Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
A reedição brasileira de um livro como As ideias conservadoras (novamente) explicadas a revolucionários e reacionários (Editora Almedina), de João Pereira Coutinho, é de grande importância para o nosso mundo intelectual não porque o autor seja meu amigo (afinal, somos obrigados a fazer full disclosure de nossas relações em homenagem à honestidade intelectual que nos une), mas sim porque o seu assunto, mesmo que pareça cifrado ou distante demais do nosso cotidiano, é essencial para que se entenda as engrenagens políticas que estão em jogo, seja no aspecto nacional como internacional.
O tópico sobre qual é o significado destas palavras repletas de insinuações maliciosas – conservadorismo, conservador, reacionário, fascista – chegou a tal ponto de incompreensão, para não dizer de estultice, que a mera leitura de algumas páginas deste pequeno e elegante volume é uma lufada de ar fresco em um debate que não existe mais – e, se alguma vez existiu, é certeza de que já começou viciado.
João Pereira Coutinho tem um estilo claro, direto que, sobretudo, não banaliza o assunto – muito pelo contrário, ele faz algo improvável para um livro de apenas 107 páginas: contribui com novas ideias, faz o leitor pensar em novas perspectivas e, mais, o retira daquela zona de conforto da qual a suposta “nova direita” tupiniquim sempre caiu, constituída no binômio maniqueísta do “nós” contra “eles” quando, na verdade, todos estão no mesmo barco e ignoram se rumam ou não rumo a um naufrágio.
Todavia, ao mesmo tempo, o livro apresenta um problema, cuja culpa não é sua ou a de seu autor, mas sim do leitor que irá encarar suas linhas. A pergunta que ficará para este sujeito será a seguinte: E o que eu tenho a ver com isso? Porque o livro não dialoga – e nem é mesmo a sua intenção primeira – com o público brasileiro, sequer o lusitano, apesar de ser escrito justamente na língua de ambos os países. O seu público é o anglo-saxão – e isto não é uma má notícia. Pelo contrário: Pereira Coutinho nos apresenta a um mundo que todos nós deveríamos ter acesso – e que foi infelizmente negado por causa de anos de lobotomia em uma cultura da estupidez institucionalizada. E quando falo de “mundo anglo-saxão”, não estou a falar de The Smiths, Echo & The Bunnymen, Lennon & McCarthy e Monty Phyton; falo do filósofo Roger Scruton, do cientista político Anthony Quinton, do grande Michael Oakeshott – e do honorável Sir Edmund Burke (1729-1797), considerado o pai do conservadorismo e, no caso de Pereira Coutinho, “o seu Virgílio nos labirintos da ideologia política”.
O honorável Edmund Burke falando ao deserto da Wasteland...
Por favor, faça uma lista de filmes que não podemos deixar de assistir. Fui buscar suas indicações soltas que você fez no twitter e gostei de todas. - GUILHERME ANDRADE
Caro Guilherme, seu desejo é uma ordem. Aqui vai:
(1) LAWRENCE DA ARÁBIA (David Lean, 1962): Podem colocar à vontade “Cidadão Kane”, de Orson Welles, como o melhor filme já feito, mas, para o meu coração, este posto vai para o épico de Lean, que já tinha feito obras-primas como “Desencanto” (1945) e “A Ponte do Rio Kwai”(1957), mas somente aqui conseguiria atingir a perfeição, com uma ajuda de uma interpretação em estado de graça de Peter O’Toole.
EYES WIDE SHUT (Stanley Kubrick, 1999): Sim, Kubrick fez trabalhos mais perfeitos, como “2001 – Uma odisseia no espaço” (1968) ou “Barry Lyndon” (1975), porém é no seu último filme que ele mostra que, por trás de todo o seu pessimismo sobre o ser humano, ainda batia um coração.
(2) A ÉPOCA DA INOCÊNCIA (Martin Scorsese, 1995): Scorsese sempre é lembrado por seus impecáveis e divertidos filmes de gangster, por suas reflexões angustiadas sobre a fé, mas, na verdade, é neste filme que ele se revela tal como deve ser no seu dia-a-dia: um romântico incurável, mas implacável ao perceber que as emoções não têm mais chance em um mundo como nosso.
O PODEROSO CHEFÃO PARTE III (Francis Ford Coppola, 1991): Os dois primeiros Chefões são sublimes, sem dúvida, mas o terceiro exemplar tem algo que eles não possuem: os 40 minutos finais mais devastadores da História do Cinema e que terminam com um dos retratos mais impressionantes da dor de perder um ente querido.
A ÁRVORE DA VIDA (Terrence Malick, 2011): Ainda chegará o dia em que nós perceberemos o surgimento deste filme nas nossas vidas com o mesmo impacto que o mundo recebeu, em 1922, a publicação de “The Waste Land”, de T.S. Eliot.
(3) PICKPOCKET (Robert Bresson, 1959): Bresson fez para o cinema o mesmo que Picasso fez para a pintura, com a diferença que, no longo prazo, Bresson é melhor do que Picasso.
THE NIGHT OF THE HUNTER (Charles Laughton, 1951): Nosso Senhor, se algum dia me deres a chance de dirigir um único filme na vida, que seja com a mesma qualidade desta obra-prima única de Charles Laughton, que depois não precisou fazer mais nada na vida como diretor, tamanha a perfeição alcançada.
(4) AURORA (F.W. Murnau, 1927): Murnau foi o único diretor de cinema que conseguiu dominar a natureza – algo que só encontraria equivalente na filmografia de Terrence Malick.
CONTOS MORAIS (Eric Rohmer, 1959-1975): De todos, o meu favorito é “Minha noite com ela” (1969), brilhante meditação sobre as nossas tentações, mas todos os outros são impecáveis, com especial menção a “O Joelho de Claire” (1971) e “O Amor à Tarde” (1975).
DUAS INGLESAS E O AMOR (François Truffaut, 1975): Truffaut faria uma série de obras-primas do cinema, mas esta é, como “A Época da Inocência”, de Scorsese, aquela em que se mostra no seu íntimo.
LA DOLCE VITA (Frederico Fellini, 1961): A cena final deste filme ainda me perturba em alguns sonhos e pesadelos que tenho.
IL GATTOPARDO (Luchino Visconti, 1962): Visconti adaptando a obra-prima de Lampedusa e criando uma segunda obra-prima, desta vez com uma ajudinha de Burt Lancaster, Claudia Cardinale e Alain Delon.
(5) O SACRIFÍCIO (Andrei Tarkovski, 1988): A melhor utilização de Bach na história do cinema.
FAUSTO (Aleksandr Sokurov, 2012): Sokurov resume para nós, em duas horas e meia, a história da nossa servidão voluntária.
TRINTA ANOS ESTA NOITE (Louis Malle, 1962): Malle é o único sucessor de Robert Bresson e, neste filme, alcança uma pureza de imagem e de ritmo que jamais conseguiria recuperar nas películas seguintes, mesmo tendo uma obra rigorosa e impecável (como prova o subestimado e sublime “Perdas e Danos”, de 1992).
UM CORPO QUE CAI (Alfred Hitchcock, 1958): A obra-prima de um homem obcecado em fazer obras-primas.
(6) OS VIVOS E OS MORTOS (John Huston, 1989): Em seu último filme, Huston prova que é capaz de adaptar qualquer grande obra literária para o cinema. O monólogo final, declamado por Donal McCann, faz qualquer um chorar e pedir misericórdia.
A MARCA DA MALDADE (Orson Welles, 1957): O melhor filme do gênio, com o maior plano-sequência já feito.
OS INTOCÁVEIS (Brian De Palma, 1988): Toda vez que eu revejo este longa é como se fosse voltar a falar com um velho e querido amigo.
SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS (Peter Weir, 1990): Não há como você resistir àquela cena final.
A MOÇA COM A VALISE (1959) & A PRIMEIRA NOITE DE IMORTALIDADE (1971), ambos de Valério Zurlini: O cinema italiano teve gigantes como Visconti, Fellini e Rossellini, mas talvez o melhor de todos seja Zurlini, que fez obras primas em segredo e que só agora começam a ser redescobertas.
(7) THE RED SHOES (Michael Powell & Emeric Pressburger, 1959): O melhor filme já feito sobre o que é o desejo mimético.
A FRATERNIDADE É VERMELHA (Krystof Kieslowski, 1997): Junto com “Cortina de Fumaça” (1997), de Wayne Wang e Paul Auster, é o maior longa já feito sobre coincidência, acaso e os pequenos milagres que acontecem nas nossas vidas.
MAGNOLIA (Paul Thomas Anderson, 1999): Este filme fala sobre todos os temas anteriores na obra de Kieslowski, mas há algo mais que o torna especial: raras vezes o cinema mostrou o fenômeno da sincronicidade – uma das minhas obsessões –, com uma perícia cinematográfica que ainda impressiona.
ERA UMA VEZ NA AMÉRICA (Sérgio Leone, 1982): Coppola e Scorsese que me perdoem, mas Leone fez o definitivo filme de gangster, desta vez disfarçado em uma triste história do fim de uma amizade.
THE SEARCHERS (John Ford, 1959): A obra-prima de um gigante que tem mais obras-primas do que qualquer diretor de cinema.
RED RIVER (1948) & RIO BRAVO (1959), ambos de Howard Hawks: Hawks era o único diretor que John Ford respeitava. Precisa dizer mais alguma coisa?
(8) SUNSET BOULEVARD (1951), SOME LIKE IT HOT (1959) & THE APARTMENT (1961), todos de Billy Wilder: Há alguns anos, o diretor espanhol Fernando Trueba declamou, em plena cerimônia do Oscar, que Billy Wilder era Deus. Não é para tanto, mas, ao ver estes três filmes, ninguém pode negar que ele tinha um talento infinito para descobrir o ridículo e o insólito no comportamento humano.
A MALVADA (Joseph L. Mankiewicz, 1951): Talvez o roteiro mais perfeito já filmado em Hollywood, com uma direção sofisticada e uma Betty Davis em estado de graça.
THE INSIDER (Michael Mann, 1999): Billy Wilder fez uma obra-prima sobre o jornalismo, “A Montanha dos Sete Abutres” (1953), mas Michael Mann injeta uma dose a mais de emoção e nobreza neste filme que exibe um Al Pacino em toda a sua glória.
RAN (Akira Kurosawa, 1984): Kurosawa chega perto de melhorar a peça de William Shakespeare. Poucos conseguem fazer isso.
(9) MANHATTAN (Woody Allen, 1977): Allen faria outros filmes impecáveis e adoráveis, mas este é único porque tem Gershwin e uma Mariel Hemingway que nos faz imaginar como seria a sua versão de Lolita.
CANTANDO NA CHUVA (Stanley Donen & Gene Kelly, 1955): O filme perfeito para você renovar a sua vida na noite de Réveillon.
INVENTION OF LIFE (Douglas Sirk, 1958): Uma aula de melodrama, tão perfeito que seu título virou inspiração indireta para uma canção do R.E.M.
HARRY & SALLY (Rob Reiner, 1988): O único filme romântico que chega aos pés de qualquer comédia romântica de Woody Allen.
A PLACE IN THE SUN (George Stevens, 1951): Stevens dirigiu três pérolas da cinematografia de Hollywood – esta, “Shane” e “Assim caminha a humanidade” -, mas este é o filme em que raras vezes a mão do destino se mostrou tão lírica e cruel.
THE IMMIGRANT (James Gray, 2013): Gray cita Coppola e Leone nos primeiros minutos do seu filme, mas depois parte para o Visconti e o Dostoievski que moram no seu coração e faz uma das películas mais arrasadoras sobre os tormentos de se alcançar a redenção da sua alma.
O ASSASSINATO DE JESSE JAMES PELO COVARDE ROBERT FORD (Andrew Dominik, 2008): Talvez o melhor filme da década passada, junto com “There will be blood”, de Paul Thomas Anderson, e também uma meditação melancólica sobre como uma amizade pode terminar na pior das traições.
A REGRA DO JOGO (Jean Renoir, 1939): Uma aula de como movimentar uma câmera no meio de uma caçada e no meio de uma festa que termina em tiroteio.
MYSTIC RIVER (Clint Eastwood, 2003): Clint faria inúmeros filmes impecáveis em sua longa carreira como diretor, mas poucos atingiram essa densidade em que estamos assistindo uma tragédia grega diante dos nossos olhos.
PHANTOM THREAD (Paul Thomas Anderson, 2018): Você nunca mais comerá uma omelete da mesma maneira.
OPPENHEIMER (Christopher Nolan, 2023): O mundo assombrado pelas visões de um universo oculto e por um poder que permanece nas sombras.
(10) SUPERMAN, O FILME (Richard Donner, 1977): Por mais que Christopher Nolan queira, este ainda é o maior filme de super-herói já feito.
TRILOGIA INDIANA JONES (Steven Spielberg, 1981-1989): Sim, você leu direito: eu não considero os péssimos quarto e quinto filmes da série como partes integrantes desse ciclo fantástico de aventuras que nos faz redescobrir, a cada revisão, a criança que existe dentro de nós.
O ENIGMA DA PIRÂMIDE (Barry Levinson, 1986): Sherlock Holmes antes da cocaína.
CASSINO ROYALE (Martin Campbell, 2007): Como um todo, a série 007 faz parte do meu imaginário sentimental, mas este filme é o início de uma fase que privilegia uma fidelidade aos livros de Ian Fleming que não havia nas versões de Roger Moore e Timothy Dalton.
O FUGITIVO (Andrew Davies, 1998): O filme de aventura como uma travessia para a redescoberta da verdadeira identidade.
PULP FICTION (Quentin Tarantino, 1994): O virtuosismo técnico do nerd de videolocadora.
I’M NOT THERE (Todd Haynes, 2008): Bob Dylan versão 8 1/2 de Fellini.
L.A. CONFIDENTIAL (Curtis Hanson, 2002): O filme que finalmente mostrou ao mundo (e me apresentou) o universo maravilhoso de James Ellroy.
O EXORCISTA (William Friedkin, 1971): O maior filme católico já feito.
BLACK HAWK DOWN (Ridley Scott, 2001): Scott mostra o que é a guerra com uma crueza que só é comparável aos filmes de Kubrick e Samuel Fuller.
THE FLY (David Cronenberg, 1988): O corpo como um veículo para a doença que é a vida. Parece niilismo, mas é só realismo – e dos bons.
SEVEN (David Fincher, 1999): Um dos finais mais perturbadores e mais belos já filmados no cinema americano.
MULHOLLAND DRIVE (David Lynch, 2002): Lynch levando Luis Buñuel às últimas consequências.
INSÔNIA (Christopher Nolan, 2003): A ultima cena resume o que seria o cinema de Christopher Nolan e mostra a ultima grande interpretação de Al Pacino (adendo: superada depois por o que ele fez em “O Irlandês” [2019], de Martin Scorsese).
O uso exagerado do termo “terrorista”, principalmente entre membros da casta progressista que se opõem a movimentos considerados de “extrema-direita”, esconde um outro problema, extremamente complicado, e que tem repercussões no mundo ocidental: o do antissemitismo.
Para entendermos melhor a conexão entre esses dois temas, tão díspares na superfície, precisamos analisar três eventos.
O primeiro foi o debate acalorado sobre a declaração feita pelo economista Paulo Nogueira Batista (ex-diretor do Fundo Monetário Internacional, o FMI) ao jornalista Luís Nassif (do veículo GGN), a respeito da indicação de outro economista, Ilan Goldfajn, para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BDN). Ele alegou que o sobrenome de Goldfajn era “impronunciável” e que era alguém a serviço dos interesses de Israel. Obviamente, a celeuma se espalhou como rastilho de pólvora. Em pouco tempo, associações judaicas – como a Confederação Israelita do Brasil – condenaram Batista, afirmando que ele fez uma “manifestação de cunho antissemita”. Logo depois, Luís Nassif defendeu o seu entrevistado e afirmou que o rótulo do antissemitismo era uma “cortina de fumaça” fomentada para quem criticava o estado de Israel – o único responsável, segundo o jornalista, por usar o famigerado apartheid como método de governo em relação aos palestinos da região.
O segundo evento foi a omissão deliberada da mídia norte-americana em torno de outra celebridade que fez afirmações claramente antissemitas e que até agora não foi punida (ou “cancelada”) por isso. Estamos falando da atriz Whoopi Goldberg, que, apesar do sobrenome, não é judia, mas sim uma militante convicta do “fascismo de esquerda” que permeia a cultura progressista dos EUA. Ela divulga crenças básicas desse movimento de forma explícita há alguns anos e todas, em maior ou menor grau, envolvem o ódio escancarado ao judaísmo – entre eles, a negação do Holocausto; a defesa da proibição da graphic-novelMaus, de Art Spielgelman, como uma obra de arte que perturbaria os seus leitores por dramatizar a perseguição feita pelos nazistas na Alemanha contra o povo hebreu; e de que os judeus alemães sofreram menos do que os da Europa Oriental durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar dos protestos da Liga Anti-Difamação, Goldberg emitiu apenas algumas notas burocráticas de desculpas e, mesmo assim, permaneceu como uma das apresentadoras do programa The View, da TV O abraço do.
A pergunta que se faz sobre as repercussões das polêmicas de Batista e Goldberg é: se eles não fossem progressistas, suas carreiras seriam prejudicadas? Vejam o caso do cantor e compositor Kanye West, por exemplo, que fez pronunciamentos de mesmo teor, e já foi devidamente expulso da mídia, com toda a razão. A diferença é que West não pregou o evangelho da esquerda identitária desde o início da sua conturbada carreira e sempre foi considerado uma “pedra no sapato” no ambiente cultural dos EUA. Já Batista e Goldberg continuam como estão, e até possuem seus apologetas.
O que nos leva ao terceiro evento, que não é tão recente assim, mas que pode nos ajudar a compreender melhor o que está em risco. No maravilhoso livro Can The “Whole World” Be Wrong? (“Pode o ‘mundo todo’ estar errado?”), de autoria do scholar e historiador americano Richard Landes e publicado no final do ano passado, essa relação sombria entre antissemitismo e progressismo pode ter sido acentuada neste começo do século XXI com o assassinato de Muhammed Al Durah.
No dia 30 de setembro de 2000, Al Durah, uma criança de doze anos, acompanhada por seu pai, Jamal, foram filmados pelas câmeras de Talal Abu Rahma no meio de um tiroteio entre as forças de defesa israelenses e as palestinas, em plena Faixa de Gaza. As imagens foram veiculadas pelo canal France 2, com a narração do respeitado jornalista Charles Enderlin, que endossou por completo a suposição de que os tiros que atingiram Al-Durah vieram do lado de Israel. Apesar da comoção jornalística inicial em torno do fato (acompanhada pelo típico exibicionismo moral criado pelos políticos), com o passar do tempo comprovou-se que, na verdade, a filmagem foi editada de uma maneira em que ninguém percebeu que o verdadeiro autor dos disparos era o exército palestino.
Para Landes, a histeria midiática ao redor do affaire Al-Durah foi a “primeira grande fake news” dos anos 2000 – e todo o jornalismo ocidental caiu na armadilha perpetrada pelos jihadistas (aqueles que defendem que o Ocidente infiel deve se render ao Islã). Israel sempre foi considerado o vilão dos conflitos no Oriente Médio desde a sua fundação em 1948, mas agora a sua maldade – comparada ao nazismo – atingia proporções inacreditáveis, segundo esse grupo de iluminados. Não foi por acaso, aliás, que o assassinato de Al-Durah aconteceu um dia após o início da Segunda Intifada, a continuação do período milenarista da luta entre o estado árabe (auto-representado como um pequeno Davi) e o estado judeu (visto como um aterrorizante Golias). Esta foi a base para uma guerrilha cognitiva que manipulou o coração e as mentes das pessoas comuns, incentivando a elite global progressista a acreditar na narrativa de Enderlin e Rahma, o que enfraqueceu as forças de segurança e de inteligência necessárias para elas impedirem aquilo que seria o evento mais horroroso dos nossos tempos – o atentado terrorista contra as Torres Gêmeas do World Trade Center, ocorrido em 11 de setembro de 2001 em Nova York.
É justamente dessa fraqueza que se alimenta a simbiose entre progressismo e antissemitismo. Afinal, o ódio aos judeus sempre existiu desde que o mundo é mundo. O que diferenciaria o desejo pela “limpieza de sangre” (como alegavam os ibéricos na época da Inquisição católica) dessa ideologia que cresce de forma exponencial, mesmo em um período tão supostamente evoluído e tolerante como o nosso, traumatizado pelo que aconteceu com o Holocausto?
O pesquisador Walter Laqueur, no seu livro A Face Mutável do Antissemitismo (publicado recentemente pela É Realizações), afirma que o termo é de 1879, cunhado pelo jornalista alemão Wilhem Marr. Contudo, ele apenas popularizou a palavra, que já existia na boca de alguns luminares da época, como o famoso compositor e maestro Richard Wagner. Quando ocorreu o caso de Alfred Dreyfus na França entre 1894 e 1906 – no qual um jovem oficial do Exército foi acusado de traição, mas depois descobriu-se que o ódio a ele por ser judeu foi fundamental para que fosse condenado injustamente –, o antissemitismo não era mais um assunto para iniciados, e sim um tópico que fazia parte da própria organização do Estado moderno. Havia aqueles que, entre as frestas da burocracia, sabiam em seus corações que a defesa dos judeus era um aspecto civilizacional e havia aqueles que jamais admitiram para si mesmos que este tipo de preconceito era o anúncio de uma verdadeira catástrofe.
Um dos sujeitos que fazia parte deste segundo grupo foi Karl Marx. Laqueur observa que, apesar do avô de Marx ter sido um rabino, o judaísmo era para ele uma vergonha, chamando-a de “a religião da usura”, e seu desejo era se afastar tanto quanto possível daquilo que seus olhos viam como uma tradição desprezível. Em 1844, Marx escreveu o ensaio “Sobre a questão judaica”, no qual ele responsabilizava os judeus, em especial os banqueiros Rothschild, por todos os males estruturais do mundo. “Mais adiante na vida”, escreve Laqueur, “Marx não tocou mais na questão judaica como tal, embora se referisse aos judeus na sua correspondência privada quase sempre em teor negativo”.
A união entre os movimentos totalitários e o antissemitismo se tornou cada vez mais agressiva no século XX, seja com os pogroms russos antes, durante e depois da Revolução de 1917, seja com os campos de concentração nazistas – ou então com as teorias conspiratórias fomentadas pela elite intelectual do Ocidente, todas baseadas na paranoia fajuta de um documento supostamente histórico, mas que era outra gigantesca fake news: Os Protocolos dos Sábios do Sião (publicado em um obscuro jornal francês em 1903).
Walter Laqueur conta que, “embora suas origens ainda sejam obscuras, acredita-se que [o documento] tenha sido criado por agentes da polícia secreta czarista (a Okhrana) na França antes da virada do século XX, mas isso nunca foi provado conclusivamente”. O documento alega que “os judeus usam todos os tipos de organizações secretas, e suas principais ferramentas são a democracia, o liberalismo e o socialismo. Eles estiveram por trás de todos os transtornos da história, apoiando a demanda pela liberdade do indivíduo; também estavam por trás da luta de classes, de todos os assassinatos políticos e de todas as grandes greves. Os conspiradores induzem os trabalhadores a tornarem-se alcoólatras e tentam criar condições caóticas, elevando os preços dos alimentos e disseminando doenças infecciosas”.
Qualquer semelhança com o assassinato fabricado de Muhammed Al Durah pelas supostas forças israelenses não é mera coincidência. É a mesma corrente de notícias falsas que atinge os hebreus – e, consequentemente, o Ocidente. E assim como o caso Al Durah permitiu que os jihadistas ficassem cada vez mais estimulados a praticarem um ataque terrorista contra os EUA, uma vez que a imprensa mundial ficou submissa à narrativa dos palestinos contra Israel, o contágio nocivo das ideias insanas doProtocolodeixou que a Europa se tornasse cada vez mais pusilânime a respeito do ódio contra os judeus e legitimou, com o beneplácito das suas elites, a ascensão de um sujeito como Adolf Hitler.
Assim, a dificuldade de conceituar corretamente o antissemitismo implica no fato de que o próprio Mal assume disfarces surpreendentes para enganar até mesmo as pessoas mais esclarecidas. Por esse mesmo motivo, como bem observou Carl Friedrich, é possível também perceber uma estrutura constante no fenômeno, o qual se encontra na seguinte afirmação: a de que o antissemitismo é “uma manifestação de decadência cultural, isto é, do desgaste da crença fiel em normas éticas; ou, em palavras mais fortes, uma recaída no barbarismo”. E, no caso específico do nazismo (e dos jihadistas que o apoiaram na época da Segunda Guerra Mundial e que depois, no presente, venderam a narrativa do assassinato de Al Durah como se fosse verdadeira para a imprensa contemporânea), era igualmente “uma referência à natureza profundamente anticristã e à sua hostilidade para com a civilização”.
Eis o ponto de contato do “fascismo de esquerda” adotado pelas nossas celebridades tupiniquins e internacionais e o antissemitismo que assola o mundo ocidental: o ódio aos judeus que elas divulgam sem pudor não é apenas um aviso contra as “minorias desprotegidas”, mas principalmente um alerta sobre como há um claro processo de escravizar todo o globo terrestre – e de preferência com a ajuda da mesma elite que supostamente deveria nos proteger disso tudo.
É por isso que se deve tomar muito cuidado quando os progressistas usam e abusam do termo “terrorista”. Na verdade, de acordo com Michael Burleigh em Blood and Rage – A cultural history of terrorism, o uso do terror é uma tática usada por agentes assimétricos, que podem ou não terem relação com algum Estado, coordenados via uma entidade acéfala ou uma organização hierárquica, com o intuito de criar um clima psicológico de medo para compensar o poder político legítimo que não possuem – e com a imposição deste mesmo desejo de poder no mundo todo, de preferência usando como meio a criação de uma comunidade fundada no sofrimento, numa comunhão de vítimas assassinadas ou feridas as quais elas devem sofrer em função de um projeto muito maior: o da libertação da raça humana dos grilhões da escravidão espiritual e material.
Ora, aqui temos a exata definição, sem automatismos verbais, do que acontece entre os jihadistas e a única nação realmente democrática que existe no Oriente Médio: o estado de Israel (e também com os EUA, o país que simboliza a democracia no resto do mundo, o que nos leva a concluir que o antiamericanismo, uma outra doença fomentada pela esquerda, é também mais uma variação do antissemitismo). Não à toa, a elite progressista concorda com a narrativa dos palestinos porque ela também se aproveita da confusão em torno da palavra “democracia”. Para os seus integrantes, a democracia deles seria a da Revolução Francesa, a do Iluminismo que pratica um governo autoritário a guiar o povo de cima para baixo, enquanto Israel, por mais defeitos que possa ter (como qualquer país vibrante), pratica a democracia liberal de fato, cujas decisões são feitas de baixo para cima e sempre respeitando aquilo que Michael Oakeshott chamava de “a dinâmica imprevisível da conduta humana”.
Assim, a cooptação do conceito de “terrorismo” pela esquerda progressista para eventos graves, mas que não chegam à loucura de eliminar a população de um país que representa uma parte importante do gênero humano (como é o caso de Israel), é uma das mutações da maldade que infecta o mundo contemporâneo. O antissemitismo é um problema gravíssimo que envolve a todos nós porque o início da verdadeira democracia não se deu em Paris ou até mesmo na Atenas clássica, como alegam os manuais de política, e sim naquilo que o teólogo Os Guinness chama em A Carta Magna da Liberdadede “a Revolução do Sinai”, quando Moisés recebeu a revelação de que há somente um único Deus e que o povo hebreu se tornou nada mais, nada menos que o representante de toda a humanidade.
Independente do fato de vivermos em um momento histórico completamente diferente do que aconteceu no Êxodo do Egito ou até mesmo na Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial, a nossa situação não mudou sob hipótese nenhuma porque o ódio contra os judeus é algo que avilta a própria natureza humana. Como o próprio Guinness reforça, o mundo contemporâneo até pode estar muito distante do mundo com que teve de lidar Moisés, o grande líder hebraico. Afinal de contas, “ele é moderno e avançado, e não tradicional; é urbano, e não rural. Contudo, os princípios expostos no Êxodo e nos primeiros livros da Bíblia são ao mesmo tempo atuais e atemporais. O problema não é que as ideias são obsoletas, e sim, que a nossa geração não se distingue pela análise cuidadosa dos primeiros princípios, pelo seu compromisso com a construção persistente e paciente, ou pelo debate respeitoso dos desafios futuros. Hoje uma afirmação é algo a ser primeiro atacado e só depois avaliado. É a receita das mídias sociais para o preconceito e a loucura”.
E é o esquecimento dessa aliança sagrada com a qual nossa Civilização de fato começou que se tornou a origem de todas as fake news que dominam a nossa sensibilidade e que acompanham o antissemitismo até hoje, seja com o caso de Muhammad Al Durah, seja com a crença de que Os Protocolos dos Sábios de Sião são verdadeiros. Negar a Revolução do Sinai, como querem os jihadistas e a esquerda progressista, numa união de delírio cognitivo que infelizmente contagiou a maioria da nossa sociedade (em especial, a brasileira), é o único terrorismo que precisa ser combatido. O resto é apenas o ruído de quem ainda não entendeu o que realmente movimenta a memória do mundo.
A monografia ‘O Estruturalismo comoPensamento Radical’, escrita em 1968 na França, prova sua maturidade aos 27 anos
Por Martim Vasques da Cunha
O Estado de S. Paulo, Aliás, 19/11/2022
Um dos clichês mais absurdos ditos sobre José Guilherme Merquioré que ele foi apenas um “talentoso polemista liberal”. Por ser quase onipresente em todos os cadernos culturais importantes do Brasil entre 1980 e 1990, divulgando ideias e autores mal conhecidos por aqui, além de ter uma produção vertiginosa de livros, era evidente que essa categoria se encaixava como uma luva no jovem diplomata que, desde a década de 1960, encantou a intelectualidade tupiniquim pelo seu modo combativo de defender acima de tudo o debate racional. Contudo, com seu precoce falecimento em 1991, aos 49 anos, sua ausência nunca foi devidamente preenchida por algum sucessor – e o epíteto escrito acima se tornou cada vez mais permanente na nossa memória.
A monografia inédita O Estruturalismo como Pensamento Radical, redigida em 1968 na França, às vésperas das revoltas estudantis de Maio, e publicada agora pela É Realizações na coleção das obras completas de Merquior, vem para eliminar essa classificação bizarra. Trata-se de um evento e tanto, por dois motivos. O primeiro é, claro, porque mostra que o autor de O Elixir do Apocalipse (1983) era sobretudo um scholar com um pensamento filosófico próprio que seria a base posterior de todas as suas intervenções públicas na imprensa, em especial naquele momento histórico conturbado no qual o Brasil vivia, repleto de autoritarismo e de questionamentos sobre a natureza da democracia (aliás, muito semelhante ao que vivemos hoje). E o segundo é que ele reintroduz, com vivacidade, a importância da obra de Claude Lévi-Strauss, o antropólogo que, com suas pesquisas etnográficas, foi o responsável por popularizar um molde de perspectiva científica intitulado justamente de “estruturalismo”.
A admiração de Merquior porLévi-Straussjá existia desde que o jovem prodígio estreou nas letras com suas coletâneas de crítica literária, Razão do Poema e A Astúcia da Mímese. Para ele, um poema ou uma obra de arte deveriam ser analisados sobretudo pela sua estrutura intrínseca, e não necessariamente pelo conteúdo discorrido em seus temas. Isto o impedia de cair no marxismo juvenil que já atacava alguns colegas seus de profissão ou no tradicionalismo católico da elite literária que já cheirava à naftalina. Com o passar do tempo, a preocupação de Merquior sobre um método de observação que se estendesse da literatura para as ciências humanas, até chegar na filosofia política, cresceu para que ele encontrasse, no estruturalismo de Lévi-Strauss, uma maneira de compreender o tema oculto que orientou todos os seus escritos: como lidar com o fato de que este mundo é consumido pela permanência da perda?
Na monografia que temos em mãos, Merquior conseguiu uma solução a partir de uma tese insólita: o estruturalismo não seria somente um método de pesquisa etnográfica, mas sim um pensamento radical, cuja raiz filosófica poderia ser localizada no Iluminismo peculiar deJean-Jacques Rousseau e no idealismo alemão de Immanuel Kant, para depois ter suas ramificações na sociologia de Max Weber, na análise fenomenológica de Martin Heidegger e até mesmo na polêmica “arqueologia do conhecimento” que fez muito sucesso com Michel Foucault. O escopo é enorme, sem dúvida, e o ensaísta brasileiro usa e abusa das suas habilidades estilísticas para comprovar o seu argumento – e o resultado final é simplesmente brilhante.
“Porque nada há oculto que não deva ser descoberto, nada secreto que não deva ser publicado.”
Marcos 4:22
1.
No Brasil de Jair Bolsonaro, há uma união aparentemente insólita entre os evangélicos, os protestantes e os católicos. Apesar de serem vertentes religiosas que deveriam viver em uma rixa constante, elas estão num combate contra o que chamam de “a cultura da morte”. E o quartel-general desta estratégia se encontra no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado pela ministra e pastora Damares Alves.
Um dos motivos desta união é a figura enigmática de Antonio Donato Paulo Rosa, também conhecido entre seus desafetos como “São Moita”. Católico devoto – quase “obsessivo”, diriam alguns –, ele tem uma postura tão discreta que não seria um exagero compará-lo a J.D. Salinger. De tipo franzino, cabelos grisalhos, olhos claros (ninguém se lembra se são azuis ou verdes), pele muito branca e dono de uma voz anasalada, às vezes quase infantil, Donato não dá entrevistas (até o fechamento desta reportagem, tentou-se contactá-lo três vezes em um endereço eletrônico, disponibilizado no seu site www.cristianismo.org.br, mas não se obteve nenhuma resposta).
A sua única foto pública é de alguns anos atrás, tirada sem seu conhecimento, comendo um sanduíche em um bar da região da Bela Vista, em São Paulo (a responsável por tal feito foi a filha mais velha de Olavo de Carvalho, Heloísa de Carvalho Martin Ribas). Sua obra esparsa tem um único livro e poucos textos veiculados na internet, além de diversas aulas, divulgadas via e-mail por um núcleo reduzido de alunos, nas quais ele explica a sua perspectiva sobre o que acontece no mundo atual, tanto em termos políticos como religiosos. O alvo do seu projeto é justamente o combate contra a “cultura da morte” – uma expressão inspirada nas encíclicas do Papa João Paulo II. Ela é usada de modo insistente na obra de Donato e, por ser muito ampla de significado, abriga o aborto, a pedofilia, a ideologia de gênero e a destruição dos valores familiares.
O próprio Donato explicitou essas intenções a algumas pessoas que foram às suas aulas – a maioria delas ocorre em paróquias nobres da cidade de São Paulo, como a da Nossa Senhora do Brasil. Essas pessoas narram esses encontros em textos públicos que foram pescados ali e acolá na internet e nas redes sociais (em especial, no Facebook). Uma dessas testemunhas, Heloísa Gusmão, escreveu em uma carta aberta dirigida ao site católico Montfort em 2018 sobre o que acontecia nessas reuniões. Nelas, Donato alegava que “todo o seu segredo não se trata de uma sociedade secreta, mas de uma ação política, cuja discrição é essencial para que os esquerdistas não se alertem para a movimentação que ele faz”.
Essa ação política se traduz concretamente em um comando difuso que existe há 20 anos e que, de uma maneira ou de outra, sempre volta à figura de Donato. Sua origem remonta a 1993, no mestrado que ele fez na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, sob a orientação do professor Jean Lauand, então membro do Opus Dei, muito tempo antes deste se desvincular da organização católica (evento marcado pelo lançamento de um polêmico livro que conta os bastidores da instituição religiosa, em 2005).
O fruto desse estudo do mestrado, cujo tema era “O papel da contemplação na educação, segundo os escritos filosóficos de Santo Tomás de Aquino”, foi justamente o primeiro e único livro de Donato –A educação segundo a Filosofia Perene, depois publicado em edição particular em 1999. Depois, tanto o mestre como o discípulo se associaram a um grupo informal de pesquisas acadêmicas, também criado por membros do Opus Dei, sobre a obra do místico catalão humanista Raimundo Lúlio. Por coincidência, Donato manteve contato com outros dois orientandos de Lauand, mas que faziam parte de outras denominações religiosas – Enio Starosky, atual diretor do Colégio Luterano de São Paulo, e Rui Josgrilberg, professor da Universidade Metodista de São Paulo. Essa ala intelectual influencia fortemente o trabalho da organização não-governamental que faz a articulação da ala política, a LibCom, que seria, tal como as residências do Opus Dei, um centro de estudos e de formação, e tem o apoio de dois políticos – o deputado estadual Reinaldo Alguz e o deputado federal Enrico Misasi, eleitos por São Paulo pelo Partido Verde.
A ação de Donato nos corredores do poder continua até o ministério de Damares Alves, com dois alunos dele, Ellen Amâncio Moreira Silva Schelb e Rodrigo Rodrigues Pedroso, empregados como assessores especiais da ministra. Este último, aliás, é mais do que aluno; é também sócio de Donato na empresa Microbookstudio Software Ltda, aberta em 2002, e localizada numa rua do bairro Jardim Bonfiglioli, em São Paulo, responsável por hospedar o site que publica a obra de Donato e também por abrigar, por meio de links fechados, os áudios das suas aulas. (Ellen Schelb e Rodrigo Pedroso foram procurados em seus e-mails institucionais. Schelb não respondeu até a conclusão desta reportagem. Já Pedroso retornou com um pedido para que a “demanda fosse enviada ao departamento de imprensa” do Ministério, o que foi feito. Até o fechamento desta matéria, a assessoria não se pronunciou.)
Em registros públicos facilmente encontrados no site do Ministério, informa-se que tanto Donato como Pedroso já participaram juntos em reuniões de trabalho: a primeira foi em 20 de setembro de 2019; a segunda em 18 de dezembro de 2019 e uma terceira ocorreu em 12 de junho de 2020. Os assuntos iam de “interesses da vida e da família” ao “direito à vida”, passando pelo remédio Citotec (que provoca aborto espontâneo). Nesses três encontros oficiais, também estava presente a secretaria nacional da Família, Angela Gandra Martins, filha do jurista Ives Gandra Martins e irmã do ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Filho, ambos membros notórios do Opus Dei.
A presença de Antonio Donato em Brasília não se tornou constante somente por causa da simpatia com as iniciativas de Damares Alves. Ela já ocorria no passado. Em vários e-mails enviados aos seus alunos, em outubro de 2016, durante o governo Michel Temer, ele avisou o cancelamento de muitas aulas, alegando que “a Medida Provisória 746, que exigiu primeiro ações imediatas, e depois duas viagens que se acumularam com suas exigências, impediram que pudesse completar a edição da última aula de quinta feira [...]”. A medida em questão discorre sobre “a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, [que] altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e a Lei nº 11.494 de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, e dá outras providências”. Essa lei foi promulgada um mês antes da escrita das mensagens exibidas acima.
Em outro e-mail, de novembro de 2016, Donato explicou que se encontrou em Brasília com “um grupo de pessoas que trabalham a favor da vida” e que seria “necessária uma reunião hoje à noite para coordenar suas atividades. Não será possível por este motivo termos aula hoje à noite. Espero retomarmos na próxima segunda feira e que não nos deixemos abater por causa destes contratempos necessários. Na próxima segunda feira, pessoalmente, posso explicar melhor o que se terá feito em Brasília.”
2.
Com a ascensão de Jair Bolsonaro, coincidentemente a influência de Donato cresceu no ambiente religioso brasileiro. Apoiado por outras duas entidades católicas, o Centro Dom Bosco e a Liga Cristo Rei, ele passou a dar aulas não só para os católicos comuns, mas também para duas parlamentares ligadas explicitamente ao bolsolavismo (movimento informal vinculado ao filósofo Olavo de Carvalho), as deputadas federais Chris Tonietto (PSL) e Carolina De Toni (PSL). No primeiro Fórum Nacional da Liga Cristo Rei, ocorrido em 2017, “estava lá Donato a dar suas aulas secretas” e, “entre os palestrantes da Liga estavam nomes tarimbadíssimos do olavismo”, como “Allan dos Santos e Bernardo Küster”, segundo o relato público do jovem católico Filippe Irrazábal, lançado no Facebook no início de 2020.
A sombra do mestre misterioso não se estendeu apenas ao gabinete de Damares – ocorreu igualmente no Ministério da Educação (MEC). De acordo com Irrazábal, “alunos do Donato receberam cargos importantes no MEC. Um desses cargos foi para um dos líderes do CDB [Centro Dom Bosco] [...]. Claudio Titericz e André Melo eram outros alunos do Donato que receberam altos cargos no MEC. Quando um olavete era demitido do MEC pelo novo ministro Weintraub, André Melo logo o recontratava na TV Escola, que virou o bastião do Donato [...] dentro do MEC”.
A partir de março de 2020, com o anúncio da pandemia do coronavírus, ainda de acordo com Irrazábal, Donato enviou “vídeos no WhatsApp contra o distanciamento social e alertando para o ‘perigo de governo mundial’ por causa disto, até mesmo ligando para as pessoas”. Uma das fontes ouvidas pela reportagem – uma intelectual católica – confirmou a existência desses vídeos e dessas ligações. [1] A princípio, parece ser uma atitude bizarra para alguém que alega lutar contra a “cultura da morte” a qualquer custo. Porém, trata-se de uma ação muito coerente com a lógica intrínseca do seu pensamento – e que, se for analisada a contento, revela o que o poeta polonês Czeslaw Milosz disse sobre uma das tendências subterrâneas da modernidade. Trata-se do insólito fato de que “só na metade do século XX os habitantes de muitos países [ocidentais] compreenderam, em geral por meio do sofrimento, que complexos e difíceis livros de filosofia têm influência direta sobre seu destino”.
3.
Este é o caso de A educação segundo a Filosofia Perene, a obra que seria o fundamento das aulas que Antonio Donato daria para quem quisesse acompanhá-lo durante esses vinte anos de discreto magistério. O título faz referência à philosophia perennis, que, apesar de ser identificada com um conjunto de escritos de sabedoria que remonta aos movimentos esotéricos tradicionalistas surgidos no final do século 19 – e até mesmo erroneamente aos da Nova Era que fizeram sucesso entre as décadas de 1960 a 1980 – seria na verdade, segundo Donato, a reunião dos tratados dos grandes filósofos antigos e cristãos, como Platão, Aristóteles, Hugo de São Vítor e – o preferido do professor – Santo Tomás de Aquino.
O argumento geral da sua obra completa é o seguinte: o mundo moderno e democrático não possui mais condições de criar uma educação que faça o ser humano se tornar alguém dotado de virtude. Portanto, é fundamental um retorno à “filosofia perene” ensinada por Donato para a recuperação dessa qualidade, especialmente em um ambiente que já está nitidamente dominado pela “cultura da morte”. A educação, aqui, deixa de ser instrumental e voltada apenas para o mercado de trabalho – que desumanizaria o indivíduo – e partiria para um caminho moral, religioso e místico, cuja meta é a reconstituição de uma virtude heroica na alma do aluno.
Contudo, como tornar isso factível hoje em dia? Para Donato, a solução passaria por três fatores: buscar um exemplo de sociedade perfeita que já existiu na História; criar aos poucos um círculo de sábios virtuosos; e o questionamento de tudo o que existe na nossa sociedade, da política (com a crença ferrenha de que o governo mundial é uma espécie de “sistema do Anticristo”) à ciência moderna.
No primeiro item, Donato remonta à noção de um governo monárquico, inspirada nos escritos do cardeal e santo da Contra Reforma Roberto Bellarmino, célebre por ter participado no julgamento feito pela Igreja Católica contra ninguém menos que Galileu Galilei. Mas não se trata de uma monarquia que depende exclusivamente do rei secular; aqui, o monarca seria o Papa, o qual teria a virtude de comandar o governo perfeito que sempre foi a Igreja de Roma, pois esta foi criada por Deus. Esse exemplo deveria nortear o mundo democrático, que perdeu por completo a noção de integridade moral. Aqui teríamos o segundo fator: o papel do círculo de alunos, formatado pela filosofia perene, que ajudaria o comandante deste governo perfeito a torná-lo uma realidade – e, neste aspecto, todos os seus integrantes precisam entender que a luta deles não é contra meros seres humanos, mas sim contra o próprio mal que atua na Terra.
Não à toa que, dentro dessa linha de pensamento, há uma rejeição explícita da ciência moderna, especialmente na figura de Isaac Newton - o que nos leva ao terceiro ponto da solução proposta pela “filosofia perene”. O cientista inglês seria o principal culpado por perverter a noção da alma individual ao criar um sistema de mensuração da realidade que dependeria somente da exatidão técnica, abolindo assim qualquer perspectiva metafísica. É justamente por causa desse tipo de cosmologia, diz Donato, que surgem as ideias a favor da “cultura da morte”, em particular as que envolvem o aborto e a ideologia de gênero, pois elas perderam o sentido religioso do que significa a vida humana. O lado perigoso dessa afirmação é que, no momento em que se mais precisa das soluções dadas por este tipo de ciência – como numa pandemia, por exemplo –, torna-se perfeitamente inevitável questionar as medidas de distanciamento social (pois a Organização Mundial de Saúde [OMS] seria “globalista”), a existência do coronavírus (criado pela China “anticristã”) e até mesmo a eficácia das vacinas (cujo resultado será o controle populacional por meio da esterilização da humanidade).
Esse raciocínio encanta a todos que conhecem pessoalmente Donato – algo estimulado pela aura de segredo e de santidade que o cerca para quem participa (ou conhece) as suas aulas. Um dos seus ex-alunos disse a esta reportagem que, quando começou a ir a esses encontros, também frequentava o Curso Online de Filosofia (COF) de Olavo de Carvalho, e perguntou ao polêmico filósofo qual era a sua opinião sobre Antonio Donato. A resposta foi: “‘O Donato é um santo, quando encontrá-lo beije a mão dele’”. Além disso, esse ex-aluno disse que “tinha um conhecido que afirmou que o Donato lia sua mente nas reuniões, respondendo suas perguntas antes que ele as fizesse.”
Entretanto, a admiração de Carvalho por Donato não parece ser recíproca. O mesmo ex-aluno informou que, um dia, comentara “com Donato que estava transcrevendo suas aulas a partir das gravações, assim como eu fazia com as aulas do Olavo, já que também participava do COF. Ele não pareceu animado com a ideia, mas tentou ser gentil, mostrando algum interesse. Parecia que eu havia falado uma obscenidade. Todos [ali presentes] prenderam o ar, trocaram olhares significativos e me senti péssimo. Donato ficou impassível. Impossível dizer o que ele achava disso.”
“Para mim, ficou nítido que o objetivo daquelas aulas era criar um grupo que influenciasse a Igreja e a sociedade a longo prazo”, continuou a me dizer esse ex-aluno. Todos esses encontros não eram cobrados. Cada vez que algum estudante pedia a Donato um exemplar físico do seu livro (impresso com uma capa branca, só com o título em letras negras, sem o nome do autor ou qualquer informação biográfica), ele o enviava por correio sem custo nenhum, além de disponibilizá-lo gratuitamente em uma versão virtual tanto no seu site como numa cópia de CD em um documento PDF. Na carta pública que Heloísa Gusmão enviou à Montfort, ela escreveu que um dos motivos desse procedimento abnegado está na história mística, contada por Donato, sobre “uma de suas alunas [que] foi vender a primeira edição do livro numa faculdade de teologia para uma moça muito piedosa, com fama de santidade. A beata hesitou em comprar o livro, por ter pouco dinheiro, então disse que iria à Capela da faculdade perguntar a Jesus o que Ele achava da ideia. Não deram 15 minutos, a beatinha saiu correndo atrás da aluna do Donato, pedindo com muito entusiasmo: ‘Me vende o livro, me vende o livro! Jesus disse que tem pressa!’”.
Mesmo assim, segundo o ex-aluno, o clima entre os estudantes não era muito acolhedor: “A primeira coisa que notei é que ninguém daquele grupo dava o menor sinal de empatia comigo, exceto o próprio Donato. Senhorzinho amável, sempre perguntava os nossos nomes, quais eram nossas paróquias de origem, etc. Todas as tentativas de conversar com seus alunos eram desanimadoras. Isso fazia eu me sentir indesejado. Insisti nos encontros, pois as aulas tinham um conteúdo muito relevante pra mim. [...] Quem chegava [na sala] colocava seu e-mail em uma lista, onde se recebia as gravações das aulas.”
O escopo dessas conferências particulares – cada uma com a duração média de duas a três horas – é ambicioso. Donato vai do questionamento da ciência moderna em Isaac Newton, passando pela Constituição Americana, até a crítica das obras de Kant e Hegel, sempre com o fio comum de mostrar o que ele afirma ser “o controle das ideias a partir da criação política das grandes fundações globalistas”, como a Ford, a Rockfeller e a Templeton. Segundo suas próprias palavras, elas são as principais responsáveis pela sedimentação da “cultura da morte” no Brasil e no resto do mundo contemporâneo, e seriam o oposto do governo virtuoso que ele tenta criar com a ajuda dos seus alunos.
4.
As ideias aparentemente desconexas que rondam a obra de Antonio Donato só ganham coerência se entendermos que, no pensamento político moderno, houve três grandes ondas de imaginação, se aproveitarmos a hipótese do filósofo Leo Strauss. A primeira seria a do republicanismo, que deu origem à democracia liberal, e teria como representante Maquiavel; a segunda seria a do jacobinismo, moldada no pensamento de Jean Jacques Rousseau, e que culminou na visão revolucionária de Marx; e a terceira seria a do reacionarismo, que teria em Nietzsche o seu líder e em Heidegger um dos seus discípulos. Contudo, Strauss esqueceu-se de uma quarta onda, subterrânea, que lentamente minou as bases construídas pela democracia liberal e se apresentou como um contraponto ao jacobinismo e ao reacionarismo. Trata-se da imaginação apocalíptica, cujo principal pensador no século 20 seria o místico francês René Guénon, também arauto de uma philosophia perennis e que influenciou ninguém menos que Steve Bannon nos EUA (ex-estrategista de Trump), Aleksandr Dugin na Rússia (guru de Vladimir Putin que já fez duas visitas no Brasil) e, aqui, Olavo de Carvalho – além de, claro, Antonio Donato, ambos os maiores inspiradores do bolsonarismo.
Um dos episódios recentes que demonstra como essa onda subterrânea invade a democracia liberal é o movimento conspiracionista americano QAnon. Ele surgiu no público depois da eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, mais especificamente no dia 28 de outubro de 2017, quando um usuário anônimo, de codinome Q, escreveu de modo críptico que a ex-primeira dama e ex-Secretária de Estado Hillary Clinton seria presa dentro de três dias. O prazo final chegou, e nada aconteceu com ela. Mesmo assim, esse sujeito misterioso (que se inspirou no termo “Q Clearance”, “acesso confidencial”, muito usado nos serviços secretos de informação) continuou a espalhar suas pistas (apelidadas de “migalhas”) em sites obscuros como 4chan ou 8chan, que são plataformas de mensagens onde as pessoas podem conversar sem revelar suas identidades utilizando apenas pseudônimos.
Rapidamente, criou-se uma comunidade de seguidores – o QAnon – a qual construiu a seguinte visão de mundo – uma espécie de amálgama de histórias que já existiam há muitos anos no imaginário americano: a de que, durante séculos, a Terra foi comandada por uma casta antiga, secreta e mortal. Denominada “A Cabala” – depois transformada em “estado profundo” [deep state] e reduzida ao conhecido “establishment” –, trata-se de uma organização hierárquica que, no seu núcleo, seria satânica desde a origem. Ela é um grupo oculto que se imiscuiu em todas as instituições, como os bancos, a mídia e os governos, por meio de ações macabras de chantagem, pedofilia, sacrifício humano, e até mesmo canibalismo.
Entre seus principais membros, temos uma lista infinita, dividida em diversas seções: na política, temos Bill e Hillary Clinton, Barack e Michelle Obama, metade do Partido Republicano (especialmente os senadores John McCain e Mitt Romney) e, sem dúvida nenhuma,todoo Partido Democrata, que comanda a CIA, o FBI e a Agência de Segurança Nacional; na mídia,todosos órgãos jornalísticos estão envolvidos, sem contar Tom Hanks, Steven Spielberg e o bilionário acusado de ser o chefe de uma rede de tráfico de menores, o falecido Jeffrey Epstein; na tecnologia, o Vale do Silício em peso apoia essa iniciativa; na religião, o Papa Francisco; e no setor financeiro, as grandes fundações filantrópicas como Ford e Rockfeller, a família Rothschild, além da Organização das Nações Unidas (ONU), o Fórum Econômico Mundial e todos os participantes europeus que alguma vez foram a Davos, Suíça, para implementar a Nova Ordem Mundial (entre eles, George Soros está no topo). A meta da Cabala é a acumulação de poder a qualquer custo – e, de acordo com o QAnon, o detalhe mais macabro sobre essas pessoas é que elas são especialistas na paradoxal arte de esconder tudo isso à vista de todos [hiding in plain sight, em inglês].
O QAnon conseguiu ter um total de aproximadamente de 4,5 milhões de seguidores em páginas do Facebook e Twitter, segundo o jornal inglês The Guardian. No último ano, entretanto, a disseminação do seu pensamento aumentou ainda mais com o anúncio da pandemia do coronavírus. Além dos ataques constantes às redes secretas de abuso de menores e à imprensa, os entusiastas dessa comunidade também acreditam que a covid-19 é uma criação da Cabala para implementar, de uma vez por todas, o globalismo que fará todas as culturas, perdendo, assim, as suas características individuais. Isso seria definitivo com a distribuição de uma vacina que tornaria a humanidade estéril ou incapaz.
Pouco a pouco, o QAnon tornou-se o centro de narrativas que ainda carecem de comprovação factual, capazes de prejudicar a saúde pública no momento grave do surto do coronavírus, além de estimular atos públicos de violência – como o de um seguidor que, em 2018, foi preso por bloquear o trânsito em Nevada com um caminhão cheio de armas, exigindo a liberação dos relatórios do FBI a respeito dos e-mails interceptados de Hillary Clinton, escândalo que foi pivô nas eleições de 2016. Por esse motivo, o mesmo FBI decidiu incluir o QAnon na categoria de “ameaças terroristas domésticas”, especialmente por causa das teorias da conspiração que atiçam a ameaça do extremismo, quando indivíduos “alegam ser pesquisadores ou investigadores que destacam pessoas, negócios ou grupos acusados falsamente de estarem envolvidos em um esquema imaginário”. Indo pelo mesmo caminho de precaução, as empresas de tecnologia (Facebook, Twitter, TikTok e YouTube) removeram numa ação conjunta, entre julho e agosto de 2020, mais de 7.000 contas no Twitter e cerca de 790 grupos no Facebook, todos envolvidos direta ou indiretamente com o QAnon.
Apesar de todos esses alertas, ainda assim a conspiração para acabar com todas as conspirações triunfou no pleito eleitoral americano, em novembro do ano passado, com a vitória da republicana Marjorie Taylor Greene, para ser representante do estado da Georgia – por ironia, o mesmo tipo deestablishmentque o movimento tanto abomina. Ela foi a principal garota propaganda do QAnon e, entre as diversas declarações polêmicas dadas no passado ao negar a pandemia, a mais famosa delas após vencer a vaga foi a de que o uso de máscaras para proteção não teria nenhuma eficácia científica comprovada. E, como se não bastasse, vários membros desta organização subterrânea participaram na catastrófica invasão do Capítólio ocorrida no dia 6 de janeiro de 2021, sob incitação direta do então presidente Donald Trump.
Esses fatos descritos acima apenas comprovam que a cultura americana tem um fascínio duradouro pelo tema da paranoia. Desde da literatura de Don DeLillo, Philip K. Dick e Thomas Pynchon, passando pelo cinema de Alan J. Pakula, até as mensagens subliminares que podem ser descobertas nos álbuns de bandas de rock como Jefferson Airplane ou Nine Inch Nails, a conspiração sempre foi vista como uma espécie de discurso que se opunha ao governo burocrático o qual jamais pretendeu mostrar a verdade ao povo. O Estado e seus representantes de terno e gravata eram os inimigos a serem combatidos. Porém, com a eleição de Donald Trump em 2016, ocorreu uma reviravolta que, até agora, passou desapercebida: se antes a teoria conspiratória era uma espécie de complô que salvava a América das garras da tecnocracia corrupta, agora era o próprio governo que usava a desconfiança dos outros para permanecer no poder.
Não se trata de uma ideia nova, muito menos exclusiva do ex-presidente americano. Em 2008, os juristas Cass Sunstein (um democrata progressista) e Adrian Vermeule (um republicano católico) escreveram um artigo acadêmico intitulado “Teorias das Conspirações: Causas e Curas”. Eles explicaram no texto que, depois dos ataques de 11 de setembro, tornou-se fundamental entender o motivo de vários grupos marginais pretenderem culpar o governo americano pelo atentado terrorista contra o World Trade Center e o Pentágono. As teorias da conspiração não podiam ser desprezadas; elas deveriam ser combatidas porque, cedo ou tarde, prejudicariam o próprio funcionamento da sociedade. Por isso, os dois acadêmicos ofereceram uma solução insólita: a criação daquilo que eles chamaram de “infiltração cognitiva em grupos extremistas, elaborada para introduzir diversidade de informação nessas redes informais e assim expor suas teorias conspiratórias indefensáveis”. Em outras palavras: Sunstein e Vermeule acreditavam que a única maneira de acabar com uma conspiração seria estabelecer umaoutraconspiração.
No mundo segundo o QAnon (e Trump), isso faz perfeito sentido. Com suas migalhas de pseudoconhecimento a se multiplicarem em progressão geométrica nas redes sociais, fica evidente que a intenção dessa comunidade é criar um novo discurso o qual não só transforma o presidente americano em um “salvador”, mas que também ele seja um obstáculo para o que seria averdadeiraconspiração, a mais nociva de todas: a da Cabala. Sua principal arma é estimular a imaginação – e, com isso, a esperança do sujeito que acredita que voltará a ter algum controle sobre sua situação política, social e econômica. Não à toa que o QAnon afirmava que Trump seria o responsável pela “tempestade” (storm) que enfim revelaria a todos as perversões dos integrantes dodeep state. E mais: quem se inseria nesse grupo secreto era um eleito que viverá um novo “Grande Despertar” (The Great Awakening) – expressão histórica entre os americanos, a qual retrata o fervor religioso dos puritanos colonizadores nos séculos 17 e 18. Como bem escreveu o romancista Walter Kirn, o fascínio a respeito do QAnon se deve ao fato de que o seu líder misterioso sabe compartilhar como poucos a narrativa dele entre os leitores – e assim os transforma em seus parceiros. Ele lhes entrega o que promete: a possibilidade infinita de participar – e de alterar – os rumos da História.
No Brasil, um dos poucos na mídia que percebeu a importância do QAnon para alimentar a militância na fracassada campanha para a reeleição de Donald Trump foi o colunista da Folha de S. Paulo, Ronaldo Lemos. “Na prática o QAnon é uma rede articulada de produção de propaganda”, ele escreveu. “Em termos técnicos, é uma rede de Datti (Desinformação Adversarial, Táticas e Técnicas de Influência). Sua estratégia é uma das mais sofisticadas evoluções dos métodos de propaganda. Seu funcionamento ocorre por meio de um tripé de estratégias: (1) a coordenação entre pessoas anônimas pela rede, tática tornada famosa pelo grupo Anonymous (que o QAnon homenageia em seu nome); (2) a exploração de técnicas psicológicas como a chamada fixação funcional, muito comum em videogames; (3) os métodos desenvolvidos pelos chamados jogos de realidade alternativa (Alternative Reality Games),iniciados nos anos 2000 e aplicados à vida real com o auxílio da internet.”
Lemos chegou à mesma conclusão de Walter Kirn sobre a inventividade de quem participa dessa rede: “O QAnon influencia porque incentiva as pessoas a se tornarem ‘detetives’ na internet, em busca da ‘verdade’. Para isso, os mantenedores da estratégia espalham pistas muito bem escondidas pela rede. Um vídeo ali, uma informação em um site aqui, uma frase de um discurso político acolá. Ao não entregar a informação pronta, o [movimento] dá às pessoas uma sensação de inteligência e satisfação ao permitir que descubram ‘por si mesmas’ essa verdade oculta, cuidadosamente espalhada.” Em suma: com a ajuda de um imaginário deformado, não se trata mais de uma luta pelo poder por meio das categorias ultrapassadas de esquerda versus direita. Trata-se de uma luta a respeito de quem sobrevive no mundo da ficção e quem prevalece no mundo real.
Contudo, não devemos nos enganar na crença de que isso é algo que existe somente no território subterrâneo das ideias. Mesmo no ambiente religioso onde se movimenta o círculo íntimo de Antonio Donato, a imaginação apocalíptica que aquece o QAnon já alcançou a cúpula da Igreja Católica. Em outra carta aberta, lançada uma semana antes da data final para as eleições americanas de 2020, o arcebispo Carlo Maria Viganò e ex-núncio apostólico dos EUA, responsável por diversas críticas ao Papa Francisco, escreveu a ninguém menos que Donald Trump, afirmando que o republicano seria o “katechon” que impediria a realização de um plano macabro que mudaria o mundo como conhecemos. No caso, seu nome é o “Grande Recomeço” (The Great Reset), cuja principal meta é usar a pandemia do coronavírus, por meio de sucessivoslockdowns, para reelaborar a economia mundial e integrá-la de vez a um gigantesco governo globalista chefiado pela China. (De fato, há um livro com esse nome, co-escrito pelo criador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab – um dos maiores símbolos da Cabala –, lançado rapidamente em junho do ano passado, somente três meses depois da pandemia ter sido anunciada pela OMS.)
Para quem ainda não está acostumado com o vocabulário apocalíptico,katechoné uma expressão em grego, retirada da Segunda Epístola aos Tessalonicenses (atribuída ao apóstolo Paulo), e significa indistintamente “algo” que detém um poder e “contém” o definitivo triunfo do Espírito da impiedade (o Anticristo), travando assim “o seu aniquilamento pela força da boca do sopro do Senhor”. Aparentemente, segundo o italiano Massimo Cacciari, presume-se que os poderes que exerceriam esta função seriam o do Estado (na variação imperial ou “globalista”) e o da Igreja. Não é o que o arcebispo Viganò pensa: para ele, Donald Trump seria o único “poder que impediria” a destruição inevitável. Mais QAnon, impossível.
5.
Tanto o pensamento de Antonio Donato como o do QAnon são tipos de imaginação apocalíptica que se caracterizam, em sua essência, por uma atitude a qual, apesar de tomar emprestada o seu nome do famoso livro que fecha a Bíblia, é na verdade uma perversão dos seus ensinamentos. Neste caso, o seu seguidor fica obcecado com a proximidade indefinida do grande momento apocalíptico e isso o induz a ter um comportamento exaltado e extremo, que vai do ascetismo radical à generosidade extravagante, passando por atos violentos e a adoção de teorias conspiratórias. Trata-se de um pêndulo psicológico observado constantemente nas estruturas sociais dominadas por essa expectativa. De uma maneira ou outra, todas são profundamente antiautoritárias (ao menos a respeito das velhas autoridades). Geralmente começam como igualitárias radicais (por exemplo, contra a propriedade privada e a favor da propriedade coletiva) e acabam por se tornarem, conforme as circunstâncias, em sociedades ainda mais autoritárias e ainda mais desiguais, principalmente entre os seus membros. O que alimenta esse imaginário é a promessa do milênio que enfim restaurará a humanidade a uma perfeição igual a Deus e que existia antes da Queda de Adão e Eva. Essa salvação, entretanto, não é universal. Em sua essência, ela é um sentimento tipicamente elitista, reservado apenas para alguns sábios — “os poucos felizes”.
Desse modo, no Brasil, enquanto a imprensa se preocupava mais com as declarações bombásticas de Olavo de Carvalho, Antonio Donato agia na surdina. Não há nenhuma novidade nisso para quem já conhecia tanto o seu método como as características da imaginação apocalíptica. Um jornalista envolvido nos meios católicos me explicou que essa é a verdadeira natureza da tal “filosofia perene” defendida pelo professor. As referências a Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino são apenas disfarces para uma iniciação espiritual a qual somente os integrantes de um “núcleo duro”, escolhidos a dedo pelo professor, podem ser considerados como aptos a entender o seu verdadeiro ensinamento.
“É fundamental entender que o movimento ao redor do Donato é de caráter místico”, me disse essa fonte. “Ou seja: para os alunos, ele é um santo, e por isso deve ser idolatrado. Eles acreditam de verdade que estão com um sujeito que fala com os anjos e, logo, a sua estratégia está sempre certa, uma vez que ele conta com a ajuda divina”. Sem ter isso em mente, fica difícil compreender como ocorre a sua ação política no governo Bolsonaro. “De modo semelhante ao René Guénon, o Donato se vê anunciador de uma profecia, que ninguém sabe muito bem qual é porque ele reserva essa informação para os seus alunos mais próximos. Assim, é importante perceber que, em suas aulas, ele provoca a desconfiança de tudo sobre qualquer espécie de autoridade. Todos estão mentindo, segundo ele. Portanto, na cabeça dos discípulos, o único que fala a verdade a respeito do que acontece no mundo só pode ser o próprio Donato”.
E continua: “O Donato propõe uma imagem de uma pessoa ideal, do intelectual perfeito, mas com a diferença de que esse aluno já se vê como esse tipo de sujeito idealizado na vida real. Ocorre que, como estudar dá muito trabalho, o coitado fica sem saber o que fazer, e começa a surtar. O Donato fala que ele precisa ler quinhentas páginas por semana ou então acompanhar documentos ‘reservados’ sobre teorias da conspiração. Porém, ninguém em sã consciência consegue acompanhar esse ritmo. Então, passam a se sentir burros diante de tamanha sabedoria. E o que Donato faz? Ele afirma que, como o perigo da ‘cultura da morte’ é iminente, e não há tempo para estudar e compreender, a solução é agir. E assim ele pede a esses mesmos alunos que façam tarefas impossíveis, mas como elas foram ditas por alguém que conversa com os anjos, o melhor é cumpri-las sob pena de cometerem omissões ou pecados graves contra a própria alma.”
Alguns relatos de apelo místico afirmam que a profecia da qual Antonio Donato seria o seu maior representante é a que envolve justamente Dom Bosco, o santo católico italiano que viveu no século 19, foi fundador da ordem salesiana e homenageado no país como o padroeiro de Brasília. Heloísa Gusmão explica que soube da seguinte conversa, na qual Donato afirma que “Dom Bosco fez uma profecia que haveria um ressurgimento espiritual fora do comum aqui no Brasil, inconcebível. Ele não disse a data, mas disse a data antes da qual não aconteceria. Disse que primeiro seria fundada a cidade de Brasília, e surgiria um lago e depois disso seria encontrada uma grande quantidade de minério e depois disso, não se sabe quando, surgiria uma renovação espiritual fora do comum naquela terra, que a gente não sabe se é Brasília, se é o Brasil, se é a América Latina.”. Ao ser questionado se ele teria sido “profetizado” pelo sacerdote italiano, Donato negou isso com risos, sem, contudo, se esquecer de afirmar o seguinte: “Não sou eu, porque toda esta renovação que a gente está vendo no Brasil não é a gente. Eu diria que o Espírito Santo está fazendo Seu papel e cada uma dessas peças faz parte de um quebra-cabeças que não é a gente que tá fazendo. E isso é motivo de esperança”.
Neste tipo de imaginário apocalíptico que ocorre no Brasil, a solução prática parece ser a existência de um “líder providencial”, personificado na figura de Jair Bolsonaro, em que o misticismo se transforma em distopia. Como bem me explicou o jornalista católico: “Para eles, o comunismo está prestes a invadir o país, junto com o gayzismo, e todos os cristãos estarão prestes a irem para a cadeia. Portanto, o Donato e seus discípulos precisam apoiar o Bolsonaro, mesmo com todos os defeitos dele, justamente para evitarem a catástrofe. Enquanto isso, o professor educa uma nova geração que irá combater a esquerda e todos os seus representantes considerados satânicos, como os globalistas e os abortistas”.
6.
A imaginação apocalíptica representada pela “filosofia perene” de Antonio Donato também nos ajuda a entender uma pergunta simples, mas essencial, a respeito das ideias que rondam o Ministério dos Direitos Humanos: como um gabinete, cuja líder é uma pastora evangélica, permite que seus cargos de confiança sejam preenchidos por católicos? Não haveria aí uma contradição, uma vez que é notória a rivalidade entre esses grupos religiosos?
Na verdade, a resposta para essa questão está na ponte eclesiástica construída pela Igreja Católica nos últimos anos para justamente conversar com os evangélicos e também para diminuir a queda no número dos fiéis: a Renovação Carismática Católica (RCC), surgida na década de 1960. Seus membros são apelidados de “carismáticos” porque, a grosso modo, acreditam que são veículos do Espírito Santo na defesa do cristianismo. Não por acaso, graças a esta crença, Antonio Donato conseguiu dar as suas aulas em várias reuniões do movimento, apelando sobretudo para o lado místico, auxiliado pela profecia de Dom Bosco. Na carta pública à Montfort, Heloísa Gusmão conta, em detalhes, como foi um desses encontros onde Donato estava presente, ocorrido no ano de 2018 em um famoso local para os membros da RCC: a Comunidade Vida de Aliança da Misericórdia, estabelecida no bairro paulistano da Bela Vista.
“Havia em torno de 150 pessoas”, ela narra, “de diversas partes do Brasil, destacando-se alguns padres, uma freira, alguns membros do Centro de Estudos Dom Bosco, professores de Teologia, uma protestante que há anos frequenta as aulas do Donato e não se converte (apesar da fama de santidade dele...) e representantes de vários núcleos criados desde os anos 90 pelo Donato, chamados de Anistia Pela Vida, principais ativistas da causa pró-vida no Brasil”.
Donato iria ministrar uma aula dividida em duas partes, “uma pela manhã e outra à tarde”. Gusmão acreditou que “tudo o que o Donato ensinasse fosse gravado e passado entre os alunos, mas qual foi minha surpresa ao descobrir que toda a primeira parte era apenasad intrae ele pediu repetidas vezes que não se falasse para ninguém de fora o que fosse ‘só para nós’.”
Depois, continua o relato, ele “passou a palavra a um militante pró-vida e este começou a exortar que todas as pessoas envolvidas com a Anistia não deveriam criticar nenhum político que se apresentasse pró-vida, por omisso que parecesse, pois só os militantes ali presentes é que sabem, nos bastidores, se os políticos estão fazendo algo, mesmo que por baixo dos panos, para ajudar as pautas deles (as da nova direita). Donato até tentou consertar, acrescentando que não se trata de não denunciar um político pró-vida que estivesse envolvido em corrupção, roubo, tráfico de drogas, etc, mas sim de se calar caso ele se mostrar inativo em relação às reivindicações da causa pró-vida: independente de ser petista, independente de ser liberal, independente de ser tudo o que a Igreja Católica condena num político”. Gusmão observou que, apesar de não terem sido “citados os nomes dos políticos que negociam com a Anistia (ou melhor, que compram o silêncio destes católicos apenas por se dizerem pró-vida)”, ela desconfiou que “as críticas ao Bolsonaro [então candidato à presidência], depois deste conselho”, diminuiriam bastante.
Assim, com a queda de prestígio do bolsolavismo por causa das trapalhadas midiáticas de Olavo de Carvalho e seus asseclas - além da derrota brutal sofrida nos pleitos municipais em novembro de 2020 e do acordo tácito entre o Supremo Tribunal Federal e o chamado “Centrão” do Congresso para manter sua família fora das investigações policiais -, não seria um exagero presumir que o presidente Jair Bolsonaro se apoiará na pauta moral do Ministério dos Direitos Humanos para permanecer fiel à sua agenda de costumes e manter o encanto desse público religioso para a sua reeleição na campanha presidencial de 2022. O carisma de Damares Alves une os olavistas remanescentes, a elite católica, os membros da bancada evangélica no Parlamento e, sobretudo, os jovens cristãos que têm quase um carinho maternal por ela – como provam as 143 mil pessoas que a assistiram e a aplaudiram no estádio do Morumbi, durante o discurso proferido em fevereiro do ano passado, no evento evangélico The Send 2020, dedicado à juventude religiosa.
Este raciocínio pragmático é comprovado se lermos com atenção os dados compilados pelo pesquisador Franco Iacomini, no seu livretoEvangélicos No Brasil, lançado em formato e-book pelo jornal Gazeta do Povo. Ele comenta, a partir da pesquisa do Instituto Datafolha publicada em 25 de outubro de 2018 – portanto três dias antes da votação do segundo turno presidencial – que os números apresentados eram muito próximos daqueles verificados nas urnas: “56% dos votos válidos para Bolsonaro (foram 55,13% no resultado oficial), 44% para Fernando Haddad, do PT (44,87%, segundo o Tribunal Superior Eleitoral). Em extrapolação levando em conta os números totais da população brasileira, José Eustáquio Diniz Alvez conclui que os evangélicos deram 21,7 milhões de votos a Bolsonaro e 9,7 milhões a Haddad. A diferença entre eles é de 11,9 milhões de votos – mais do que os 10,7 milhões que deram vantagem ao candidato vencedor no resultado final. Esse cálculo, aliado à percepção de que os resultados foram bem mais apertados em outros grupos religiosos, aponta que os evangélicos deram uma vantagem decisiva ao candidato do PSL.”
7.
Isso é apenas mais uma evidência de como o imaginário apocalíptico, guiado por Antonio Donato no Brasil, será uma forte tendência política nos próximos anos, independentemente de quem estará no Palácio do Planalto. Um exemplo é o que aconteceu em 22 de outubro de 2020, quando o governo Bolsonaro apoiou e assinou, em Washington (DC), a Declaração do Consenso de Genebra, junto com os Estados Unidos [então na administração Trump], Egito, Hungria, Indonésia e Uganda. Segundo o texto, o acordo se apoia em quatro pilares: melhorar a saúde das mulheres; preservar a vida humana; fortalecer a família como a unidade fundamental da sociedade; e proteger a soberania de cada nação diante da política global. Ao participar da cerimônia virtual, em Brasília, a ministra Damares Alves disse que “celebramos que o texto da declaração ora assinada consagre a inexistência de um direito à interrupção voluntária da gravidez, como às vezes se afirmam em determinados fóruns internacionais.” O assunto era claro – o aborto – e o alvo era a Organização das Nações Unidas (ONU).
Não é crime nenhum lutar contra a cultura da morte. Em uma democracia liberal, como a que ainda vivemos, pode-se argumentar que se trata de um lado tão válido quanto os defensores da “liberdade de escolha do corpo feminino” ou das benesses da governança globalista. Porém, ao reconhecer a influência de grupos secretos como o QAnon e o de Antonio Donato nas respectivas políticas dos seus países, é necessário admitir que estamos diante de um falso problema.
A questão não é ser a favor ou contra, por exemplo, o aborto ou a ideologia de gênero. O ponto aqui é saber se estes assuntos delicados não estão sendo usados para manter a permanência das elites que mal se preocupam com o que realmente acontece com o cidadão comum – e com as suas crianças. No exemplo específico do Brasil, o historiador José Murilo de Carvalho comenta que há uma antiga tradição intelectual de achar que o país nunca teve uma cidadania de fato. Ele cita o famoso aforismo do jornalista Aristides Lobo, na época da proclamação da República, no qual o povo, supostamente o protagonista de acordo com o ideário republicano, “assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se passava”.
Essa contradição permanece até hoje. De eleição em eleição, a democracia liberal brasileira revela ser cada vez mais dependente de uma troca de elites, ora de esquerda, ora de direita, e todas elas estruturadas em função de uma imaginação apocalíptica constantemente sufocada pela mesmaintelligentsiaque insiste viver em uma ficção secular. Portanto, nesta luta obsessiva contra a cultura da morte, todos os envolvidos nela caíram no perigo de manipular os anseios de uma população que pretende viver na verdade, ao oferecerem algo pior do que a mentira: ameia-verdade. Como bem explicou outro historiador, o inglês John Lukacs, “Santo Tomás de Aquino disse que a meia verdade pode ser mais maligna que uma mentira. Uma meia-verdade não é equivalente a 50% da verdade. Na verdade, trata-se de 100% de uma verdade misturada e subordinada a 100% de uma mentira, resultando em uma corrupção da verdade especialmente perigosa.”
Com isto em mente, é preciso recuperar o que o político Honoré Mirabeau afirmou a respeito de Robespierre, logo depois que o ouviu falar pela primeira vez, no auge da Revolução Francesa: “É um homem muito perigoso, pois acredita em tudo o que diz”. No caso brasileiro, o mesmo pode se aplicar a todos que desejam impor no país, sem amarras, a sua imaginação apocalíptica.
*A reportagem gostaria de agradecer a ajuda do jornalista Marlos Ápyus.
[1]As três fontes procuradas pela reportagem (que deveria ter sido publicada pela revistaPiauí) para confirmar os fatos aqui descritos – a intelectual católica, um ex-aluno de Antonio Donato e um jornalista envolvido nos meios religiosos – só aceitaram ter suas declarações publicadas neste texto sob a condição de permanecerem em anonimato. Sem se conhecerem entre si, foram unânimes em temer represálias dos alunos de Donato, além de, segundo uma delas, me afirmar que “pretendia ficar longe dessa loucura porque era coisa do Diabo”.