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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quinta-feira, 5 de setembro de 2024

O Brasil e a proposta de expansão do Brics - Maria Hermínia Tavares

 

Maria Hermínia Tavares - O Brasil e a proposta de expansão do Brics

Folha de S. Paulo

Com a ampliação de 2023, a que o Brasil resistiu, grupo perdeu nitidez de propósitos

Mudanças importantes em curso na cena internacional propõem desafios inéditos para a política externa brasileira e exigem revisão das visões e estratégias que a caracterizaram ao longo de muitas décadas. Um desses desafios é decidir o que fazer com o Brics diante da segunda ampliação do bloco proposta por China e Rússia.

Durante 14 anos, o grupo foi formado pelos quatro países que o fundaram em 2009 e lhe deram o nome —Brasil, Rússia, Índia e China— mais a África do Sul, que a ele se juntou logo depois, daí o S final da sigla.

No ano passado, incorporou cinco novos membros, nenhum conhecido por praticar a democracia.

Com a ampliação, a que o Brasil resistiu, o Brics ganhou em participantes o que perdeu em nitidez de propósitos. A vingar a proposta ora em discussão, seriam admitidas mais 34 nações da Ásia, África, Oriente Médio e América Latina (Venezuela, Honduras, Cuba e Nicarágua) com níveis díspares de desenvolvimento e distintas formas de governo autocrático.

Ora em dieta de engorda, o bloco surgiu da convergência de países emergentes —com ambições globais— em torno do compromisso de buscar uma arquitetura econômica internacional mais aberta e menos dominada pelos países norte-ocidentais. Tratava-se de apoiar os esforços do G20 para lidar com a crise global e reformar as instituições financeiras multilaterais de regulação econômica, em especial o FMI e o Banco Mundial.

Em suma, o Brics seria uma ferramenta para dar vez e voz a seus criadores ali onde são tomadas as decisões que contam para a economia mundial.

Considerado pelo professor Oliver Stuenkel (FGV-SP) como uma das duas mais importantes inovações na governança global neste século —a outra seria o G20—, o Brics, contra muitas previsões pessimistas, logrou se institucionalizar.

Suas vitórias foram escassas no que respeita a reformas das instituições financeiras multilaterais.

Maiores foram os êxitos no interior do bloco: adensamento das relações bilaterais; estabelecimento de diferentes formas de cooperação; criação do Novo Banco do Desenvolvimento —o chamado Banco do Brics. O Brasil se beneficiou de muitas maneiras do intercâmbio adensado com os parceiros.

Por outro lado, a disparidade de nascença em matéria de recursos de poder entre a China e os demais membros do grupo —que só aumentou com o tempo— colocou-o diante de dois cenários possíveis: um, funcionar como uma coalizão de nações que buscam mais protagonismo no âmbito da ordem internacional existente; outro, transformar-se em mais um instrumento da ascensão da China à condição de grande potência.

O aumento do bloco em 2023 e a atual proposta de inclusão de novos membros aponta na direção do segundo cenário. Não há o que explique a escolha dos 34 candidatos a membro, salvo a intenção de promover o Brics a pilar de sustentação de uma ordem internacional pós-ocidental liderada pela China.

Nessa nova ordem, há ganhos comerciais e econômicos para o Brasil e os outros parceiros do bloco. Mas dificilmente —e por razões óbvias— haverá espaço para que floresçam a democracia, a liberdade e os direitos individuais.

sábado, 6 de abril de 2024

Chocante placidez da diplomacia lulopetista em face dos crimes russos - Anne Applebaum

O Brasil, Lula, o PT, o Itamaraty (nessa ordem) consideram normal assistir passivamente um Estado agressor massacrar o povo e destruir completamente um outro Estado? Não teriam nada a dizer sobre esses crimes? Por que o silêncio estridente? Chocante!

From: Anne Applebaum

Looks like the Russian plan is now to treat Kharkiv, once a city of 2 million people, the same way Russia treated Grozny, Aleppo, Mariupol: turn it to rubble https://www.bbc.com/news/world-us-canada-68747752 


segunda-feira, 4 de março de 2024

Algum retrocesso em vista no sistema internacional? No próprio Brasil? - Paulo Roberto de Almeida

Algum retrocesso em vista no sistema internacional? No próprio Brasil?

Paulo Roberto de Almeida


Nosso sistema imunológico na área política, interna e externa, ainda não conseguiu criar uma vacina eficaz contra as ditaduras, sobretudo as eleitorais e/ou plebiscitárias. Existem algumas na região e várias ao redor do mundo, inclusive no BRICS+, o xodó do Grande Guia, apreciado por muitos. Fatalidade geopolítica ou escolha ideológica?

O quê, exatamente, o Brasil e o povo brasileiro ganham ao ver o seu atual governo apoiar ditaduras execráveis ao redor do mundo, especialmente duas grandes autocracias que pretendem criar uma “nova ordem global”, supostamente oposta, contrária e substitutiva à atual ordem econômica e política mundial, que deriva de Bretton Woods (1944) e de San Francisco (1945), uma ordem baseada em regimes democráticos, de economias de mercados livres e garantidores de direitos humanos?

Repito a pergunta: o que o Brasil ganha ao se opor à atual ordem “ocidental”, aparentemente tão desprezada pelos que nos governam? 

O que se espera com essa “nova ordem global”, que para ser implantada necessitaria o “afastamento” da ordem prevalecente atualmente? Pacífico, consensual, por livre escolha? Ou por imposição da força bruta? Pela força do Direito ou pelo direito da força?

Alguma rationale credível do ponto de vista dos interesses nacionais, dos valores e princípios de nossa Constituição, de nossa diplomacia, das regras e normas que presidem o Direito Internacional e a Carta da ONU?

O governo atual ainda não conseguiu chegar à conclusão de que a guerra de agressão da Rússia de Putin contra a Ucrânia vizinha constituiu uma violação flagrante da Carta da ONU e do Direito Internacional? O que falta para chegar a essa conclusão elementar? 

Seria preciso um “puxão de orelhas” de alguma instância da ONU, o Conselho de Direitos Humanos, por exemplo, ou, eventualmente, um ruling da Corte Internacional de Justiça?

Não bastaria uma simples adequação a certas simples normas éticas, ou a princípios elementares de moral pública?

Como confundir agressor ou agredido, como equiparar as duas partes em conflito, como se elas fossem equivalentes, no plano do Direito, ou da realidade empírica visível aos olhos de todos e cada um?

Confesso minha estupefação em face desses fatos, não apenas como diplomata, ou estudioso das relações exteriores do Brasil e da sua diplomacia, mas como simples cidadão bem informado e engajado nas causas democráticas e dos DH.

Confesso que não entendi certas coisas, e que não consigo suportar a desfaçatez, a mentira e a deformação da realidade. 

Confesso minha desconformidade e meu contrarianismo, fundamentados num ceticismo sadio sobre certas escolhas de autoridades e poderes públicos que me parecem contrárias ao nosso sentido de  Justiça, à nossa definição de democracia e de respeito aos DH. 

Por que admitir tais retrocessos no âmbito interno e no contexto internacional?

Por quê?

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 4/03/2024

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

O renascimento da política externa (no governo de Michel Temer) (2016) - Paulo Roberto de Almeida (Revista Interesse Nacional)

 2983. “O renascimento da política externa”, Brasília, 25 maio 2016, 14 p. Artigo para a revista Interesse Nacional a pedido do Embaixador Rubens Antônio Barbosa. Publicado na revista Interesse Nacional (ano 9, n. 34, julho-setembro de 2016; link: https://interessenacional.com.br/o-renascimento-da-politica-externa/). Reproduzido no blog Diplomatizzando (3/08/2016; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/08/o-renascimento-da-politica-externa.html). Relação de Publicados n. 1238.


 

    Chamada da revista: 

A política externa foi um dos temas mais polêmicos da era Lula e mereceu profunda análise crítica do diplomata de carreira Paulo Roberto de Almeida. Em seu artigo nesta edição, ele fala do “renascimento da política externa” sob o governo do presidente Michel Temer. “A política externa precisa retornar aos padrões habituais de profissionalismo e de isenção na análise técnica dos problemas que sempre estiveram afetos ao Itamaraty. Ambas, a política e a instituição, foram bastante deformadas nos anos de lulopetismo diplomático, quando uma e outra foram submetidas e ficaram ao sabor das preferências e alucinações partidárias, quando não a serviço de outras causas que não o interesse nacional”, afirma.

O renascimento da política externa

 

Paulo Roberto de Almeida *

Publicado na revista Interesse Nacional (ano 9, n. 34, julho-setembro de 2016, link: https://interessenacional.com.br/o-renascimento-da-politica-externa/). Divulgado no blog Diplomatizzando (3/08/2016; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/08/o-renascimento-da-politica-externa.html) e disseminado no Facebook (https://www.facebook.com/paulobooks/posts/1208798299183618). Relação de Publicados n. 1238.

 

 

Um livro branco que desapareceu

 No primeiro trimestre de 2014, o então segundo chanceler do terceiro governo lulopetista anunciou, com grande transparência, o início dos chamados “Diálogos de Política Externa”, uma série de exercícios de reflexão a propósito de temas selecionados da diplomacia brasileira, para os quais foram convidados os próprios diplomatas (chefes das diversas áreas do Itamaraty), ademais de funcionários públicos, acadêmicos, líderes do mundo empresarial e representantes dessa vaga entidade chamada “sociedade civil” – na qual atuam, na verdade, entidades que costumam servir de correias de transmissão para determinados movimentos políticos – e que deveriam oferecer subsídios para integrar um “Livro Branco da Política Externa”, que deveria estar disponível até meados daquele ano. Os diálogos foram gravados, os vídeos colocados nos canais apropriados, mas o livro prometido não viu a luz do dia, em nenhum momento desde então. 

Muito provavelmente – mas isto é apenas especulação –, a síntese dos diálogos, efetuada por diplomatas profissionais, deve ter se chocado com alguns conceitos caros aos companheiros que comandaram aos destinos do Brasil desde janeiro de 2003 até o dia 12 de maio de 2016, quando eles foram desalojados do poder executivo e de outros órgãos estatais. No intervalo entre sua elaboração e nossos dias, o projeto de “livro branco” deve ter ficado dormindo em computadores do próprio Itamaraty e, mais precisamente, na gaveta de algum assessor dos preclaros promotores da “diplomacia ativa e altiva” – que, na verdade, deixou de sê-la há algum tempo – esperando, talvez, alguma correção nos seus termos, segundo os cânones da “novilíngua” companheira. 

Com a assunção de um novo governo, o mais provável é que o livro se torne ainda mais diáfano, até desaparecer em alguma estante do arquivo morto. Os diplomatas profissionais, que devem ter tomado cuidado ao tentar compatibilizar sua visão isenta, basicamente técnica da agenda internacional do Brasil, com a Weltanschauung petista – marcada pelos pré-conceitos mais cultivados nestes anos de bolivarianismo caboclo –, podem não ter mais vontade de mostrar o produto confeccionado em meados de 2014 ao novo titular da chancelaria, que poderá pedir, ou não, um outro livro branco, ou simplesmente deixar de lado esses exercícios de divertissement intelectual.

 

Alguma “herança maldita” na política externa? 

A despeito de sua pouca relevância no jogo político normal, existem diferenças naturais de visão no que se refere à agenda da política externa entre os partidos e os movimentos políticos que disputam espaços no cenário político-congressual de qualquer país. Em matéria de relações exteriores, o melhor a fazer é construir consensos em torno das melhores políticas para a interface externa do país do que ficar confrontando esta ou aquela questão, como se fossem propostas antagônicas, ou como se apenas uma servisse ao país e a outra fosse ser totalmente prejudicial. Diplomacia se faz pela criação de consensos, não pelo aprofundamento de divergências. O partido companheiro parece ter feito exatamente o inverso nos treze anos em que esteve à frente dos destinos do Brasil.

Segundo seus próprios promotores e condutores, a política externa do Brasil, assim como sua diplomacia profissional, sofreram profundas inflexões ao longo desse período, mais exatamente desde antes da inauguração dos governos do PT, a partir de 2003, prolongados por três mandatos e meio. Com efeito, ainda em dezembro de 2002, os companheiros se mobilizaram para salvar Hugo Chávez, então enredado por uma greve da PDVSA, que ameaçava paralisar o país: o governo FHC consentiu em enviar um navio da Petrobras repleto de combustíveis, num típico papel de “fura-greves” que não se sabia existir naquela administração em princípio comprometida com o princípio constitucional da não ingerência nos assuntos internos de outros países.

De modo geral, a “diplomacia ativa e altiva” dos companheiros – segundo o slogan cunhado pelo próprio (e principal) chanceler da era do Nunca Antes – contou com a aprovação inquestionada do amplo leque de militantes dos partidos de esquerda e do apoio crítico de larga fração da comunidade acadêmica, geralmente representada por universitários das Humanidades. Jornalistas experientes não deixaram, porém, de apontar o nítido caráter partidário dessa política externa, bem como a utilização do ferramental diplomático para a condução de determinadas iniciativas que se revelaram em contraste com tradições assentadas no Itamaraty, quando não em contradição com certo consenso nacional que tinha sido construído ao longo de décadas no que se refere às grandes linhas de atuação da política exterior do Brasil.

Dois grandes temas sobrelevam sobre os demais no conjunto de posturas no plano externo a que o Brasil foi levado nos anos da diplomacia do PT: o alinhamento geral da política externa brasileira a teses nitidamente caracterizadas como pertencentes ao espectro partidário da esquerda latino-americana, com a perda consequente de sua credibilidade, e o isolamento comercial do Brasil num momento de aceleração dos processos de globalização e de consolidação de grandes cadeias produtivas em escala regional ou mundial. Já efetuei breve análise dessas duas heranças da diplomacia companheira em artigo de jornal – “Epitáfio do lulopetismo diplomático”, O Estado de S. Paulo (17/05/2016; link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,epitafio-do-lulopetismo-diplomatico,10000051687) – o que me permite, ainda que também de maneira sintética, passar diretamente à análise de alguns outros grandes temas da agenda internacional do Brasil que figuram na pauta do Itamaraty pós-lulopetismo. 

Antes, contudo, convém desmantelar o próprio símbolo, e o maniqueísmo a ele implícito, usado pelos companheiros para tentar classificar a sua diplomacia como a única possível para um Brasil “soberano” e supostamente “não submisso a interesses hegemônicos”, o que já é indicativo de uma fraude conceitual. A chamada diplomacia “ativa e altiva” nada mais foi do que um slogan, como muitos outros criados durante esses anos. O slogan nada diz sobre o conteúdo específico da política externa, mas deixa entrever que esta se opunha a supostas potências hegemônicas que estariam interessadas em manter o Brasil periférico ou subordinado. Como outros fantasmas do partido neobolchevique, essa é uma visão ingênua do mundo, como se o Brasil pudesse ser submetido por qualquer outro país. Traduz também um infantilismo confrontacionista ou até certa insegurança psicológica quanto ao que deveria ser feito. Soberania não se defende com retórica barata, com proclamações altissonantes, mas com atos concretos, sem bravatas, promovendo políticas consistentes com os interesses do país, sem qualquer alinhamento com grupos ou outros países, em total independência.

A acusação de má-fé de que se pretende agora inverter a política externa do Brasil, afastá-la da América Latina para alinhá-la com os Estados Unidos e a Europa é ridícula, se não fosse torpe, tão absurda que nem merece refutação, pois só expressa o desejo dos companheiros de justamente antagonizar, dividir, praticar o maniqueísmo habitual que os caracteriza. Tal visão de que existem dois modelos de política externa, e que só o da era Lula representava a soberania e a defesa do interesse nacional é falsa e apenas expressa o profundo simplismo que polui a mente dos companheiros. Que isso seja proclamado por militantes, pode-se entender; quando são acadêmicos que afirmam isso, só podemos lamentar que esses acadêmicos sejam tão simplórios ou desonestos intelectualmente. A noção de uma “diplomacia Sul-Sul”, por exemplo, é tremendamente redutora, pois apenas mentes fechadas, olhos tapados por viseiras ideológicas, podem conceber que o essencial das relações exteriores do Brasil passe por essa dimensão geográfica exclusivamente. O Brasil sempre se desenvolveu abrindo-se a todos os quadrantes do globo, recebendo aportes humanos, de conhecimento, investimentos de todas as partes; por que agora tentar reduzir essa riqueza a um novo determinismo geográfico? Por que o Brasil teria de reduzir o escopo de suas relações, restringir o amplo leque de relações? Vamos agora ao que interessa.

 

A política externa numa agenda nacional de desenvolvimento

A política externa tem, realisticamente, um papel secundário em face dos grandes problemas nacionais. A maior parte desses problemas são “made in Brazil”, e devem receber respostas e soluções puramente nacionais. O ambiente externo tem sido, na verdade, favorável ao crescimento dos países que souberam aproveitar os impulsos e as oportunidades externas para alavancar avanços internos. A política externa poderia ter um papel relevante na agenda nacional se o Brasil fosse mais aberto ao comércio internacional e bem mais receptivo aos investimentos estrangeiros e associações com os países mais avançados tecnologicamente, fatores relevantes para projetos nacionais de desenvolvimento. Uma comparação entre os países de mais alta renda per capita e seus respectivos coeficientes de abertura externa comprovam esta assertiva. Este deveria ser um argumento suficientemente convincente para justificar um processo de abertura comercial e de maior aproximação aos países líderes do desenvolvimento tecnológico e cultural no mundo. Uma política externa compatível com os interesses nacionais precisaria se concentrar numa agenda desse tipo, o resto sendo secundário, inclusive as alianças Sul-Sul, que só nos afastam desses objetivos prioritários.

Pode o Brasil encarar, internamente, a ampliação de facilidades no comércio exterior, com o desmantelamento de entraves administrativos e sistêmicos a uma elevação dos fluxos de exportações e de importações? Tal processo teria de ser paralelo e coincidente com um processo de diminuição da carga tributária sobre as empresas, insuportável sob qualquer critério que se examine. Paralelamente seria iniciado um esforço de revisão completa das bases de funcionamento da união aduaneira do Mercosul, a começar pela alternativa entre: (a) unificação de suas regras de aplicação; ou (b) negociação de um protocolo adicional ao Protocolo de Ouro Preto (POP), introduzindo a possibilidade de negociação externa individual de novos acordos de liberalização, com preservação da cláusula de nação-mais-favorecida para dentro. Sob a segunda hipótese, o Brasil poderia negociar acordos com a UE, a Aliança do Pacífico e até com os EUA, prevendo redução de tarifas, abertura a comércio de serviços, defesa de propriedade intelectual e regras estáveis para investimentos, abertos aos demais membros do Mercosul, se estes assim o desejassem.

Não há muito que o Brasil possa fazer no plano das negociações comerciais multilaterais, seja no âmbito da Rodada Doha (paralisada), seja no contexto da agenda de Bali, ou qualquer outra. O que cabe, sim, é examinar os demais acordos plurilaterais existentes no sistema multilateral de comércio, verificar a compatibilidade com o processo (a ser conduzido) de reforma na política comercial nacional, e considerar a hipótese de aderir a esses outros instrumentos de abertura e facilitação. No plano plurilateral, caberia examinar os acordos bilaterais de livre comércio, ou simplesmente de preferências tarifárias, que o Brasil poderia começar a negociar com os mais relevantes parceiros do comércio internacional, que não são exatamente os do antigo G20 comercial, onde estão os maiores obstrutores de uma agenda aberta, e aos quais estivemos vinculados por simples decisão política e ideológica tomada em 2003.

Na vertente da política industrial, os governos petistas promoveram cinco ou seis, todas fracassadas, e se dedicaram a improvisações e puxadinhos, que criam uma selva de regulações diferenciadas entre setores, com regimes fiscais diferentes, inclusive desrespeitando o princípio da isonomia tributária que deveria pautar as ações do governo, além das regras de não discriminação do Gatt-OMC. A política industrial está intimamente relacionada à política comercial, e, na sua vertente externa, deveria dedicar-se a atrair o máximo possível de investimentos estrangeiros e incentivar associações com o que há de mais tecnologicamente avançado no mundo. A política Sul-Sul nunca pôde, inquestionavelmente, cumprir esse papel. Independentemente de o Brasil ser ou não membro da OCDE, caberia associar-se ao Comitê de Indústria dessa organização e passar a examinar todos os protocolos, códigos e demais normas voluntárias estabelecidas naquele âmbito, de maneira a colocar a indústria brasileira num contexto de plena conformidade com os padrões internacionais nessa área.

Uma das primeiras tarefas internas seria retomar, reexaminar, eventualmente assinar ou renegociar todos os acordos bilaterais de proteção a investimentos, os APPIs, que foram sabotados pelos petistas antes mesmo de assumirem o governo em 2003. O Brasil descumpriu mais de uma dezena de acordos assinados com os mais importantes parceiros exportadores de capitais e de investimentos diretos. Deixou de oferecer um ambiente seguro e estável para esses investimentos, assim como deixa de oferecer um ambiente estável para os próprios empresários brasileiros do setor. Caberia trabalhar com a CNI e algumas federações estaduais mais ativas nessa área, com o objetivo de colocar o Brasil no mesmo patamar regulatório que os países mais avançados, deixando de lado o stalinismo industrial praticado pelo último governo petista. 

Estas áreas, comercial e industrial, são as mais relevantes na interface entre uma agenda interna de desenvolvimento e uma agenda diplomática na área econômica. Existem outras, por certo, relativas à tecnologia, à propriedade intelectual (na qual os governos lulopetistas também promoveram inacreditáveis retrocessos conceituais e práticos), à cooperação científica e educacional – durante muito tempo toldada pela distorção ideológica da diplomacia Sul-Sul – e até no terreno das políticas de segurança e de capacitação bélica, igualmente marcadas pelo anti-imperialismo infantil dos companheiros e por suas alianças espúrias nesse terreno. Todas elas possuem algum impacto econômico relevante para um projeto nacional de desenvolvimento, mas cabe insistir em que o ambiente internacional é bastante favorável ao crescimento do Brasil, à condição que este empreenda reformas internas capazes de potencializar a sua inserção na economia global.

 

O problema do Mercosul

O Mercosul é o mais importante problema diplomático do Brasil, mas também econômico-comercial. Desde 2003, ele deixou de ser uma ferramenta para a inserção internacional do Brasil, tal como tinha sido concebido no início dos anos 1990, e tornou-se um problema triplo: diplomático, econômico e de política comercial. Os desvios quanto aos objetivos do Tratado de Assunção (TA), detectados ainda na fase 1995-1999, foram ampliados depois da crise argentina, e potencializados pelo curso errático das políticas adotadas pelas administrações Kirchner e Lula desde 2003. O tripé essencial para a continuidade do bloco – liberalização comercial para dentro, política comercial unificada para fora e coordenação de políticas macro e setoriais – foi totalmente desvirtuado a partir de então, em favor de uma politização indevida das instituições próprias ao bloco, seguindo-se uma verdadeira anarquia institucional.

No campo das negociações externas, ocorreu um grande desastre, ao se adotar uma postura defensiva baseada no mínimo denominador comum, que passou a ser o protecionismo argentino. A implosão ideológica da Alca e a crença ingênua num acordo com a UE foram dois passos irrefletidos no caminho da insensatez. Nada avançou a partir de então, a não ser acordos ridículos na dimensão Sul-Sul, e um com Israel, apenas para compensação visual. Não estranha, assim, que vizinhos mais sensatos tenham procurado suas próprias soluções para comércio e investimentos, ao negociar acordos com os EUA, com a UE e outros parceiros, e ao adotar seus próprios esquemas de liberalização real dos fluxos comerciais (Aliança do Pacífico), já pensando na grande integração produtiva que terá seu centro na bacia do Pacífico e até no Índico, reunindo todos os grandes atores do comércio internacional (dos EUA à Austrália, e toda a Ásia Pacífico integrada na globalização). O Brasil e o Mercosul estão totalmente ausentes desse novo universo absolutamente central da atual e futura economia mundial.

Pior ainda foi a expansão indevida, totalmente política, do Mercosul em direção a vizinhos pouco propensos a adotar os mecanismos básicos da união aduaneira tal como definida em 1991 e supostamente implementada em 1995 pelo POP. O ingresso da Venezuela, a suspensão ilegal do Paraguai, a abertura apressada e injustificada a parceiros incapazes de cumprir os requisitos básicos do TA (como Bolívia, Equador, talvez Suriname) não apenas não retificam o que foi feito de errado no Mercosul, como acrescentam novos problemas ao edifício instável do bloco.

Existem problemas no Mercosul, mas poucos derivam de mecanismos e instituições do próprio bloco, vários resultando de políticas, atitudes e comportamentos das administrações nacionais, com destaque para a Argentina, mas contando ela com a conivência, complacência e cumplicidade dos governos petistas. Os problemas se situam na zona de livre comércio – e aqui o diálogo único a ser travado é com a Argentina – mas também na união aduaneira, o que envolve todos os parceiros, mas em especial a Argentina e o Paraguai. Nem se considera o problema da Venezuela, que deriva de seu próprio caos econômico: ela deveria ser, simplesmente, colocada em quarentena e isolada das negociações que precisam ser feitas com os sócios originais do bloco, para que se possa iniciar o processo de renegociação diplomática.

No plano do livre comércio, caberia fazer um mapeamento dos impedimentos práticos à sua total consecução, e isolar esses setores numa espécie de “caixa amarela”, para então começar a discussão sobre seu enquadramento ou dispensa semipermanente. No campo da união aduaneira, caberia, igualmente, contabilizar e identificar os fluxos que são levados ao abrigo e fora da TEC, para um diagnóstico mais detalhado da situação. O mais importante, porém, seria um exercício de exame das políticas comerciais dos quatro membros – ao estilo da OMC, adaptado às configurações do bloco – com vistas a ter um panorama real, e realista, sobre todas as políticas nacionais compatíveis e incompatíveis com os objetivos do bloco. Apenas a partir desse diagnóstico mais preciso se poderá partir para o terreno das prescrições de políticas, algumas simplesmente diplomáticas, mas a maior parte dependente de definições nas próprias políticas comerciais e industriais de todos os sócios. Em síntese, o Mercosul precisaria voltar a ser um componente da estratégia brasileira de inserção na economia mundial, tal como foi concebido originalmente.

 

O problema do Focem

Assim como o Mercosul é o mais importante problema diplomático do Brasil, o Fundo de Convergência Estrutural (Focem) do Mercosul é o mais importante problema político do bloco, pelo menos para o Brasil. Suas principais implicações não são nem de ordem econômico-comercial, ou de recursos orçamentários, mas basicamente de ordem política, e elas têm origem, como outros equívocos monumentais da gestão amadora dos companheiros na política externa, numa incompreensão flagrante das realidades do Mercosul, ou as do próprio Brasil. Mais uma vez, a ideologia, junto com a incultura econômica, prevaleceu sobre a simples racionalidade instrumental, mas nem todos os pecados são devidos aos companheiros, ainda que tenham sido eles que tomaram a decisão de implantar esse monstro bizarro no corpo do Mercosul: contribuiu para isso a obsessão do ex-SG-MRE, Samuel Pinheiro Guimarães, em querer converter o Mercosul numa obra de benemerência em favor dos sócios menores, em lugar de simplesmente atender ao que estava escrito no Tratado de Assunção. O fato é que o Brasil é a terceira renda per capita do bloco, e acabou assumindo quase quatro quintos do esquema de financiamento amador que acabou sendo criado sem qualquer estudo técnico.

O Focem parte de dois equívoco, ambos monumentais, mas que jamais tinham sido cometidos pelo Itamaraty ou pelos dirigentes econômicos brasileiros, nos primeiros doze anos do Mercosul: o de que os problemas da não integração acabada no bloco seriam devidos a supostas “assimetrias estruturais” entre os sócios, e o de que essas assimetrias poderiam ser corrigidas por ações pontuais dos Estados membros. Havia uma demanda dos outros sócios do Mercosul, quanto à redução das “assimetrias” dentro do bloco, para que ele pudesse avançar, argumento que o governo FHC e a diplomacia brasileira nunca aceitaram como válido para a implementação de medidas “corretoras”, obviamente a cargo do sócio maior, o Brasil. Os argentinos, em especial, já vinham reclamando há muito tempo dessas assimetrias, primeiro de ordem cambial – mas quem tinha fixado o câmbio ao dólar foram eles, não o Brasil –, depois de natureza financeira – a existência de um banco generoso, como o BNDES, que eles não tinham, como se fosse culpa nossa a inexistência de mecanismos similares na economia vizinha –, e finalmente o simples fato de o Brasil sozinho ser muito grande, o que é um fato, mais exatamente 60 a 70% do peso bruto da economia, do comércio, dos recursos, da amplitude do mercado interno – que permitiria “economias de escala” às indústrias brasileiras, como se o mercado interno não estivesse aberto às empresas dos demais também, permitindo-lhes as mesmas economias de escala.

O governo dos companheiros, vendo o bloco através de lentes equivocadamente comunitárias – em especial no tocante aos programas de reconversão setorial e de redução das desigualdades regionais existentes entre os países membros da UE – considerou que caberia ao Brasil assumir o papel da Alemanha, se apresentando, em 2004, como o provedor líquido de recursos num projeto de redução de “assimetrias estruturais” que supostamente estariam impedindo o Mercosul de se desenvolver de modo adequado. O Brasil propôs financiar o Focem, à razão de 70% dos montantes operacionais, que replica o que já está sendo feito, sem a expertise técnica, pelos organismos multilaterais e regionais de financiamento. O sistema é limitado – ainda que o Brasil tenha comprometido recursos bem mais amplos do que a sua parte de 70% nos muitos milhões oferecidos – e não reduzirá de modo significativo grandes assimetrias, que são de política econômica, não de natureza geográfica ou a dotação de fatores.

Essa incorporação acrítica de um modelo europeu, transpondo ao cenário do Mercosul um modelo que se acredita similar (ou funcionalmente equivalente) ao do conceito europeu de “coesão social”, foi feita sem que se aferisse economicamente sua necessidade ou sem que os fundamentos técnicos dessa posição fossem devidamente assentados. A “diplomacia da generosidade” dos companheiros simplesmente dobrou-se aos “argumentos” dos demais sócios de que o bloco não poderia avançar na presença das “profundas assimetrias” que supostamente separavam os países membros. O Focem acabou duplicando o trabalho de entidades multilaterais de financiamento, com base numa seleção basicamente política dos projetos.  Não existe nenhuma evidência de que o Focem conseguirá atenuar as “assimetrias estruturais” – que são o resultado de condições existentes nos mercados de forma quase permanente, ou de vetores ainda mais resistentes a ações governamentais de reduzido escopo transformador ou de impacto financeiro modesto – e pode, ao contrário, introduzir novas deformações nos sistemas de financiamento a projetos de desenvolvimento. 

O Focem, portanto, é um erro, que foi cometido voluntariamente pelo Brasil dos companheiros. Como os demais países se aproveitam disso para colocar seus projetos pouco vendáveis ao BID, ao BIRD, ou à CAF, é evidente que eles não vão querer se desfazer de tão generosa fonte de financiamento, além de pouco exigente, sem maior expertise técnica na análise de projetos ou sem uma rigorosa análise de custo-benefício. 

A Unasul, teoricamente sucessora da Iniciativa de Integração Regional Sul-Americano (sabotada pelos companheiros), deveria se ocupar de integração física, nas estruturas existentes ou em outras a serem propostas pelo Brasil, com o que se poderia encerrar mais um episódio de trapalhadas companheiras, com custos voluntariamente assumidos pelo Brasil. A rigor, se o Mercosul deixou de ser exclusivamente econômico e comercial, e também passou a ser político e social, cabe traduzir essa imensa revolução na prática e eliminar mais esse monstro metafísico que faz parte da herança maldita dos companheiros.

 

A integração regional na América do Sul

A América do Sul encontra-se hoje mais fragmentada do que em qualquer época anterior, quando os poucos esquemas existentes de integração estavam restritos aos esquemas de comércio preferencial no âmbito da Aladi, ou se pretendiam mais profundos, como o Grupo Andino e o próprio Mercosul, alegadamente tendentes ao mercado comum. O Grupo Andino (1969) se enquadrava no sistema multilateral de comércio regido pelo Gatt, em seu artigo 24 (para os esquemas de livre comércio), ao passo que a própria Aladi (1980) e o Mercosul (1991) têm sua cobertura legal dada pela cláusula de habilitação, instituída no âmbito da Rodada Tóquio do Gatt (1979). 

Não se pode dizer que a integração sul-americana tenha avançado ao longo dos anos; ao contrário, ela recuou, na prática, ainda que a retórica da integração tenha se disseminado em todos os países, com escassos resultados efetivos. Onde estão, por exemplo, os processos de desmantelamento de barreiras alfandegárias e de abertura econômica recíproca? A integração efetiva é inversamente proporcional à retórica da integração: se os países pagassem multas cada vez que se referissem indevidamente ao processo haveria, certamente, maior comedimento na sua reiteração vazia.

Com exceção da Aliança do Pacífico, que é integrada por um país da América do Norte, o México, e que conformou mecanismos automáticos de abertura recíproca, todos os demais países recuaram nos processos de abertura econômica e de liberalização comercial, inclusive o Brasil, que por sinal denunciou, poucos anos atrás, um acordo de livre comércio de automóveis com o México, pois os saldos bilaterais se tinham tornado negativos, num sinal preocupante de que acordos de liberalização comercial só podem ser justificados se eles se conformam ao velho padrão mercantilista.

Qualquer diagnóstico que indique que a integração na América do Sul avançou – simplesmente porque os discursos oficiais registram que se criou a Unasul, a Aliança do Pacífico, que o Mercosul incorporou, alegremente e sem pensar, todo e qualquer candidato que se apresentou, ou porque existem diversos organismos de coordenação regional (Calc, Celac e toda uma fauna de pretensos mecanismos de “integração”) – não reflete a realidade da região. E por que isso ocorreu? Porque a maior parte dos países empreende caminhos próprios em suas políticas econômicas sem qualquer atenção efetiva aos processos de integração, que de resto possuem baixa densidade política e econômica. Mesmo o grupo supostamente mais avançado em matéria de integração comercial – e praticamente apenas comercial –, a Aliança do Pacífico não pretende, de fato, realizar a integração entre eles: podem até eliminar completamente as barreiras tarifárias e não-tarifárias, que o comércio recíproco permanecerá limitado e parcial. Eles não se uniram para fazer isso e sim para dispor de uma plataforma de homogeneização de ofertas para se inserir na integração produtiva da bacia do Pacífico.

O Brasil, como maior economia da região, e a mais avançada, poderia ser o livre-cambista universal, ou seja, o país que se abre aos demais, sem exigir maiores contrapartidas. Com isso, ele estaria conformando um amplo espaço econômico integrado na região, oferecendo seu grande mercado aos vizinhos, e amarrando investimentos estrangeiros, da região e fora dela, à sua própria economia. 

A integração é feita, justamente, para estimular a competição e os ganhos de bem-estar. Se o Brasil deseja iniciar a construção de um espaço econômico integrado na América do Sul, ele deveria começar por um simples exemplo, abrindo-se aos demais. Apenas isso: ao abrir-se, ele deslancharia um processo de negociação aberto, com base em cláusulas NMF e suficientemente flexível para acomodar as sensibilidades setoriais dos demais países. Por ser o maior país, o Brasil não precisa ter, e não deve ter, nenhuma “sensibilidade”. A rigor, com isso, o Itamaraty nem precisaria convocar qualquer conferência diplomática, dessas intermináveis, para constituir uma zona de livre comércio na região: ela se faria praticamente sozinha. 

 

Relações com países mais avançados, não necessariamente todos da OCDE

Existem muitos desafios nas relações com os países desenvolvidos, quaisquer que sejam eles; mas as oportunidades são ainda maiores. Os companheiros passaram anos enfatizando a diplomacia Sul-Sul: os que escolhem usar tal viseira só podem fazê-lo por preconceito ideológico ou por discriminação política, ambas prejudiciais. Todo determinismo geográfico é, por natureza, contraproducente. Não se poderia esperar, por exemplo, obter o estado da arte em ciência e tecnologia quando se restringem as escolhas a determinados parceiros do globo, ainda que eles sejam “parceiros estratégicos”. Considerar que os países desenvolvidos só tenham interesse na “exploração” dos países menos desenvolvidos é de uma estupidez digna de um fundamentalista político, desses que ainda existem espalhados por aí, infelizmente dominantes em certos círculos acadêmicos e políticos.

A primeira estupidez é justamente a de dividir o mundo entre desenvolvidos e em desenvolvimento, como se duas únicas categorias mentais, dois universos puramente conceituais, fossem capazes de resumir e abranger toda a complexidade e multiplicidade das situações humanas e sociais, num planeta variado que exibe todos os tipos de avanços civilizatórios, um continuum histórico que vai de tribos primitivas a sociedades do conhecimento, baseadas em inteligência artificial. O capital humano nunca teve pátria, apenas os governos é que limitam a liberdade do capital humano. As grandes descobertas, as maiores invenções acabam beneficiando o conjunto da humanidade.

Mas alguns espíritos tacanhos consideram que, em virtude do fato estabelecido de que a maior parte das invenções, descobertas e inovações ocorrem bem mais nos países já avançados, isso consagraria algum monopólio natural, uma tendência à concentração do conhecimento, e do seu desfrute, e que os países menos avançados só poderiam ser “explorados” pelos primeiros. Assim, passam a recomendar esquemas de cooperação no âmbito Sul-Sul, como se duas ignorâncias pudessem ser substitutos a uma grande sabedoria. A Constituição brasileira já caiu nessa estupidez, ao consagrar no texto de 1988 a proibição de que universidades brasileiras contratassem docentes estrangeiros, boçalidade felizmente eliminada alguns anos depois. Mas, aparentemente continuamos a praticas outras discriminações, ao preferir fazer intercâmbios com alguns países, em lugar de se abrir a todos os demais, sem qualquer tipo de preconceito.

Não se pode dispor de nenhuma fórmula mágica para impulsionar o processo de desenvolvimento brasileiro contando apenas com a cooperação internacional, seja ela com países avançados ou com “parceiros estratégicos” do Sul maravilha. Os desafios principais estão mesmo no próprio país, pois as evidências relativas aos ganhos de escala permitidos por uma educação de qualidade são tão notórios que não seria preciso insistir neste ponto. O Brasil precisa empreender uma revolução educacional, em todos os níveis. De onde sairão os ensinamentos adequados para esse empreendimento monumental? Ora, as respostas são tão evidentes que sequer me concedo o direito de expressar qualquer preferência geográfica. Se alguém aí pensou em Xangai, não na China, mas Xangai, como exemplo e modelo de uma educação de qualidade, tal como refletido nos exames do PISA, estou inteiramente de acordo: façam como Xangai, que já é, para todos os efeitos práticos, mais avançada do que qualquer país desenvolvido em matéria de educação de qualidade. O resto é baboseira geográfica...

Xangai, atualmente, em matéria de performance educacional, é o mais perfeito exemplo da Finlândia educacional num país outrora atrasado educacionalmente, e que ainda permanece atrasado politicamente. Em todo caso, a China está, provavelmente, registrando mais patentes, sozinha, do que os outros quatro Brics conjuntamente. Talvez tenhamos de aprender algo com ela, o que será obviamente impossível. O Brasil não tem condições de imitar padrões educacionais finlandeses ou os de Xangai, como ele tampouco vai conseguir construir a boa escola republicana da hoje decadente França, mas que já foi exemplo de educação no mundo. Acho que se ele conseguir reproduzir a mediocridade da escola americana já terá sido um progresso. Esse é o grande símbolo que eu vejo da cooperação do Brasil com países desenvolvidos. Chegar perto da mediocridade educacional americana já terá sido um imenso progresso para o Brasil.

 

A extensa geografia do Itamaraty

A falta de medida sempre foi uma característica da diplomacia do Nunca Antes. Dominado pela obsessão de superar seu antecessor, e também pela ideia de conquistar para o Brasil uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, o demiurgo simplesmente ordenou ao seu chanceler que abrisse embaixadas em todos os países da América Latina e do Caribe e em quantos países fosse possível na África e na Ásia. Em consequência, de 2003 a 2009, dezenas de novas representações foram criadas nos lugares mais exóticos, acarretando enormes despesas e gerando ainda maior stress para a política de pessoal do Itamaraty, ao ter de gerir uma rede desmesurada, com gastos inúteis – uma vez que o retorno é insignificante – e efeitos políticos mínimos.

O Brasil exibe hoje uma rede de representações no exterior superior à de vários países desenvolvidos, inclusive ex-potências coloniais. Sem qualquer estudo técnico que precedesse a tal tomada de decisão, simplesmente baseado na vontade pessoal do ex-chefe de Estado, o Itamaraty se dobrou a essas pretensões megalomaníacas e passou a abrir postos sem qualquer reciprocidade, apenas baseado numa vontade ingênua de mostrar presença. Impossível estimar o impacto financeiro – e o custo-oportunidade – dessas iniciativas, mas ele é provavelmente muito maior do que a simples soma nominal dos valores envolvidos, pois significa uma extensão indevida de um orçamento que conheceu um aumento no divisor sem necessariamente a ampliação do numerador. Essa rede desvia não só dinheiro escasso, mas a atenção dos funcionários diplomáticos e de vários outros servidores em funções administrativas, sem qualquer correspondência quanto aos fins. Existem embaixadas em países de população inferior à do Lago Sul de Brasília, bem como consulados criados apenas para acomodar conveniências familiares de amigos do chanceler da era do Nunca Antes.

Nunca se ofereceu uma rationale para essa extensão desmesurada do serviço exterior brasileiro na era Lula. Segundo uma contagem não definitiva, foram quase cinquenta novos postos (entre embaixadas e consulados. Aparentemente, o ex-presidente contava com algum aporte adicional de votos em favor do Brasil no processo de criação de eventuais cadeiras adicionais no Conselho de Segurança da ONU, como se uma decisão desse porte pudesse ser tomada apenas pelo número de votos na AGNU.

 

Olhando para a frente

A política externa precisa retornar aos padrões habituais de profissionalismo e de isenção na análise técnica dos problemas que sempre estiveram afetos ao Itamaraty. Ambos, a política e a instituição, foram bastante deformados nos anos de lulopetismo diplomático, quando uma e outra foram submetidas e ficaram ao sabor das preferências e alucinações partidárias, quando não a serviço de outras causas que não o interesse nacional. O Itamaraty não terá nenhum problema em cumprir uma nova pauta na política externa, pois sempre foi muito disciplinado no cumprimento das diretrizes do chefe do executivo, mas ele necessita passar por reformas organizacionais, depois de mais de uma década de uma nefasta deformação em seus métodos de trabalho e de inversão vertical no processo decisório que sempre o caracterizou.

 

Brasília, 25 de maio de 2016

 

* Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, professor de Economia Política nos programas de mestrado e doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) e autor, entre outros livros, de Nunca Antes na Diplomacia: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014). Site: www.pralmeida.org; blog: http://diplomatizzando.blogspot.com.




segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Política externa partidária - Fernando Gabeira (O Globo)

 

Opinião Fernando Gabeira

Foto em preto e branco de homem com óculos de grau

Descrição gerada automaticamente

Fernando Gabeira

Jornalista e escritor

A guerra que mata e os jogos verbais

Apesar do discurso de frente ampla, a esquerda apresenta uma política bem mais próxima de uma visão partidária


O Globo, 26/02/2024 

 https://oglobo.globo.com/opiniao/fernando-gabeira/coluna/2024/02/a-guerra-que-mata-e-os-jogos-verbais.ghtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsdiaria


A frase que Lula disse na Etiópia repercutiu fortemente durante toda a semana. Tão fortemente que não há muito mais o que falar, exceto extrair algumas lições sobre nossa pátria amada, salve, salve.

Ouvi um repórter anunciar que a reunião do G20 trataria de três temas: as guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza e o embate diplomático entre Brasil e Israel. Meu Deus, pensei, como podem colocar no mesmo plano duas guerras reais, com gente morrendo ou sendo mutilada, com uma disputa verbal entre duas chancelarias?

Claro que o G20 não abordou o tema, mas o tom das reportagens deixa bem claro como superestimamos as situações em que o Brasil é protagonista.

Duas repercussões políticas também me impressionaram. De um lado, deputados propondo o impeachment de Lula por causa de sua frase. De outro, a declaração de Celso Amorim de que a fala de Lula sacudiu o mundo e potencialmente ajudaria a acabar com a guerra.

Há quem espere consenso a partir de uma discussão racional na política. Sou dos que acreditam que isso é impossível. A realidade é um conflito insolúvel entre valores, e só a aceitação da diversidade nos prepara, ainda assim modestamente, para a vida em comum.

Sinto que o Brasil polarizado está condenado a duas políticas externas radicais. No período Bolsonaro, havia uma crença de que o Ocidente estava ameaçado pelo marxismo cultural e de que era preciso seguir Donald Trump, o salvador dos valores ocidentais. Aquecimento global, feminismo, o que chamam de ideologia de gênero — tudo isso era arquitetado para destruir a civilização e desintegrar as famílias patriarcais.

Apesar do discurso de frente ampla, a esquerda apresenta, por seu lado, uma política bem mais próxima de uma visão partidária que uma perspectiva nacional. O mundo está dividido entre Sul Global e Norte rico, e o presidente precisa viajar incessantemente para defender os pobres.

O curioso é que o caminho do meio é cheio de saídas que as duas correntes desprezam. O Brasil é signatário de uma Declaração de Dublin em 2022, precisamente protegendo populações civis de bombardeios. A declaração é um avanço civilizatório. O país poderia, com base nisso, criticar tanto Israel quanto a Rússia.

Nesse universo político a que estamos condenados no Brasil, a Rússia está blindada. Putin é intocável para uma esquerda que o vê como adversário dos Estados Unidos e ainda encara a Rússia com a aura de uma revolução que aconteceu no início do século passado e não deixou vestígios, a não ser as atrocidades de Stálin e o corpo de Lênin no mausoléu.

Mas Putin é também admirado pela extrema direita, que o vê como defensor de valores tradicionais, inclusive um implacável perseguidor do povo gay na Rússia. Enfim, estamos condenados ao desequilíbrio, passando pano para autoritários como Putin, Viktor Orbán, Nicolás Maduro e Daniel Ortega.

Não há saída para isso num país polarizado, apesar dos acenos em tempos eleitorais. Ainda assim, precisamos garantir em nossa imagem internacional um respeito pelo sofrimento real que a guerra produz.

A guerra na Faixa de Gaza passa por um momento especial, a possibilidade de um ataque a Rafah. Mais de 1 milhão de civis estão concentrados ali. Não têm para onde fugir, pois o espaço que Israel propõe é muito pequeno para tanta gente.

Mais do que nunca, é preciso uma grande unidade entre as pessoas que querem a paz. Além de todas as críticas já repisadas por sua frase, Lula poderia pensar nisso. Ele provocou uma divisão entre as pessoas que criticam mortes de civis em Gaza, querem não só um cessar-fogo, mas também defendem a solução de dois Estados.

Precisamos de um consenso, ainda que pontual. A luta continua e, apesar dos excessos verbais, da batalha de postagens, das acusações mútuas e de toda essa agitação em redes sociais, a realidade continua áspera, e a guerra continua matando. Hora de olhar para a frente, direto no coração de tragédia.

 

 

sábado, 24 de fevereiro de 2024

O Nobel da insensatez - Revista Veja

 O Nobel da insensatez

Revista Veja | Brasil
23 de fevereiro de 2024


A obsessão do presidente pela busca de protagonismo internacional produz mais um vexame diplomático e empurra o Brasil outra vez para o lado errado da história Daniel Pereira

O PRESIDENTE Lula traçou dois grandes objetivos para o seu terceiro mandato. No plano interno, pavimentar o caminho para a sua reeleição, em 2026. No externo, tornar-se um líder global, status com que sonha desde a sua primeira passagem pelo Palácio do Planalto. Aos olhos de hoje, a segunda meta parece bem mais difícil. Para alcançá-la, o governo brasileiro tenta ser protagonista no debate sobre proteção ao meio ambiente e costurar no âmbito do G20 - grupo que reúne as dezenove maiores economias do mundo, além da União Africana e da União Europeia - uma aliança global contra a fome e a pobreza. Se der certo, o petista pode até ser laureado com o Prêmio Nobel da Paz, apostam alguns de seus principais assessores, como o ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias. O problema de Lula não é o tamanho de sua ambição, mas a forma como ele faz política externa, principalmente quando abandona a tradição brasileira de mediação e conciliação, distorce fatos históricos, tem recaídas ideológicas e entoa discursos irresponsáveis como se estivesse num palanque eleitoral, arranhando a imagem e prejudicando os interesses do país.

A diplomacia é, entre outras coisas, a arte de medir bem as palavras. É justamente o que o presidente não fez, mais uma vez, ao comparar as ações do Exército de Israel em Gaza, deflagradas em resposta aos ataques terroristas do Hamas, ao extermínio de 6 milhões de judeus, durante a Segunda Guerra Mundial, pelo regime nazista de Adolf Hitler. "O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu, quando Hitler resolveu matar os judeus", disse o presidente brasileiro durante uma entrevista na Etiópia. A comparação é um despropósito completo. Feita de forma improvisada, por ignorância ou ma-fé, ela serviu de estopim para uma crise diplomática entre Brasil e Israel. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, puxou a reação, escrevendo numa rede social que as palavras de Lula eram vergonhosas e graves. "Isso banaliza o Holocausto e prejudica o povo judeu e o direito de Israel de se defender. Comparar Israel ao Holocausto nazista e a Hitler é cruzar a linha vermelha". Sob ordens de Netanyahu, o chanceler de Israel intensificou o revide, aproveitando para constranger publicamente o embaixador do Brasil no país, Frederico Meyer.

Como ocorre em casos

dessa natureza, Meyer foi convocado pelo governo de Israel a prestar esclarecimentos sobre a fala de Lula. O encontro entre ele e o chanceler israelense, Israel Katz, ocorreu num importante memorial do Holocausto. Lá, sob as lentes e os microfones da imprensa, Katz declarou o presidente brasileiro persona non grata, o que significa que ele não é bem-vindo em Israel enquanto não se retratar, e exigiu um pedido de desculpas. Tudo em hebraico, e sem a presença de um intérprete, o que pode ter impossibilitado a compreensão do que era dito pelo embaixador brasileiro. A crise estava definitivamente instalada. No Brasil, Lula, contrariado, determinou a convocação do embaixador de Israel para prestar esclarecimentos. De nada adiantou. O chanceler Katz continuou a fustigar o presidente brasileiro nas redes sociais: "Sua comparação é promíscua e delirante. Uma vergonha para o Brasil e um cuspe no rosto dos judeus brasileiros. Ainda não é tarde para aprender história e pedir desculpas". Em resposta, o ministro de Relações ExterioresMauro Vieira, declarou que as manifestações de Katz eram inaceitáveis na forma, mentirosas no conteúdo e funcionariam como uma cortina de fumaça.

Para o governo brasileiro, Netanyahu está aproveitando o caso para fugir de explicações sobre denúncias de crimes de guerra cometidos pelas forças israelenses contra civis palestinos. Pode até ser verdade, mas quem deu a deixa, como uma declaração desatinada e irresponsável, foi Lula. As recaídas ideológicas e os improvisos têm feito mal ao presidente na área internacional. Como se sabe, a esquerda brasileira e o PT nutrem simpatia pela causa palestina e defendem a existência de dois Estados independentes na região, o que é rechaçado por Israel. Até aí, tudo dentro da normalidade. A situação começa a desandar quando desce aos detalhes. Após as barbaridades perpetradas pelo Hamas em 7 de outubro, Lula resistiu quanto pode a chamar de terroristas os atos praticados pelo grupo contra civis israelenses, que incluíram assassinatos, torturas, sequestros e estupros. A duras penas, a diplomacia brasileira, um nicho de excelência no serviço público brasileiro, conseguiu convencer o presidente a fazer o que devia ser feito: chamar os terroristas pelo nome. Lula, por sinal, foge das cascas de banana que ele mesmo costuma espalhar pelo caminho ao seguir o roteiro dos diplomatas profissionais.

Dias antes de sua declaração desastrosa, o presidente divulgou uma mensagem nas redes sociais em que, fazendo jus à tradição brasileira, dizia que o ataque do Hamas era indefensável e merecia condenação veemente, mas que a reação de Israel era desproporcional, indiscriminada e inaceitável, tendo resultado na morte de cerca de 30 000 civis, incluindo mulheres e crianças. Por isso, Lula defendia um imediato cessar-fogo. Essa posição enfática, manifestada de forma ponderada, foi logo atropelada pela entrevista na Etiópia, que ainda serviu de pretexto para os radicais de sempre e os áulicos de plantão tentarem dourar a pílula do desatino retórico cometido pelo chefe. Assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, o ex-chanceler Celso Amorim afirmou que a fala de Lula "sacudiu o mundo e desencadeou um movimento de emoções que pode ajudar a resolver uma questão que a frieza dos interesses políticos foi incapaz de solucionar", conforme relatado pela colunista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo. O senso de protagonismo brasileiro nesse caso não é apenas exagerado. Simplesmente não aconteceu.

Além de causar problemas no cenário externo, Lula conseguiu dar um tiro no pé na política interna, tomando para si o protagonismo da agenda negativa, que até então estava toda no colo de seu principal adversário, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Embora algumas vozes desatinadas tenham dado apoio, a exemplo da deputada Gleisi Hoffmann, presidente do PT, que atacou Netanyahu dizendo que o israelense não tem autoridade moral nem política para apontar o dedo para ninguém, o bom senso foi a tônica no Congresso. Conhecido por seu perfil conciliador, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, cobrou de Lula, de quem é aliado, uma retratação por comparar a ação militar de Israel em Gaza ao Holocausto. "Ainda que a reação do governo de Israel (aos atos terroristas do Hamas) venha a ser considerada desproporcional, excessiva, violenta, indiscriminada, não há como estabelecer um comparativo com a perseguição sofrida pelo povo judeu no nazismo", disse o senador. O líder do governo na Casa, Jaques Wagner, um dos poucos quadros no PT com coragem para dizer o que pensa ao presidente da República, seguiu caminho parecido. Durante a sessão plenária, Wagner relatou ter dito o seguinte a Lula: "Não tiro uma palavra do que vossa excelência disse, a não ser o final, porque, na minha opinião, não se traz à baila o episódio do Holocausto para nenhuma comparação".

Desde a campanha eleitoral de 2022, Lula vem usando a política externa para fazer um contraponto a Bolsonaro, cuja gestão chegou a se gabar de ter transformado o Brasil num pária internacional. No primeiro ano de seu terceiro mandato, o petista privilegiou a agenda internacional e visitou mais de vinte países, tentando conquistar um pouco de visibilidade positiva no cenário internacional. Essa ofensiva, se bem-sucedida, pode render dividendos de imagem, acordos em diferentes áreas e ganhos financeiros. Também pode lustrar a própria imagem de Lula, que chegou a ser chamado de "o cara" por Barack Obama. Anos depois, em sua biografia, o ex-presidente americano relatou que o petista lhe causara boa impressão, mas ressaltou também que, segundo constava, tinha escrúpulos de um chefão de uma organização criminosa.

Pelo menos até 2026, a forma como o Brasil será visto no exterior dependerá de como Lula se portará em temas tão distintos como meio ambiente, combate à miséria e negociações de paz. Na quarta-feira, o presidente recebeu o chefe da diplomacia dos Estados Unidos, Antony Blinken, e ouviu dele que os americanos concordam com a solução de dois Estados independentes na região, mas rechaçam veementemente a comparação feita por Lula entre a ação de Israel em Gaza e o Holocausto. Hoje, o Brasil é um importante líder regional, com pretensão de ascender à primeira prateleira dos países protagonistas no cenário internacional. As oportunidades para ganhar relevância estão dadas. O Brasil sediará em novembro a reunião do G20, quando Lula espera sacramentar a aliança global contra a fome e a pobreza. Além disso, será palco no ano que vem da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. De olho ou não no Nobel da Paz, o presidente petista pode conseguir avanços importantes nesses dois encontros. Basta deixar a ideologia, a tentação do palanque e o improviso desrespeitoso de lado. Como bem ressaltou o ex-embaixador Marcos Azambuja, a diplomacia é feita de "palavras cuidadas", ponderadas, bem pensadas. A crise diplomática com Israel é uma prova disso.