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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Cátedra Oswaldo Aranha no IRI-USP: segurança, defesa e crimes transnacionais - Michael Miklaucic (Estadão)

 Comunicação recebida do professor Leandro Piquet, da USP:

Foi inaugurada, na Universidade de São Paulo, a Cátedra Oswaldo Aranha que estará sediada no Instituto de Relações Internacionais da USP.  A Cátedra dedica-se aos temas de segurança e defesa internacional, mercados ilícitos transnacionais e crime organizado.

No primeiro ciclo da Cátedra em março de 2025, ela receberá o Prof. Michael Miklaucic, como Catedrático. Michael é também professor da National Defense University em Washington e é Lecture da Universidade de  Chicago e do Marshall Center na Alemanha. 

Acaba de Publicar artigo no Estadão sobre o alinhamento do Brasil no contexto da disputa entre EUA e China.

A escolha do Brasil d o legado de Oswaldo Aranha”, 

O Estado de S. Paulo, 16/11/2024

https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/a-escolha-do-brasil-e-o-legado-de-oswaldo-aranha/?srsltid=AfmBOop-brlcy-6E77RlSMznZRqcPLqZXOAE7l505Hy2E5En33WLHNv1

Opinião 

A escolha do Brasil e o legado de Oswaldo Aranha

O que acontece na Ucrânia, no Mar do Sul da China e no Oriente Médio é tão importante para o País hoje quanto as guerras europeias do século 20

Michael Miklaucic

O Estado de S. Paulo, 16/11/2024

 

Em 1942, enquanto a 2.ª Guerra Mundial assolava a Europa, o estadista brasileiro Oswaldo Aranha tomou uma decisão corajosa e fatídica. Ele decidiu que a responsabilidade moral e o interesse nacional do Brasil seriam mais bem atendidos se ele se alinhasse com os aliados democráticos contra as forças do autoritarismo e da tirania. Foi a decisão certa e colocou o Brasil do lado certo da História.

A 2.ª Guerra Mundial foi um ponto de inflexão histórica. Hoje, estamos diante de outro. A tecnologia e as mudanças tectônicas no poder geoeconômico e geoestratégico representam uma ameaça existencial à ordem liberal e baseada em regras, que prevaleceu desde a 2.ª Guerra Mundial. Como no século 20, dois campos distintos estão surgindo, com visões drasticamente diferentes e, em última análise, incompatíveis. Cada um deles está centrado em um super atrator global; de um lado a República Popular da China, do outro os Estados Unidos.

Alinhados com a China estão a Rússia, o Irã, a Coreia do Norte, a Venezuela, Cuba e alguns outros: formam a coalizão autoritária. Os Estados Unidos são acompanhados por seus aliados formais, incluindo a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliados asiáticos e da Anzus – tratado de segurança entre Austrália, Nova Zelândia e EUA –, e alguns parceiros não aliados. Eu me refiro a esse grupo como o núcleo liberal. Os cerca de 150 países restantes são países com estratégia de cobertura (hedging); Estados que apostam em relação a qual campo aderir, na esperança de aderir àquele que, em última análise, prevalecerá na competição pelo poder e influência globais. Alguns podem tentar a dinâmica de jogar um campo contra o outro, enquanto outros podem buscar um caminho próprio e independentemente dos superatratores (alguns membros do Brics podem ter isso em mente).

O Brasil é um membro proeminente do grupo de hedging, mas com potencial para superpotência por si só. Sua influência na América Latina já é substancial e, se tiver vontade, poderá se tornar uma influência global. Entre os maiores países do mundo, tanto em população quanto em território, com uma economia entre as dez maiores do mundo e enormes recursos humanos e naturais, o Brasil tem muito a oferecer a ambos os lados, caso opte por se alinhar ao núcleo liberal ou à coalizão autoritária.

O futuro do Brasil não deve ser planejado sem uma estratégia, e a estratégia exige decisões. Para tomá-las, o Brasil deve primeiro decidir que tipo de país ele é e quer ser. As opções oferecem alternativas claras. Os brasileiros devem informar a seus líderes quais valores adotam e de quem desejam manter a companhia. Será que eles valorizam a liberdade individual, a liberdade de expressão e de religião, os mercados livres e os líderes de sua própria escolha? Esses valores são fundamentais para os países do núcleo liberal. Eles não existem nos países da coalizão autoritária que, em vez disso, valorizam a obediência comunitária, a vigilância generalizada, a política estritamente controlada e orientada por uma elite “esclarecida” e a economia oligárquica ou centralizada.

É certo que os Estados Unidos não são um aliado fácil. Eles podem ser exigentes, surdos, hipócritas, inconsistentes e egoístas. No entanto, historicamente, os países que se alinharam com os EUA prosperaram muito mais do que aqueles que se posicionaram contra eles. Como todas as grandes potências, seu histórico internacional não é imaculado, com sua parcela de erros e lapsos. Além disso, nas últimas décadas, os Estados Unidos negligenciaram lamentavelmente seus vizinhos do sul. Essa negligência é claramente sentida em toda a América Latina, onde muitos se sentem desvalorizados. Cabe aos EUA remediar essa situação e reconhecer o privilégio exorbitante de viver no hemisfério ocidental, e seu enorme potencial. Em resumo, os Estados Unidos precisam se esforçar mais.

Alguns podem argumentar que não há necessidade de os brasileiros escolherem entre campos rivais liderados por superpotências globais. Afinal, o Brasil está muito distante da feroz luta pelo poder entre os Estados Unidos e a China, mais ainda do caldeirão do Oriente Médio, das águas agitadas do Mar do Sul da China ou dos campos de batalha da Ucrânia e da Rússia. “Seus problemas não são nossos problemas”, podem dizer. Mas em um mundo intensamente interconectado e globalmente integrado, essa é uma visão plausível? O Brasil importa 40% de seu fertilizante e 40% de seu óleo diesel da Rússia, enquanto a China é seu maior parceiro comercial. A influência que isso traz não deve ser subestimada. O que acontece na Ucrânia, no Mar do Sul da China e no Oriente Médio certamente é tão importante para o Brasil hoje quanto as guerras europeias do século 20 eram na época de Oswaldo Aranha. As escolhas que os brasileiros enfrentam são importantes e urgentes; os riscos são altos. A decisão de Aranha, há 82 anos, de se alinhar com as democracias contra os nazistas e fascistas, foi a mais correta; uma decisão semelhante seria a mais acertada hoje.

*

Opinião por Michael Miklaucic

É professor titular de Estudos de Segurança da Cátedra Oswaldo Aranha, na Universidade de São Paulo, e da Universidade de Chicago

Copyright © 1995 - 2024 Grupo Estado

 

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Permito-me indicar os dois livros que organizei sobre o estadista Oswaldo Aranha, focando suas atividades diplomáticas e internacionais:
Oswaldo Aranha: um estadista brasileiro
(Brasília: Funag, 2017, 2 vols.)
Obra disponível na Biblioteca Digital da Funag:
Sérgio Eduardo Moreira Lima; Paulo Roberto de Almeida; Rogério de Souza Farias (organizadores); Brasília: Funag, 2017;
volume 1, 568 p.; ISBN: 978-85-7631-696-1; link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=913
volume 2, 356 p.; ISBN: 978-85-7631-697-8; link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=914

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

O Brasil e a proposta de expansão do Brics - Maria Hermínia Tavares

 

Maria Hermínia Tavares - O Brasil e a proposta de expansão do Brics

Folha de S. Paulo

Com a ampliação de 2023, a que o Brasil resistiu, grupo perdeu nitidez de propósitos

Mudanças importantes em curso na cena internacional propõem desafios inéditos para a política externa brasileira e exigem revisão das visões e estratégias que a caracterizaram ao longo de muitas décadas. Um desses desafios é decidir o que fazer com o Brics diante da segunda ampliação do bloco proposta por China e Rússia.

Durante 14 anos, o grupo foi formado pelos quatro países que o fundaram em 2009 e lhe deram o nome —Brasil, Rússia, Índia e China— mais a África do Sul, que a ele se juntou logo depois, daí o S final da sigla.

No ano passado, incorporou cinco novos membros, nenhum conhecido por praticar a democracia.

Com a ampliação, a que o Brasil resistiu, o Brics ganhou em participantes o que perdeu em nitidez de propósitos. A vingar a proposta ora em discussão, seriam admitidas mais 34 nações da Ásia, África, Oriente Médio e América Latina (Venezuela, Honduras, Cuba e Nicarágua) com níveis díspares de desenvolvimento e distintas formas de governo autocrático.

Ora em dieta de engorda, o bloco surgiu da convergência de países emergentes —com ambições globais— em torno do compromisso de buscar uma arquitetura econômica internacional mais aberta e menos dominada pelos países norte-ocidentais. Tratava-se de apoiar os esforços do G20 para lidar com a crise global e reformar as instituições financeiras multilaterais de regulação econômica, em especial o FMI e o Banco Mundial.

Em suma, o Brics seria uma ferramenta para dar vez e voz a seus criadores ali onde são tomadas as decisões que contam para a economia mundial.

Considerado pelo professor Oliver Stuenkel (FGV-SP) como uma das duas mais importantes inovações na governança global neste século —a outra seria o G20—, o Brics, contra muitas previsões pessimistas, logrou se institucionalizar.

Suas vitórias foram escassas no que respeita a reformas das instituições financeiras multilaterais.

Maiores foram os êxitos no interior do bloco: adensamento das relações bilaterais; estabelecimento de diferentes formas de cooperação; criação do Novo Banco do Desenvolvimento —o chamado Banco do Brics. O Brasil se beneficiou de muitas maneiras do intercâmbio adensado com os parceiros.

Por outro lado, a disparidade de nascença em matéria de recursos de poder entre a China e os demais membros do grupo —que só aumentou com o tempo— colocou-o diante de dois cenários possíveis: um, funcionar como uma coalizão de nações que buscam mais protagonismo no âmbito da ordem internacional existente; outro, transformar-se em mais um instrumento da ascensão da China à condição de grande potência.

O aumento do bloco em 2023 e a atual proposta de inclusão de novos membros aponta na direção do segundo cenário. Não há o que explique a escolha dos 34 candidatos a membro, salvo a intenção de promover o Brics a pilar de sustentação de uma ordem internacional pós-ocidental liderada pela China.

Nessa nova ordem, há ganhos comerciais e econômicos para o Brasil e os outros parceiros do bloco. Mas dificilmente —e por razões óbvias— haverá espaço para que floresçam a democracia, a liberdade e os direitos individuais.

domingo, 10 de março de 2024

Livros editados, organizados e publicados por Paulo Roberto de Almeida (1992-2024)

 Livros editados por Paulo Roberto de Almeida

Organização, publicação

 

Lista compilada em 1/01/2024 

 

15) Intelectuais na diplomacia brasileira: a cultura a serviço da nação (Brasília: 15 maio 2023, 310 p.; versão final: 26 janeiro 2024; em publicação. Relação de trabalhos n. 4397)

14) Oswaldo Aranha: um estadista brasileiro, Sérgio Eduardo Moreira Lima; Paulo Roberto de Almeida; Rogério de Souza Farias (organizadores); Brasília: Funag, 2017; volume 1, 568 p.; ISBN: 978-85-7631-696-1; link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=913; volume 2, 356 p.; ISBN: 978-85-7631-697-8; link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=914. Relação de Publicados n. 1271.

13) A Constituição contra o Brasil: ensaios de Roberto Campos sobre a Constituinte e a Constituição de 1988 (São Paulo: LVM, 2018, 448 p.; ISBN: 978-8593751394; Amazon)

12) O Homem que pensou o Brasiltrajetória intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Appris, 2017, 373 p.; ISBN: 978-85-473-0485-0; Amazon.com.br).

11) Carlos Delgado de Carvalho: História Diplomática do Brasil (Brasília: Senado Federal, 2016, 504 p.; ISBN: 978-85-7018-696-6; Livraria do Senado Federal).

10) The Drama of Brazilian Politics: From 1814 to 2015 (with Ted Goertzel; 2015, 278 p.; ISBN: 978-1-4951-2981-0; Kindle, ASIN: B00NZBPX8A).

09) Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências (com Rubens Antonio Barbosa; São Paulo: Saraiva, 2016, 326 p.; edição digital; ISBN: 978-85-0212-208-6; Amazon.com.br).

08) Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil: coleções documentais sobre o Brasil nos Estados Unidos (com Rubens Antônio Barbosa e Francisco Rogido Fins; Brasília: Funag, 2010, 244 p.; ISBN: 978-85-7631-274-1; Biblioteca Digital da Funag). 

07) Envisioning Brazil: A Guide to Brazilian Studies in the United States, 1945-2000 (with Marshall C. Eakin; Madison: Wisconsin University Press, 2005, 536 p.; ISBN: 0-299-20770-6; Amazon.com).

06) Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências (com Rubens Antonio Barbosa; São Paulo: Saraiva, 2005, 328 p.; ISBN: 978-85-02-05385-4; esgotado).

05) O Brasil dos Brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-2000 (com Marshall C. Eakin e Rubens Antônio Barbosa; São Paulo: Paz e Terra, 2002; ISBN: 85-219-0441-X; Academia.edu).

04) Mercosul, Nafta e Alca: a dimensão social (com Yves Chaloult; São Paulo: LTr, 1999; Estante Virtual). 

03) Carlos Delgado de Carvalho: História Diplomática do Brasil (edição fac-similar: Brasília: Senado Federal, 1998; Coleção Memória brasileira n. 13; 420 p.; esgotado; 2ª edição: 2016).

02) José Manoel Cardoso de Oliveira: Actos Diplomaticos do Brasil: tratados do periodo colonial e varios documentos desde 1492 (edição fac-similar, publicada na coleção “Memória Brasileira” do Senado Federal; Brasília: Senado Federal, 1997; 2 volumes; Volume I: 1493 a 1870; Volume II: 1871 a 1912; Amazon.com.br; forgotten books). 

01) Mercosul: Textos Básicos (Brasília: IPRI-Fundação Alexandre de Gusmão, 1992, Coleção Integração Regional nº 1; Biblioteca Digital da Funag

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília: 4542, 1 janeiro 2024, 2 p.

Postado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/01/livros-organizados-editados-e.html); disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/112738951/4542_Livros_organizados_editados_e_publicados_por_Paulo_Roberto_de_Almeida_2024_).

 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Política externa brasileira: da atual para uma necessária (2022, inédito) - Paulo Roberto de Almeida

 Política externa brasileira: da atual para uma necessária  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor;

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com).

Brasília, 4208: 28 julho 2022, 8 p. (inédito neste formato)

  

Retrocessos institucionais e diplomáticos no período recente

O Brasil conheceu, desde 2019, um processo de deterioração da qualidade de suas políticas públicas, a começar pelo fato de que, justamente, o país nunca exibiu, nesse período, um programa definido de políticas gerais ou setoriais em direção a metas ou objetivos claramente explicitados. O que tivemos, mais propriamente, foi uma ruptura com padrões usuais de governança, parcialmente na economia, enganosamente na política – que, a despeito dos anúncios iniciais, voltou ao velho padrão da “velha política” – e, bem mais nitidamente, em áreas setoriais, como meio ambiente, direitos humanos, cultura e educação e, sobretudo, nas relações exteriores, todas elas contribuindo para uma deterioração excepcional da credibilidade brasileira no plano internacional. Poucas dessas rupturas superam o desastre incomensurável que tem sido o rebaixamento da imagem do Brasil no ambiente externo e uma perda de qualidade notável da ação externa da diplomacia profissional, mas não obviamente por sua própria culpa.

A maior parte desses problemas deriva dramática incapacidade do presidente de não só não corrigir os problemas apontados por observadores isentos, mas de criar novos problemas e agravar os existentes, numa dramática demonstração de ausência de governança. Na área do meio ambiente, essa extraordinária capacidade de criar problemas para si próprio e para o país foi evidente, pois o que se registrou foram recordes seguidos de destruição ambiental, sobretudo na Amazônia, que estão justamente no cerne das críticas internacionais à atual postura do governante brasileira, ademais de seus reiterados ataques ao sistema democrático do Brasil, especialmente em relação ao seu fiabilíssimo sistema eleitoral. 

O próximo governo terá de efetuar uma revisão dos conceitos básicos da atual diplomacia, com a adoção de uma política externa que vise a recuperação da credibilidade externa do país. Os eixos principais são, na área política, um retorno ao multilateralismo com base no Direito Internacional e em princípios e valores tradicionais de nossa diplomacia; na área econômica, cabe perseguir a inserção do país na economia global, por meio da abertura econômica geral e da integração regional. Caberia, igualmente, proceder à revisão das atuais “alianças estratégicas” num sentido puramente pragmático, não mais ideológico.

 

A vertente econômica de uma nova postura internacional para o Brasil

A revisão dos conceitos básicos da política externa deve ter, portanto, o objetivo da plena inserção do Brasil na globalização. A incorporação do país aos padrões de governança econômica da OCDE pode ser um bom começo para a consecução de tal meta, no passado recusada pelos governos lulopetistas por puro preconceito contra o que se julgava ser, equivocadamente, um “clube de países ricos”, quando a organização de Paris é, desde muito tempo, um “clube das boas práticas”. A justificativa alegada para tal recusa era a defesa de espaços soberanos de políticas nacionais visando o desenvolvimento do país. Ora, a soberania sequer necessita ser objeto de retórica – como foi o caso dos governos de esquerda ou de direita –, pois ela se exerce, simplesmente, por meio de políticas conducentes justamente à prosperidade nacional, atualmente indissociáveis da interdependência global. 

A evolução das relações econômicas internacionais foi sensivelmente deteriorada pela política antimultilateralista do governo Trump, com a marginalização indesejável da OMC e uma postura defensiva em relação à ascensão da China nos circuitos da globalização, que foi parcialmente revertida (contra os interesses das próprias empresas americanas. Não existe espaço, no horizonte previsível, para grandes negociações no plano multilateral, sugerindo-se novos acordos bilaterais, que passam necessariamente por um novo perfil da política comercial do Brasil, com ou sem revisão do Mercosul em torno de seu eixo básico (que é, atualmente, o da união aduaneira, não o de uma zona de livre comércio). A exposição do setor produtivo à concorrência internacional – benéfica em si, para os próprios produtores e consumidores – requer a redução da carga tributária no plano interno, e uma reforma não pode ser feita sem a outra, sob risco de desmantelar ainda mais as empresas nacionais do setor manufatureiro. 

Um exercício positivo, nesse sentido, embora sem qualquer reforma tributária interna, foi a conclusão do acordo Mercosul-União Europeia, mas prejudicado em sua ratificação e entrada em vigor pelas políticas antiambientais do governo Bolsonaro. Cabe justamente não esquecer que o Mercosul, assim como a UE, é uma personalidade de direito internacional, como tal reconhecido no âmbito da governança econômica global, constituindo, assim, um patrimônio bastante útil no seu reforço institucional com vistas a criar um espaço econômico integrado em esfera continental (da América do Sul). 

O Mercosul – ademais de eventuais arranjos unilaterais que possam ser feitos em paralelo ao seu processo de revisão, como efetuado atualmente pelo Uruguai com seu objetivo de concluir um acordo de livre comércio com a China – não é, nunca foi, culpado pelo fechamento comercial do Brasil, ou por suas disfunções acumuladas ao longo dos anos, geralmente por distorções criadas em âmbito nacional e por descumprimentos das obrigações institucionais por parte de seus dois maiores países membros, o Brasil e a Argentina. Se e quando esses dois países resolverem cumprir os requerimentos estabelecidos no tratado original, ele voltará a ser uma base para a integração mundial das economias dos países membros. Um sólido diálogo entre os maiores países deveria permitir superar as dificuldades atuais e caminhar no sentido do reforço do Mercosul, não do seu desmantelamento.

Não obstante, caberia efetuar um exame profundo das opções estratégicas do Brasil em matéria de política comercial, para decidir, a partir daí, se cabe reformar o Mercosul, ou caminhar no sentido da independência total nesse terreno. Essa é uma agenda aberta, mas que ainda não recebeu a atenção devida, dada a descoordenação existente entre os diversos ministérios envolvidos nessa frente, mas sobretudo pela ausência de um diálogo consistente com os principais atores da economia nacional, os agentes privados conectados ao comércio exterior e a uma agenda de produtividade e de inserção do Brasil na economia global. 

 

A dimensão política universalista de uma nova política externa

A diplomacia do Brasil sempre foi universalista, focada no interesse nacional e no direito internacional. O multilateralismo é uma de suas bases inquestionáveis, assim como a ausência de quaisquer limitações de ordem ideológica na definição dos grandes objetivos na frente externa. Tal postura foi sendo progressivamente construída, desde os tempos da ditadura militar, pela qualidade indiscutível de sua diplomacia profissional, mas se fortaleceu amplamente no período democrático, com o pleno engajamento do Brasil em vertentes anteriormente difíceis em sua agenda externa – como meio ambiente e direitos humanos, mas também integração regional –, o que, conjuntamente com a estabilização macroeconômica do Plano Real, permitiu que o Brasil ganhasse ampla credibilidade internacional nos anos 2000.

A política externa do lulopetismo, no entanto, conduziu o Brasil a coalizões político-diplomáticas definidas a partir de uma visão partidária deformada das relações internacionais do país, uma vez que baseada na miopia de um “Sul Global” que não existe, a não ser nas concepções ideológicas de seus promotores. O governo bolsonarista apenas desmantelou, parcial ou totalmente, os esquemas existentes, sem colocar absolutamente nada em seu lugar, a não ser uma política de aliança submissa em relação ao governo americano anterior (o de Donald Trump) e com regimes similares ou de orientação iliberal e direitista. 

A revisão dos padrões impostos à diplomacia profissional desde o início do século implica, em grande medida, uma revisão profunda das grandes escolhas estratégicas do Brasil na arena mundial. Mas um retorno, pelo provável próximo governo, às opções conhecidas em suas escolhas anteriores, pode redundar, no âmbito regional, no estreitamente de relações com governos de esquerda – em lugar do pragmatismo econômico –, assim como, no plano global, no reforço de uma aliança com a coalizão do BRICS, cuja vocação original para a cooperação econômica tem sido atualmente distorcida pela vontade das duas grandes potências não democráticas de reforçarem essa base organizacional – e até ampliá-la – para o objetivo duvidoso de se construir uma “ordem global” alternativa ao Ocidente, como se o distanciamento em relação às democracias de mercado fosse do interesse do Brasil. A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia criou uma nova situação nas relações internacionais que precisa ser cuidadosamente examinada pelos novos planejadores diplomáticos, de maneira a não fazer do Brasil um mero pião de objetivos nacionais de certos membros do BRICS que não são, e não podem ser, os do Brasil, sobretudo tendo-se em conta a histórica e profunda adesão do país a princípios doutrinais que já tinham sido expostos por Rui Barbosa no início do século XX, depois reafirmados por estadistas do porte de Oswaldo Aranha, no fragor da Segunda Guerra Mundial, assim como por Afonso Arinos de Melo Franco e por San Tiago Dantas no início dos anos 1960. 

 

A circunstância externa do Brasil: uma geografia que precisa ser trabalhada

O filósofo espanhol Ortega y Gasset, escreveu, nas suas Meditaciones del Quijote (1914), uma frase constantemente repetida pelos admiradores: “Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo, eu tampouco me salvo.” Cabe, com efeito, atribuir forte importância à geografia, que pode ser considerada como a circunstância inevitável no plano das nações ou, mais precisamente, dos Estados e sua geopolítica. Em outros termos, os Estados podem escolher a sua organização interna, na esfera política e econômica, e sobretudo suas relações externas, mas eles não podem escolher a sua geografia. Ela lhes é dada pela história, ou seja, pelo longo desenvolvimento de um povo – ou vários deles – num determinado território, partindo dessa condição primária para constituir uma nação, ou um Estado, ou seja, a representação dessa nação no âmbito regional e internacional.

A circunstância geográfica do Brasil, a sua projeção estratégica – para usar um conceito dos geopolíticos – se estende não muito naturalmente pelos vastos espaços da América do Sul, e não muito além disso. Não naturalmente, pois que existem as barreiras naturais da selva amazônica, dos contrafortes andinos, do próprio pantanal e da quase total ausência de facilidades de comunicações terrestres ou mesmo fluviais nos vastos ermos de nosso heartland, o cerrado central, penosamente acessados apenas pelos grandes rios da bacia amazônica, ao norte, e da bacia platina, ao sul. Nessa região se situava, justamente, o espaço natural de projeção do poder instalado na costa atlântica do Brasil, tanto que a metrópole portuguesa tentou por diversas vezes assenhorear-se da margem superior do Prata, instalando uma colônia em Sacramento e depois lutando contra os castelhanos para tentar manter a província oriental, ou cisplatina, ou pelo menos garantir a livre navegabilidade dos rios da bacia do Prata, como única maneira de alcançar a província do Mato Grosso.

Como não se pode discutir com a geografia – pois ela existe, simplesmente, como dizia o teórico geopolítico Spykman –, se pode tomar como natural uma política externa do Brasil que buscasse construir um vasto espaço econômico integrado no coração da América do Sul, pela liberalização recíproca dos mercados e pela própria abertura até unilateral dos seus próprios mercados a todos os vizinhos regionais. Ou seja, construindo um espaço natural de projeção econômica, política e cultural do Brasil no seu entorno imediato, garantindo paz, segurança e prosperidade na América do Sul, os espaços “externos” seriam alcançados para fins de desenvolvimento econômico e social, mobilizando capitais, tecnologia, recursos de todos os tipos para conectar nossa economia, e a do espaço de integração liderado pelo Brasil, à dos grandes centros dinâmicos da economia global.

Tal seria a conformação de um relacionamento exterior, regional, continental e mais além, totalmente compatível com nossa dotação de fatores, nossas vantagens comparativas, nossa capacidade competitiva e nossas ambições diplomáticas de desempenhar um papel positivo em nosso “ambiente natural” – as circunstâncias geográficas – e mais além, em outros quadrantes de um planeta ainda muito desigual, mas vocacionado ao crescimento e à prosperidade, desde que as grandes potências, as economias avançadas, mas também as potências médias, como o Brasil, se concertassem em garantir paz e segurança – como rezam os primeiros artigos da Carta da ONU – e, a partir daí, traçar um vasto plano de eliminação da miséria, de redução da pobreza, e de cooperação ampliada visando elevar os indicadores de bem-estar de imensos contingentes dos povos e nações do planeta.

A circunstância geográfica do Brasil recomendaria, portanto, uma dedicação especial de sua futura diplomacia no sentido de recompor as bases de uma liderança natural, que se exerceria a partir de um amplo projeto de abertura econômica – unilateral, se for o caso – em direção dos países vizinhos do continente sul-americano, como a base indispensável para sua projeção global. Mas, não contente de dispor dessas “vantagens comparativas regionais” no continente, a antiga diplomacia lulopetista decidiu empreender novos saltos extrarregionais de puro voluntarismo diplomático internacional, primeiro congregando dois outros sócios no projeto do IBAS, a Índia e a África do Sul, depois se lançando com a Rússia, na construção do BRICS, que incorporou a China – sempre propensa a se utilizar de novos tabuleiros para seu projeto de preeminência global –, ambos carentes de estudos técnicos compatíveis com as prioridades econômicas e diplomáticas do Brasil, apenas respondendo a aspirações grandiosas de projeção internacional do então chefe de Estado.

 

A questão mais crucial da agenda internacional e os desafios diplomáticos do Brasil

Depois da invasão e anexação ilegais da península da Criméia, juridicamente sob a soberania da Ucrânia, em 2014, pelo governo de Putin, a nova decisão do líder russo de empreender uma guerra de agressão contra o país vizinho, em fevereiro de 2022, acelerou alguns desenvolvimentos que já se processavam no ambiente internacional, mas sobretudo criou uma nova agenda nas relações internacionais que coloca o mundo ante uma nova divisão geopolítica que se pensava superada na década final do século XX. Depois de quase meio século de um cenário bipolar – confrontando dois sistemas políticos e econômicos antagônicos, o mundo parecia encaminhar-se para uma “nova ordem internacional”, de impulso à globalização sobre a base de sistemas de mercados razoavelmente ancorados na ordem econômica de Bretton Woods: o multilateralismo econômico fundado num consenso básico em torno dos intercâmbios abertos administrados pela tríade FMI-BM-OMC. 

No máximo, a antiga guerra fria geopolítica tinha dado lugar a uma nova guerra fria econômica, caracterizada pelo encolhimento geográfico e econômico da antiga União Soviética e pela irresistível e extraordinária ascensão econômica da China, impulsionada desde sua adesão ao GATT-OMC em 2001. Mas, o que foi chamado de “unilateralismo arrogante” por parte dos Estados Unidos, na última década do século XX, assim como sua postura paranoica de considerar a China um “adversário estratégico”, incitou esta última a rever sua posição mantida desde os anos 1970 (ou talvez até antes), de ver nos EUA um possível aliado na confrontação que ela mantinha com a União Soviética – por diversos motivos, inclusive territoriais – e de passar a reinserir o gigante americano no rol das antigas potências ocidentais que pretendiam manter o gigante asiático – quando este era o “homem doente” da Ásia – numa espécie de continuidade do “século de humilhações”. 

O que ocorreu a partir daí foi uma reaproximação entre as duas grandes autocracias socialistas do passado, mediante diversos mecanismos – entre eles o próprio BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai –, até resultar na “aliança sem limites” proclamada por Xi Jinping junto a Putin, menos de um mês antes da invasão selvagem das forças russas contra a Ucrânia. Essa quase repetição da invasão da Polônia por Hitler, em 1939, criou uma nova situação internacional que colocou o Brasil em face de dilemas que não tinham sido registrados desde aquela época da Segunda Guerra Mundial. Com efeito, mesmo a ditadura do Estado Novo, depois do atropelo feito contra a Constituição de 1934, substituída pela “polaca” de novembro de 1937, não ousou contrariar a doutrina jurídica seguida sem hesitações pela diplomacia brasileira desde o Império: o Brasil não reconheceu a suserania nazista sobre a Polônia, assim como não reconheceu a incorporação dos três Estados bálticos ao império soviético em 1940, pois que tais usurpações do Direito Internacional tinham sido efetuadas por meio da força bruta, tal como se processou no caso da anexação russa da Crimeia, em 2014, e na subsequente invasão da Ucrânia oriental, assim como do resto do país, em 2022. 

Registre-se que, em 2014, o governo Dilma Rousseff, provavelmente em função do BRICS e mais especialmente pelas relações pessoais travadas entre Lula e Putin desde antes do início desse grupo, em 2009, jamais tomou a posição que seria de se esperar da adesão do Brasil e de sua diplomacia aos sagrados princípios do Direito Internacional ou, mais simplesmente, dos dispositivos da Carta das Nações Unidas que proíbem guerras de agressão. O mesmo pode ser dito do cenário atual, marcado por flagrantes violações da Carta da ONU e, mais ainda, por crimes de guerra, por crimes contra a paz e, possivelmente, até por crimes contra a humanidade, os mesmos que conduziram líderes civis e militares nazistas, em 1946, ao Tribunal de Nuremberg. O Brasil aderiu, formalmente, às resoluções do Conselho de Segurança, da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos da ONU, censurando a Rússia pela invasão, mas jamais a condenou diretamente pelas cruéis violações dos tratados internacionais, das leis da guerra e dos protocolos humanitários. 

Ainda que conclamando a uma “cessação das hostilidades” – como se estas fossem recíprocas –, ou apelando a uma solução pacífica do conflito, tendo em conta as “preocupações de segurança das partes” – como se a Ucrânia tivesse, em algum momento criado qualquer insegurança para o seu poderoso vizinho –, o Brasil se opôs terminantemente à imposição de sanções contra a Rússia, como adotadas pelos países aderentes aos artigos pertinentes da Carta da ONU – apenas que de forma unilateral, em vista do uso abusivo do direito de veto pela Rússia –, assim como também se opôs ao apoio militar à Ucrânia agredida, como se esta devesse simplesmente se render em face da maciça ofensiva militar decretada pelo líder saudosista do antigo império russo e soviético. 

Em outros termos, tanto a atual diplomacia bolsonarista, como a possível futura diplomacia lulopetista se colocam, objetivamente, numa posição “solidária” a Moscou, ainda que disfarçada por uma “neutralidade” hipócrita, ou mais exatamente por um “equilíbrio” deformado e enviesado, em nome de interesses oportunistas vinculados ao aprovisionamento em fertilizantes e combustíveis. Tais posturas, à luz de nossas tradições de respeito irrestrito ao Direito Internacional, ou às mais elementares regras de boa conduta nas relações externas, todas elas inseridas em dispositivos pertinentes da Carta da ONU e da Convenção de Viena de 1961 sobre relações diplomáticas (entre outros instrumentos doutrinais e principiológicos do sistema internacional), chocam pela indiferença demonstrada em relação a esses antigos princípios e valores da diplomacia tradicional brasileira, pela atual e pela provável futura orientação de política externa no tocante ao mais grave problema da comunidade mundial na presente conjuntura. 

Se o atual governo permanece indiferente ao suplício de um povo e de uma nação, cabe esperar que um governo compatível com aquelas velhas tradições doutrinárias e universalistas da diplomacia brasileira revise tal posição, em nome do conceito e da imagem externa do Brasil, e que passe a restaurar o prestígio internacional do país, tão duramente conquistado ao longo de décadas, ou mesmo em dois séculos, de paciente construção de uma diplomacia caracterizada pela sua fidelidade aos grandes princípios do Direito Internacional, características que foram terrivelmente abaladas nos últimos quatro anos. Como se pode constatar, não é apenas a democracia que vem patinando no Brasil atual, mas também a sua política externa, para maior angústia da diplomacia profissional. Este é, provavelmente, o maior desafio que se apresenta a uma futura diplomacia compatível com nossas tradições.

 

Paulo Roberto de Almeida, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas e mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, é autor de diversos livros sobre a política externa e a história diplomática brasileira, entre eles Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império(3ª edição: Brasília, Funag, 2017), Apogeu e Demolição da Política Externa: itinerários da diplomacia brasileira (Curitiba: Appris, 2021) e A Grande Ilusão do BRICS e o universo paralelo da diplomacia brasileira (Brasília: Diplomatizzando, Kindle, 2022). 

 

[Brasília, 4208: 28 julho 2022, 8 p.]

 

sábado, 24 de fevereiro de 2024

O Nobel da insensatez - Revista Veja

 O Nobel da insensatez

Revista Veja | Brasil
23 de fevereiro de 2024


A obsessão do presidente pela busca de protagonismo internacional produz mais um vexame diplomático e empurra o Brasil outra vez para o lado errado da história Daniel Pereira

O PRESIDENTE Lula traçou dois grandes objetivos para o seu terceiro mandato. No plano interno, pavimentar o caminho para a sua reeleição, em 2026. No externo, tornar-se um líder global, status com que sonha desde a sua primeira passagem pelo Palácio do Planalto. Aos olhos de hoje, a segunda meta parece bem mais difícil. Para alcançá-la, o governo brasileiro tenta ser protagonista no debate sobre proteção ao meio ambiente e costurar no âmbito do G20 - grupo que reúne as dezenove maiores economias do mundo, além da União Africana e da União Europeia - uma aliança global contra a fome e a pobreza. Se der certo, o petista pode até ser laureado com o Prêmio Nobel da Paz, apostam alguns de seus principais assessores, como o ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias. O problema de Lula não é o tamanho de sua ambição, mas a forma como ele faz política externa, principalmente quando abandona a tradição brasileira de mediação e conciliação, distorce fatos históricos, tem recaídas ideológicas e entoa discursos irresponsáveis como se estivesse num palanque eleitoral, arranhando a imagem e prejudicando os interesses do país.

A diplomacia é, entre outras coisas, a arte de medir bem as palavras. É justamente o que o presidente não fez, mais uma vez, ao comparar as ações do Exército de Israel em Gaza, deflagradas em resposta aos ataques terroristas do Hamas, ao extermínio de 6 milhões de judeus, durante a Segunda Guerra Mundial, pelo regime nazista de Adolf Hitler. "O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu, quando Hitler resolveu matar os judeus", disse o presidente brasileiro durante uma entrevista na Etiópia. A comparação é um despropósito completo. Feita de forma improvisada, por ignorância ou ma-fé, ela serviu de estopim para uma crise diplomática entre Brasil e Israel. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, puxou a reação, escrevendo numa rede social que as palavras de Lula eram vergonhosas e graves. "Isso banaliza o Holocausto e prejudica o povo judeu e o direito de Israel de se defender. Comparar Israel ao Holocausto nazista e a Hitler é cruzar a linha vermelha". Sob ordens de Netanyahu, o chanceler de Israel intensificou o revide, aproveitando para constranger publicamente o embaixador do Brasil no país, Frederico Meyer.

Como ocorre em casos

dessa natureza, Meyer foi convocado pelo governo de Israel a prestar esclarecimentos sobre a fala de Lula. O encontro entre ele e o chanceler israelense, Israel Katz, ocorreu num importante memorial do Holocausto. Lá, sob as lentes e os microfones da imprensa, Katz declarou o presidente brasileiro persona non grata, o que significa que ele não é bem-vindo em Israel enquanto não se retratar, e exigiu um pedido de desculpas. Tudo em hebraico, e sem a presença de um intérprete, o que pode ter impossibilitado a compreensão do que era dito pelo embaixador brasileiro. A crise estava definitivamente instalada. No Brasil, Lula, contrariado, determinou a convocação do embaixador de Israel para prestar esclarecimentos. De nada adiantou. O chanceler Katz continuou a fustigar o presidente brasileiro nas redes sociais: "Sua comparação é promíscua e delirante. Uma vergonha para o Brasil e um cuspe no rosto dos judeus brasileiros. Ainda não é tarde para aprender história e pedir desculpas". Em resposta, o ministro de Relações ExterioresMauro Vieira, declarou que as manifestações de Katz eram inaceitáveis na forma, mentirosas no conteúdo e funcionariam como uma cortina de fumaça.

Para o governo brasileiro, Netanyahu está aproveitando o caso para fugir de explicações sobre denúncias de crimes de guerra cometidos pelas forças israelenses contra civis palestinos. Pode até ser verdade, mas quem deu a deixa, como uma declaração desatinada e irresponsável, foi Lula. As recaídas ideológicas e os improvisos têm feito mal ao presidente na área internacional. Como se sabe, a esquerda brasileira e o PT nutrem simpatia pela causa palestina e defendem a existência de dois Estados independentes na região, o que é rechaçado por Israel. Até aí, tudo dentro da normalidade. A situação começa a desandar quando desce aos detalhes. Após as barbaridades perpetradas pelo Hamas em 7 de outubro, Lula resistiu quanto pode a chamar de terroristas os atos praticados pelo grupo contra civis israelenses, que incluíram assassinatos, torturas, sequestros e estupros. A duras penas, a diplomacia brasileira, um nicho de excelência no serviço público brasileiro, conseguiu convencer o presidente a fazer o que devia ser feito: chamar os terroristas pelo nome. Lula, por sinal, foge das cascas de banana que ele mesmo costuma espalhar pelo caminho ao seguir o roteiro dos diplomatas profissionais.

Dias antes de sua declaração desastrosa, o presidente divulgou uma mensagem nas redes sociais em que, fazendo jus à tradição brasileira, dizia que o ataque do Hamas era indefensável e merecia condenação veemente, mas que a reação de Israel era desproporcional, indiscriminada e inaceitável, tendo resultado na morte de cerca de 30 000 civis, incluindo mulheres e crianças. Por isso, Lula defendia um imediato cessar-fogo. Essa posição enfática, manifestada de forma ponderada, foi logo atropelada pela entrevista na Etiópia, que ainda serviu de pretexto para os radicais de sempre e os áulicos de plantão tentarem dourar a pílula do desatino retórico cometido pelo chefe. Assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, o ex-chanceler Celso Amorim afirmou que a fala de Lula "sacudiu o mundo e desencadeou um movimento de emoções que pode ajudar a resolver uma questão que a frieza dos interesses políticos foi incapaz de solucionar", conforme relatado pela colunista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo. O senso de protagonismo brasileiro nesse caso não é apenas exagerado. Simplesmente não aconteceu.

Além de causar problemas no cenário externo, Lula conseguiu dar um tiro no pé na política interna, tomando para si o protagonismo da agenda negativa, que até então estava toda no colo de seu principal adversário, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Embora algumas vozes desatinadas tenham dado apoio, a exemplo da deputada Gleisi Hoffmann, presidente do PT, que atacou Netanyahu dizendo que o israelense não tem autoridade moral nem política para apontar o dedo para ninguém, o bom senso foi a tônica no Congresso. Conhecido por seu perfil conciliador, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, cobrou de Lula, de quem é aliado, uma retratação por comparar a ação militar de Israel em Gaza ao Holocausto. "Ainda que a reação do governo de Israel (aos atos terroristas do Hamas) venha a ser considerada desproporcional, excessiva, violenta, indiscriminada, não há como estabelecer um comparativo com a perseguição sofrida pelo povo judeu no nazismo", disse o senador. O líder do governo na Casa, Jaques Wagner, um dos poucos quadros no PT com coragem para dizer o que pensa ao presidente da República, seguiu caminho parecido. Durante a sessão plenária, Wagner relatou ter dito o seguinte a Lula: "Não tiro uma palavra do que vossa excelência disse, a não ser o final, porque, na minha opinião, não se traz à baila o episódio do Holocausto para nenhuma comparação".

Desde a campanha eleitoral de 2022, Lula vem usando a política externa para fazer um contraponto a Bolsonaro, cuja gestão chegou a se gabar de ter transformado o Brasil num pária internacional. No primeiro ano de seu terceiro mandato, o petista privilegiou a agenda internacional e visitou mais de vinte países, tentando conquistar um pouco de visibilidade positiva no cenário internacional. Essa ofensiva, se bem-sucedida, pode render dividendos de imagem, acordos em diferentes áreas e ganhos financeiros. Também pode lustrar a própria imagem de Lula, que chegou a ser chamado de "o cara" por Barack Obama. Anos depois, em sua biografia, o ex-presidente americano relatou que o petista lhe causara boa impressão, mas ressaltou também que, segundo constava, tinha escrúpulos de um chefão de uma organização criminosa.

Pelo menos até 2026, a forma como o Brasil será visto no exterior dependerá de como Lula se portará em temas tão distintos como meio ambiente, combate à miséria e negociações de paz. Na quarta-feira, o presidente recebeu o chefe da diplomacia dos Estados Unidos, Antony Blinken, e ouviu dele que os americanos concordam com a solução de dois Estados independentes na região, mas rechaçam veementemente a comparação feita por Lula entre a ação de Israel em Gaza e o Holocausto. Hoje, o Brasil é um importante líder regional, com pretensão de ascender à primeira prateleira dos países protagonistas no cenário internacional. As oportunidades para ganhar relevância estão dadas. O Brasil sediará em novembro a reunião do G20, quando Lula espera sacramentar a aliança global contra a fome e a pobreza. Além disso, será palco no ano que vem da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. De olho ou não no Nobel da Paz, o presidente petista pode conseguir avanços importantes nesses dois encontros. Basta deixar a ideologia, a tentação do palanque e o improviso desrespeitoso de lado. Como bem ressaltou o ex-embaixador Marcos Azambuja, a diplomacia é feita de "palavras cuidadas", ponderadas, bem pensadas. A crise diplomática com Israel é uma prova disso.