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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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domingo, 18 de agosto de 2024

Fracasso de pressão por democracia pode abrir precedente para invasão da Venezuela? - Sean Burges (Interesse Nacional, Estadão)

 Opinião

Fracasso de pressão por democracia pode abrir precedente para invasão da Venezuela?

O regime de Maduro não vai deixar o poder, o que deixa Lula e seus contemporâneos nas Américas com uma pergunta terrível

Por Sean Burges

Interesse Nacional, Estadão, 17/08/2024

 

Para surpresa de ninguém, o autocrata-chefe venezuelano Nicolás Maduro manipulou a eleição presidencial de 28 de julho para permanecer no cargo. A condenação da maior parte do mundo foi igualmente previsível, mas também tocante em suas esperanças ingênuas de que a pressão internacional trará mudanças.

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O regime de Maduro não vai a lugar nenhum, o que deixa Lula e seus contemporâneos nas Américas com uma pergunta terrível: é mais eficaz simplesmente conter o Estado falido na Venezuela ou deve-se estabelecer um precedente com uma invasão pró-democracia no país?

Um retorno muito rápido à teoria nos ajuda a explicar por que o mundo está tão impotente para precipitar mudanças positivas na Venezuela.

América Latina da década de 1980 foi uma espécie de laboratório para investigar transições do autoritarismo para a democracia. Os estudiosos analisaram as diferentes transições extensivamente, resultando em inúmeros estudos que continuam a oferecer lições inestimáveis para os dias de hoje, mesmo que os formuladores de políticas pareçam relutantes em aventurar-se nas prateleiras empoeiradas da biblioteca para recuperá-los.

Talvez o livro mais perceptivo (e também curto) seja o volume quatro da série Transitions from Authoritarian Rule publicado em 1986. Popularmente conhecido como o Livro Verde pela cor da sua capa e subtitulado Tentative Conclusions About Uncertain Democracies, o argumento escrito por Guillermo O’Donnell e Philippe C. Schmitter baseou-se nos três outros volumes da coleção para explicar quais condições precisam estar presentes para que uma transição democrática comece e tenha sucesso.

Como explicam os autores, existem dois grupos principais em qualquer regime autoritário. Os “dictaduros”, ou linha-dura, estão profundamente comprometidos em manter o poder e resistirão a qualquer tentativa de removê-los do cargo.

Por outro lado, os “dictablandos”, ou moderados, acreditam que permanecer no cargo não é do interesse pessoal deles, nem do interesse militar/país, e, portanto, apoiam uma transição controlada para o governo democrático. O autoritarismo persiste quando os “dictaduros” mantêm a vantagem; a democratização ocorre quando os “dictablandos” estão em ascensão e conseguem convencer seus colegas a ceder o poder.

 

O trabalho de O’Donnell e Schmitter enfatiza dois problemas imediatos para aspirantes a democratas na Venezuela, bem como uma mudança estrutural crítica na economia venezuelana para outros países que defendem a abertura política lá.

Primeiro, quase não há mais “dictablandos” no regime venezuelano. Um quarto de século de governo chavista praticamente expurgou os liberais da administração bolivariana. Pior, aqueles democratas que restam nas instituições e na sociedade venezuelanas estão atualmente sendo capturados e encarcerados pelas tropas de choque de Maduro.

Em segundo lugar, supondo que um pequeno grupo de “dictablandos” tenha conseguido sobreviver dentro das Forças Armadas – e são as Forças Armadas que, em última análise, determinarão se o regime permanece ou cai – as circunstâncias atuais sugerem que eles não terão sucesso em convencer os “dictaduros” a suavizar sua posição. Afastar-se do poder traria, no mínimo, uma perda de privilégio e riqueza pessoal, o que, dado o estado atual da economia venezuelana, não é algo que a maioria dos atores racionais consideraria. Mais francamente, ceder o poder atualmente não tem nenhuma vantagem para Maduro e seus “dictaduros”.

A comunidade internacional conseguiu pressionar as ditaduras latino-americanas porque as elites econômicas domésticas que as sustentavam precisavam de acesso aos mercados regionais e globais. (...) Nada dessa lógica econômica se aplica à Venezuela hoje.

Como foi o caso nas décadas de 1970 e 1980, a comunidade internacional está ciente desse dilema. A pressão política externa foi um componente crítico para tirar do poder ditadores tão diversos quanto Pinochet no Chile e Stroessner no Paraguai. A pressão sobre os atores econômicos domésticos pela comunidade internacional traduziu-se em apelos locais das elites por mudança de regime em setores dependentes de vínculos externos.

O desafio hoje é que a alavancagem usada no século passado não está disponível na Venezuela de hoje.

A comunidade internacional conseguiu pressionar as ditaduras latino-americanas porque as elites econômicas domésticas que as sustentavam precisavam de acesso aos mercados regionais e globais. Mesmo no caso do regime criminoso de Stroessner no Paraguai, o acesso ao mercado brasileiro permaneceu crucial, permitindo que os oficiais em Brasília obrigassem a adoção de uma democracia formulaica em 1989 e um governo representativo mais substantivo ao longo da década de 1990. Nada dessa lógica econômica se aplica à Venezuela hoje.

A ditadura de Maduro é sustentada por uma teia complexa de atores militares, gangues criminosas e facções de grupos paramilitares estrangeiros, como ELN e Farc da Colômbia. São esses atores que controlam a produção e o tráfico de cocaína, a mineração e os últimos vestígios de uma indústria petrolífera em rápida desintegração, além de uma série de outras empresas criminosas domésticas.

A pressão econômica do tipo visto na década de 1980 simplesmente não se aplica a essas empreitadas criminosas, isolando os poderosos na Venezuela da condenação internacional e das sanções econômicas. Onde a pressão internacional poderia importar, como nas exportações de petróleo e ouro, existem muitas alternativas com agentes baseados em países como Rússia, Irã, Turquia e Emirados Árabes Unidos.

Isso deixa as vozes do hemisfério ocidental que clamam por democracia – sejam elas as vozes quietas nos bastidores da equipe de Lula ou o mais confrontador diretamente Boric no Chile – gritando ao vento.

 

Governos como o de Lula no Brasil, portanto, enfrentam uma decisão desconfortável: é mais barato conter a crise ou invadir? Pior, dada a criminalização maciça do Estado e da economia venezuelanos, a remoção de Maduro poderia empurrar o país para o abismo de um verdadeiro estado falido?

Para o futuro previsível, parece que levar a democratização à Venezuela exigirá uma intervenção direta e aberta de algum tipo. Não apenas essa abordagem é contrária à tradição histórica nas Américas, mas impor a democracia externamente também é um negócio caro, demorado e incerto. A questão então é se os custos da instabilidade política, outra fuga em massa, colapso econômico, criminalidade crescente e degradação ambiental acelerada na Venezuela subirão a ponto de a comunidade interamericana ser forçada a passar da retórica à ação concreta.

Por enquanto, uma invasão democratizante da Venezuela é uma opção que deve ser deixada na gaveta. Os esforços devem ser dedicados à criação de “dictablandos”, fornecendo garantias àqueles em posição de conduzir a mudança de regime interno de que sua riqueza e privilégio sobreviverão à democratização, mesmo que isso signifique viver seus dias em uma cobertura no Rio de Janeiro ou em um condomínio em Miami.

Esperamos que essas sejam as promessas que Celso Amorim está sussurrando aos seus colegas em Caracas. O que parece quase completamente certo é que a democracia permanece uma miragem distante para o povo da Venezuela.


Opinião por Sean Burges

Sean Burges é colunista da Interesse Nacional e professor de estudos globais e internacionais na Carleton University. É autor dos livros ‘Brazil in the World’ e ‘Brazilian Foreign Policy After the Cold War’. 

 

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Itamaraty sob pressão (e marginalizado) - Rubens Barbosa (Interesse Nacional) - Introdução: Paulo Roberto de Almeida,

O Itamaraty dominado pelos autoritários

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Notas sobre a submissão do Itamaraty ao poder político, com base na minha própria experiência de exercício da liberdade de pensamento. Postado como introdução a artigo de Rubens Barbosa sobre “O Itamaraty sob pressão” (Interesse Nacional, 16/08/2024) 

 

O Itamaraty esteve sob pressão durante o regime militar, que tinham lá suas obsessões contra o comunismo s até contra simples contrarianistas, como eu (fui fichado, ainda como terceiro secretário no meu primeiro ano na carreira, como “diplomata subversivo”). Depois recuperamos a liberdade de expressão e de fazer certas coisas na agenda externa.

Depois vieram os companheiros e sua diplomacia partidária de amizade e de “relações carnais” com os castristas e mais algumas ditaduras execráveis: por causa disso, e da minha maneira de dizer o que penso, passei TREZE ANOS E MEIO, ou seja, todo o primeiro reinado companheiro nos governos petistas, SEM QUALQUER CARGO na Secretaria de Estado, ostracismo que me levou a escrever alguma livros sobre a diplomacia lulopetista.

Depois de um novo período de acalmia, quando fui chamado finalmente a exercer um cargo não executivo no Itamaraty, vieram os aloprados do bolsolavismo diplomático, que me afastaram do cargo e me deixara sob as ordens de um Conselheiro na Divisão do Arquivo. Escrevi cinco livros sobre o bolsonarismo diplomático.

Assim foi a minha experiência no Itamaraty…

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4717, 17 agosto 2024, 1 p.

 

 Itamaraty sob pressão

Rubens Barbosa

Portal Interesse Nacional, 16/08/2024

Nos últimos 30 anos, o Itamaraty vem perdendo espaço no contexto dos sucessivos governos por razões de política interna e mudanças externas

Diplomatas protestam em defesa da valorização dos funcionários do Serviço Exterior Brasileiro (Foto: ADB/Instagram)

Está muito difícil para o Ministério das Relações Exteriores desempenhar suas competências constitucionais de assessorar o presidente da República e de ser a voz do Brasil no cenário internacional.

Nos últimos 30 anos, o Itamaraty vem perdendo espaço no contexto dos sucessivos governos por razões de política interna e mudanças externas. Internamente, emergiu uma tecnocracia que passou a representar interesses setoriais no exterior, como a área econômica, o setor agrícola, o de defesa e o de polícia. Externamente, o mundo se transformou pela rapidez da informação, a facilidade dos contatos entre chefes de Estado com conversas e encontros frequentes. Nos últimos 15 anos, um novo elemento contribuiu para o esvaziamento do Itamaraty: a politização e a partidarização da política externa e a atração de lealdades ao presidente, ao ministro e às ideias por eles defendidas. Exemplos recentes desse esvaziamento político são a retirada da Camex, da Apex, a dualidade de funções entre a assessoria presidencial e o ministro do exterior. 

‘A credibilidade do Itamaraty e da solidez da política externa na defesa do interesse nacional ficaram afetadas por pronunciamentos presidenciais neste e no governo anterior’

A credibilidade do Itamaraty e da solidez da política externa na defesa do interesse nacional ficaram afetadas por pronunciamentos presidenciais neste e no governo anterior. No governo atual, as posições oficiais expressas pela chancelaria em relação à guerra na Ucrânia, a Gaza e sobre a eleição na Venezuela foram contraditadas por manifestações presidenciais.

A duplicidade de interlocutores com o presidente da República entre o Itamaraty e a assessoria internacional da presidência, estão criando dissonâncias sobre assuntos que colocam em questão o interesse nacional. O caso mais recente é a vocalização da posição oficial do governo brasileiro no tocante à Venezuela ou o silêncio quanto às violações da democracia e dos direitos humanos. O último exemplo, nesta semana, foi a opinião do assessor internacional da presidência sobre a realização de novas eleições na Venezuela, em vista da contestação dos resultados pela oposição, logo contraditada pelo Itamaraty ao divulgar que a posição do governo não havia mudado e que o Brasil continuava no aguardo da divulgação das atas. Sem mencionar a nota do PT aceitando o resultado das urnas e se congratulando com Maduro pela eleição.

‘As interferências de outros membros do governo nos assuntos de competência do MRE se multiplicam’

As interferências de outros membros do governo nos assuntos de competência do MRE se multiplicam. A disputa pela liderança da COP30 entre o Itamaraty, que normalmente deveria assumir esse papel, e o Ministério do Meio Ambiente e, nesta semana, o encontro entre o chefe da Casa Civil e o embaixador da China para discutir a vinda ao Brasil do presidente chines Xi Jinping são exemplos de fatos que contribuem para o esvaziamento da Chancelaria. A assessoria internacional do Planalto prevaleceu sobre o Itamaraty no tocante à ampliação do Brics e o Ministério do Planejamento discute e propõe políticas sobre a integração física regional. 

É evidente a perda de espaço do Itamaraty nas secretarias internacionais dos ministérios, a descoordenada ação subnacional, a marginalização dos embaixadores nas reuniões em nível de chefe de Estado, a perda da coordenação das negociações internas nas áreas de comércio exterior, inclusive no tocante ao Mercosul, ao meio ambiente e às agendas multilaterais (direitos humanos, energia, costumes, gênero e outras).

‘O esvaziamento do Itamaraty vem ao mesmo tempo em que aumenta a insatisfação dos diplomatas com os salários e com o fluxo das promoções’

O esvaziamento do Itamaraty vem ao mesmo tempo em que aumenta a insatisfação dos diplomatas com os salários e com o fluxo das promoções. A criação de um sindicato dos diplomatas, nos últimos anos, criou um fórum de coordenação para a defesa dos interesses burocráticos dos funcionários diplomáticos como nunca houve no passado. Em assembleia nesta semana, o sindicato votou a favor de indicativo de greve, com estado de mobilização permanente pela primeira vez na história do Palácio do Itamaraty. A principal motivação para o movimento foi uma contraproposta de reajuste salarial apresentada pelo Ministério da Gestão e Inovação (MGI), considerada insuficiente pelos diplomatas. A categoria considerou a oferta insuficiente para compensar as perdas inflacionárias, especialmente para diplomatas nas classes iniciais e intermediárias. 

Diferentemente de outras carreiras públicas, nas quais os servidores podem chegar ao topo em pouco mais de dez anos, diplomatas costumam levar até 30 anos para alcançar o nível máximo. Com o aumento da idade de aposentadoria para 75 anos e uma estrutura engessada, com vagas limitadas por classe, um número significativo de servidores fica estagnado nas classes iniciais ou intermediárias. A decisão pela greve reflete a frustração das gerações mais recentes do Itamaraty com a falta de perspectivas de desenvolvimento profissional, “de valorização e de reconhecimento da importância da carreira”, segundo a entidade, “em um momento que o Brasil retoma as ambições na política externa, sediando importantes eventos como as cúpulas do G20, do Brics e a COP30”. Canções de protesto e carros de som em frente ao Itamaraty colocam as reivindicações no mesmo nível das demais carreiras da burocracia na Esplanada dos Ministérios.

‘O Itamaraty tem de ser revigorado e deveria recuperar sua capacidade de interpretação do sentido das mudanças globais e de sua competência para articulação e coordenação interna de todas as ações do governo no exterior’

Ao contrário do que está acontecendo agora, o Itamaraty tem de ser revigorado – inclusive para melhor defender os interesses dos funcionários diplomáticos – e deveria recuperar sua capacidade de interpretação do sentido das mudanças globais e de sua competência para articulação e coordenação interna de todas as ações do governo no exterior.Como instituição de Estado, o Ministério das Relações Exteriores deve ser preservado para a defesa do interesse nacional acima de princípios ideológicos ou partidários. Os governos de turno não podem improvisar na política externa.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Surgimento de uma nova revista: Interesse Nacional - Embaixador Rubens Barbosa (2008) - Paulo Roberto de Almeida

1875. “Interesse Nacional: uma nova revista”, Brasília, 13 de abril de 2008, 2 p. Resenha da nova revista lançada pelo Embaixador Rubens Barbosa. Desafios do Desenvolvimento (ano 5, n. 43, maio 2008, p. 62). Relação de Publicados n. 835.


 Interesse Nacional: uma nova revista


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 13 de abril de 2008, 2 p. 

Resenha da revista lançada pelo Embaixador Rubens Barbosa: Interesse Nacional

Desafios do Desenvolvimento (ano 5, n. 43, maio 2008, p. 62). 

Relação de Publicados n. 835.

 

 

Em países marcados pela luta entre partidos, com agendas cheias de reformas inacabadas, definições do que seja, exatamente, o interesse nacional são tão diversas quanto os grupos que disputam o poder e buscam mobilizar o apoio da sociedade para suas plataformas nem sempre consensuais para todas as classes e setores nacionais. 

Assim, o surgimento de uma revista que pretende, justamente, discutir questões relevantes, sem necessariamente partir de uma definição pré-concebida do que seja o interesse nacional, deve ser saudada como um bem-vindo aporte intelectual ao debate público em torno das grandes questões da agenda nacional. Os editores da nova revista, Rubens Antonio Barbosa e Sérgio Fausto, dizem, na introdução que a revista não defenderá uma única visão, “não promoverá convergências de opiniões”. “Seu único compromisso é com o debate qualificado de idéias e com a relevância das questões, na interseção entre assuntos domésticos e assuntos internacionais”. 

Contando com um conselho editorial de 24 membros, de esquerda e de centro (já que ninguém, neste país, se reconhece como de direita), a revista explicita, em seu primeiro número, um problema atual: Rubens Barbosa dá a partida criticando a política externa para a América do Sul, focando a questão do ingresso da Venezuela no Mercosul. O tema é em seguida defendido pelo assessor de assuntos internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, que justifica a “opção sul-americana” da atual diplomacia presidencial.

Comparecem a seguir dois defensores de visões opostas sobre o que constitui o interesse nacional na atualidade brasileira: Gustavo Franco trata da inserção externa e do desenvolvimento brasileiro, registrando o que ele chama de “consenso envergonhado”, isto é, a adesão dos atuais mandatários – não às idéias, mas – às práticas econômicas dos seus antecessores, responsáveis pela estabilização do Plano Real e pela abertura da economia. Luiz Gonzaga Belluzzo ataca, por sua vez, o que ele chama de “mitos do consenso liberal”, destacando a “mão visível” do Estado na competição capitalista. Na verdade, ele mesmo reconhece que as antigas oposições excludentes – Estado vs. mercado, integração internacional vs. políticas nacionais – “não são perspectivas incompatíveis” e conclama à superação de “falsas dicotomias”, em prol de uma “nova relação entre o Estado e o setor privado em termos mais favoráveis ao desenvolvimento do país”. 

O embaixador Everton Vargas, encarregado de temas ambientais no Itamaraty, apresenta a visão oficial sobre as negociações em torno das mudanças climáticas, mas este primeiro número não traz nenhuma posição alternativa sobre os desafios a serem ainda vencidos para que o chamado “desenvolvimento sustentável” deixe o campo da retórica diplomática. O professor de direito Joaquim Falcão aborda a difícil questão da reforma do judiciário, destacando o que ele designa de “uso patológico” do Judiciário pelo Executivo, com uma quase completa estatização da pauta do primeiro pelo segundo poder. Ele demonstra como grande parte dos recursos e agravos que chegam ao Supremo se referem a casos envolvendo servidores públicos e militares. Isto se dá, segundo ele, porque o Brasil “é um dos únicos países do Ocidente – se não o único – onde a Constituição trata do servidor público em tantos dispositivos – são 62 (!), entre títulos, artigos, parágrafos, incisos e alíneas...” Em outros países, se trata de matéria infraconstitucional. 

O ex-diretor da Radiobrás Eugênio Bucci discute a razão de ser das emissoras públicas, perguntando logo de início se o Brasil precisa disso. Ele considera que a TV pública só se justifica se for capaz de melhorar os processos democráticos, a geração de cultura, a diversidade, a inclusão social, e se elevar o nível de fundamentação das decisões políticas tomadas direta ou indiretamente pelos cidadãos. O último artigo, que aliás deveria ser o primeiro em qualidade e importância, trata do fantasma da “internacionalização do ensino superior”, recentemente atacada por ninguém menos que o secretário de ensino superior do MEC. Cláudio de Moura Castro demonstra que se está fazendo barulho por nada, que esse “perigo” é inexistente ou irrisório, mas que se ele existisse, de verdade, seria um bem-vindo impulso à maior inserção externa das nossas instituições do terceiro ciclo. O perigo maior, na verdade, é o isolacionismo no qual vivem a maior parte das universidades: “o Brasil se encolhe e teme as influências alienígenas no seu ensino”. O que de melhor ocorreu com o nosso ensino superior, lembra ele, foi a “horda de mestres e doutores que retornaram das melhores universidades dos Estados Unidos e da Europa”, trazendo novos ares, metodologias inovadoras, reforçando a pesquisa em pós-graduação. O problema é que essa abertura não alcançou a graduação: “Precisamos ventilar as idéias mofadas que esmagam nossos cursos de graduação. Nesse sentido, a internacionalização é mais do que bem-vinda. O influxo de experimentos e idéias de outros países poderia ter um papel relevante para arejar nosso ensino”. Talvez a UNE não concorde...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 13 de abril de 2008, 2 p. 

Relação de Publicados n. 835. 

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

O país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos - Sergio Florencio (Interesse Nacional)

 O país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos.

 

Sergio Florencio, Interesse Nacional, 29/01/2024

 

O ciclo virtuoso da transição civilizada

Nos últimos trinta anos o Brasil tem sido o país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos. No início do século XXI soubemos aproveitar uma grande oportunidade. Vivemos o virtuoso reformismo econômico e social assegurado pela “transição civilizada” FHC-Lula. O tripé macroeconômico de FHC ( lei de responsabilidade fiscal, metas de inflação e câmbio flutuante) assegurou estabilidade e modernização da economia, seguidas pelo aprofundamento de políticas sociais exitosas do primeiro mandato de Lula ( Bolsa Família). 


O desvirtuamento do bom caminho 

Esse ciclo virtuoso começou a se desvirtuar no meio do segundo mandato de Lula e se rompeu definitivamente com Dilma. Foi a primeira grande oportunidade perdida dos últimos trinta anos.  Mantega estendeu, para muito além do razoável, a política contracíclica, destinada a enfrentar, a curto prazo, a crise econômica internacional de 2008. O consequente descontrole das contas públicas e a turbulenta relação com o Congresso terminaram por cobrar seu preço político (impeachment) e econômico (violenta  queda de 7% do PIB no biênio 2015-2016). 

As energias desperdiçadas e os erros esquecidos. A Petrobrás endividada.

Além das oportunidades perdidas, o Brasil das últimas três décadas foi também o país das energias desperdiçadas e  dos erros esquecidos. O setor de petróleo e gás é revelador dessa trajetória. Em 1979, ano da Revolução Iraniana e do segundo choque do petróleo, o Brasil produzia apenas 15% da demanda doméstica de petróleo. Mas importantes investimentos no setor ao longo das décadas de 80 e 90 fizeram com que em 2006 o país alcançasse a autossuficiência em petróleo. Para isso, contribuíram de forma significativa as reformas realizadas no governo FHC: o fim do monopólio da Petrobrás; a abertura do setor; e a internacionalização da empresa, com o lançamento de ações na bolsa de valores de Nova York.  

Essa modernização ocorreu tendo como marco regulatório o modelo exploratório de concessão. Entretanto, em 2006, com o anúncio da descoberta das reservas extraordinárias do pré-sal, o governo Lula iniciou a transição para o modelo de partilha. No regime de concessão, a empresa concessionária é dona de todo o petróleo que produz, enquanto na partilha o dono é o Estado. 

O primeiro problema da mudança do modelo foi a inércia. Entre o anúncio da descoberta do pré-sal e o primeiro leilão, no campo de Libra, em 2013, se passaram longos sete anos, com elevado prejuízo para o país. Além disso, no novo marco regulatório, a Petrobrás assumiu a condição de única operadora do pré-sal, o que desestimulou a participação de empresas estrangeiras nos leilões e obrigou a Petrobrás a explorar campos com menor rentabilidade. 

 Dois outros fatores contribuíram para agravar os vultosos prejuízos da Petrobrás: o congelamento de preços dos combustíveis, destinado a conter a inflação; e os desastrosos projetos de construção da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, e do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – COMPERJ.  

As perdas resultantes da política de congelamento dos preços da gasolina agigantaram a dívida da Petrobrás, que atingiu seu pico de R$ 507 bilhões no terceiro trimestre de 2015. A título comparativo, a empresa registrou oficialmente perdas resultantes de corrupção no valor de R$6,19 bilhões, no período 2004-2012.

O COMPERJ, apesar de gastos elevados, praticamente nada avançou e o desperdício com a refinaria Abreu e Lima foi exponencial. Sua construção foi orçada em US$ 2,3 bilhões em 2005. Quatro anos depois esse valor se elevou para US$ 13 bilhões, e em 2015 o custo se aproximava de US$ 20 bilhões, quando as obras foram interrompidas, tendo sido concluída apenas metade da refinaria. 

Os projetos fracassados da refinaria de Abreu e Lima e do COMPERJ deverão ser retomados no atual governo, numa demonstração de que, além das oportunidades perdidas, o Brasil é também o país dos erros esquecidos.

 

O anunciado governo da união e da reconstrução perde seu rumo

 Com a vitória da extrema direita bolsonarista em 2018, o país despertou da ilusão generalizada de ter instituições sólidas e de ser uma democracia consolidada. Ao contrário, essa estava ameaçada como em 1964, mas  com uma engenharia de desconstrução política distinta. Dispensava os tanques na rua, os militares no primeiro plano e, por meio da falência dos órgãos vitais das instituições, planejava a morte da  democracia. Mas Bolsonaro não foi reeleito, a democracia se salvou, e a vitória de Lula se dava de forma distinta dos pleitos anteriores.  Repetia o apoio tradicional das regiões mais pobres (Nordeste e Norte), mas resultava  da combinação de dois ingredientes inéditos: o anti- bolsonarismo resultante da polarização/calcificação política; e o apoio de variadas correntes liberais democratas, temerosas da morte da democracia. 

Esses dois ingredientes na vitória de Lula criavam a  oportunidade de uma união nacional, destinada a superar a divisão entre  a extrema direita bolsonarista e a esquerda lulista.  Essa união nacional resultaria da aproximação entre a esquerda intervencionista e o centro liberal democrata. Esse cenário, obviamente difícil, parecia interessar não só ao centro – órfão político com o virtual desaparecimento do PSDB- mas também à esquerda, que precisava ampliar seus apoios, uma vez que a vitória eleitoral de Lula sobre Bolsonaro  foi inferior a 2%. 

Mas esse cenário virtuoso de união nacional foi jogado fora. Mais uma vez, o Brasil se revelou o país das oportunidades perdidas. Logo após a eleição, Lula anunciou seu projeto de união e reconstrução do país, mas seguiu caminhos distantes de tal propósito. Em lugar de se aproximar do centro – decisivo na sua apertada vitória sobre Bolsonaro - Lula preferiu privilegiar o PT raiz. A retórica e a prática do novo governo o distanciaram do centro, com base na premissa de que a polarização beneficiaria o PT, porque repetiria o confronto lulismo  versus bolsonarismo(mesmo com Bolsonaro inelegível). Nessa ótica equivocada, qualquer gesto em direção ao centro deveria ser evitado, pois era visto como jogo de soma zero – o ganho para o centro equivaleria a perda  da esquerda. 

 

A política externa virtuosa de Lula I e II em contraste com os excessos de Lula III

A política externa é outro exemplo de oportunidades perdidas. A atuação internacional de Bolsonaro foi uma desastrosa sucessão de graves equívocos que aproximaram o país da condição de pária no mundo. O propósito declarado era desconstruir princípios e paradigmas que orientaram a diplomacia brasileira. Nesse contexto caótico, a eleição de Lula provocou profundo alívio e grandes esperanças no mundo.  Lula assumiu sob signo “O Brasil está de volta”. Apesar desse ambiente de calorosa receptividade, justificado pelo capital de credibilidade internacional construído ao longo dos dois mandatos anteriores de Lula, a política externa do atual governo vem contrastando com o padrão histórico de defesa profissional dos interesses nacionais.  

O Brasil é uma potência regional com interesses globais. Temos condições de influenciar os rumos de nossa região, mas não dispomos de capacidade militar, de poder político, nem de peso econômico capaz de mudar os grandes acontecimentos globais. Avaliar com realismo o lugar do Brasil no mundo é condição necessária para uma política externa destinada à defesa do interesse nacional e não à busca de protagonismo internacional. 

O atual governo está falhando nesse processo. As declarações de Lula sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia apoiaram, de forma irrefletida e contrária ao direito internacional, a agressão russa ao território ucraniano. Com hesitação, tentamos corrigir esse erro, sempre com a aspiração de influir num conflito que vai muito além de nossas forças. Repetiu o Presidente esse erro de avaliação na guerra Hamas-Israel, ao buscar repatriar os brasileiros na Faixa de Gaza recorrendo ao Presidente Raizi do Irã, em óbvio erro tático. 

A barbárie do Hamas ao invadir kibutzes em território israelenses, executar com requintes de crueldade 1200 cidadãos mereceu ampla condenação internacional. A barbárie israelense, mais devastadora ainda, com a tragédia humanitária do saldo de mais de 20 mil palestinos, cerca de 1% da população da Faixa de Gaza, e 70% da infraestrutura, merece condenação mais veemente ainda. A diplomacia brasileira, na presidência do CSNU agiu de forma equilibrada e coerente com princípios e paradigmas de nossa política externa. Entretanto, uma vez mais, a retórica presidencial, ao atribuir aos bárbaros crimes de guerra israelenses a controvertida classificação de genocídio, desvirtua nossa tradição diplomática. 

Na nossa região, onde temos um histórico de equilíbrio construtivo no convívio com mais de dez vizinhos, o saldo do atual governo é muito negativo, por apoiar de forma recorrente os regimes autoritários de Maduro e Daniel Ortega, e ao criticar, com arrogância, Daniel Boric, o representante de uma esquerda moderna na região. 

No plano global, nosso alinhamento quase automático a posturas e aspirações da China no âmbito do BRICS ampliado, composto em sua maioria por regimes antidemocráticos, nos distancia dos países que defendem  a democracia liberal. Nossa postura reflete um antiamericanismo pouco compatível com os interesses nacionais. 

Em síntese, os últimos trinta anos de nossa história revelam, na economia, na política e nas relações internacionais, o padrão de uma nação com enormes potencialidades. Mas, ao mesmo tempo, o país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos. 

 

Sergio Abreu e Lima Florencio

Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 2024. 


quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

A nossa extrema-direita – e as deles - Demétrio Magnoli (Interesse Nacional)

Uma única correção a este artigo de Demetrio Magnoli: o artigo de Ernesto Araujo, Trump e o Ocidente”. Cadernos de Política Exterior, v. 3, n. 6, IPRI/FUNAG, Brasília, é de 2017, não de 2018. Eu era editor dos Cadernos nessa época, mas retirei o meu nome do expediente, não por causa da bizarrice, mas de outra questão.

Paulo Roberto de Almeida


A nossa extrema-direita – e as deles

Demetrio Magnoli

Interesse Nacional, janeiro de 2024

 

 Demétrio Magnoli é sociólogo, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, colunista dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, comentarista internacional na GloboNews.

 

 

O triunfo eleitoral de Donald Trump, em 2016, ativou os alarmes: as democracias ocidentais enfrentavam o desafio da ascensão do populismo de direita. Na Europa, partidos populistas de direita obtiveram, em 2018, perto de 15% dos votos totais, contra menos de 5% em 1998 – e alguns deles tinham forte presença nos gabinetes de governo. Por isso, naquele ano, a vitória do extremista Jair Bolsonaro parecia significar a inserção do Brasil numa tendência mais geral.

Sem surpresa, fixou-se uma narrativa predominante que inscreve a extrema-direita bolsonarista no panorama internacional do avanço da direita populista. O argumento deve ser divido em duas teses distintas: 1) o bolsonarismo articula-se politicamente com correntes internacionais da extrema-direita; 2) as raízes ideológicas do bolsonarismo são similares às das principais correntes internacionais da extrema-direita.

A primeira tese é factualmente comprovável – mas tende a superestimar a relevância dessas articulações. A segunda tese é basicamente equivocada: o bolsonarismo não é mera expressão nacional das ideias que movem o populismo de direita nos EUA ou na Europa.

 Deus e Pátria

“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. A invocação da fé religiosa pontilhou os discursos oficiais do governo Bolsonaro, do presidente à ministra dos Direitos Humanos, passando por Ernesto Araújo, seu primeiro ministro das Relações Exteriores. Paralelamente, o governo insistiu nos ícones da nacionalidade. Como esquecer a frustrada iniciativa do ministro da Educação de solicitar às escolas vídeos de professores e alunos entoando o hino nacional, durante o hasteamento do auriverde pendão da esperança? Ou a conclamação do porta-voz presidencial, general Otávio Rêgo Barros, para “toda a sociedade prostrar-se diante da bandeira ao menos uma vez por semana”?

É um equívoco transferir a ladainha carola e “nacionalisteira” para o arquivo morto dos anacronismos. Há um sentido mais profundo no recurso exaustivo a tais referências: nos EUA, primeiro, e no Brasil, depois, o populismo de direita encontrou uma refutação eficaz do multiculturalismo.

Há décadas, as elites políticas liberais e de esquerda substituíram o discurso universalista (cidadãos) pelo discurso multiculturalista (minorias). A diferença converteu-se em valor supremo, enquanto dissolvia-se a aspiração à igualdade (de direitos, de oportunidades). A nação deu lugar a uma miríade de grupos singulares (negros, mulheres, gays). A ideia de direitos universais (educação, saúde, previdência, transportes) deu lugar à chamada discriminação positiva (leis e regras específicas, cotas de gênero ou de “raça”). Deus e a pátria fazem seu caminho no espaço aberto por essa abdicação histórica.

A estratégia manipula poderosos signos de igualdade. O “Brasil acima de tudo” cumpre dupla função. Na sua face oculta, tenta identificar a pátria ao governo, um expediente autoritário clássico. Mas, na sua face pública, veicula uma mensagem inclusiva: todos – ricos e pobres, homens e mulheres, “brancos” e “negros” – pertencem igualmente à comunidade nacional. O nacionalismo da direita populista carrega as sementes da xenofobia (diante do imigrante) e da intolerância política (diante das oposições). Ao mesmo tempo, oferece um abrangente manto comum – e, com ele, a promessa de resgate dos fracos e humilhados.

As religiões monoteístas deitaram raízes pois ofereciam uma base pétrea de legitimidade aos governantes (um Deus no céu, um imperador na Terra) e, simultaneamente, a esperança de justiça aos desamparados (todos são filhos do mesmo Deus). O “Deus acima de todos” também desempenha dois papeis. Numa ponta, corrói a laicidade estatal e propicia o acesso das igrejas à mesa do poder. Na outra, apela ao sentido popular de igualdade: nenhuma ovelha do rebanho será deixada para trás.

Deus, a bandeira e o hino são chaves narrativas compartilhas por Trump, nos EUA, Vladimir Putin, na Rússia, Recep Erdogan, na Turquia, Viktor Orbán, na Hungria, e a coalizão Meloni/Salvini, na Itália. Nesse plano mais genérico, Bolsonaro participa do movimento geral da direita populista.

Num artigo de ressonâncias místicas, publicado em novembro de 2018, Ernesto Araújo encontrou no “Deus de Trump” o motor da história.[1] O “pan-nacionalismo”, a identidade cristã, Spengler e a xenofobia unem-se como escudos contra o “cosmopolitismo” e o “liberalismo”. Três meses depois, Eduardo Bolsonaro tornou-se o “representante na América Latina” do movimento de partidos populistas de direita articulado por Steve Bannon. Era o ensaio de uma “Internacional dos nacionalistas”, uma contradição em termos fadada ao insucesso.

A geringoça andou um pouco. Na visita presidencial aos EUA, em março de 2019, a comitiva brasileira ofereceu um jantar que teve Bannon como convidado especial. Depois, em abril, Eduardo Bolsonaro fez um giro europeu de encontros com líderes da direita nacionalista, iniciado por uma visita ao então co-primeiro-ministro italiano Matteo Salvini. Mas o Movimento de Bannon logo desandou, esbarrando nas divergências entre os líderes da direita europeus e na resistência de vários deles a se submeterem ao ideólogo americano.

Sob o patrocínio de Trump e de Orbán, no lugar da “Internacional dos nacionalistas”, nasceu uma “Internacional cristã”: a International Religious Freedom (Belief Alliance).[2] Sob o manto da liberdade de crença, a aliança reuniu, além das lideranças políticas cristãs que a conceberam, correntes religiosas conservadoras hindus, muçulmanas e judaicas. Araújo participou de sua estruturação, em 2020.[3] Entretanto, suas atividades só deslancharam após a demissão do ministro, no início do ano seguinte. A articulação contou com a entusiasmada adesão do Brasil – mas basicamente a cargo de Damares Alves, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, com discreta participação do Itamaraty.[4]

O “Deus de Trump” produziu escassos frutos, do ponto de vista dos alinhamentos geopolíticos internacionais. A política externa bolsonarista, enunciada aos brados por Araújo, praticamente limitou-se a visitas, encontros e conferências sectárias, além de frequentes votos antiliberais em fóruns internacionais. Muita fumaça, pouco fogo.

 Ideia fora de lugar

O bolsonarismo foi descrito como expressão brasileira da onda nacionalista e populista que varre o Ocidente. No fundo, porém, o bolsonarismo é uma exceção.

A poesia épica do populismo de direita nasce na gramática do medo. Nos EUA e na Europa, a angústia, a insegurança diante do futuro alimentou a onda populista em curso, que ainda não dá sinais consistentes de retrocesso. Nesse sentido genérico, o Brasil acompanhou a tendência internacional. Bolsonaro foi catapultado ao Planalto por eleitores temerosos, inseguros, indignados. Mas, por aqui, os eleitores não foram seduzidos pela narrativa ideológica do bolsonarismo. O voto negativo, não a adesão política, definiu o triunfo de um líder carente de bases sociais sólidas. Aí reside nossa excepcionalidade.

O grande tropeço da globalização, iniciado em 2008, deflagrou a ascensão do populismo nacionalista. Trump venceu no Colégio Eleitoral apoiando-se na baixa classe média branca submetida à corrosão da indústria tradicional. A crise do euro, seguida por longos programas de austeridade econômica, inflou o balão dos partidos da nova direita europeia. Dos megafones de Trump, Salvini, Le Pen, Farage, Orbán e tantos outros emanaram as conclamações antiliberais do nativismo, da xenofobia e do protecionismo.

No Brasil, Bolsonaro também emergiu do caos: a depressão econômica armada pelas estratégias fiscais do lulo-dilmismo. A campanha bolsonarista apertou as teclas sensíveis da corrupção e da criminalidade, mas o triunfo eleitoral derivou do colapso catastrófico do sistema político. Lá fora, uma corrente histórica profunda impulsiona a nova direita nacionalista. Aqui, um cruzamento de circunstâncias fortuitas colocou um político obscuro na cadeira presidencial.

A extrema-direita brasileira é uma ideia fora de lugar: a imitação sem disfarce de um discurso elaborado nos EUA ao longo de mais de dois séculos. Lá, a noção de liberdade foi moldada em oposição aos conceitos de democracia e igualdade perante a lei. A “liberdade dos estados” funcionou como oposição à existência de uma Constituição nacional, depois como alicerce do sistema escravista e, finalmente, como moldura das leis de segregação racial. Hoje, reciclada, a reivindicação fundamenta as legislações destinadas a restringir o acesso às urnas em estados controlados pelos republicanos.

No Brasil, uma semana antes do 7 de setembro de 2021, a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) publicou o manifesto do bolsonarismo.[5] A Fiesp e a Febraban haviam ensaiado discurso da democracia, curiosamente definida como “harmonia entre os Poderes”. Em contraponto, a Fiemg intitulou sua declaração com a senha de combate da extrema-direita: Manifesto pela Liberdade.

Um centro de comando único, uma espécie de Comitê Central, esculpiu os discursos do bolsonarismo. Assim como o texto da Fiemg, as bandeiras dos atos bolsonaristas daquele 7 de setembro sofreram uma padronização, organizando-se em torno da senha principal. Tudo – os ataques ao STF, as injúrias contra governadores e parlamentares, a contestação das urnas eletrônicas – foi recoberto por uma mão de tinta fresca que exibia a palavra liberdade.

“Assistimos a uma sequência de posicionamentos do Poder Judiciário que acabam por tangenciar, de forma perigosa, o cerceamento à liberdade de expressão no país”, escreveram os industriais mineiros para condenar o inquérito das fake news – e, de passagem, oferecer um apoio implícito ao pedido de impeachment do juiz Alexandre de Moraes. Liberdade, desdobrada em “liberdade de expressão” e “liberdades individuais”, era esta a mensagem.

A senha emergiu, igualmente, em textos assinados pelo ministro da Defesa, Braga Netto, um expoente da agitação bolsonarista entre os militares. Na nota de repúdio às declarações do senador Omar Aziz (7 de julho), o general proclamou que “as Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”.[6] Duas semanas depois, em nota de desmentido de ameaças de golpe (22 de julho), expressou o compromisso das Forças Armadas com “a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro”.[7]

A Constituição atribui às Forças Armadas as missões de “defesa da Pátria”, “garantia dos poderes constitucionais” e, por iniciativa de um deles, proteção “da lei e da ordem”. A “liberdade do povo brasileiro” era uma invenção (in)constitucional de Braga Netto –  ou melhor, dos mestres ideológicos que o controlavam. Mas, aqui, o que importa é registrar a consistência do discurso bolsonarista.

Liberdade – não democracia. A opção tem significado e implicações. O conteúdo da liberdade depende do ponto de vista do sujeito do discurso. Democracia, porém, tem conteúdo objetivo: o sistema de governo baseado na vontade da maioria filtrada por leis e instituições que limitam o poder dos governantes, asseguram os interesses permanentes da sociedade e protegem os direitos da minoria. Fora da democracia, liberdade é privilégio de uma minoria que tem poder. Os arautos bolsonaristas da “liberdade” são os saudosistas da ditadura militar que acalentaram o sonho de um golpe contra as liberdades democráticas.

 Aliança profana

Paulo Guedes, o superministro da Economia,  definiu o governo Bolsonaro como uma aliança entre conservadores e liberais.[8] Era, claro, um álibi destinado a justificar sua própria adesão ao presidente extremista – mas também um duplo equívoco conceitual. A extrema-direita bolsonarista não é conservadora, mas reacionária: defende uma ruptura com a democracia e um retrocesso à “idade de ouro” da ditadura militar. Já o liberalismo econômico do governo resumia-se a uma fantasia destinada a recobrir políticas fiscais populistas que desmoralizaram o teto de gastos e tentativas de subordinar a Petrobras às necessidades reeleitorais do presidente.

A “santa aliança” de Guedes deflagrou um debate público sobre as relações entre liberalismo e democracia. “É natural que a Fiesp assine um manifesto em defesa da democracia, já que não existe liberalismo, economia de mercado ou propriedade privada, valores tão caros à entidade e ao setor industrial, sem que exista segurança jurídica, cujo pilar essencial é a democracia e o Estado de Direito”, declarou Josué Gomes da Silva, presidente da entidade empresarial paulista no início da campanha eleitoral de 2022.[9]

O manifesto cumpria um papel positivo, mas a justificativa continha uma imprecisão conceitual: o liberalismo não precisa, necessariamente, da democracia.

O liberalismo tomou de assalto o Ocidente no século XIX, antes do advento das democracias contemporâneas. Os princípios liberais clássicos – os direitos individuais, as liberdades civis e políticas, o secularismo, o livre mercado – estabeleceram-se em regimes políticos aristocráticos ou oligárquicos. A democracia chegou depois.

Democracia supõe o direito universal de voto, algo que só se difundiu ao longo do século XX. Os sistemas pioneiros de governo liberais baseavam-se no consentimento de uma minoria que gozava do privilégio de plenos direitos políticos. Durante um longo período, massas de pobres eram excluídas do voto por muralhas ligadas à propriedade ou à renda e as mulheres simplesmente não tinham direito de voto.

O rótulo democracia liberal indica uma ruptura. O liberalismo sofreu uma revolução interna para adaptar-se ao advento da democracia de massas. Nesse passo, tornou-se menos “puro” na esfera econômica, pois teve que admitir as intervenções estatais destinadas a combater a pobreza extrema e as mais clamorosas desigualdades sociais.

Nem todos curvaram-se aos novos tempos. Uma corrente de economistas liberais, aferrada ao dogma da absoluta liberdade de mercado, enxergou na democracia liberal um malévolo disfarce do socialismo. Dessa crença nasceu uma atração por regimes autoritários dispostos a conduzir programas de radical liberalização econômica.

No ponto de partida, o pensamento liberal enxergava as liberdades políticas e econômicas como partes indissociáveis de uma mesma doutrina. Milton Friedman, pai-fundador da Escola de Chicago, desafiou essa tradição ao operar como conselheiro do ditador chileno Augusto Pinochet e do regime totalitário chinês. A liberdade, imaginava Friedman, floresce na esfera econômica, alastrando-se mais tarde pela esfera política.

A dissociação teórica entre as duas esferas propiciou um álibi político à corrente de liberais que enxergam a democracia como valor secundário ou mesmo como obstáculo à promoção irrestrita da liberdade de mercado. A adesão de significativa parcela do empresariado brasileiro à candidatura de Bolsonaro em 2018 encontra aí uma base ideológica.

Guedes falou em “democracia responsável”, conectando-se a uma extensa tradição autoritária de adjetivação da democracia.[10] Nesse passo, reuniu-se com personagens como Oliveira Salazar (“democracia orgânica”), Erdogan (“democracia conservadora”) e Putin (“democracia soberana”). Os falsos liberais brasileiros, sempre dispostos a conciliar com o populismo econômico, aliaram-se aos reacionários saudosistas da ditadura militar. A aliança profana entre Bolsonaro e Guedes ilumina a singularidade brasileira: nos EUA e na Europa, a direita nacionalista e a extrema-direita abominam o liberalismo.

A atual direita republicana nos EUA, ainda liderada por Trump, deita raízes no nativismo, na xenofobia e no isolacionismo. Contudo, no plano econômico, prega o protecionismo comercial e aponta a globalização (às vezes, nas formas da China e do México) como responsável pelas agruras que afligem o “americano esquecido”.

Os partidos da direita populista europeia que ascenderam recentemente deitam raízes em correntes profundas das histórias nacionais. A Reunião Nacional francesa deriva tanto da nostalgia do regime colaboracionista de Vichy quanto do neocolonialismo poujadista. O Vox, na Espanha, nutre-se da memória do franquismo. O Irmãos da Itália, de Giorgia Meloni, engaja-se na atualização do mussolinismo. Todos eles, porém, encontram-se no pátio da “democracia iliberal” pregada por Orbán.

Aliança entre liberais de araque e reacionários saudistas. A extrema-direita bolsonarista é, em parte, uma imitação. Mas, no fundo, é uma colcha de retalhos incongruentes e um fenômeno singular.   n


[1]. “Trump e o Ocidente”. Cadernos de Política Exterior, v. 3, n. 6, IPRI/FUNAG, Brasília, 2018.

[2]. https://bit.ly/3xMH3Hk

[3].  https://bit.ly/3ZdmdMZ

[4]. https://bit.ly/3ZcVbFD

[5].  Manifesto pela Liberdade, FIEMG. https://bit.ly/3KEK3NI

[6].  Nota Oficial – Ministério da Defesa, 7/7/2021. https://bit.ly/3Z2TQRW

[7]. Nota Oficial – Ministério da Defesa, 22/7/2021. https://bit.ly/3ZnzYci

[8]. O Estado de S. Paulo, 22/2/2022. https://bit.ly/3SroO3T

[9]Folha de S. Paulo, 4/8/2022. https://bit.ly/3ZmKJeU

[10]Valor, 26/11/2019. http://glo.bo/41ugLaH

 

 

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

O Brasil e sua circunstância geográfica e diplomática - Paulo Roberto de Almeida (Interesse Nacional)

 Meu trabalho mais recente publicado:  

1466. “O Brasil e sua circunstância geográfica e diplomática”, portal Interesse Nacional (10/08/2022; link:https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/o-brasil-e-sua-circunstancia-geografica-e-diplomatica/). Relação de Originais n. 4209.

O Brasil e sua circunstância geográfica e diplomática

Por Paulo Roberto de Almeida*

Portal Interesse Nacional, 10 de agosto de 2022

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/o-brasil-e-sua-circunstancia-geografica-e-diplomatica/


Invasão da Ucrânia pela Rússia criou uma nova agenda nas relações internacionais que coloca o mundo ante uma nova divisão geopolítica. Próximo governo brasileiro terá de efetuar uma revisão dos conceitos básicos da atual diplomacia, com a adoção de uma política externa que vise a recuperação da credibilidade externa do país com foco em um retorno ao multilateralismo, na inserção do país na economia global, e na revisão das atuais ‘alianças estratégicas’ num sentido puramente pragmático


O filósofo espanhol Ortega y Gasset, escreveu, nas suas Meditaciones del Quijote (1914), uma frase constantemente repetida pelos seus admiradores: “Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo, eu tampouco me salvo.”

Cabe, com efeito, atribuir forte importância à geografia, que pode ser considerada como a circunstância inevitável no plano das nações ou, mais precisamente, dos Estados e sua geopolítica. Em outros termos, os Estados podem escolher a sua organização interna, na esfera política e econômica, e sobretudo suas relações externas, mas eles não podem escolher a sua geografia. Ela lhes é dada pela história, ou seja, pelo longo desenvolvimento de um povo –ou vários deles– num determinado território, partindo dessa condição primária para constituir uma nação, ou um Estado, ou seja, a representação dessa nação no âmbito regional e internacional. A do Brasil é a América do Sul, sempre foi e sempre será.

‘A circunstância geográfica do Brasil, a sua projeção estratégica se estende não muito naturalmente pelos vastos espaços da América do Sul, e não muito além disso’

A circunstância geográfica do Brasil, a sua projeção estratégica –para usar um conceito dos geopolíticos– se estende não muito naturalmente pelos vastos espaços da América do Sul, e não muito além disso. Não naturalmente, pois que existem as barreiras naturais da Floresta Amazônica, dos contrafortes andinos, do próprio pantanal e da quase total ausência de facilidades de comunicações terrestres ou mesmo fluviais nos vastos ermos de nosso heartland, o cerrado central, penosamente acessados apenas pelos grandes rios da bacia amazônica, ao norte, e da bacia platina, ao sul. Nessa região se situava, justamente, o espaço natural de projeção do poder instalado na costa atlântica do Brasil, tanto que a metrópole portuguesa tentou por diversas vezes assenhorear-se da margem superior do Prata, instalando uma colônia em Sacramento e depois lutando contra os castelhanos para tentar manter a Província Oriental, ou Cisplatina, ou pelo menos garantir a livre navegabilidade dos rios da bacia do Prata, como única maneira de alcançar a província do Mato Grosso.

Como não se pode discutir com a geografia –pois ela existe, simplesmente, como dizia o teórico geopolítico Nicholas Spykman–, cabe examinar a circunstância diplomática do Brasil. Desse ponto de vista, se pode tomar como natural uma política externa do Brasil que buscasse construir um vasto espaço econômico integrado no coração da América do Sul, pela liberalização recíproca dos mercados e pela própria abertura até unilateral dos seus próprios mercados a todos os vizinhos regionais. Ou seja, construindo um espaço natural de projeção econômica, política e cultural do Brasil no seu entorno imediato, garantindo paz, segurança e prosperidade na América do Sul, os espaços “externos” seriam alcançados para fins de desenvolvimento econômico e social, mobilizando capitais, tecnologia, recursos de todos os tipos para conectar nossa economia, e a do espaço de integração liderado pelo Brasil, à dos grandes centros dinâmicos da economia global.

Tal seria a conformação de um relacionamento exterior, regional, continental e mais além, totalmente compatível com nossa dotação de fatores, nossas vantagens comparativas, nossa capacidade competitiva e nossas ambições diplomáticas de desempenhar um papel positivo em nosso “ambiente natural” –as circunstâncias geográficas– e mais além, em outros quadrantes de um planeta ainda muito desigual, mas vocacionado ao crescimento e à prosperidade, desde que as grandes potências, as economias avançadas, mas também as potências médias, como o Brasil, se concertassem em garantir paz e segurança –como rezam os primeiros artigos da Carta da ONU– e, a partir daí, traçar um vasto plano de eliminação da miséria, de redução da pobreza, e de cooperação ampliada visando elevar os indicadores de bem-estar de imensos contingentes dos povos e nações do planeta.

‘As circunstâncias geográficas e diplomáticas do Brasil recomendariam uma dedicação especial de sua política externa no sentido de recompor as bases de uma liderança natural em direção dos países vizinhos do continente sul-americano como a base indispensável para sua projeção global’

As circunstâncias geográficas e diplomáticas do Brasil recomendariam, portanto, uma dedicação especial de sua política externa no sentido de recompor as bases de uma liderança natural, que se exerceria a partir de um amplo projeto de abertura econômica –unilateral, se for o caso– em direção dos países vizinhos do continente sul-americano, como a base indispensável para sua projeção global. Assim foi feito sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, que refinou o antigo conceito regional da diplomacia brasileira, no sentido de se falar mais, e agir diretamente na América do Sul, preferencialmente a uma América Latina vagamente estruturada e submetida a outras circunstâncias que não apenas às dos povos e Estados ibero-americanos. Assim também foi feito no regime sucessivo, o de Luiz Inácio Lula da Silva, que buscou inclusive, devido a um não disfarçado antiamericanismo, afastar a OEA da América do Sul e criar, em seu lugar, novas instâncias de consulta e coordenação que, depois de idas e vindas, acabaram resultando na Unasul e em alguns de seus órgãos assessórios.

Mas, não contente de dispor de tais “vantagens comparativas” no continente, a antiga diplomacia lulopetista decidiu empreender novos saltos extrarregionais de puro voluntarismo diplomático internacional, primeiro congregando dois outros sócios no projeto do IBAS, a Índia e a África do Sul, depois se lançando com a Rússia, na construção do BRICS, que incorporou a China –sempre propensa a se utilizar de novos tabuleiros para seu projeto de preeminência global–, ambos carentes de estudos técnicos compatíveis com as prioridades econômicas e diplomáticas do Brasil, apenas respondendo a aspirações grandiosas de projeção internacional do então chefe de Estado.

Depois da invasão e anexação ilegais da península da Crimeia, juridicamente sob a soberania da Ucrânia, em 2014, pelo governo de Vladimir Putin, a nova decisão do líder russo de empreender uma guerra de agressão contra o país vizinho, em fevereiro de 2022, acelerou alguns desenvolvimentos que já se processavam no ambiente internacional, mas sobretudo criou uma nova agenda nas relações internacionais que coloca o mundo ante uma nova divisão geopolítica que se pensava superada na década final do século XX. Depois de quase meio século de um cenário bipolar –confrontando dois sistemas políticos e econômicos antagônicos, o mundo parecia encaminhar-se para uma “nova ordem internacional”, de impulso à globalização sobre a base de sistemas de mercados razoavelmente ancorados na ordem econômica de Bretton Woods: o multilateralismo econômico fundado num consenso básico em torno dos intercâmbios abertos administrados pela tríade FMI-BM-OMC.

No máximo, a antiga Guerra Fria geopolítica tinha dado lugar a uma nova Guerra Fria econômica, caracterizada pelo encolhimento geográfico e econômico da antiga União Soviética e pela irresistível e extraordinária ascensão econômica da China, impulsionada desde sua adesão ao GATT-OMC em 2001. Mas, o que foi chamado de “unilateralismo arrogante” por parte dos Estados Unidos, na última década do século XX, assim como sua postura paranoica de considerar a China um “adversário estratégico”, incitou esta última a rever sua posição mantida desde os anos 1970 (ou talvez até antes), de ver nos EUA um possível aliado na confrontação que ela mantinha com a União Soviética –por diversos motivos, inclusive territoriais– e de passar a reinserir o gigante americano no rol das antigas potências ocidentais que pretendiam manter o gigante asiático –quando este era o “homem doente” da Ásia– numa espécie de continuidade do “século de humilhações”.

O que ocorreu a partir daí foi uma reaproximação entre as duas grandes autocracias socialistas do passado, mediante diversos mecanismos –entre eles o próprio BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai–, até resultar na “aliança sem limites” proclamada por Xi Jinping junto a Putin, menos de um mês antes da invasão das forças russas contra a Ucrânia. Essa quase repetição da invasão da Polônia por Hitler, em 1939, criou uma nova situação internacional que colocou o Brasil em face de dilemas que não tinham sido registrados desde aquela época da Segunda Guerra Mundial. Com efeito, mesmo a ditadura do Estado Novo, depois do atropelo feito contra a Constituição de 1934, substituída pela “polaca” de novembro de 1937, não ousou contrariar a doutrina jurídica seguida sem hesitações pela diplomacia brasileira desde o Império: o Brasil não reconheceu a suserania nazista sobre a Polônia, assim como não reconheceu a incorporação dos três Estados bálticos ao império soviético em 1940, pois que tais usurpações do Direito Internacional tinham sido efetuadas por meio da força bruta, tal como se processou no caso da anexação russa da Crimeia, em 2014, e na subsequente invasão da Ucrânia oriental, assim como do resto do país, em 2022.

‘O Brasil conheceu, desde 2019, um processo de deterioração da qualidade de suas políticas públicas’

O Brasil conheceu, desde 2019, um processo de deterioração da qualidade de suas políticas públicas, a começar pelo fato de que, justamente, o país nunca exibiu, nesse período, um programa definido de políticas gerais ou setoriais em direção a metas ou objetivos claramente explicitados. O que tivemos, mais propriamente, foi uma ruptura com padrões usuais de governança, parcialmente na economia, enganosamente na política –que, a despeito dos anúncios iniciais, voltou ao velho padrão da “velha política”– e, bem mais nitidamente, em áreas setoriais, como meio ambiente, direitos humanos, cultura e educação e, sobretudo, nas relações exteriores, todas elas contribuindo para uma deterioração excepcional da credibilidade brasileira no plano internacional. Poucas dessas rupturas superam o desastre incomensurável que tem sido o rebaixamento da imagem do Brasil no ambiente externo e uma perda de qualidade notável da ação externa da diplomacia profissional.

A maior parte desses problemas deriva dramática incapacidade do presidente de não só não corrigir os problemas apontados por observadores isentos, mas de criar novos problemas e agravar os existentes, numa dramática demonstração de ausência de governança. Na área do meio ambiente, essa extraordinária capacidade de criar problemas para si próprio e para o país foi evidente, pois o que se registrou foram recordes seguidos de destruição ambiental, sobretudo na Amazônia, que estão justamente no cerne das críticas internacionais à atual postura do governante brasileira, ademais de seus reiterados ataques ao sistema democrático do Brasil, especialmente em relação ao seu fiabilíssimo sistema eleitoral.

O próximo governo terá de efetuar uma revisão dos conceitos básicos da atual diplomacia, com a adoção de uma política externa que vise a recuperação da credibilidade externa do país. Os eixos principais são, na área política, um retorno ao multilateralismo com base no Direito Internacional e em princípios e valores tradicionais de nossa diplomacia; na área econômica, cabe perseguir a inserção do país na economia global, por meio da abertura econômica geral e, sobretudo, da integração regional. Caberia, igualmente, proceder à revisão das atuais “alianças estratégicas” num sentido puramente pragmático, não mais ideológico. O Brasil precisa antes de tudo reforçar a sua circunstância geográfica e diplomática.


* Paulo Roberto de Almeida é diplomata, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional.