedade coletiva) e acabam por se tornarem, conforme as circunstâncias, em sociedades ainda mais autoritárias e ainda mais desiguais, principalmente entre os seus membros. O que alimenta esse imaginário é a promessa do milênio que enfim restaurará a humanidade a uma perfeição igual a Deus e que existia antes da Queda de Adão e Eva. Essa salvação, entretanto, não é universal. Em sua essência, ela é um sentimento tipicamente elitista, reservado apenas para alguns sábios — “os poucos felizes”.
Desse modo, no Brasil, enquanto a imprensa se preocupava mais com as declarações bombásticas de Olavo de Carvalho, Antonio Donato agia na surdina. Não há nenhuma novidade nisso para quem já conhecia tanto o seu método como as características da imaginação apocalíptica. Um jornalista envolvido nos meios católicos me explicou que essa é a verdadeira natureza da tal “filosofia perene” defendida pelo professor. As referências a Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino são apenas disfarces para uma iniciação espiritual a qual somente os integrantes de um “núcleo duro”, escolhidos a dedo pelo professor, podem ser considerados como aptos a entender o seu verdadeiro ensinamento.
“É fundamental entender que o movimento ao redor do Donato é de caráter místico”, me disse essa fonte. “Ou seja: para os alunos, ele é um santo, e por isso deve ser idolatrado. Eles acreditam de verdade que estão com um sujeito que fala com os anjos e, logo, a sua estratégia está sempre certa, uma vez que ele conta com a ajuda divina”. Sem ter isso em mente, fica difícil compreender como ocorre a sua ação política no governo Bolsonaro. “De modo semelhante ao René Guénon, o Donato se vê anunciador de uma profecia, que ninguém sabe muito bem qual é porque ele reserva essa informação para os seus alunos mais próximos. Assim, é importante perceber que, em suas aulas, ele provoca a desconfiança de tudo sobre qualquer espécie de autoridade. Todos estão mentindo, segundo ele. Portanto, na cabeça dos discípulos, o único que fala a verdade a respeito do que acontece no mundo só pode ser o próprio Donato”.
E continua: “O Donato propõe uma imagem de uma pessoa ideal, do intelectual perfeito, mas com a diferença de que esse aluno já se vê como esse tipo de sujeito idealizado na vida real. Ocorre que, como estudar dá muito trabalho, o coitado fica sem saber o que fazer, e começa a surtar. O Donato fala que ele precisa ler quinhentas páginas por semana ou então acompanhar documentos ‘reservados’ sobre teorias da conspiração. Porém, ninguém em sã consciência consegue acompanhar esse ritmo. Então, passam a se sentir burros diante de tamanha sabedoria. E o que Donato faz? Ele afirma que, como o perigo da ‘cultura da morte’ é iminente, e não há tempo para estudar e compreender, a solução é agir. E assim ele pede a esses mesmos alunos que façam tarefas impossíveis, mas como elas foram ditas por alguém que conversa com os anjos, o melhor é cumpri-las sob pena de cometerem omissões ou pecados graves contra a própria alma.”
Alguns relatos de apelo místico afirmam que a profecia da qual Antonio Donato seria o seu maior representante é a que envolve justamente Dom Bosco, o santo católico italiano que viveu no século 19, foi fundador da ordem salesiana e homenageado no país como o padroeiro de Brasília. Heloísa Gusmão explica que soube da seguinte conversa, na qual Donato afirma que “Dom Bosco fez uma profecia que haveria um ressurgimento espiritual fora do comum aqui no Brasil, inconcebível. Ele não disse a data, mas disse a data antes da qual não aconteceria. Disse que primeiro seria fundada a cidade de Brasília, e surgiria um lago e depois disso seria encontrada uma grande quantidade de minério e depois disso, não se sabe quando, surgiria uma renovação espiritual fora do comum naquela terra, que a gente não sabe se é Brasília, se é o Brasil, se é a América Latina.”. Ao ser questionado se ele teria sido “profetizado” pelo sacerdote italiano, Donato negou isso com risos, sem, contudo, se esquecer de afirmar o seguinte: “Não sou eu, porque toda esta renovação que a gente está vendo no Brasil não é a gente. Eu diria que o Espírito Santo está fazendo Seu papel e cada uma dessas peças faz parte de um quebra-cabeças que não é a gente que tá fazendo. E isso é motivo de esperança”.
Neste tipo de imaginário apocalíptico que ocorre no Brasil, a solução prática parece ser a existência de um “líder providencial”, personificado na figura de Jair Bolsonaro, em que o misticismo se transforma em distopia. Como bem me explicou o jornalista católico: “Para eles, o comunismo está prestes a invadir o país, junto com o gayzismo, e todos os cristãos estarão prestes a irem para a cadeia. Portanto, o Donato e seus discípulos precisam apoiar o Bolsonaro, mesmo com todos os defeitos dele, justamente para evitarem a catástrofe. Enquanto isso, o professor educa uma nova geração que irá combater a esquerda e todos os seus representantes considerados satânicos, como os globalistas e os abortistas”.
6.
A imaginação apocalíptica representada pela “filosofia perene” de Antonio Donato também nos ajuda a entender uma pergunta simples, mas essencial, a respeito das ideias que rondam o Ministério dos Direitos Humanos: como um gabinete, cuja líder é uma pastora evangélica, permite que seus cargos de confiança sejam preenchidos por católicos? Não haveria aí uma contradição, uma vez que é notória a rivalidade entre esses grupos religiosos?
Na verdade, a resposta para essa questão está na ponte eclesiástica construída pela Igreja Católica nos últimos anos para justamente conversar com os evangélicos e também para diminuir a queda no número dos fiéis: a Renovação Carismática Católica (RCC), surgida na década de 1960. Seus membros são apelidados de “carismáticos” porque, a grosso modo, acreditam que são veículos do Espírito Santo na defesa do cristianismo. Não por acaso, graças a esta crença, Antonio Donato conseguiu dar as suas aulas em várias reuniões do movimento, apelando sobretudo para o lado místico, auxiliado pela profecia de Dom Bosco. Na carta pública à Montfort, Heloísa Gusmão conta, em detalhes, como foi um desses encontros onde Donato estava presente, ocorrido no ano de 2018 em um famoso local para os membros da RCC: a Comunidade Vida de Aliança da Misericórdia, estabelecida no bairro paulistano da Bela Vista.
“Havia em torno de 150 pessoas”, ela narra, “de diversas partes do Brasil, destacando-se alguns padres, uma freira, alguns membros do Centro de Estudos Dom Bosco, professores de Teologia, uma protestante que há anos frequenta as aulas do Donato e não se converte (apesar da fama de santidade dele...) e representantes de vários núcleos criados desde os anos 90 pelo Donato, chamados de Anistia Pela Vida, principais ativistas da causa pró-vida no Brasil”.
Donato iria ministrar uma aula dividida em duas partes, “uma pela manhã e outra à tarde”. Gusmão acreditou que “tudo o que o Donato ensinasse fosse gravado e passado entre os alunos, mas qual foi minha surpresa ao descobrir que toda a primeira parte era apenas ad intra e ele pediu repetidas vezes que não se falasse para ninguém de fora o que fosse ‘só para nós’.”
Depois, continua o relato, ele “passou a palavra a um militante pró-vida e este começou a exortar que todas as pessoas envolvidas com a Anistia não deveriam criticar nenhum político que se apresentasse pró-vida, por omisso que parecesse, pois só os militantes ali presentes é que sabem, nos bastidores, se os políticos estão fazendo algo, mesmo que por baixo dos panos, para ajudar as pautas deles (as da nova direita). Donato até tentou consertar, acrescentando que não se trata de não denunciar um político pró-vida que estivesse envolvido em corrupção, roubo, tráfico de drogas, etc, mas sim de se calar caso ele se mostrar inativo em relação às reivindicações da causa pró-vida: independente de ser petista, independente de ser liberal, independente de ser tudo o que a Igreja Católica condena num político”. Gusmão observou que, apesar de não terem sido “citados os nomes dos políticos que negociam com a Anistia (ou melhor, que compram o silêncio destes católicos apenas por se dizerem pró-vida)”, ela desconfiou que “as críticas ao Bolsonaro [então candidato à presidência], depois deste conselho”, diminuiriam bastante.
Assim, com a queda de prestígio do bolsolavismo por causa das trapalhadas midiáticas de Olavo de Carvalho e seus asseclas - além da derrota brutal sofrida nos pleitos municipais em novembro de 2020 e do acordo tácito entre o Supremo Tribunal Federal e o chamado “Centrão” do Congresso para manter sua família fora das investigações policiais -, não seria um exagero presumir que o presidente Jair Bolsonaro se apoiará na pauta moral do Ministério dos Direitos Humanos para permanecer fiel à sua agenda de costumes e manter o encanto desse público religioso para a sua reeleição na campanha presidencial de 2022. O carisma de Damares Alves une os olavistas remanescentes, a elite católica, os membros da bancada evangélica no Parlamento e, sobretudo, os jovens cristãos que têm quase um carinho maternal por ela – como provam as 143 mil pessoas que a assistiram e a aplaudiram no estádio do Morumbi, durante o discurso proferido em fevereiro do ano passado, no evento evangélico The Send 2020, dedicado à juventude religiosa.
Este raciocínio pragmático é comprovado se lermos com atenção os dados compilados pelo pesquisador Franco Iacomini, no seu livreto Evangélicos No Brasil, lançado em formato e-book pelo jornal Gazeta do Povo. Ele comenta, a partir da pesquisa do Instituto Datafolha publicada em 25 de outubro de 2018 – portanto três dias antes da votação do segundo turno presidencial – que os números apresentados eram muito próximos daqueles verificados nas urnas: “56% dos votos válidos para Bolsonaro (foram 55,13% no resultado oficial), 44% para Fernando Haddad, do PT (44,87%, segundo o Tribunal Superior Eleitoral). Em extrapolação levando em conta os números totais da população brasileira, José Eustáquio Diniz Alvez conclui que os evangélicos deram 21,7 milhões de votos a Bolsonaro e 9,7 milhões a Haddad. A diferença entre eles é de 11,9 milhões de votos – mais do que os 10,7 milhões que deram vantagem ao candidato vencedor no resultado final. Esse cálculo, aliado à percepção de que os resultados foram bem mais apertados em outros grupos religiosos, aponta que os evangélicos deram uma vantagem decisiva ao candidato do PSL.”
7.
Isso é apenas mais uma evidência de como o imaginário apocalíptico, guiado por Antonio Donato no Brasil, será uma forte tendência política nos próximos anos, independentemente de quem estará no Palácio do Planalto. Um exemplo é o que aconteceu em 22 de outubro de 2020, quando o governo Bolsonaro apoiou e assinou, em Washington (DC), a Declaração do Consenso de Genebra, junto com os Estados Unidos [então na administração Trump], Egito, Hungria, Indonésia e Uganda. Segundo o texto, o acordo se apoia em quatro pilares: melhorar a saúde das mulheres; preservar a vida humana; fortalecer a família como a unidade fundamental da sociedade; e proteger a soberania de cada nação diante da política global. Ao participar da cerimônia virtual, em Brasília, a ministra Damares Alves disse que “celebramos que o texto da declaração ora assinada consagre a inexistência de um direito à interrupção voluntária da gravidez, como às vezes se afirmam em determinados fóruns internacionais.” O assunto era claro – o aborto – e o alvo era a Organização das Nações Unidas (ONU).
Não é crime nenhum lutar contra a cultura da morte. Em uma democracia liberal, como a que ainda vivemos, pode-se argumentar que se trata de um lado tão válido quanto os defensores da “liberdade de escolha do corpo feminino” ou das benesses da governança globalista. Porém, ao reconhecer a influência de grupos secretos como o QAnon e o de Antonio Donato nas respectivas políticas dos seus países, é necessário admitir que estamos diante de um falso problema.
A questão não é ser a favor ou contra, por exemplo, o aborto ou a ideologia de gênero. O ponto aqui é saber se estes assuntos delicados não estão sendo usados para manter a permanência das elites que mal se preocupam com o que realmente acontece com o cidadão comum – e com as suas crianças. No exemplo específico do Brasil, o historiador José Murilo de Carvalho comenta que há uma antiga tradição intelectual de achar que o país nunca teve uma cidadania de fato. Ele cita o famoso aforismo do jornalista Aristides Lobo, na época da proclamação da República, no qual o povo, supostamente o protagonista de acordo com o ideário republicano, “assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se passava”.
Essa contradição permanece até hoje. De eleição em eleição, a democracia liberal brasileira revela ser cada vez mais dependente de uma troca de elites, ora de esquerda, ora de direita, e todas elas estruturadas em função de uma imaginação apocalíptica constantemente sufocada pela mesma intelligentsia que insiste viver em uma ficção secular. Portanto, nesta luta obsessiva contra a cultura da morte, todos os envolvidos nela caíram no perigo de manipular os anseios de uma população que pretende viver na verdade, ao oferecerem algo pior do que a mentira: a meia-verdade. Como bem explicou outro historiador, o inglês John Lukacs, “Santo Tomás de Aquino disse que a meia verdade pode ser mais maligna que uma mentira. Uma meia-verdade não é equivalente a 50% da verdade. Na verdade, trata-se de 100% de uma verdade misturada e subordinada a 100% de uma mentira, resultando em uma corrupção da verdade especialmente perigosa.”
Com isto em mente, é preciso recuperar o que o político Honoré Mirabeau afirmou a respeito de Robespierre, logo depois que o ouviu falar pela primeira vez, no auge da Revolução Francesa: “É um homem muito perigoso, pois acredita em tudo o que diz”. No caso brasileiro, o mesmo pode se aplicar a todos que desejam impor no país, sem amarras, a sua imaginação apocalíptica.
*A reportagem gostaria de agradecer a ajuda do jornalista Marlos Ápyus.
[1] As três fontes procuradas pela reportagem (que deveria ter sido publicada pela revista Piauí) para confirmar os fatos aqui descritos – a intelectual católica, um ex-aluno de Antonio Donato e um jornalista envolvido nos meios religiosos – só aceitaram ter suas declarações publicadas neste texto sob a condição de permanecerem em anonimato. Sem se conhecerem entre si, foram unânimes em temer represálias dos alunos de Donato, além de, segundo uma delas, me afirmar que “pretendia ficar longe dessa loucura porque era coisa do Diabo”.
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By Martim Vasques da Cunha · Launched a year ago