O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

Mostrando postagens com marcador inédito. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador inédito. Mostrar todas as postagens

domingo, 16 de junho de 2024

056) Estratégias da Política Externa Brasileira (1978) - Paulo Roberto de Almeida (inédito)

 Estratégias da Política Externa Brasileira


[Paulo Roberto de Almeida] (autoria não identificada)

Brasília, agosto de 1978, 6 p.

Análise das diversas etapas da diplomacia brasileira, preparada como texto de apoio à campanha presidencial do PMDB, inserido no documento “Justificativas para uma possível reformulação da política externa brasileira na África”. Entregue, em setembro de 1978, ao staff do candidato do Partido, General Euler Bentes Monteiro. Inédito. Documento constando dos fundos do Arquivo Nacional, sob o título: “Justificativa para uma possível reformulação da política externa no Brasil na África”, como tendo sido elaborado por “grupo subversivo de esquerda”; Fundo: SNIG; AC_ACE_11577_78.PDF; A1157711-1978; DATA: 17/9/1978; 30 páginas.

[Nota PRA: Algumas expressões, como por exemplo chamar o golpe militar de 1964 de “Revolução”, deve-se ao fato de o documento destinar-se a ser lido por um general, ainda que da oposição, daí o cuidado na terminologia.]

 


JUSTIFICATIVAS PARA UMA POSSÍVEL REFORMULAÇÃO

POLÍTICA EXERNA DO BRASIL NA ÁFRICA

TEXTO PRELIMINAR

O Brasil é, nas palavras de seus dirigentes, candidato efetivo ao status de “Grande Potência” nas próximas duas ou três décadas. O rápido processo de modernização e de crescimento econômico assistido nos últimos anos parece, realmente, ter dado consistência ao projeto, acalentado em determinados setores, de fazer do Brasil um membro do “fechado e seleto clube das nações industriais”.

Atualmente, a designação “potência emergente” já encontra ampla utilização nas mais variadas declarações oficiais, garantindo assim a prévia aceitação do objetivo traçado para este país: torná-lo “potência mundial” num futuro previsível. Mesmo o orgulho decorrente da pretensão acima referida, antes privilégio exclusivo das elites dirigentes, já começa agora a ser insuflado em camadas mais amplas da população.

A diplomacia brasileira conquistou maturidade nos últimos anos, libertando-se de antigos complexos oriundos do nível relativamente baixo do desenvolvimento econômico e social brasileiro. É na política externa, aliás, que os resultados, avaliados em termos de conquistas reais, podem ser classificados de gratificantes, já que em todos os outros terrenos – da situação social da população à democratização das instituições políticas nacionais – o saldo é de nítidos fracassos e frustrações. Mas ela tampouco deixa de ser atingida pelo falso otimismo que campeia nas altas esferas da administração: ao lado dos avanços reais obtidos por nossa diplomacia, paira um esquema conceitual – o do “Brasil Grande Potência” – nem sempre adequado à plena realização das aspirações nacionais e à defesa dos interesses do país no cenário internacional.

A análise da política externa brasileira, desde a década de 60, revela inflexões significativas a cada governo, em função das forças políticas dominantes em cada período. A “política externa independente”, por exemplo, significou a introdução de novos padrões no relacionamento do Brasil com a comunidade internacional: abandonou-se a política de alinhamento estrito e automático com o Ocidente, antes de mais nada com os Estados Unidos, e esboçou-se uma posição de liderança do Terceiro Mundo, através de uma filosofia mais avançada de desenvolvimento econômico e social.

A Revolução de 1964 trouxe não apenas um retorno às normas tradicionais de política externa como, em muitos casos, um verdadeiro retrocesso no que concerne a defesa de determinados princípios da diplomacia brasileira. O primeiro governo da Revolução procedeu a uma revisão do processo de elaboração da política externa brasileira, submetendo-a aos conceitos e diretivas emanados do Conselho de Segurança Nacional. Assistiu-se, assim, a um retorno ao período da guerra fria e a formulação de novos esquemas conceituais suscetíveis presumivelmente de guiar a ação externa do Brasil: a política externa tornou-se igualmente militar e a teoria dos “círculos concêntricos de atuação” veio somar-se aos conceitos de “fronteiras ideológicas” e de “segurança coletiva” para diminuir a importância atribuída até então aos princípios de independência e soberania.

Essa “política externa dependente” foi abertamente contestada no governo Costa e Silva e substituída por um esquema conceitual que reatava em grande parte com os princípios seguidos anteriormente. A suposta “confrontação bipolar”, pela qual o Brasil estaria indefectivelmente ligado ao irmão americano, deu lugar a uma situação tendente ao policentrismo e os problemas de segurança cedem prioridade aos de desenvolvimento. A origem da maior parte dos conflitos e tensões no cenário internacional passou a ser o “’subdesenvolvimento’” e não mais a ação insidiosa do “comunismo internacional”: o enfrentamento Leste-Oeste cedia assim lugar ao conflito Norte-Sul.

O terceiro governo da revolução não prosseguiu, contudo, a ação multilateral empreendida pela administração anterior no sentido de lutar contra a divisão do mundo entre desenvolvidos e subdesenvolvidos. Apesar de pronunciar-se contra as grandes potências que pretendiam, segundo se dizia, o “congelamento do poder mundial”, a política externa do governo Medici rejeitou a “diplomacia da prosperidade conjunta” proposta na administração anterior, introduzindo em seu lugar a “diplomacia do interesse nacional”. O fundamento da nova atitude era precisamente o projeto do “Brasil Grande Potência”, que levaria ao abandono da ênfase dada às ações multilaterais e do papel de líder do Terceiro Mundo, tal como praticado na Conferência da UNCTAD de 1969.

 

A euforia criada pelo chamado “milagre econômico” contribuiu para sustentar a tese de que o país deveria atuar de maneira autônoma no cenário internacional, diversificando e ampliando suas relações como forma de eliminar os obstáculos à expansão de seu Poder Nacional. O bilateralismo cresceu na própria medida em que o progresso econômico permitia visualizar a crescente projeção do Brasil no cenário internacional e, já no âmbito regional, se faziam alusões à hegemonia que resultaria do fortalecimento do poder econômico.

No governo Geisel assistiu-se, contraditoriamente, a expansão e afirmação crescente dos interesses nacionais, mas também ao renascimento das perspectivas terceiro-mundistas. A política externa voltou a proclamar a impossibilidade de “alinhamentos automáticos”, abandonando-se inclusive os “laços afetivos e políticos” (sic) que nos uniam a Portugal, que haviam imposto um retrocesso na política anticolonialista seguida de 1961 a 1964. A política do “pragmatismo ecumênico e responsável” tornou-se cada vez mais a manifestação de um bilateralismo atuante, como forma de garantir a expansão dos interesses nacionais no âmbito da comunidade internacional.

A atual diplomacia, aparentemente inovadora e original, é na verdade profundamente conservadora, já que intenta reproduzir o caminho seguido pelas atuais grandes potências na busca de um maior prestígio internacional. Isto se revela claramente na adoção de elementos da política tradicional (entre eles a expansão da capacidade militar do país e a associação crescente com o capital internacional para fins de crescimento econômico) como forma de promover o “poder nacional” e conduzir o Brasil à condição de parceiro privilegiado no cenário internacional.

Ao proclamar como intenção o projeto “Brasil Grande Potência”, a atual diplomacia não apenas isola o país da comunidade dos países em desenvolvimento (que encontram maiores razões para acusar de oportunista a política externa brasileira), como também justifica, paradoxalmente, a teoria do “congelamento do poder mundial”, já agora condicionando este processo à acessão do Brasil ao “seleto clube das nações industriais”.

Apesar de procurar diversificar as relações internacionais do Brasil, como meio de introduzir maior flexibilidade no jogo diplomático, a atual política externa tem se caracterizado por sua atitude passiva nos foros multilaterais, contrastando assim com a agressividade observada no âmbito das relações bilaterais.

A retração e a timidez, seguidas pela diplomacia brasileira na atualidade, são dificilmente explicáveis quando se observa o conjunto imenso de problemas afrontados pelos países em desenvolvimento no plano internacional. Os graves problemas do desenvolvimento econômico e social desses países, que não encontraram solução depois de duas décadas de desenvolvimento promovidas pela ONU, continuam a ser fonte permanente de tensões e conflitos.

A crise econômica internacional, de cuja eclosão deveria sair o grande debate sobre a nova ordem econômica internacional, apenas se constituiu em nova fonte de sofrimento para os povos dos países em desenvolvimento, após as manobras realizadas pelos países ricos para transferirem aos mais pobres a maior parte de sua carga.

No plano político, parece assistir-se a um renascimento do conflito Leste-Oeste a um novo período de guerra fria, cujo palco atual seria a África. Os enfrentamentos localizados e episódicos não deveriam, contudo, servir para que seja deixada de lado a questão global e multiforme do desenvolvimento econômico. Às nações do Terceiro Mundo não interessa a permanência do confronto Leste-Oeste, causando o adiamento das soluções a serem propostas pelo diálogo Norte-Sul.

O Brasil, como país líder do conjunto de nações em desenvolvimento, tem precisamente uma grande responsabilidade e um grande papel a cumprir na superação dos atuais obstáculos à cooperação internacional, em prol do desenvolvimento e do estabelecimento de uma nova ordem internacional, mais justa e mais igualitária.

A emergência do Brasil no cenário internacional deriva precisamente do grande impulso econômico observado no país nos últimos anos, mas também do papel importante desempenhado por sua diplomacia no sentido de promover a reformulação das estruturas econômicas a nível mundial. Se a atuação diplomática do Brasil não é, na atualidade, tão ativa quanto foi pelo passado, pelo menos no âmbito multilateral e na defesa de propostas inovadoras, devem existir condicionantes que explicam a presente situação.

Uma primeira ordem de respostas pode ser encontrada no modelo de desenvolvimento econômico seguido pelo Brasil há mais de uma década. Com efeito, o processo de dependência externa, que vem se agravando continuamente, impõe limitações à ação internacional do Brasil, tornando sua política externa igualmente dependente dos resultados alcançados na esfera econômica.

O equilíbrio precário do balanço de pagamentos, com o consequente aumento nos volumes absoluto e relativo da dívida externa e o crescente processo de desnacionalização das empresas brasileiras, são alguns dos problemas criados pelo modelo de crescimento econômico adotado pelos últimos governos e que parece constituir-se em ameaças ao desenvolvimento equilibrado do país e ao bem-estar de sua população.

O aprofundamento da dependência externa contribui igualmente para aumentar a fragilidade da posição negociadora do Brasil, diminuindo em consequência seu poder de barganha face aos grupos financeiros internacionais.

Será o Brasil absolutamente imune ao tipo de pressão que impõe, hoje, severas regras de conduta, no campo da política econômica, aos governos do Zaire e do Peru, para citar apenas dois exemplos? Estará o país livre de condicionamentos externos eu possam influir na política em relação ao capital estrangeiro aqui instalado? Até que ponto são compatíveis soberania e dependência externa?

Estas e outras perguntas poderiam, talvez, elucidar algumas das características da atual política externa, como por exemplo a substituição da cooperação econômica multilateral em prol da nova ordem econômica internacional, por um bilateralismo excessivamente voltado para os interesses imediatos da conjuntura econômica brasileira.

Estas características, mesmo disfarçadas sob o manto de uma terminologia aparentemente engajada e comprometida, têm dado lugar a que diversos países acusem a política externa brasileira de oportunista e voltada meramente para interesses lucrativos a curto prazo.

Ainda que se reconheça a gravidade de determinados problemas enfrentados atualmente pelo Brasil, e o equilíbrio de suas contas externas é apenas um deles, sua ação diplomática não deveria servir de respaldo a um modelo de crescimento que, ele mesmo, não serve ao bem-estar da população brasileira, como não atende às aspirações fundamentais da nação.


Brasília, setembro de 1978


[Paulo Roberto de Almeida

Brasília, agosto de 1978, 6 p.

Inédito na ocasião.

Divulgado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/121102667/056_Estrategias_da_Política_Externa_Brasileira_1964_1978_1978_).


terça-feira, 7 de maio de 2024

A política externa em campanhas presidenciais: simples recomendações a candidatos (2018) - INÉDITO - Paulo Roberto de Almeida

Introdução a um texto de 2018, sobre política externa nas campanhas presidenciais

 Em 2018, como aliás em todas as campanhas eleitorais presidenciais que acompanhei – geralmente apenas fazendo o seguimento dos temas de política externa de todos, ou dos principais, candidatos presidenciais –, nunca sequer pretendi seguir qualquer candidato, pois permaneço invariavelmente infenso a associar-me a qualquer partido movimento, candidato, preferindo seguir o pleito como acadêmico, não como torcedor.

Obviamente, tenho minhas preferências de POLÍTICAS, não de candidatos, sendo que considero ser melhor uma política centrada única e exclusivamente nos interesses nacionais do Brasil, arredio a qualquer partidarização da política externa, o que geralmente NÃO se encontra em candidatos muito ideológicos ou com afiliações externas a correntes de alguma tendência radical, de esquerda ou de direita. 

Vale dizer que em 2018, esperava que vencesse não qualquer um dos dois extremos em disputa, mas algum candidato centrista, moderado, ponderado, racional e inteligente. Havia alguns, mas nunca teve chance de sequer chegar ao segundo turno. Em meados do ano eu era consultado por um ou outro jornalistas sobre algum tema de política externa: expressava minha opinião, mas ficava apenas nisso.

Imaginei, porém, fazer um texto com algumas ideias sensatas para TODOS os candidatos, expressando a minha opinião sobre como a política externa deveria ou poderia ser tratada naquelas entrevistas com jornalistas em canais de TV. Esse é o texto que figura abaixo. Mas, ele permaneceu rigorosamente inédito em toda a campanha eleitoral de 2018, e sequer me lembrei dele em 2022. 

Em 2018, eu já sabia qual seria a política externa do PT, pois havia seguido o partido desde os anos 1980 e sabia exatamente quais eram suas posições em todos os assuntos diplomáticos, com críticas fortes a suas posturas em artigos e livros. Mas eu não tinha a menor ideia de como seria, e do horror que seria a política externa do candidato da extrema-direita. Só percebia que seria algo bizarro, de aliança com Trump e de críticas fortes à China (como já tinha feito no começo do ano). E foi um horror, pior o que se suspeitava.

Mas, em meados de 2018 tudo era muito incerto. Como meu documento ficou desconhecido em 2018, e fiquei esquecido desde então, e como eu o "descobri" só agora, resolvi colocar o texto neste meu espaço de liberdade, e esquecer depois, pois os candidatos mudam, a política externa também muda.

Mas, como se verifica por minhas opiniões – sobre a Venezuela, por exemplo – não se pode dizer que eu concorde com a política do PT (antes e agora) nesse quesito e em vários outros mais.

O texto segue como foi escrito, agora publicado pela primeira vez, sem que eu mexa numa vírgula. Apenas registro em minha lista de originais que não é mais inédito, mas não "publicado". Em 2022, eu sequer le lembrei desse texto.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 7 de maio de 2024


Simples recomendações em matéria de política externa

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3 de agosto de 2018 

 

Introdução

Em época eleitoral, as perguntas mais surpreendentes, e desafiadoras, podem emergir nos debates de campanha e, sobretudo, nas entrevistas abertas e interrogatórios comandados por jornalistas e curiosos em geral. Normalmente, a política externa é um tema secundário, marginal mesmo, às preocupações dos políticos, assim como da população em geral, sobretudo em épocas caracterizadas por problemas mais prementes para os eleitores na frente interna: desemprego, queda na renda, diminuição dos serviços públicos, insegurança, corrupção, desesperação, desejo de emigrar. Êpa! Aqui já se fala de um tema que tem a ver com a interface externa do Brasil, um país que acolheu imigrantes durante um largo período de sua história, mas que a partir de certo momento – a crise dos anos 1980, que marca o início de uma longa fase de declínio econômico – começou a “exportar” seus nacionais (para a Europa, para o Japão, para os EUA). Mais recentemente, essa emigração alcançou não apenas cidadãos de baixa educação e de qualificações laborais mais modestas, mas também famílias de classe média e quadros qualificados nos mercados de trabalho (desgostosos com o ambiente negativo no país).

Mas não se podem excluir, a priori, questões relativas à política externa e à diplomacia do Brasil, à sua inserção internacional, ou a problemas da agenda mundial, de forma geral, dos questionamentos dirigidos aos candidatos nesses debates eleitorais, razão pela qual alinho alguns comentários e sugestões nos parágrafos a seguir.

 

Posicionamento genérico 

De preferência, evitar debater, por sua própria iniciativa, as questões de política externa; elas são muito mais complicadas do que as respostas simples que se oferecem para temas da política doméstica, nos quais pequenas mentiras, subterfúgios, ou mesmo grandes promessas populistas podem servir para conquistar alguns votos a mais. Se questionado sobre a política externa de forma geral, reafirmar a confiança no Itamaraty, como um órgão de Estado comprometido com a defesa de uma diplomacia equilibrada, posições sensatas correspondendo ao interesse nacional, muita competência na defesa desse interesse e banalidades do gênero. Enfim, evitar expor-se inutilmente.

Se questionado mais especificamente sobre que tipo de política externa será a sua, responder, uma vez mais, que tem plena confiança na capacidade do Itamaraty para oferecer as melhores respostas aos desafios que se colocam ao Brasil na frente externa e que o ministério sempre demonstrou total domínio de todos os pontos relevantes da agenda internacional, e que ele saberá continuar a oferecer a mesma competência sob o seu governo. Se questionado ainda mais especificamente se o candidato já pensou em quem seria o seu chanceler, pode dizer que a classe política, mas o próprio Itamaraty também, dispõe de bons nomes capazes de assumir com proficiência o cargo de ministro das relações exteriores, e que ele saberá escolher o melhor nome. 

Pode ser que isso não seja suficiente, e que o candidato seja interrogado sobre questões específicas da agenda regional e mundial – Mercosul, Venezuela, acordos comerciais, EUA de Trump, China, Brics, Conselho de Segurança, política migratória e questões ainda mais cabeludas – em face das quais tentará, uma última vez dar respostas genéricas e sempre otimistas, enrolando um pouco na velha conversa da diplomacia universalista, aberta a todas as possibilidades de cooperação internacional, expandir o quadro de acordos e relações comerciais, promover o desenvolvimento sustentável, de acordo com os compromissos assumidos no plano internacional no combate e mitigação do aquecimento global, e outras coisas politicamente corretas. 

Mas, pode ser que tudo isso não seja suficiente, e que algum jornalista chato insista em saber o que o candidato pretende fazer com a Venezuela, com os acordos entre o Mercosul e outros parceiros, entre o bloco e a UE, a atração de investimentos, o que fazer com a China, com o Brics, com todas aquelas embaixadas abertas pelo Lula, se pretende continuar com a orientação Sul-Sul ou se deseja aproximar a diplomacia mais perto dos países ricos e outras bobagens do gênero. Nesse caso, não se pode mais escapar de respostas mais consistentes, ainda que elas possam continuar sendo persistentemente evasivas nos temas mais delicados, como podem ser a questão nuclear, a China, o que fazer com a ditadura venezuelana, as ameaças de “internacionalização da Amazônia”, a abertura comercial ou a preservação de empregos na indústria nacional e outros temas mais complexos ainda, num quadro de certa paralisia política ou de perda de credibilidade do Brasil no plano internacional. Algum jornalista petista poderá até provocar o candidato, indicando o grande prestígio alcançado pela “ativa e altiva”, ou seja, a diplomacia lulopetista, apontando o sucesso anterior do presidente Lula nos grandes foros internacionais, e o seu relacionamento especial com grandes líderes de países emergentes e até de países ricos. Nesse caso, impossível evitar respostas precisas.

 

O que fazer com a Venezuela?

A Venezuela é uma tragédia antes de mais nada para o seu próprio povo, confrontado a níveis extremos de penúria material – alimentos, medicamentos, serviços de saúde, delinquência generalizada, destruição completa da poupança doméstica por níveis alucinantes de inflação, além da violência geral nos cenários sociais – e, mais do que a qualquer outro problema, uma extrema violência política por parte do próprio governo, que desde muitos anos não pode mais ser classificado no campo das democracias. Não seria, aliás, inútil lembrar que foi a diplomacia lulopetista que ajudou a criar e a sustentar essa tragédia, uma vez que Chávez e depois Maduro sempre contaram com o apoio irrestrito de Lula e dos petistas em geral, sem deixar de mencionar que muitos negócios, legais e ilegais, mas certamente com “retornos” suspeitos para ambos os lados, permearam essas relações de amizade incontida entre um regime autocrático e um governo aliado incondicional das mais execráveis ditaduras do continente e de outras partes do mundo. Tudo isso pode e deve ser lembrado.

Agora o que fazer com a Venezuela no momento atual, com a tragédia que é o afluxo maciço de refugiados na fronteira norte do Brasil? Em primeiro lugar, o Brasil precisa honrar o sentido humanitário de sua política migratória, e não fechar as portas a pessoas desesperadas que fogem de uma situação propriamente inaceitável, feita de penúria absoluta em elementos essenciais a uma existência normal, sendo que muitas outras pessoas correm um real perigo de vida. Não cabem, no momento, sanções unilaterais contra o regime venezuelano, além e acima daqueles que normalmente já devem estar ocorrendo: embargo da venda de armas ou de equipamentos e materiais relativos à repressão de movimentos populares e manifestações de protesto. Não se pode impedir, obviamente, empresários privados de vender ao governo venezuelano produtos normalmente comercializados no Brasil e em seu comércio exterior, mas não caberia estender novos financiamentos ao regime atual. Pode-se, aliás, lembrar adicionalmente que os governos lulopetistas estenderam um volume ainda indefinido de financiamentos e créditos, em condições altamente duvidosas, como são ainda mais duvidosos os termos desses acordos e as possibilidades de amortização adequada, sem descurar os juros em condições normais vinculados a esses créditos externos.

Toda e qualquer ação em relação ao regime ditatorial venezuelano não poderá ser unilateral ou diretamente bilateral (além das questões consulares e outras medidas típicas de um relacionamento que sempre foi importante para ambos os países, como é o fornecimento da energia elétrica de Guri para o norte do Brasil, e o comércio local de fronteiras e outras questões humanitárias, como o nomadismo indígena). A política em relação à ditadura bolivariana tem de continuar a ser concertada nos foros regionais ou multilaterais (OEA, ONU, por exemplo) ou em esquemas concertados com os vizinhos latino-americanos (como o Grupo de Lima). Os países podem continuar a fazer pressão sobre o governo chavista, mas sem qualquer ilusão de que ele cederá a essas demandas por eleições limpas e abertas, a uma conciliação necessária abrindo caminho a uma nova fase da vida política venezuelana. Isso aparentemente não ocorrerá, e a única coisa que se pode prever, de imediato, é uma agravação constante e progressiva da situação, até um possível desenlace trágico. 

O Brasil e a sua diplomacia devem fazer de tudo para minimizar o sofrimento da população venezuelana, e contribuir para a pacificação daquele país, por todos os meios que se encontram ao alcance de nossa diplomacia e do governo brasileiro. Enquanto isso não puder ser feito, nosso dever é o de solidariedade integral com a população da Venezuela. Outras medidas serão avaliadas pela diplomacia profissional do Brasil.

 

China, Brics e a Ásia Pacífico

A China é, sem qualquer dúvida, o experimento de transformação econômica mais extraordinária da histórica econômica mundial em todos os tempos. Ela é tão importante para o Brasil quanto o é para quase todos os demais países, inclusive para os EUA, cujo presidente deslanchou uma “guerra comercial” tão inútil quanto desastrosa, não só para os dois países, como para o resto do mundo. Ela é tão importante que, pelo seu peso específico, representa mais da metade do Brics, ou seja, esse grupo não fará absolutamente nada que seja contra os interesses da China. Cabe ao Brasil adotar uma postura pragmática na defesa dos seus interesses, e não adotar uma atitude principista, como foi a dos lulopetistas, movidos mais por supostas simpatias ideológicas do que por uma análise isenta quanto ao interesse em torno de certas opções ou relações. Tanto o Brics, quanto o Ibas, ou a Unasul, e outras iniciativas canhestras dos lulopetistas, junto com essa miragem geograficamente determinista do Sul Global, escolhendo parceiros e aliados ditos “estratégicos”, mais porque eles eram considerados, até preventivamente, como “anti-hegemônicos” – numa nova demonstração simplória de sectarismo político e de miopia ideológica – do que por uma real avaliação dos interesses brasileiros, e todos esses foros e grupos foram estimulados e sustentados pelo lulopetismo com base nesses critérios duvidosos de racionalidade diplomática. 

Pois bem, a China é e continuará a ser importante para o Brasil, mais certamente em economia, comércio, investimentos e grandes temas do multilateralismo do que, cabe dizer, nos temas de democracia e de direitos humanos, que figuram entre nossos princípios e valores constitucionais e até morais. Não por isso deixaremos de considerar a China como relevante sob vários aspectos das relações bilaterais e multilaterais, sem que se deva renunciar a uma visão própria do enquadramento global da diplomacia brasileira. Caberia explicitar que uma diplomacia sensata deveria partir do princípio que alianças e parcerias não devem nunca devem ser feitas com base em pressupostos ideológicos, como feitas durante o lulopetismo, mas sempre com base numa avaliação estritamente técnica dos interesses nacionais, sem quaisquer a prioris adotados com base nessas simpatias supostamente anti-hegemônicas. 

Toda a região da Ásia Pacífico é a mais dinâmica da economia internacional, mobilizando outras economias emergentes em outros continentes, como os membros da Aliança do Pacífico, uma realidade que o Brasil não pode ignorar ao seu próprio risco. O que falta para o Brasil aderir a essa esfera de prosperidade? Simples: abertura econômica e liberalização comercial, se preciso até unilateral, pois o protecionismo brasileiro prejudica em primeiro lugar os brasileiros e as empresas nacionais. A China é um parceiro comercial agressivo? Certamente. Mas não é com antidumping duvidoso e com políticas contrárias às regras da OMC – como esse patético Inovar Auto – que o Brasil vai se qualificar no comércio internacional, e estabelecer os fundamentos de uma relação mutuamente proveitosas com todos os países que fazem parte do grande arco de prosperidade da Ásia Pacífico. O que estão fazendo esses países? Acordos de livre comércio, de aceitação de padrões comuns nos regulamentos comerciais, de facilitação de investimentos e outras medidas convergentes com a interdependência global, em parte representadas pelas políticas setoriais recomendadas pela OCDE. É isso, e mais um pouco, que o Brasil precisa exatamente fazer, se não quiser ficar atrasado como ficou na última década e meia, cujos governos nos levaram à maior recessão de toda a nossa história, um quadro lamentável que pode ser chamado de Grande Destruição econômica lulopetista. 

 

Mercosul, Unasul e outros projetos de integração regional

O Mercosul é um projeto de ABERTURA COMERCIAL, e de INTEGRAÇÃO à ECONOMIA MUNDIAL. Infelizmente, nos últimos anos, especialmente na gestão companheira, o Mercosul deixou de ser uma plataforma de integração do Brasil à economia mundial e de liberalização recíproca e ampliada ao mundo para se converter num palanque político, no qual a retórica supostamente social substituiu os propósitos eminentemente comercialistas do projeto original. Ele precisa voltar aos seus objetivos originais e servir à integração regional e mundial, do contrário precisará ser revisto e reformado, ou então modificado profundamente. Quanto à Unasul, trata-se de mais um desses projetos canhestros do lulopetismo diplomático, adotados por um tipo de anti-imperialismo primário e um antiamericanismo infantil, que só serviu aos objetivos políticos do bolivarianismo e do chavismo, esses anacronismos patéticos. Que ela esteja paralisada atualmente, pode até ser interessante para fazer um balanço: serviu para qualquer coisa útil, para impulsionar a integração física, por exemplo, como era a intenção original da Iniciativa de Integração Sul-Americana, lançada pelo governo FHC em 2000? Serve ela para qualquer objetivo economicamente significativo? Não e não!

 

Conselho de Segurança, questão nuclear, Amazônia, etc.

Quando, e se, ocorrer uma reforma da Carta da ONU, com eventual ampliação do número de membros permanentes do seu Conselho de Segurança, o Brasil estará necessariamente na mira dos eleitos, sem precisar fazer qualquer pirotecnia diplomática como foi o caso sob o lulopetismo. Mas é preciso enfatizar que essa NÃO É uma questão prioritária, seja para a diplomacia, seja para o Brasil, seja, principalmente, para o povo brasileiro. O compromisso do Brasil está, em primeiro lugar, com o seu próprio povo, com os investimentos internos e a melhoria das condições sociais internas. Da mesma forma, política nuclear é uma questão resolvida no Brasil, depois da adesão ao TNP e os demais acordos feitos no âmbito bilateral, com a Argentina, e no regional, com a adesão plena ao tratado de Tlatelolco. Amazônia é um patrimônio brasileiro, mas ela precisa ser mobilizada para o seu correto aproveitamento econômico, inclusive com investimentos estrangeiros (no turismo por exemplo, mas também na exploração adequada dos recursos da biodiversidade), mas sem qualquer xenofobia ou paranoias indevidas, como se potências estrangeiras pretendessem internacionalizar a região. Isso é ridículo e nem deveria ser objeto de qualquer consideração séria num debate normal. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3 de agosto de 2018; inédito.

 

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Evolução do regionalismo político e comercial na América do Sul: uma breve síntese histórica (2008) - Paulo Roberto de Almeida

Integração regional e inserção internacional dos países da América do Sul: evolução histórica, dilemas atuais e perspectivas futuras

 

Paulo Roberto de Almeida

Doutor em Ciências Sociais, mestre em Planejamento Econômico, diplomata de carreira, professor de Economia Política no Mestrado em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

Nunca publicado na íntegra.

 

Sumário: 

Introdução: problemática, organização, metodologia, resumo executivo

1. Breve síntese histórica sobre a evolução do regionalismo político e comercial na região

2. Balanço dos experimentos de integração mais importantes realizados na América do Sul

3. Conquistas e limitações dos esquemas existentes: causas e conseqüências dos principais casos

4. Impacto de recentes mudanças globais sobre os processos de integração e nos países da região

5. Estratégias nacionais adotadas em relação à integração econômica e à inserção internacional

6. Problemas do sub-regionalismo e da liberalização hemisférica: o caso frustrado da Alca

7. Dilemas e problemas da integração: consolidação ou fuga para a frente de tipo político?

8. Fragmentação política e econômica dos processos?: os desafios dos países “bolivarianos”

9. Perspectivas da integração sul-americana no atual contexto internacional: para além da crise?

10. Visões e estratégias possíveis: estarão as lideranças à altura dos desafios internos e externos?

11. Conclusões e recomendações: menos retórica, mais engajamento nas reformas

 

Nota: Os argumentos e opiniões expressos no presente trabalho são exclusivamente pessoais e não correspondem a posições ou políticas das entidades às quais se encontra vinculado o autor. 

 

[Brasília, 1821: esquema: 7 de outubro de 2007, 1 p.;

Redação, 1844: novembro-dezembro 2007, 55 páginas;

Revisão: 22 de maio de 2008, 57 páginas.]

 

Le a íntegra neste link da plataforma Academia.edu: 


https://www.academia.edu/118398096/1844_Integracao_regional_e_insercao_internacional_dos_paises_da_America_do_Sul_evolucao_historica_dilemas_atuais_e_perspectivas_futuras_2008_



Tendências do regionalismo comercial: evolução histórica e perspectivas atuais (2007) - Paulo Roberto de Almeida (inédito)

 Tendências do regionalismo comercial: evolução histórica e perspectivas atuais 

Paulo Roberto de Almeida

Capítulo de livro sobre a integração econômica regional,

sob a coordenação de Eduardo Lobo e Frederico Marchiori (SP: Saraiva); nunca publicado. 

 

 

1. Introdução: um pouco de história em torno dos blocos de países

A conformação de blocos, em especial de natureza comercial, não constitui, obviamente, um fenômeno novo, ou recente, na história mundial. Alianças, pactos, ligas e uniões entre países ou Estados vizinhos – ou até separados geograficamente, mas vinculados por interesses comuns – são tão freqüentes quanto os enfrentamentos bélicos e os acordos de amizade e de defesa mútua, que foram concertados ao longo dos séculos por soberanos interessados em promover a segurança e a prosperidade de suas nações ou em defendê-las de inimigos potenciais. No plano estrito da segurança estratégica, desde a Liga Ateniense, na Grécia antiga, até a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, passando pela frustrada Comunidade Européia de Defesa, são abundantes os exemplos de coalizões formais ou informais entre estados soberanos, destinadas a estabelecer vínculos mais sólidos de cooperação entre eles ou, mesmo, de caminhar no sentido da integração entre seus respectivos sistemas políticos e econômicos. 

(...) 


Ler a íntegra na plataforma Academia.edu, link: 

https://www.academia.edu/118396598/1786_Tendencias_do_regionalismo_comercial_evolução_histórica_e_perspectivas_atuais_2007_



quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Política externa brasileira: da atual para uma necessária (2022, inédito) - Paulo Roberto de Almeida

 Política externa brasileira: da atual para uma necessária  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor;

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com).

Brasília, 4208: 28 julho 2022, 8 p. (inédito neste formato)

  

Retrocessos institucionais e diplomáticos no período recente

O Brasil conheceu, desde 2019, um processo de deterioração da qualidade de suas políticas públicas, a começar pelo fato de que, justamente, o país nunca exibiu, nesse período, um programa definido de políticas gerais ou setoriais em direção a metas ou objetivos claramente explicitados. O que tivemos, mais propriamente, foi uma ruptura com padrões usuais de governança, parcialmente na economia, enganosamente na política – que, a despeito dos anúncios iniciais, voltou ao velho padrão da “velha política” – e, bem mais nitidamente, em áreas setoriais, como meio ambiente, direitos humanos, cultura e educação e, sobretudo, nas relações exteriores, todas elas contribuindo para uma deterioração excepcional da credibilidade brasileira no plano internacional. Poucas dessas rupturas superam o desastre incomensurável que tem sido o rebaixamento da imagem do Brasil no ambiente externo e uma perda de qualidade notável da ação externa da diplomacia profissional, mas não obviamente por sua própria culpa.

A maior parte desses problemas deriva dramática incapacidade do presidente de não só não corrigir os problemas apontados por observadores isentos, mas de criar novos problemas e agravar os existentes, numa dramática demonstração de ausência de governança. Na área do meio ambiente, essa extraordinária capacidade de criar problemas para si próprio e para o país foi evidente, pois o que se registrou foram recordes seguidos de destruição ambiental, sobretudo na Amazônia, que estão justamente no cerne das críticas internacionais à atual postura do governante brasileira, ademais de seus reiterados ataques ao sistema democrático do Brasil, especialmente em relação ao seu fiabilíssimo sistema eleitoral. 

O próximo governo terá de efetuar uma revisão dos conceitos básicos da atual diplomacia, com a adoção de uma política externa que vise a recuperação da credibilidade externa do país. Os eixos principais são, na área política, um retorno ao multilateralismo com base no Direito Internacional e em princípios e valores tradicionais de nossa diplomacia; na área econômica, cabe perseguir a inserção do país na economia global, por meio da abertura econômica geral e da integração regional. Caberia, igualmente, proceder à revisão das atuais “alianças estratégicas” num sentido puramente pragmático, não mais ideológico.

 

A vertente econômica de uma nova postura internacional para o Brasil

A revisão dos conceitos básicos da política externa deve ter, portanto, o objetivo da plena inserção do Brasil na globalização. A incorporação do país aos padrões de governança econômica da OCDE pode ser um bom começo para a consecução de tal meta, no passado recusada pelos governos lulopetistas por puro preconceito contra o que se julgava ser, equivocadamente, um “clube de países ricos”, quando a organização de Paris é, desde muito tempo, um “clube das boas práticas”. A justificativa alegada para tal recusa era a defesa de espaços soberanos de políticas nacionais visando o desenvolvimento do país. Ora, a soberania sequer necessita ser objeto de retórica – como foi o caso dos governos de esquerda ou de direita –, pois ela se exerce, simplesmente, por meio de políticas conducentes justamente à prosperidade nacional, atualmente indissociáveis da interdependência global. 

A evolução das relações econômicas internacionais foi sensivelmente deteriorada pela política antimultilateralista do governo Trump, com a marginalização indesejável da OMC e uma postura defensiva em relação à ascensão da China nos circuitos da globalização, que foi parcialmente revertida (contra os interesses das próprias empresas americanas. Não existe espaço, no horizonte previsível, para grandes negociações no plano multilateral, sugerindo-se novos acordos bilaterais, que passam necessariamente por um novo perfil da política comercial do Brasil, com ou sem revisão do Mercosul em torno de seu eixo básico (que é, atualmente, o da união aduaneira, não o de uma zona de livre comércio). A exposição do setor produtivo à concorrência internacional – benéfica em si, para os próprios produtores e consumidores – requer a redução da carga tributária no plano interno, e uma reforma não pode ser feita sem a outra, sob risco de desmantelar ainda mais as empresas nacionais do setor manufatureiro. 

Um exercício positivo, nesse sentido, embora sem qualquer reforma tributária interna, foi a conclusão do acordo Mercosul-União Europeia, mas prejudicado em sua ratificação e entrada em vigor pelas políticas antiambientais do governo Bolsonaro. Cabe justamente não esquecer que o Mercosul, assim como a UE, é uma personalidade de direito internacional, como tal reconhecido no âmbito da governança econômica global, constituindo, assim, um patrimônio bastante útil no seu reforço institucional com vistas a criar um espaço econômico integrado em esfera continental (da América do Sul). 

O Mercosul – ademais de eventuais arranjos unilaterais que possam ser feitos em paralelo ao seu processo de revisão, como efetuado atualmente pelo Uruguai com seu objetivo de concluir um acordo de livre comércio com a China – não é, nunca foi, culpado pelo fechamento comercial do Brasil, ou por suas disfunções acumuladas ao longo dos anos, geralmente por distorções criadas em âmbito nacional e por descumprimentos das obrigações institucionais por parte de seus dois maiores países membros, o Brasil e a Argentina. Se e quando esses dois países resolverem cumprir os requerimentos estabelecidos no tratado original, ele voltará a ser uma base para a integração mundial das economias dos países membros. Um sólido diálogo entre os maiores países deveria permitir superar as dificuldades atuais e caminhar no sentido do reforço do Mercosul, não do seu desmantelamento.

Não obstante, caberia efetuar um exame profundo das opções estratégicas do Brasil em matéria de política comercial, para decidir, a partir daí, se cabe reformar o Mercosul, ou caminhar no sentido da independência total nesse terreno. Essa é uma agenda aberta, mas que ainda não recebeu a atenção devida, dada a descoordenação existente entre os diversos ministérios envolvidos nessa frente, mas sobretudo pela ausência de um diálogo consistente com os principais atores da economia nacional, os agentes privados conectados ao comércio exterior e a uma agenda de produtividade e de inserção do Brasil na economia global. 

 

A dimensão política universalista de uma nova política externa

A diplomacia do Brasil sempre foi universalista, focada no interesse nacional e no direito internacional. O multilateralismo é uma de suas bases inquestionáveis, assim como a ausência de quaisquer limitações de ordem ideológica na definição dos grandes objetivos na frente externa. Tal postura foi sendo progressivamente construída, desde os tempos da ditadura militar, pela qualidade indiscutível de sua diplomacia profissional, mas se fortaleceu amplamente no período democrático, com o pleno engajamento do Brasil em vertentes anteriormente difíceis em sua agenda externa – como meio ambiente e direitos humanos, mas também integração regional –, o que, conjuntamente com a estabilização macroeconômica do Plano Real, permitiu que o Brasil ganhasse ampla credibilidade internacional nos anos 2000.

A política externa do lulopetismo, no entanto, conduziu o Brasil a coalizões político-diplomáticas definidas a partir de uma visão partidária deformada das relações internacionais do país, uma vez que baseada na miopia de um “Sul Global” que não existe, a não ser nas concepções ideológicas de seus promotores. O governo bolsonarista apenas desmantelou, parcial ou totalmente, os esquemas existentes, sem colocar absolutamente nada em seu lugar, a não ser uma política de aliança submissa em relação ao governo americano anterior (o de Donald Trump) e com regimes similares ou de orientação iliberal e direitista. 

A revisão dos padrões impostos à diplomacia profissional desde o início do século implica, em grande medida, uma revisão profunda das grandes escolhas estratégicas do Brasil na arena mundial. Mas um retorno, pelo provável próximo governo, às opções conhecidas em suas escolhas anteriores, pode redundar, no âmbito regional, no estreitamente de relações com governos de esquerda – em lugar do pragmatismo econômico –, assim como, no plano global, no reforço de uma aliança com a coalizão do BRICS, cuja vocação original para a cooperação econômica tem sido atualmente distorcida pela vontade das duas grandes potências não democráticas de reforçarem essa base organizacional – e até ampliá-la – para o objetivo duvidoso de se construir uma “ordem global” alternativa ao Ocidente, como se o distanciamento em relação às democracias de mercado fosse do interesse do Brasil. A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia criou uma nova situação nas relações internacionais que precisa ser cuidadosamente examinada pelos novos planejadores diplomáticos, de maneira a não fazer do Brasil um mero pião de objetivos nacionais de certos membros do BRICS que não são, e não podem ser, os do Brasil, sobretudo tendo-se em conta a histórica e profunda adesão do país a princípios doutrinais que já tinham sido expostos por Rui Barbosa no início do século XX, depois reafirmados por estadistas do porte de Oswaldo Aranha, no fragor da Segunda Guerra Mundial, assim como por Afonso Arinos de Melo Franco e por San Tiago Dantas no início dos anos 1960. 

 

A circunstância externa do Brasil: uma geografia que precisa ser trabalhada

O filósofo espanhol Ortega y Gasset, escreveu, nas suas Meditaciones del Quijote (1914), uma frase constantemente repetida pelos admiradores: “Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo, eu tampouco me salvo.” Cabe, com efeito, atribuir forte importância à geografia, que pode ser considerada como a circunstância inevitável no plano das nações ou, mais precisamente, dos Estados e sua geopolítica. Em outros termos, os Estados podem escolher a sua organização interna, na esfera política e econômica, e sobretudo suas relações externas, mas eles não podem escolher a sua geografia. Ela lhes é dada pela história, ou seja, pelo longo desenvolvimento de um povo – ou vários deles – num determinado território, partindo dessa condição primária para constituir uma nação, ou um Estado, ou seja, a representação dessa nação no âmbito regional e internacional.

A circunstância geográfica do Brasil, a sua projeção estratégica – para usar um conceito dos geopolíticos – se estende não muito naturalmente pelos vastos espaços da América do Sul, e não muito além disso. Não naturalmente, pois que existem as barreiras naturais da selva amazônica, dos contrafortes andinos, do próprio pantanal e da quase total ausência de facilidades de comunicações terrestres ou mesmo fluviais nos vastos ermos de nosso heartland, o cerrado central, penosamente acessados apenas pelos grandes rios da bacia amazônica, ao norte, e da bacia platina, ao sul. Nessa região se situava, justamente, o espaço natural de projeção do poder instalado na costa atlântica do Brasil, tanto que a metrópole portuguesa tentou por diversas vezes assenhorear-se da margem superior do Prata, instalando uma colônia em Sacramento e depois lutando contra os castelhanos para tentar manter a província oriental, ou cisplatina, ou pelo menos garantir a livre navegabilidade dos rios da bacia do Prata, como única maneira de alcançar a província do Mato Grosso.

Como não se pode discutir com a geografia – pois ela existe, simplesmente, como dizia o teórico geopolítico Spykman –, se pode tomar como natural uma política externa do Brasil que buscasse construir um vasto espaço econômico integrado no coração da América do Sul, pela liberalização recíproca dos mercados e pela própria abertura até unilateral dos seus próprios mercados a todos os vizinhos regionais. Ou seja, construindo um espaço natural de projeção econômica, política e cultural do Brasil no seu entorno imediato, garantindo paz, segurança e prosperidade na América do Sul, os espaços “externos” seriam alcançados para fins de desenvolvimento econômico e social, mobilizando capitais, tecnologia, recursos de todos os tipos para conectar nossa economia, e a do espaço de integração liderado pelo Brasil, à dos grandes centros dinâmicos da economia global.

Tal seria a conformação de um relacionamento exterior, regional, continental e mais além, totalmente compatível com nossa dotação de fatores, nossas vantagens comparativas, nossa capacidade competitiva e nossas ambições diplomáticas de desempenhar um papel positivo em nosso “ambiente natural” – as circunstâncias geográficas – e mais além, em outros quadrantes de um planeta ainda muito desigual, mas vocacionado ao crescimento e à prosperidade, desde que as grandes potências, as economias avançadas, mas também as potências médias, como o Brasil, se concertassem em garantir paz e segurança – como rezam os primeiros artigos da Carta da ONU – e, a partir daí, traçar um vasto plano de eliminação da miséria, de redução da pobreza, e de cooperação ampliada visando elevar os indicadores de bem-estar de imensos contingentes dos povos e nações do planeta.

A circunstância geográfica do Brasil recomendaria, portanto, uma dedicação especial de sua futura diplomacia no sentido de recompor as bases de uma liderança natural, que se exerceria a partir de um amplo projeto de abertura econômica – unilateral, se for o caso – em direção dos países vizinhos do continente sul-americano, como a base indispensável para sua projeção global. Mas, não contente de dispor dessas “vantagens comparativas regionais” no continente, a antiga diplomacia lulopetista decidiu empreender novos saltos extrarregionais de puro voluntarismo diplomático internacional, primeiro congregando dois outros sócios no projeto do IBAS, a Índia e a África do Sul, depois se lançando com a Rússia, na construção do BRICS, que incorporou a China – sempre propensa a se utilizar de novos tabuleiros para seu projeto de preeminência global –, ambos carentes de estudos técnicos compatíveis com as prioridades econômicas e diplomáticas do Brasil, apenas respondendo a aspirações grandiosas de projeção internacional do então chefe de Estado.

 

A questão mais crucial da agenda internacional e os desafios diplomáticos do Brasil

Depois da invasão e anexação ilegais da península da Criméia, juridicamente sob a soberania da Ucrânia, em 2014, pelo governo de Putin, a nova decisão do líder russo de empreender uma guerra de agressão contra o país vizinho, em fevereiro de 2022, acelerou alguns desenvolvimentos que já se processavam no ambiente internacional, mas sobretudo criou uma nova agenda nas relações internacionais que coloca o mundo ante uma nova divisão geopolítica que se pensava superada na década final do século XX. Depois de quase meio século de um cenário bipolar – confrontando dois sistemas políticos e econômicos antagônicos, o mundo parecia encaminhar-se para uma “nova ordem internacional”, de impulso à globalização sobre a base de sistemas de mercados razoavelmente ancorados na ordem econômica de Bretton Woods: o multilateralismo econômico fundado num consenso básico em torno dos intercâmbios abertos administrados pela tríade FMI-BM-OMC. 

No máximo, a antiga guerra fria geopolítica tinha dado lugar a uma nova guerra fria econômica, caracterizada pelo encolhimento geográfico e econômico da antiga União Soviética e pela irresistível e extraordinária ascensão econômica da China, impulsionada desde sua adesão ao GATT-OMC em 2001. Mas, o que foi chamado de “unilateralismo arrogante” por parte dos Estados Unidos, na última década do século XX, assim como sua postura paranoica de considerar a China um “adversário estratégico”, incitou esta última a rever sua posição mantida desde os anos 1970 (ou talvez até antes), de ver nos EUA um possível aliado na confrontação que ela mantinha com a União Soviética – por diversos motivos, inclusive territoriais – e de passar a reinserir o gigante americano no rol das antigas potências ocidentais que pretendiam manter o gigante asiático – quando este era o “homem doente” da Ásia – numa espécie de continuidade do “século de humilhações”. 

O que ocorreu a partir daí foi uma reaproximação entre as duas grandes autocracias socialistas do passado, mediante diversos mecanismos – entre eles o próprio BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai –, até resultar na “aliança sem limites” proclamada por Xi Jinping junto a Putin, menos de um mês antes da invasão selvagem das forças russas contra a Ucrânia. Essa quase repetição da invasão da Polônia por Hitler, em 1939, criou uma nova situação internacional que colocou o Brasil em face de dilemas que não tinham sido registrados desde aquela época da Segunda Guerra Mundial. Com efeito, mesmo a ditadura do Estado Novo, depois do atropelo feito contra a Constituição de 1934, substituída pela “polaca” de novembro de 1937, não ousou contrariar a doutrina jurídica seguida sem hesitações pela diplomacia brasileira desde o Império: o Brasil não reconheceu a suserania nazista sobre a Polônia, assim como não reconheceu a incorporação dos três Estados bálticos ao império soviético em 1940, pois que tais usurpações do Direito Internacional tinham sido efetuadas por meio da força bruta, tal como se processou no caso da anexação russa da Crimeia, em 2014, e na subsequente invasão da Ucrânia oriental, assim como do resto do país, em 2022. 

Registre-se que, em 2014, o governo Dilma Rousseff, provavelmente em função do BRICS e mais especialmente pelas relações pessoais travadas entre Lula e Putin desde antes do início desse grupo, em 2009, jamais tomou a posição que seria de se esperar da adesão do Brasil e de sua diplomacia aos sagrados princípios do Direito Internacional ou, mais simplesmente, dos dispositivos da Carta das Nações Unidas que proíbem guerras de agressão. O mesmo pode ser dito do cenário atual, marcado por flagrantes violações da Carta da ONU e, mais ainda, por crimes de guerra, por crimes contra a paz e, possivelmente, até por crimes contra a humanidade, os mesmos que conduziram líderes civis e militares nazistas, em 1946, ao Tribunal de Nuremberg. O Brasil aderiu, formalmente, às resoluções do Conselho de Segurança, da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos da ONU, censurando a Rússia pela invasão, mas jamais a condenou diretamente pelas cruéis violações dos tratados internacionais, das leis da guerra e dos protocolos humanitários. 

Ainda que conclamando a uma “cessação das hostilidades” – como se estas fossem recíprocas –, ou apelando a uma solução pacífica do conflito, tendo em conta as “preocupações de segurança das partes” – como se a Ucrânia tivesse, em algum momento criado qualquer insegurança para o seu poderoso vizinho –, o Brasil se opôs terminantemente à imposição de sanções contra a Rússia, como adotadas pelos países aderentes aos artigos pertinentes da Carta da ONU – apenas que de forma unilateral, em vista do uso abusivo do direito de veto pela Rússia –, assim como também se opôs ao apoio militar à Ucrânia agredida, como se esta devesse simplesmente se render em face da maciça ofensiva militar decretada pelo líder saudosista do antigo império russo e soviético. 

Em outros termos, tanto a atual diplomacia bolsonarista, como a possível futura diplomacia lulopetista se colocam, objetivamente, numa posição “solidária” a Moscou, ainda que disfarçada por uma “neutralidade” hipócrita, ou mais exatamente por um “equilíbrio” deformado e enviesado, em nome de interesses oportunistas vinculados ao aprovisionamento em fertilizantes e combustíveis. Tais posturas, à luz de nossas tradições de respeito irrestrito ao Direito Internacional, ou às mais elementares regras de boa conduta nas relações externas, todas elas inseridas em dispositivos pertinentes da Carta da ONU e da Convenção de Viena de 1961 sobre relações diplomáticas (entre outros instrumentos doutrinais e principiológicos do sistema internacional), chocam pela indiferença demonstrada em relação a esses antigos princípios e valores da diplomacia tradicional brasileira, pela atual e pela provável futura orientação de política externa no tocante ao mais grave problema da comunidade mundial na presente conjuntura. 

Se o atual governo permanece indiferente ao suplício de um povo e de uma nação, cabe esperar que um governo compatível com aquelas velhas tradições doutrinárias e universalistas da diplomacia brasileira revise tal posição, em nome do conceito e da imagem externa do Brasil, e que passe a restaurar o prestígio internacional do país, tão duramente conquistado ao longo de décadas, ou mesmo em dois séculos, de paciente construção de uma diplomacia caracterizada pela sua fidelidade aos grandes princípios do Direito Internacional, características que foram terrivelmente abaladas nos últimos quatro anos. Como se pode constatar, não é apenas a democracia que vem patinando no Brasil atual, mas também a sua política externa, para maior angústia da diplomacia profissional. Este é, provavelmente, o maior desafio que se apresenta a uma futura diplomacia compatível com nossas tradições.

 

Paulo Roberto de Almeida, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas e mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, é autor de diversos livros sobre a política externa e a história diplomática brasileira, entre eles Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império(3ª edição: Brasília, Funag, 2017), Apogeu e Demolição da Política Externa: itinerários da diplomacia brasileira (Curitiba: Appris, 2021) e A Grande Ilusão do BRICS e o universo paralelo da diplomacia brasileira (Brasília: Diplomatizzando, Kindle, 2022). 

 

[Brasília, 4208: 28 julho 2022, 8 p.]

 

quarta-feira, 30 de março de 2022

Uma análise do que seria a política externa do PT em 1994 - Paulo Roberto de Almeida

Para que não se diga que eu só comecei a criticar os petistas a partir de 2003. Já na primeira campanha presidencial, em 1989,  descrevi as propostas de política externa do PT, mas ficou incluída numa ampla análise de todos os programas dos principais candidatos. Aqui figura uma análise dedicada exclusivamente ao PT, feita em Paris, em 1994.

430. “A política externa nas eleições presidenciais: a plataforma de um governo PT”, Paris, 18 maio 1994, 4 pp. Texto sobre as posições do PT em matéria de política externa, mencionando texto de Lula publicado no Boletim ADB. Inédito.

Paulo Roberto de Almeida

A POLÍTICA EXTERNA NAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS: A PLATAFORMA DE UM GOVERNO PT

 

Paulo Roberto de Almeida

 

No Brasil, a temática das relações internacionais está geralmente ausente das plataformas ou dos debates pré-eleitorais conduzidos pelos candidatos em eleições, inclusive as presidenciais. Nestas poucos são os que apresentam, aliás, verdadeiros programas de Governo e, os que o fazem, costumam esquecer a política externa. Será que a próxima campanha presidencial vai romper com essa lacuna notável, num momento em que o Brasil se insere cada vez mais no sistema internacional? Qual a experiência passada nessa matéria?

Das mais de duas dezenas de candidatos nas eleições de 1989, apenas cinco (Affonso Camargo, Guilherme Afif, Lula, Covas e Ulysses Guimarães) contavam, efetivamente, com programas de governo, incluindo uma plataforma de política externa. Outros três (Collor, Roberto Freire e Ronaldo Caiado), apesar de contarem com programas, não tinham nenhum posicionamento escrito em matéria de política externa e outros dois (Brizola e Maluf) sequer chegaram a apresentar programas de governo até o primeiro turno das eleições (15 de novembro).

De forma geral, os candidatos não se manifestaram objetivamente sobre as relações internacionais do Brasil e, nas referências ao tema, não transpareceu nenhuma disposição consistente de implementar mudanças radicais nas linhas gerais de política externa oficial. Sem querer cair nos mitos da unanimidade e do apoio consensual tributados à política externa oficial, não parece exagerado dizer que, na prática, os desentendimentos em torno da postura externa do Brasil eram, então como hoje, bem menores do que, por exemplo, em relação à política econômica interna ou aos custos sociais da luta anti-inflacionária.

Na verdade, a campanha de 1989 não foi marcada, em absoluto, por uma disputa entre programas ou metas de governo, mas tão simplesmente por acusações recíprocas e ataques pessoais entre os candidatos. A exceção, como seria de se esperar, foi o candidato do PT, já então Luis Inácio Lula da Silva, que procurou apresentar de forma sistemática sua plataforma de ação para o País. Bem antes do primeiro turno das eleições de 1989, o candidato do PT apresentou um amplo e abrangente programa de governo e, em acordo com as resoluções políticas adotadas pelo Partido em seu IV Encontro Nacional (junho de 1989), poderia propor uma “política externa independente e soberana, sem alinhamentos automáticos, pautada pelos princípios de auto-determinação dos povos, não-ingerência nos assuntos internos de outros países e pelo estabelecimento de relações com governos e nações em busca da cooperação à base de plena igualdade de direitos e benefícios mútuos”.  

Mesmo se esses princípios, expressos de forma geral, não se distanciam muito da política externa efetivamente seguida pelo Brasil, ainda assim uma vitória do candidato-trabalhador poderia representar uma reavaliação radical das posturas brasileiras na área. Por força das alianças eleitorais feitos pelo PT, no âmbito da “Frente Brasil Popular”, o candidato se comprometia em adotar uma “política anti-imperialista, prestando solidariedade irrestrita às lutas em defesa da autodeterminação e da soberania nacional, e a todos os movimentos em favor da luta dos trabalhadores pela democracia, pelo progresso social e pelo socialismo”. Um hipotético Governo da Frente, com Lula na Presidência, procuraria defender a “luta dos povos oprimidos da América Latina” e o candidato chegou mesmo a propor a decretação de uma moratória unilateral para “solucionar” a questão da dívida externa. 

Na fase posterior às eleições, concretizando promessa feita como candidato derrotado à Presidência da República, o líder do PT anunciou, em coalizão com alguns outros partidos de esquerda, a formação de um “governo paralelo”, seguramente um dos poucos exemplos de shadow cabinet ao sul do Equador. Infelizmente, a experiência não chegou realmente a frutificar, pelo menos no que se refere à atividade de um “ministro paralelo” das relações exteriores. Não se teve notícia de que o chanceler “paralelo” – designado na pessoa do eminente filósofo e professor Carlos Nelson Coutinho – tivesse avançado elementos concretos de uma “política externa alternativa”, dotada de propostas concretas parta o relacionamento externo do Brasil.

Desde então, muito progresso foi feito no desenvolvimento das linhas de ação do PT na área internacional, sobretudo no que se refere aos problemas da integração regional e da dívida externa. O candidato de 1989, que também passou a viajar mais, é hoje um homem afeito aos principais problemas internacionais enfrentados pelo Brasil, com um maior conhecimento a respeito das opções na frente externa. Qual seria, nesse contexto, a política externa de um possível Governo PT a partir de 1995?

Com a provável exceção de alguns poucos militantes da ala radical do PT, o candidato designado não parece acreditar que exista uma política externa com “caráter de classe”, que representaria apenas os interesses das elites dominantes e de seus aliados estrangeiros. Ainda que se possa argumentar que toda ação institucional – e a política externa não é exceção – reflete, de certo modo, a estrutura econômica e social e o sistema político em vigor no País, a grande questão nesse terreno é saber se, efetivamente, a política externa brasileira tem correspondido às necessidades da Nação e aos interesses de seu Povo. Não se trata apenas de retomar as críticas habituais e dizer, por exemplo, que as relações exteriores têm sido traçadas em gabinetes fechados, sem a necessária participação da sociedade, mas de verificar se as posições assumidas pelo Brasil externamente contemplam apenas os interesses de um grupo da sociedade, que manipula a máquina do Estado para servir seus fins particulares, ou se elas servem o grande objetivo do desenvolvimento, que é a verdadeira ideologia do povo brasileiro.

Nesse particular, Lula insere claramente a política externa no quadro mais amplo de uma política nacional dotada de objetivos comprometidos com uma certa visão do Brasil no contexto internacional. Em artigo assinado publicado pelo Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros, ADB (ano II, n° 11, 03/94, pp. 8-9), o candidato começa por uma afirmação que não poderia ser mais cristalina: “O principal problema que enfrenta a política externa brasileira é a ausência de um projeto nacional de desenvolvimento há mais de quinze anos”. Ele reconhece que “durante os governos militares, mais particularmente no período do general Geisel, existia um projeto nacional, politicamente autoritário e socialmente excludente” que, a despeito das críticas que seu partido pode fazer, “abriu brechas para que o Brasil reorientasse sua política externa”.

Hoje, o País é uma “nau sem rumo, corroído pela inflação, por uma crise econômica e social de grande profundidade e de repercussão fortemente negativa no exterior”. Depois de listar algumas das transformações por que passou o mundo no período recente, o candidato Lula indica alguns elementos para a formulação de uma “nova política externa para o Brasil”.

“Em primeiro lugar, o Brasil só poderá ter uma política externa consistente se tiver um claro projeto nacional de desenvolvimento, com o correspondente fortalecimento da democracia, o que significa universalização da cidadania, do respeito aos direitos humanos, reforma e democratização do Estado”. Esse projeto nacional de desenvolvimento compreende um “modelo de crescimento que favoreça a criação de um gigantesco mercado de bens de consumo de massas que permita redefinir globalmente a economia, dando-lhe, inclusive, novas condições de inserção e de cooperatividade [sic] internacionais”. “Em segundo lugar, o Brasil não pode sofrer passivamente a atual (des)ordem mundial. Ele tem de atuar no sentido de buscar uma nova ordem política e econômica internacional justa e democrática”. 

O candidato reafirma mais adiante seus pressupostos de atuação: “A política externa não vem depois da definição de um projeto nacional. Ela faz parte deste projeto nacional”. Este parece ser, verdadeiramente, o nó do problema, já que, em diversas ocasiões, a política externa oficial apresentou-se como algo destacado e aparentemente independente dos demais problemas nacionais. Não se trata de um defeito próprio à política externa ou aos diplomatas, mas de efeito derivado da ausência, precisamente, de um projeto nacional claramente formulado. 

Nessas condições, o que significaria uma “nova política externa” para o País? É evidente que não há respostas simples a um conjunto de desafios externos que são basicamente comuns aos países em desenvolvimento: dívida externa, acesso a mercados e a novas tecnologias, inserção econômica internacional, mobilização de recursos externos para fins de desenvolvimento nacional, participação plena nas grandes decisões políticas e econômicas que afetam a comunidade internacional e o planeta, etc. As respostas a essas questões não podem ser equacionadas, nos níveis internacional ou regional, com base apenas em slogans ou frases de efeito. Elas requerem um pouco mais de consistência, mas, também e sobretudo, capacidade externa de implementá-las. É essa capacidade, que depende basicamente dos recursos globais de um país (econômicos, políticos, culturais e também, por que não?, militares), que tem historicamente feito falta ao Brasil. A superação dessas “lacunas de poder” depende apenas e tão somente da implementação de um projeto nacional de desenvolvimento.

Com todos os percalços internos criados por governos hesitantes na última década e meia, a política externa até que tem respondido bem aos anseios da Nação, caracterizando-se por uma atuação moderada e realista, mais conforme ao nosso perfil de País complexo e diversificado. Se o compromisso de nossas elites com o desenvolvimento econômico e social parece ser meramente retórico, tal falha não pode ser creditada aos profissionais do Itamaraty, que não podem simplesmente transmutar sua ação diplomática na área externa em medidas internas de correção das desigualdades econômicas, dos desequilíbrios regionais ou das injustiças sociais mais gritantes.

De maneira acertada, Lula acredita que a política externa é, antes de mais nada, uma questão de política interna. Parafraseando hipoteticamente Clausewitz, o candidato do PT poderia também dizer: “A política externa é a continuação da política interna por outros meios”.

 

Paulo Roberto de Almeida

Paris, 18 de maio de 1994