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quarta-feira, 20 de março de 2024

As múltiplas crises do internacional: transição, hegemonia e resistência nas ruínas da ordem global: chamada para artigos - revista Carta Internacional

Uma chamada interessante;

Chamada para publicação de dossiê na Revista Carta Internacional v. 19, n. 3 de 2024

A Carta Internacional, revista científica de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ISSN 2526-9038) está selecionando artigos para o Dossiê 

As múltiplas crises do internacional: transição, hegemonia e resistência nas ruínas da ordem global

A revista aceita artigos inéditos em português, espanhol ou inglês. O prazo máximo de submissão para o dossiê é 31 de maio de 2024.

Dossiê:

As múltiplas crises do internacional: transição, hegemonia e resistência nas ruínas da ordem global

Editores: Carolina Moulin (UFMG) e Daniel Maurício de Aragão (UFBA) 

TEXTO

O velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece

A frase de Antonio Gramsci, tema do IX Encontro da ABRI em 2023, revela o espírito do tempo presente e as inquietações e incertezas que perpassam a análise da ordem internacional contemporânea. Múltiplas ‘patologias de crise’ – guerras, epidemias, catástrofes ambientais, genocídios, desigualdades aprofundadas, populismos reacionários e fissuras nas formas democráticas de governo, para citar apenas algumas – tem reverberado um sentimento de “fim de mundo”. Esses sintomas mórbidos resvalam nas dificuldades das estruturas e instituições globais, erigidas na esteira do projeto moderno liberal, de se adaptarem e, no limite, se reinventarem sob outros termos diante das demandas das sociedades atuais, face ao capitalismo financeirizado, às transformações na relação entre ordens internacionais, formas de Estado e forças sociais (Cox, 1981) e de crise de hegemonia (Fraser, 2020).

Sobre o húbris do projeto da modernidade liberal - agravada pelo fracasso de sua vertente fundamentalista, o neoliberalismo, e por retrocessos associados à sua crise, particularmente no que tange à democracia e aos direitos humanos e à ascensão do autoritarismo e conservadorismo; por crises recorrentes dos processos de acumulação capitalista; por promessas frustradas nos processos de globalização e integração regional; por conflitos, guerras e pandemias - Estados e as Organizações Internacionais têm dificuldade de reagir. Ao mesmo tempo, protestos e formas de resistência apontam para fissuras e novas possibilidades de rearticulação, ainda que efêmeras, tentativas e provisórias. Dos protestos globais às ocupações, passando por hashtags e táticas efusivas de mobilização, emergem conformações alternativas à relação entre ordem e justiça, violência e poder, representação e política e entre o local e o internacional, com implicações importantes para o futuro da disciplina de Relações Internacionais.

Para o dossiê, almejamos receber contribuições que se engajem com esses “sintomas mórbidos”, seus impactos e alternativas, seus limites e aberturas. Os editores convidam artigos que aprofundem debates sobre essa conjuntura histórica, em temas tais como:

- Crise de hegemonia, seus atores e processos;

- Crise do capitalismo associada às transformações dos processos de acumulação, agravada pela especulação do capital financeiro e por processos de expropriação e precarização;

-  Limitações, retrocessos, incógnitas e alternativas nos e aos processos de globalização e integração regional;

- Limites e possibilidades teóricas nas Relações Internacionais, refletindo sobre a resiliência de abordagens tradicionais e pluralismo teórico no campo enquanto estratégias possíveis para compreensão de processos políticos do mundo atual; 

- Reflexões substantivas e originais sobre noções de crise e catástrofe enquanto gêneros importantes para a disciplina de RI, na esteira da centralidade de fenômenos como conflitos armados, pandemias, e esgotamento de modelos de desenvolvimento ancorados no capitalismo liberal e suas consequentes formas de institucionalização;

- Contribuições sobre estratégias narrativas e transdisciplinares que possibilitam olhar para temas persistentes das Relações Internacionais (guerra e paz, mobilidade e circulação, exclusão e desigualdade, populismo e nacionalismo, dentre outros) de forma criativa e imaginativa em um contexto de transição;

- Perspectivas de futuro nas Relações Internacionais, a partir, principalmente, das reivindicações de movimentos antirracistas, feministas, LGBTQIAPN+, socio ambientalistas, quilombolas e indígenas, bem como das reações e reconfigurações, usualmente violentas dos modos de governo e governança sobre esses territórios de luta política e social.

Regras de submissão:

O formato dos artigos deverá seguir o padrão já adotado pela revista:

  1. O artigo deve ser inédito e redigido em português, inglês ou espanhol. Além de inédito, o artigo não deve estar em apreciação concomitante em nenhum outro periódico ou veículo de publicação, no todo ou em parte, no idioma original ou traduzido.
  2. Os artigos devem ter entre 7500 e 8500 palavras, incluindo título, resumo e palavras-chave (em português, inglês e espanhol), notas de rodapé e referências bibliográficas.

Site da revista: https://www.cartainternacional.abri.org.br/Carta/announcement/view/9


quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Política externa brasileira: da atual para uma necessária (2022, inédito) - Paulo Roberto de Almeida

 Política externa brasileira: da atual para uma necessária  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor;

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com).

Brasília, 4208: 28 julho 2022, 8 p. (inédito neste formato)

  

Retrocessos institucionais e diplomáticos no período recente

O Brasil conheceu, desde 2019, um processo de deterioração da qualidade de suas políticas públicas, a começar pelo fato de que, justamente, o país nunca exibiu, nesse período, um programa definido de políticas gerais ou setoriais em direção a metas ou objetivos claramente explicitados. O que tivemos, mais propriamente, foi uma ruptura com padrões usuais de governança, parcialmente na economia, enganosamente na política – que, a despeito dos anúncios iniciais, voltou ao velho padrão da “velha política” – e, bem mais nitidamente, em áreas setoriais, como meio ambiente, direitos humanos, cultura e educação e, sobretudo, nas relações exteriores, todas elas contribuindo para uma deterioração excepcional da credibilidade brasileira no plano internacional. Poucas dessas rupturas superam o desastre incomensurável que tem sido o rebaixamento da imagem do Brasil no ambiente externo e uma perda de qualidade notável da ação externa da diplomacia profissional, mas não obviamente por sua própria culpa.

A maior parte desses problemas deriva dramática incapacidade do presidente de não só não corrigir os problemas apontados por observadores isentos, mas de criar novos problemas e agravar os existentes, numa dramática demonstração de ausência de governança. Na área do meio ambiente, essa extraordinária capacidade de criar problemas para si próprio e para o país foi evidente, pois o que se registrou foram recordes seguidos de destruição ambiental, sobretudo na Amazônia, que estão justamente no cerne das críticas internacionais à atual postura do governante brasileira, ademais de seus reiterados ataques ao sistema democrático do Brasil, especialmente em relação ao seu fiabilíssimo sistema eleitoral. 

O próximo governo terá de efetuar uma revisão dos conceitos básicos da atual diplomacia, com a adoção de uma política externa que vise a recuperação da credibilidade externa do país. Os eixos principais são, na área política, um retorno ao multilateralismo com base no Direito Internacional e em princípios e valores tradicionais de nossa diplomacia; na área econômica, cabe perseguir a inserção do país na economia global, por meio da abertura econômica geral e da integração regional. Caberia, igualmente, proceder à revisão das atuais “alianças estratégicas” num sentido puramente pragmático, não mais ideológico.

 

A vertente econômica de uma nova postura internacional para o Brasil

A revisão dos conceitos básicos da política externa deve ter, portanto, o objetivo da plena inserção do Brasil na globalização. A incorporação do país aos padrões de governança econômica da OCDE pode ser um bom começo para a consecução de tal meta, no passado recusada pelos governos lulopetistas por puro preconceito contra o que se julgava ser, equivocadamente, um “clube de países ricos”, quando a organização de Paris é, desde muito tempo, um “clube das boas práticas”. A justificativa alegada para tal recusa era a defesa de espaços soberanos de políticas nacionais visando o desenvolvimento do país. Ora, a soberania sequer necessita ser objeto de retórica – como foi o caso dos governos de esquerda ou de direita –, pois ela se exerce, simplesmente, por meio de políticas conducentes justamente à prosperidade nacional, atualmente indissociáveis da interdependência global. 

A evolução das relações econômicas internacionais foi sensivelmente deteriorada pela política antimultilateralista do governo Trump, com a marginalização indesejável da OMC e uma postura defensiva em relação à ascensão da China nos circuitos da globalização, que foi parcialmente revertida (contra os interesses das próprias empresas americanas. Não existe espaço, no horizonte previsível, para grandes negociações no plano multilateral, sugerindo-se novos acordos bilaterais, que passam necessariamente por um novo perfil da política comercial do Brasil, com ou sem revisão do Mercosul em torno de seu eixo básico (que é, atualmente, o da união aduaneira, não o de uma zona de livre comércio). A exposição do setor produtivo à concorrência internacional – benéfica em si, para os próprios produtores e consumidores – requer a redução da carga tributária no plano interno, e uma reforma não pode ser feita sem a outra, sob risco de desmantelar ainda mais as empresas nacionais do setor manufatureiro. 

Um exercício positivo, nesse sentido, embora sem qualquer reforma tributária interna, foi a conclusão do acordo Mercosul-União Europeia, mas prejudicado em sua ratificação e entrada em vigor pelas políticas antiambientais do governo Bolsonaro. Cabe justamente não esquecer que o Mercosul, assim como a UE, é uma personalidade de direito internacional, como tal reconhecido no âmbito da governança econômica global, constituindo, assim, um patrimônio bastante útil no seu reforço institucional com vistas a criar um espaço econômico integrado em esfera continental (da América do Sul). 

O Mercosul – ademais de eventuais arranjos unilaterais que possam ser feitos em paralelo ao seu processo de revisão, como efetuado atualmente pelo Uruguai com seu objetivo de concluir um acordo de livre comércio com a China – não é, nunca foi, culpado pelo fechamento comercial do Brasil, ou por suas disfunções acumuladas ao longo dos anos, geralmente por distorções criadas em âmbito nacional e por descumprimentos das obrigações institucionais por parte de seus dois maiores países membros, o Brasil e a Argentina. Se e quando esses dois países resolverem cumprir os requerimentos estabelecidos no tratado original, ele voltará a ser uma base para a integração mundial das economias dos países membros. Um sólido diálogo entre os maiores países deveria permitir superar as dificuldades atuais e caminhar no sentido do reforço do Mercosul, não do seu desmantelamento.

Não obstante, caberia efetuar um exame profundo das opções estratégicas do Brasil em matéria de política comercial, para decidir, a partir daí, se cabe reformar o Mercosul, ou caminhar no sentido da independência total nesse terreno. Essa é uma agenda aberta, mas que ainda não recebeu a atenção devida, dada a descoordenação existente entre os diversos ministérios envolvidos nessa frente, mas sobretudo pela ausência de um diálogo consistente com os principais atores da economia nacional, os agentes privados conectados ao comércio exterior e a uma agenda de produtividade e de inserção do Brasil na economia global. 

 

A dimensão política universalista de uma nova política externa

A diplomacia do Brasil sempre foi universalista, focada no interesse nacional e no direito internacional. O multilateralismo é uma de suas bases inquestionáveis, assim como a ausência de quaisquer limitações de ordem ideológica na definição dos grandes objetivos na frente externa. Tal postura foi sendo progressivamente construída, desde os tempos da ditadura militar, pela qualidade indiscutível de sua diplomacia profissional, mas se fortaleceu amplamente no período democrático, com o pleno engajamento do Brasil em vertentes anteriormente difíceis em sua agenda externa – como meio ambiente e direitos humanos, mas também integração regional –, o que, conjuntamente com a estabilização macroeconômica do Plano Real, permitiu que o Brasil ganhasse ampla credibilidade internacional nos anos 2000.

A política externa do lulopetismo, no entanto, conduziu o Brasil a coalizões político-diplomáticas definidas a partir de uma visão partidária deformada das relações internacionais do país, uma vez que baseada na miopia de um “Sul Global” que não existe, a não ser nas concepções ideológicas de seus promotores. O governo bolsonarista apenas desmantelou, parcial ou totalmente, os esquemas existentes, sem colocar absolutamente nada em seu lugar, a não ser uma política de aliança submissa em relação ao governo americano anterior (o de Donald Trump) e com regimes similares ou de orientação iliberal e direitista. 

A revisão dos padrões impostos à diplomacia profissional desde o início do século implica, em grande medida, uma revisão profunda das grandes escolhas estratégicas do Brasil na arena mundial. Mas um retorno, pelo provável próximo governo, às opções conhecidas em suas escolhas anteriores, pode redundar, no âmbito regional, no estreitamente de relações com governos de esquerda – em lugar do pragmatismo econômico –, assim como, no plano global, no reforço de uma aliança com a coalizão do BRICS, cuja vocação original para a cooperação econômica tem sido atualmente distorcida pela vontade das duas grandes potências não democráticas de reforçarem essa base organizacional – e até ampliá-la – para o objetivo duvidoso de se construir uma “ordem global” alternativa ao Ocidente, como se o distanciamento em relação às democracias de mercado fosse do interesse do Brasil. A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia criou uma nova situação nas relações internacionais que precisa ser cuidadosamente examinada pelos novos planejadores diplomáticos, de maneira a não fazer do Brasil um mero pião de objetivos nacionais de certos membros do BRICS que não são, e não podem ser, os do Brasil, sobretudo tendo-se em conta a histórica e profunda adesão do país a princípios doutrinais que já tinham sido expostos por Rui Barbosa no início do século XX, depois reafirmados por estadistas do porte de Oswaldo Aranha, no fragor da Segunda Guerra Mundial, assim como por Afonso Arinos de Melo Franco e por San Tiago Dantas no início dos anos 1960. 

 

A circunstância externa do Brasil: uma geografia que precisa ser trabalhada

O filósofo espanhol Ortega y Gasset, escreveu, nas suas Meditaciones del Quijote (1914), uma frase constantemente repetida pelos admiradores: “Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo, eu tampouco me salvo.” Cabe, com efeito, atribuir forte importância à geografia, que pode ser considerada como a circunstância inevitável no plano das nações ou, mais precisamente, dos Estados e sua geopolítica. Em outros termos, os Estados podem escolher a sua organização interna, na esfera política e econômica, e sobretudo suas relações externas, mas eles não podem escolher a sua geografia. Ela lhes é dada pela história, ou seja, pelo longo desenvolvimento de um povo – ou vários deles – num determinado território, partindo dessa condição primária para constituir uma nação, ou um Estado, ou seja, a representação dessa nação no âmbito regional e internacional.

A circunstância geográfica do Brasil, a sua projeção estratégica – para usar um conceito dos geopolíticos – se estende não muito naturalmente pelos vastos espaços da América do Sul, e não muito além disso. Não naturalmente, pois que existem as barreiras naturais da selva amazônica, dos contrafortes andinos, do próprio pantanal e da quase total ausência de facilidades de comunicações terrestres ou mesmo fluviais nos vastos ermos de nosso heartland, o cerrado central, penosamente acessados apenas pelos grandes rios da bacia amazônica, ao norte, e da bacia platina, ao sul. Nessa região se situava, justamente, o espaço natural de projeção do poder instalado na costa atlântica do Brasil, tanto que a metrópole portuguesa tentou por diversas vezes assenhorear-se da margem superior do Prata, instalando uma colônia em Sacramento e depois lutando contra os castelhanos para tentar manter a província oriental, ou cisplatina, ou pelo menos garantir a livre navegabilidade dos rios da bacia do Prata, como única maneira de alcançar a província do Mato Grosso.

Como não se pode discutir com a geografia – pois ela existe, simplesmente, como dizia o teórico geopolítico Spykman –, se pode tomar como natural uma política externa do Brasil que buscasse construir um vasto espaço econômico integrado no coração da América do Sul, pela liberalização recíproca dos mercados e pela própria abertura até unilateral dos seus próprios mercados a todos os vizinhos regionais. Ou seja, construindo um espaço natural de projeção econômica, política e cultural do Brasil no seu entorno imediato, garantindo paz, segurança e prosperidade na América do Sul, os espaços “externos” seriam alcançados para fins de desenvolvimento econômico e social, mobilizando capitais, tecnologia, recursos de todos os tipos para conectar nossa economia, e a do espaço de integração liderado pelo Brasil, à dos grandes centros dinâmicos da economia global.

Tal seria a conformação de um relacionamento exterior, regional, continental e mais além, totalmente compatível com nossa dotação de fatores, nossas vantagens comparativas, nossa capacidade competitiva e nossas ambições diplomáticas de desempenhar um papel positivo em nosso “ambiente natural” – as circunstâncias geográficas – e mais além, em outros quadrantes de um planeta ainda muito desigual, mas vocacionado ao crescimento e à prosperidade, desde que as grandes potências, as economias avançadas, mas também as potências médias, como o Brasil, se concertassem em garantir paz e segurança – como rezam os primeiros artigos da Carta da ONU – e, a partir daí, traçar um vasto plano de eliminação da miséria, de redução da pobreza, e de cooperação ampliada visando elevar os indicadores de bem-estar de imensos contingentes dos povos e nações do planeta.

A circunstância geográfica do Brasil recomendaria, portanto, uma dedicação especial de sua futura diplomacia no sentido de recompor as bases de uma liderança natural, que se exerceria a partir de um amplo projeto de abertura econômica – unilateral, se for o caso – em direção dos países vizinhos do continente sul-americano, como a base indispensável para sua projeção global. Mas, não contente de dispor dessas “vantagens comparativas regionais” no continente, a antiga diplomacia lulopetista decidiu empreender novos saltos extrarregionais de puro voluntarismo diplomático internacional, primeiro congregando dois outros sócios no projeto do IBAS, a Índia e a África do Sul, depois se lançando com a Rússia, na construção do BRICS, que incorporou a China – sempre propensa a se utilizar de novos tabuleiros para seu projeto de preeminência global –, ambos carentes de estudos técnicos compatíveis com as prioridades econômicas e diplomáticas do Brasil, apenas respondendo a aspirações grandiosas de projeção internacional do então chefe de Estado.

 

A questão mais crucial da agenda internacional e os desafios diplomáticos do Brasil

Depois da invasão e anexação ilegais da península da Criméia, juridicamente sob a soberania da Ucrânia, em 2014, pelo governo de Putin, a nova decisão do líder russo de empreender uma guerra de agressão contra o país vizinho, em fevereiro de 2022, acelerou alguns desenvolvimentos que já se processavam no ambiente internacional, mas sobretudo criou uma nova agenda nas relações internacionais que coloca o mundo ante uma nova divisão geopolítica que se pensava superada na década final do século XX. Depois de quase meio século de um cenário bipolar – confrontando dois sistemas políticos e econômicos antagônicos, o mundo parecia encaminhar-se para uma “nova ordem internacional”, de impulso à globalização sobre a base de sistemas de mercados razoavelmente ancorados na ordem econômica de Bretton Woods: o multilateralismo econômico fundado num consenso básico em torno dos intercâmbios abertos administrados pela tríade FMI-BM-OMC. 

No máximo, a antiga guerra fria geopolítica tinha dado lugar a uma nova guerra fria econômica, caracterizada pelo encolhimento geográfico e econômico da antiga União Soviética e pela irresistível e extraordinária ascensão econômica da China, impulsionada desde sua adesão ao GATT-OMC em 2001. Mas, o que foi chamado de “unilateralismo arrogante” por parte dos Estados Unidos, na última década do século XX, assim como sua postura paranoica de considerar a China um “adversário estratégico”, incitou esta última a rever sua posição mantida desde os anos 1970 (ou talvez até antes), de ver nos EUA um possível aliado na confrontação que ela mantinha com a União Soviética – por diversos motivos, inclusive territoriais – e de passar a reinserir o gigante americano no rol das antigas potências ocidentais que pretendiam manter o gigante asiático – quando este era o “homem doente” da Ásia – numa espécie de continuidade do “século de humilhações”. 

O que ocorreu a partir daí foi uma reaproximação entre as duas grandes autocracias socialistas do passado, mediante diversos mecanismos – entre eles o próprio BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai –, até resultar na “aliança sem limites” proclamada por Xi Jinping junto a Putin, menos de um mês antes da invasão selvagem das forças russas contra a Ucrânia. Essa quase repetição da invasão da Polônia por Hitler, em 1939, criou uma nova situação internacional que colocou o Brasil em face de dilemas que não tinham sido registrados desde aquela época da Segunda Guerra Mundial. Com efeito, mesmo a ditadura do Estado Novo, depois do atropelo feito contra a Constituição de 1934, substituída pela “polaca” de novembro de 1937, não ousou contrariar a doutrina jurídica seguida sem hesitações pela diplomacia brasileira desde o Império: o Brasil não reconheceu a suserania nazista sobre a Polônia, assim como não reconheceu a incorporação dos três Estados bálticos ao império soviético em 1940, pois que tais usurpações do Direito Internacional tinham sido efetuadas por meio da força bruta, tal como se processou no caso da anexação russa da Crimeia, em 2014, e na subsequente invasão da Ucrânia oriental, assim como do resto do país, em 2022. 

Registre-se que, em 2014, o governo Dilma Rousseff, provavelmente em função do BRICS e mais especialmente pelas relações pessoais travadas entre Lula e Putin desde antes do início desse grupo, em 2009, jamais tomou a posição que seria de se esperar da adesão do Brasil e de sua diplomacia aos sagrados princípios do Direito Internacional ou, mais simplesmente, dos dispositivos da Carta das Nações Unidas que proíbem guerras de agressão. O mesmo pode ser dito do cenário atual, marcado por flagrantes violações da Carta da ONU e, mais ainda, por crimes de guerra, por crimes contra a paz e, possivelmente, até por crimes contra a humanidade, os mesmos que conduziram líderes civis e militares nazistas, em 1946, ao Tribunal de Nuremberg. O Brasil aderiu, formalmente, às resoluções do Conselho de Segurança, da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos da ONU, censurando a Rússia pela invasão, mas jamais a condenou diretamente pelas cruéis violações dos tratados internacionais, das leis da guerra e dos protocolos humanitários. 

Ainda que conclamando a uma “cessação das hostilidades” – como se estas fossem recíprocas –, ou apelando a uma solução pacífica do conflito, tendo em conta as “preocupações de segurança das partes” – como se a Ucrânia tivesse, em algum momento criado qualquer insegurança para o seu poderoso vizinho –, o Brasil se opôs terminantemente à imposição de sanções contra a Rússia, como adotadas pelos países aderentes aos artigos pertinentes da Carta da ONU – apenas que de forma unilateral, em vista do uso abusivo do direito de veto pela Rússia –, assim como também se opôs ao apoio militar à Ucrânia agredida, como se esta devesse simplesmente se render em face da maciça ofensiva militar decretada pelo líder saudosista do antigo império russo e soviético. 

Em outros termos, tanto a atual diplomacia bolsonarista, como a possível futura diplomacia lulopetista se colocam, objetivamente, numa posição “solidária” a Moscou, ainda que disfarçada por uma “neutralidade” hipócrita, ou mais exatamente por um “equilíbrio” deformado e enviesado, em nome de interesses oportunistas vinculados ao aprovisionamento em fertilizantes e combustíveis. Tais posturas, à luz de nossas tradições de respeito irrestrito ao Direito Internacional, ou às mais elementares regras de boa conduta nas relações externas, todas elas inseridas em dispositivos pertinentes da Carta da ONU e da Convenção de Viena de 1961 sobre relações diplomáticas (entre outros instrumentos doutrinais e principiológicos do sistema internacional), chocam pela indiferença demonstrada em relação a esses antigos princípios e valores da diplomacia tradicional brasileira, pela atual e pela provável futura orientação de política externa no tocante ao mais grave problema da comunidade mundial na presente conjuntura. 

Se o atual governo permanece indiferente ao suplício de um povo e de uma nação, cabe esperar que um governo compatível com aquelas velhas tradições doutrinárias e universalistas da diplomacia brasileira revise tal posição, em nome do conceito e da imagem externa do Brasil, e que passe a restaurar o prestígio internacional do país, tão duramente conquistado ao longo de décadas, ou mesmo em dois séculos, de paciente construção de uma diplomacia caracterizada pela sua fidelidade aos grandes princípios do Direito Internacional, características que foram terrivelmente abaladas nos últimos quatro anos. Como se pode constatar, não é apenas a democracia que vem patinando no Brasil atual, mas também a sua política externa, para maior angústia da diplomacia profissional. Este é, provavelmente, o maior desafio que se apresenta a uma futura diplomacia compatível com nossas tradições.

 

Paulo Roberto de Almeida, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas e mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, é autor de diversos livros sobre a política externa e a história diplomática brasileira, entre eles Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império(3ª edição: Brasília, Funag, 2017), Apogeu e Demolição da Política Externa: itinerários da diplomacia brasileira (Curitiba: Appris, 2021) e A Grande Ilusão do BRICS e o universo paralelo da diplomacia brasileira (Brasília: Diplomatizzando, Kindle, 2022). 

 

[Brasília, 4208: 28 julho 2022, 8 p.]

 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Uma transição pouco diplomática - Paulo Roberto de Almeida

Uma transição pouco diplomática

Paulo Roberto de Almeida


A cronologia histórica ocidental estabelece um AC e um DC. Nossa cronologia diplomática tem um AE e um DE.

No seu discurso de posse, o novo chanceler designado não fez nenhuma distinção entre as duas fases, bem distintas, da diplomacia que encerrou a desastrosa política externa ditada pelo mais inepto dirigente da história. 

No entanto, Carlos França fez o máximo que podia para tentar minimizar o amplo estrago diplomático deixado pelo antecessor, assim como para contornar a estapafúrdia política externa determinada pelo chefe.

Pelo menos por cortesia corporativa, caberia um gesto simpático ao colega que se esforçou para tourear os bárbaros que demoliram a imagem e a postura internacional do Brasil. 

Mas, o mesmo tipo de atitude descortês já tinha ocorrido na transição diplomática de FHC para Lula, em janeiro de 2003: além da mentirosa alegação da “herança maldita”, se acusou a antiga gestão da chancelaria de ter conduzido uma diplomacia submissa a Washington, o que era uma ofensa gratuita e desprovida de fundamentação.

Talvez, o discurso atual tenha tido o mesmo redator daquele anterior. É provável!

Paulo Roberto de Almeida

São Paulo, 4/01/2023

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Começa a transição no Itamaraty com uma nomeação sugestiva - Lauro jardim (O Globo)

 Começa a transição no Itamaraty com uma nomeação sugestiva

Por Lauro Jardim
09/11/2022 08h27  Atualizado há 38 minutos

Começou a ser montado o gabinete de transição no Itamaraty. E sugestivamente o coordenador será Audo Faleiro, o embaixador que foi afastado por Ernesto Araújo da chefia da Divisão de Europa do Itamaraty, apenas quatro dias depois de ter sido nomeado.

Tudo indica que a exoneração tenha sido uma clássica caça às bruxas bolsonarista: numa de suas muitas funções na carreira, assessorou Marco Aurélio Garcia, ex- assessor internacional de Lula.


terça-feira, 5 de maio de 2015

Retorno ao futuro, Parte I: a ordem internacional no horizonte 2000 - Paulo Roberto de Almeida (1988)


Retorno ao futuro, Parte I: 
a ordem internacional no horizonte 2000

Paulo Roberto de Almeida
Revista Brasileira de Política Internacional 
(Rio de Janeiro: Ano XXXI, 1988/2, n. 123-124, pp. 63-75). 
Relação de Trabalhos n. 164; Publicados n. 049. 
  
1. PROFECIA E HISTORIA
As análises prospectivas, segundo seus críticos, têm o hábito de pecar duplamente: pelo que contêm e também pelo que deixam de conter. Trata-se, aparentemente, de um "pecado original" da futurologia, partilhado em igual medida pelas diversas variantes do gênero. Quer abordando o futuro pela ótica estatística e quantitativa, quer fazendo-o segundo os padrões do ensaio interpretativo, muitas dessas análises tendem a atribuir importância desproporcional a elementos secundários ou, inversamente, a negligenciar fatores potencialmente estratégicos.
Em qualquer hipótese, porém, elas frequentemente revelam-se incapazes de impedir sua própria esclerose precoce quando confrontadas, alguns anos depois, à realidade que supostamente deveriam descrever. O processo de envelhecimento é ainda mais rápido quando o cenário projetado pretende prevenir a eclosão (ou alertar sobre a intervenção) de riscos e catástrofes considerados "iminentes": colapsos nas bolsas de ações, crise financeira mundial, revolução no mercado dos produtos de base ou - por que não? - eclosão da Terceira Guerra Mundial. Mesmo análises mais bem comportadas de trends futuros costumam revelar-se doucement naïves quando o futuro bate à porta. A razão é ao mesmo tempo uma pergunta: modelos econométricos, projeções de computador ou induções geniais terão algum dia o poder de antecipar, em todos seus detalhes, o caminho que tomará o carro de Cronos ?
O curto "ciclo de vida" da maior parte das análises prospectivas não é apenas devido às deficiências metodológicas intrínsecas a toda projeção futura de tendências do presente. É preciso referir-se também a um defeito mais grave, ainda que mais prosaico: os exercícios de futurologia soem constituir uma fixação inconsciente (e muitas vezes arbitrária) dos preconceitos políticos e das preferências pessoais de seus autores. O uso "adequado" da imaginação permite quase sempre, aos que se dedicam a essa espécie de "leitura das estrelas", acomodar estimativas contraditórias sobre a evolução das sociedades, quando não imaginar cenários políticos fantasiosos com base em forças e tendências conjunturalmente dominantes.
O perigo de ver uma análise caducar prematuramente é por certo maior no caso das projeções de natureza econômica e social estabelecidas a partir do universo atual do mundo desenvolvido, onde a rapidez do progresso tecnológico e a mutação das estruturas sociais invalidam em breve espaço de tempo as tendências apontadas nos melhores estudos macrossociológicos. O cemitério do "futuro" está repleto de previsões não realizadas, desde o anedotário dos desastres ecológicos ou das quebras nas Bolsas, até as estimativas mais sérias lidando com os preços das matérias-primas, o desemprego tecnológico ou os ciclos de crescimento e de estagnação, de longo ou de curto prazo.
As projeções envolvendo as relações internacionais, por sua vez, tendem ser mais sóbrias, se o que está em causa não é evidentemente o mero desejo de emplacar algum sucesso no mercado dos best sellers. Aqui, a fúria futurologista de alguns analistas apressados pode eventualmente construir cenários movimentados, onde o roteiro vai da chantagem nuclear ao day after, passando pela subida aos extremos e a guerra total.
Mas, as relações internacionais propriamente ditas, enquanto matéria de reflexão universitária, seriam relativamente menos propensas a esse tipo de exercício futurológico, já que lidando com atores e cenários dotados de maior estabilidade estrutural: o Estado-Nação e o sistema de equilíbrio estratégico derivado da lógica westfaliana. Estas duas categorias constituem o padrão de referência básica da teoria das relações internacionais, assim como o soldado e o diplomata são os elementos conceituais par excellence quando se passa da formulação doutrinária para a análise operacional da política internacional.
A experiência histórica dos últimos cinco séculos demonstra que, em se tratando  da  ordem política interestatal, as linhas de continuidade tendem a ocupar um espaço comparativamente maior àquele representado pelos momentos de ruptura. Estes também têm o seu peso próprio, mas costumam apresentar-se inseridos naquela, as sucessões dos Estados na hierarquia do poder internacional servindo mais para reforçar as características do sistema do que para alterar a forma de seu funcionamento. As projeções relativas ao ordenamento futuro do sistema internacional, para serem credíveis, devem operar um verdadeiro retorno ao passado, isto é, apoiar-se em sólidas fundações históricas, uma vez que os modelos disponíveis de organização da sociedade internacional não são em número infinito. O horizonte histórico do Estado-nação, por exemplo, em que pese a lenta emergência de uma soberania coletiva no cenário europeu, afigura-se temporariamente estável, ou seja estruturalmente insuperável pelas próximas décadas. Da mesma forma, a despeito da transnacionalização crescente dos circuitos produtivos e da internacionalização dos instrumentos monetários, o sistema internacional permanecerá econômica e politicamente heterogêneo num futuro previsível, ainda que possa vir a reduzir, de maneira lenta, seu coeficiente de anarquia. Em outros termos, a política de poder não está próxima de ser substituída por uma ordem jurídica supranacional construída segundo os princípios da equidade e da justiça.
A estrutura das relações internacionais em vigor nos últimos séculos - digamos, desde o século XVI - constituiu-se de maneira extremamente lenta e não se modifica senão em ritmo igualmente lento. A incorporação de novas áreas geográficas ao mundo então civilizado - o que fez com que a política internacional se tornasse verdadeiramente mundial - se fez sob a emprise dos novos Estados europeus, cuja política nacional passou a refletir a crescente relevância dos assuntos externos, em seu sentido mais amplo. A política mundial torna-se europeia, ou melhor dito ocidental, e como tal permaneceu  desde  então,  pelo  menos no sentido cultural da palavra. Foi a racionalidade ocidental, mais que a superioridade militar, a exploração colonial ou o intercâmbio desigual, que assegurou a continuidade, por tão longo tempo, da dominação ocidental sobre os negócios do mundo: uma combinação específica de espírito inventivo - a inovação e a descoberta científica aplicada à economia - e de organização social esteve na origem dessa performance historicamente inédita.
Mas, dada essa invenção propriamente europeia que é o Estado-nação, a hegemonia cultural ocidental nunca logrou transformar-se em hegemonia tout court . As grandes potências, e os variados sistemas de alianças militares forjados por elas, anularam reciprocamente seus drives hegemônicos, conformando sucessivas "balanças de poder" ao longo desses últimos cinco séculos. Estas, de forma precária ou efetiva, continuarão cumprindo sua missão histórica por um período de tempo ainda indefinido.
O padrão referido acima permanece válido em suas grandes linhas. Ou seja, a despeito da "ascensão" e "queda" dos mais variados atores nacionais ao longo desse período, as tentações hegemônicas e a vontade de poder imperial de candidatos sucessivos ao "domínio global" nunca chegaram a debilitar fundamentalmente o sistema interestatal de relações internacionais que se constituiu no início da era moderna e se desenvolveu de maneira extraordinária desde então. O sistema mostrou-se por exemplo resistente a tentativas de constituição de algum império verdadeiramente universal, fundado sobre o modelo da pax romana.
Nesse sentido, o analista que pretenda oferecer reflexões sobre a evolução provável do sistema internacional contemporâneo tem de ser necessariamente modesto quanto ao escopo transformista de suas projeções. Estas devem, em todo caso, sustentar-se nas tendências já reveladas pela história passada, desdobrando-se cuidadosamente em direção ao futuro. O mais recente e mais brilhante exemplo desse tipo de exercício, ainda que limitado às performances futuras de atores individuais, é representado pelo último capítulo do livro de Paul Kennedy sobre a ascensão e queda das grandes potências. 
Um dos limites impostos pela "longa duração" à ação da "conjuntura histórica de transformação" parece ser constituído pela extraordinária vitalidade demonstrada pelo Estado-nação enquanto fundamento e princípio organizador das relações internacionais na era moderna e contemporânea. O sistema internacional - organizado sobre a base da independência política formal dos Estados e de sua interação concorrente na administração de recursos que garantam o exercício de um poder soberano - continuará previsivelmente sua trajetória histórica bem além das primeiras décadas do século XXI.
Ainda assim, o observador atento poderia formular algumas suposições sobre as possibilidades de transformação desse sistema com base em tendências que começam a desenhar-se lentamente no horizonte 2000. Sem aspirar à futurologia, o ensaio que se segue pretende oferecer algumas idéias e reflexões sobre a possível evolução do cenário internacional nas próximas décadas. A ênfase analítica será colocada nos elementos econômicos e políticos já em processo de mutação (e portanto mais suscetíveis de influenciar o curso da ação futura dos Estados), bem como nos fatores que poderão desempenhar papel relevante no destino ulterior das relações Leste-Oeste, clássico terreno dos estudos geopolíticos e nó crucial das relações internacionais contemporâneas.
Na tentativa de identificar as características futuras do sistema mundial emergente, o observador deve necessariamente operar uma seleção dentre os cenários potencialmente "realizáveis". Algumas das linhas evolutivas já se encontram presentes na atualidade, outras representam apenas uma promessa de possível implementação, ainda que alimentadas por "inferências lógicas" a partir das "tendências prováveis" do sistema contemporâneo. Mesmo que não se pretenda traçar aqui uma lista exaustiva, as seguintes tendências poderiam fornecer a base de um exercício moderado de "futurologia internacional", sem que a ordem de apresentação signifique o estabelecimento de uma interação cronológica necessária no desenvolvimento de cada uma delas: o declínio do condominium  bipolar, a preeminência estratégica e econômica do saber tecnológico, o abandono das últimas ilusões econômicas do socialismo realmente existente, o esmaecimento do conflito ideológico global e a consequente superação histórica da oposição Leste-Oeste.
Os elementos selecionados não representam aliás a introdução de nenhum processo fundamentalmente novo de transformação histórica, já que todos eles se encontram presentes, em maior ou menor grau, na agenda contemporânea das relações internacionais.
Qualquer que seja a validade relativa das conjeturas aqui realizadas, seu autor não pretende eximir-se da responsabilidade apontada acima, qual seja, a tendência a fixar nas projeções preferências pessoais quanto ao curso futuro da História. Max Weber afirmava, a esse propósito que é quase impossível fazer ciência social liberado de todo a priori analítico. Que seu exemplo sirva de consolo, no sentido em que, se a imparcialidade política é dificilmente alcançável, a busca honesta da objetividade permanece, em princípio, possível.

2. O DECLINIO IMPERIAL
Desengajamento estratégico, revisão unilateral dos compromissos assumidos com os aliados e realismo econômico: estes parecem ser os elementos característicos da nova política imperial num fin-de-siècle decididamente neomercantilista.
"De acordo", responderia o observador “imparcial”, apenas para perguntar em seguida: "Mas, de qual império se está falando ?" A questão, talvez dispensável de um ponto de vista essencialmente formal, assume acuidade prática quando se trata de determinar os contornos do sistema internacional emergente e o papel que nele deverão jogar as atuais superpotências. O politólogo pode  se  permitir brincar com formulações "ideal-típicas" a propósito do jogo imperial, mas não o estadista ou o diplomata, que necessitam apoiar suas propostas de ação governamental numa análise sóbria das relações de poder realmente existentes e seu impacto nas diretrizes nacionais relativas à segurança estratégica e à política econômica.
Em princípio, os termos do problema poderiam ser aplicados indiferentemente a uma ou outra das duas superpotências, Estados Unidos ou União Soviética, adaptando-se a ênfase atribuida a cada elemento em função do aspecto que se pretende ressaltar num ou noutro caso: reconhecimento do fracasso do intervencionismo ou introdução da doutrina da dissuasão discriminada, incapacidade em assumir os custos militares do império ou revisão conceitual da política aliancista, necessidade de reforma econômica ou tentativa de corrigir dificuldades de natureza comercial e problemas de ordem orçamentária.
Em cada um dos lados da equação estratégica, os problemas podem se colocar de maneira diferente, mas seu efeito converge para as realidades tangíveis de uma problemática comum: racionalização das despesas militares, repartição dos gastos em defesa com as respectivas alianças militares e reestruturação econômica interna. Ainda que o discurso sobre o desarmamento da cada uma das superpotências possa conservar a velha retórica de sempre, a mutação de prioridades é uma necessidade que deverá se impor de forma natural: inevitavelmente ocorrerá algum tipo de burden-sharing soviético, como se poderá assistir a alguma forma de perestroika norte-americana.
Sem embargo, porém, da suposta bidirecionalidade do foco analítico, deve-se reconhecer que a reconversão imperial não significa a mesma coisa para os atores em presença, nem ocupa a mesma prioridade nas agendas de seus respectivos líderes políticos: de um lado, impõe-se o que se poderia chamar de necessidade sistêmica de reformas estruturais, de outro, sugere-se introduzir uma correção de rumos em função de dificuldades conjunturais.
Apesar de que em ambos os casos se convencionou falar de "declínio imperial" e de "ocaso do poder", o processo de transformação num dos lados é relativamente administrado, enquanto que no outro ele afigura-se como verdadeiro "imperativo categórico", determinado por uma realidade econômica praticamente insustentável. Em termos explícitos, o conceito de revisão da política imperial aplica-se mais adequadamente à União Soviética, cuja retórica oficial passou a refletir as necessidades de uma diplomacia mais conforme com as reais possibilidades de seu sistema econômico e cuja política internacional teve de dobrar-se aos limites efetivos dos recursos disponíveis.
O livro já citado de Paul Kennedy permitiu identificar no chamado "imperial over-reach" - a super-extensão imperial - a razão principal da enfermidade senil que parece atingir, a partir de um certo momento, todo poder imperial. A assunção ampliada de obrigações propriamente "policiais" tende a introduzir uma desproporção crescente entre os recursos alocados a tarefas de defesa e de controle externo e os recursos destinados ao investimento produtivo, necessários para manter a estrutura econômica inovadora e próspera.
Esta tese é, contudo, especialmente relevante no caso soviético, onde parece realmente ter-se congelado uma relação de mútua exclusão entre os setores civil e militar da economia, como sublinhava há alguns anos Cornelius Castoriadis. O investimento nas indústrias ligadas à defesa representou, do ponto de vista da economia norte-americana, uma verdadeira bonança, tanto no sentido de reduzir a defasagem entre a produção e o "consumo" de vários produtos feitos para não serem "consumidos", como no de estimular a inventividade técnica e o desenvolvimento à outrance de setores ligados à comunicações e ao tratamento de informações. O programa SDI, finalmente, poderia ser considerado, do ponto de vista econômico, como uma grande demonstração de "keynesianismo militar".
Assim, se as duas superpotências enfrentam este final de século firmemente comprometidas com uma política de desengajamento estratégico, de redistribuição de papéis no sistema aliancista e de austeridade econômica interna, a administração equilibrada desses processos paralelos assume extrema acuidade no caso soviético, onde a margem de manobra é extremamente reduzida pela maior rigidez estrutural do sistema produtivo e pela inadequação do aparelho político. Em qualquer hipótese, a URSS de Gorbachev está condenada a auto-reformar-se: não parece haver alternativas a um programa de révision déchirante das prioridades ou escolhas do passado.
Não se pode porém pretender que o declínio mais acelerado de um dos dois parceiros do condomínio bipolar do pós-guerra abrirá espaço para o estabelecimento de uma pax imperial no velho estilo. A natureza da dominação imperial americana, de natureza mais econômica que militar, abriu espaço a uma verdadeira multilateralização dos circuitos de extração de recursos, paralelamente à emergência das "legiões modernas" que são as empresas transnacionais.
Mais do que qualquer profissão de fé democrática, o sistema produtivo baseado na corporação multinacional foi o verdadeiro agente da difusão acelerada dos centros de poder, no sentido de uma maior atomização dos núcleos decisórios.
A desconcentração do poder mundial constitui, assim, uma das características mais salientes de nossa época, com a emergência de novos centros regionais de dominação que não parecem dispostos a repetir, ou não são capazes de assumir, os compromissos e obrigações das duas potências rivais. Em lugar de um único centro com periferias sucessivas, passam a coexistir diversos centros com interpenetração de periferias. Os mecanismos de dominação e de exploração são provavelmente os mesmos, embora com consequências diferentes para a nova ordem internacional.
Por outro lado, a nova repartição de cartas ligada a esse processo de desconcentração hegemônica não significa tampouco a re-atualização do antigo esquema ligado à "balança de poder", já que os novos parceiros não parecem pretender assentar sobre instrumentos propriamente militares os fundamentos de uma preeminência non avouée . Não está evidentemente excluída a utilização dos meios clássicos de dissuasão e de pressão, embora pareça mais provável que a imposição da vontade, no novo padrão, terá mais a ver com o economic statecraft do que com a gun-boat diplomacy .
 O núcleo do processo decisório nesses novos centros já não colocará tanto ênfase no planejamento estratégico quanto na administração de performances econômico-comerciais. O padrão de referência das relações internacionais poderia, assim, estar deslocando seu eixo conceitual: passaríamos de uma visão baseada na concepção político-militar para uma concepção baseada no comércio, ou o que Rosecrance chamou de "expansão do Estado comercial".

3. DO PODER SOBERANO À SOBERANIA ECONOMICA
O maciço livro de Paul Kennedy trata da interação entre economia e estratégia no sistema interestatal moderno e contemporâneo. Suas teses centrais são relativamente simples: "existe uma relação causal entre as mudanças ocorridas com o correr do tempo nos equilíbrios econômicos e produtivos e a posição ocupada pelas Potências individuais no sistema internacional... as mudanças econômicas anunciando a ascensão de novas Grandes Potências que um dia teriam um impacto decisivo na ordem militar/territorial. (...) Da mesma forma, o registro histórico sugere a existência de uma clara conexão no longo prazo entre a ascensão e a queda econômica de uma Grande Potência determinada e seu crescimento e declínio como poder militar importante" (xxii).
A riqueza e o poder, ou a força econômica e o poderio militar, são sempre relativos e, como todas as sociedades estão sujeitas a uma inexorável tendência à mudança, os equilíbrios internacionais não podem ser permanentes. Para referir-se ao exemplo que tem motivado discussões acaloradas: a dominação norte-americana sobre os negócios do mundo é decrescente não porque o país tenha se tornado mais pobre ou mais fraco, mas porque outras nações tornaram-se mais fortes e ricas. O veredito de Kennedy é o de que os EUA poderiam se tornar mais ricos ainda, no longo prazo, se suas elites dominantes aceitassem gentilmente uma diminuição relativa de seu atual status estratégico e militar.
Mas, essas elites ainda não se resignaram a passar de uma visão do mundo baseada na "teoria da estabilidade hegemônica" para uma outra baseada na "teoria do equilíbrio de poderes", segundo os termos de Richard Rosecrance. O diagnóstico, na verdade, se aplica tanto às elites políticas e militares dos Estados Unidos quanto às sua homólogas na União Soviética. Em ambos os casos, elas ainda não abandonaram a pretensão de pretender moldar o futuro com base numa estratégia político-militar para aceitar esse mesmo futuro de acordo com uma estratégia comercial.
Mas, ambas as teorias são essencialmente falhas, no sentido em que permitem preservar a lógica westfaliana da territorialidade, que por sua vez serviu de fundamento à conhecida equação geopolítica "espaço é poder". Na opinião de Rosecrance, tanto os Estados Unidos como a União Soviética continuam hipnotizados pelo território, pelo espaço e pelo poder, esquecendo-se da quarta dimensão: a perseguição de uma estratégia comercial consequente, como forma de revitalizar e potencializar suas economias.
As lideranças políticas e militares das duas superpotências partilham da mesma visão westfaliana do mundo, com seus conceitos chaves organizados em torno da soberania política absoluta, da independência militar, de garantias territoriais e fronteiriças e do poderio militar de seus respectivos Estados. Kissinger, por exemplo, concebia sua estratégia nos mesmos termos em que Metternich dispunha, em sua época, da ordem política e territorial europeia. Os dirigentes e estrategistas soviéticos, por sua vez, mostram-se tão obsecados com a defesa de seu território quanto seus antecessores russos da época imperial.
Tanto Kennedy quanto Rosecrance demonstram, com riqueza de detalhes, a inadequação de uma estratégia baseada na super-extensão imperial: os poderes hegemônicos revelam-se, a partir de um certo momento, incapazes de sustentar uma relação viável entre suas pretensões geopolíticas e seus recursos econômicos. Apesar de que os investimentos militares possam servir, em última instância, à causa do desenvolvimento tecnológico e científico, a experiência indica que os gastos militares não aumentam a produtividade nacional. Alguns estudos consultados por Rosecrance demonstraram a existência de uma correlação negativa entre os dois elementos: maiores despesas militares significam menor investimento produtivo.
A concepção comercial das relações internacionais, propugnada por Rosecrance, não deve ser confundida com uma visão otimista da realidade. Isto é, ela não pode ser vista, apenas, como uma oportunidade de reforçar os elementos de paz no sistema interestatal contemporâneo, opondo-se portanto à lógica dos enfrentamentos que por muito tempo caracterizou o cenário mundial. Ela é também decorrente das novas características estruturais que passou a assumir o crescimento econômico, hoje fortemente dependente de investimentos maciços em pesquisa e desenvolvimento nos setores de alta densidade tecnológica.
Aliás, qualquer que seja o futuro das relações políticas entre as superpotências, a concorrência entre ambas, pacífica ou militar, será cada vez mais dependente das performances respectivas alcançadas nos terrenos econômico e tecnológico, inclusive e principalmente no que se refere à modernização de seus arsenais ofensivos e sistemas de defesa. O verdadeiro princípio estratégico no mundo atual se chama superioridade tecnológica.
Curiosamente, embora ambas as superpotências sejam igualmente reticentes em abandonar a concepção territorial-militar das relações internacionais, é a União Soviética o Estado mais empenhado em reformular as bases materiais de seu poder soberano. Paradoxalmente, ela só conseguirá fazê-lo se aceitar precisamente uma diminuição do grau de independência econômica nacional (que no seu caso é o equivalente de autarcia) em prol de uma decidida opção pela interdependência em escala regional e internacional. As concepções econômicas do socialismo realmente existente representam, porém, um sério obstáculo à consecução dessa tarefa, no mesmo sentido, talvez, em que as relações feudais de produção representavam, na Europa pré-moderna, uma grande barreira ao desenvolvimento das forças produtivas. O avanço em direção ao futuro do socialismo parece, assim, situar-se, num certo retorno ao passado em termos de história econômica.

4. A TRANSIÇÃO DO SOCIALISMO AO CAPITALISMO
Durante muito tempo os estudiosos do socialismo real se perguntaram se os sistemas de tipo soviético, em que pese toda a rigidez weberiana das burocracias totalitárias, poderiam realmente passar por algum outro tipo de mudança que não fosse de natureza traumática, reconhecendo, implicitamente, que eles tinham pouca ou nenhuma possibilidade de evoluir ou de se auto-reformar. Atualmente, o que se questiona é se os regimes do socialismo realmente existente podem mudar lentamente ou se eles terão de se reformar em ritmo mais rápido.
 Em escala histórica, a evolução social tende a ser vista em termos de ruptura ou de continuidade. A Revolução bolchevista de 1917 inscreve-se seguramente à sombra do primeiro conceito, enquanto que os três lustros da era brejnevista teriam certamente de ser vistos sob o ângulo da continuação, quando não da estagnação. O período gorbacheviana já pode ser considerado, usando-se a terminologia da école des Annales, como tendo inaugurado uma "conjuntura histórica de transformação" (como diria o historiador Ernest Labrousse), ainda que, falhando ou afastando a tentativa de operar uma brusca mudança política com o passado, ele se contente em administrar um lento processo de mutação social e econômica, mais de acordo com a "longa duração", cara a Fernand Braudel.
Os processos de transformação social, econômica ou política numa determinada sociedade e numa época determinada não podem ser facilmente catalogados em função de modelos dicotômicos de racionalização histórica senão a posteriori, quando todos suas possíveis consequências e implicações já se fizeram sentir, deixando aos historiadores o cuidado de medir a amplitude da transformação societal. O caso das revoluções violentas é evidentemente particular, uma vez que, antes do historiador, o cronista mundano já teve oportunidade de sentir seus efeitos devastadores para o cenário social em que atua. Mas, as transformações verdadeiramente revolucionárias são extremamente raras nos laboratórios da História, a maior parte das sociedades conhecendo apenas pacíficos processos de modernização social.
Poderia a perestroika gorbacheviana ser interpretada como um modelo de transformação revolucionária, isto é, um movimento suscetível de alterar fundamentalmente a estrutura social e econômica da sociedade soviética e de operar a passagem a um novo regime de poder e a um novo sistema político ? Alguns observadores diriam que faltam-lhe os elementos estruturais mais essenciais de uma típica transformação radical da ordem social ou política, não cabendo pois a identificação com o modelo teórico proposto pela maioria dos historiadores para o conceito de ruptura fundamental na continuidade histórica. 
Sem embargo, a conjuntura histórica de transformação em curso na URSS tem sido vista, em perspectiva comparada, como assumindo um significado similar ao dos grandes processos reformistas do início da era moderna. Com efeito, os observadores não deixaram de notar a similitude de intenções entre o atual "revisionismo" socialista e as grandes aventuras reformistas dos séculos XV a XVII, chegando mesmo a traçar paralelos entre a tentativa transformista de Gorbachev e os processos deslanchados por figuras históricas como Henrique VIII ou Lutero.
As analogias históricas são, em grande parte, mistificadoras, mas não se pode realmente negligenciar a poderosa capacidade sintetizadora dos exemplos do passado para auxiliar no esforço explicativo do presente. O problema da maior parte dessas análises centradas sobre o que se poderia chamar - retomando mais uma vez conceitos trabalhados pela escola dos Annales - de histoire événementielle (inclusive no que se refere o apelo a figuras exponenciais) é a tendência à personalização do jogo político e social, com a consequente atribuição do "sucesso" ou "fracasso" de um determinado movimento às qualidades pessoais de seu líder.
Que Mikhail Gorbachev seja comparado a Henrique VIII ou a Lutero - Calvino, aliás, conviria melhor, já que se trata igualmente de uma tentativa de reestruturação autoritária de uma visão do mundo formulada anteriormente  - não modifica em nada o conteúdo historicamente original dos desafios enfrentados pelo líder soviético. A esse título, se poderia, por exemplo, dizer do movimento de reformas políticas na URSS que este significa, para a autocracia socialista, o que o despotismo esclarecido representou para as monarquias absolutas do Ocidente entre os séculos XV e XVIII. A busca de "déspotas esclarecidos" é no entanto um expediente eventualmente utilizado pela imaginação histórica quando o curso dos acontecimentos se confunde com o destino particular de um líder providencial, sem que o "historiador" consiga separar o contingente do necessário. Nesse caso específico, por acaso, a comparação não é de todo absurda: o "comunismo esclarecido" que eventualmente emergirá do entrechoque de posições entre o partido da reforma e o da conservação na URSS permitirá ao dirigente soviético em exercício reunir condições políticas para acelerar o processo de modernização do país, de forma a aproximá-lo das nações mais avançadas.
Sem pretender descurar o peso decisivo muitas vezes exercido por certas personalidades individuais sobre o curso de determinados acontecimentos históricos, o recurso à analogia histórica, no caso do atual movimento reformista na União Soviética, talvez ganhasse em consistência se se fizesse referência a certos processos do passado que igualmente serviram para alterar as bases de funcionamento da sociedade em causa, sem modificar no entanto a composição social das elites envolvidas na transformação societal.
Nesse sentido, se poderia comparar a "revolução" da perestroika com a Inovação Meiji no Japão do século passado, quando a elite dominante se abriu para uma maior ocidentalização do país, no sentido da abolição de certos privilégios feudais, na constituição de um parlamentarismo de fachada e na incorporação acelerada das conquistas estrangeiras em ciência e tecnologia. Como no caso, igualmente, da transformação bismarckiana operada nas instituições políticas, sociais e econômicas da Alemanha imperial, assiste-se, na União Soviética, a uma Revolution von oben  cujo objetivo é o de modernizar o país sem trazer prejuízo àqueles que ocupam as alavancas do poder político e social.
É dessa perspectiva que talvez possam ser vistos os eventos de maior impacto político sobre a história recente da URSS. Tanto o 27º Congresso do PCUS, em fevereiro-março de 1986, como a 19ª Conferência do PCUS, em junho-julho de 1988, visavam permitir a aceleração do processo de reestruturação da economia soviética. Em que pese o conjunto de afirmações em contrário nos círculos dirigentes, a reforma do sistema tem de ser dirigida precisamente contra a estrutura ossificada do Partido Comunista, que se converteu no principal obstáculo à mutação econômica e política da sociedade. A tarefa é tanto mais árdua na medida em que o partido renovador na URSS não pode implementar o conjunto de reformas sem passar pelo intermédio do aparelho organizacional do velho Partido burocratizado. Para contornar o obstáculo, surge a proposta de constituição de um novo tipo de poder "executivo" - a Presidência de um Soviet Supremo ampliado, através do recurso ao voto secreto - como forma de dar legitimidade à direção política renovadora contra eventuais manobras obstrucionistas do Comitê Central e dos comitês provinciais. A intenção é claramente de transformar a administração econômica da sociedade sem ter de confrontar-se ao veto político da máquina partidária.
Aqui parece residir a contradição fundamental do novo "revisionismo" socialista: a solução para a maior parte dos problemas estruturais das sociedades socialistas passa por uma reforma radical do sistema de organização econômica, mas essa transformação teria de ser operada em detrimento do monopólio político partidário. Mesmo os sistemas que avançaram mais longe no caminho das reformas econômicas, nomeadamente Hungria e China, não ousaram ainda demolir a exclusividade da representação política atribuída ao Partido Comunista.
O movimento de reformas econômicas é no entanto irrefreável, no sentido em que ele representa a condição mesma da sobrevivência da maior parte dos regimes do socialismo realmente existente. Já o processo de mudanças políticas será em parte determinado pelo sucesso das reformas empreendidas na esfera econômica, mas dependerá igualmente da estrutura social própria a cada país da área. Em outros termos, nos países caracterizados pela existência de uma sociedade civil historicamente independente do Estado (Hungria, Polônia e, em parte, Iugoslávia) a marcha para a democracia política será provavelmente mais rápida. A tendência deverá ser marcada pelo lento desenvolvimento do pluralismo partidário e sindical e pela introdução das regras mais elementares da competitividade eleitoral na esfera das instituições políticas de representação popular. O monopólio do Partido Comunista será assim erodido gradualmente, num processo de transição tutelada e administrada.
Nos países dotados de maior rigidez estrutural nas instituições de representação ou cuja estrutura social é marcadamente fragmentária e heterogênea, o processo de transição política deverá assumir contornos conflitivos. É o caso, por exemplo, da maior parte dos países balcânicos, da China e da própria União Soviética. As crises de legitimidade política reforçarão em consequência a natureza autoritária do processo de reforma política, de acordo aliás com o modelo de Revolution von oben .
No campo econômico, onde os desafios serão maiores, a revolução pelo alto passa pela diminuição da participação do Estado na esfera produtiva, alocando espaços à iniciativa privada. Abel Aganbegyan, o conselheiro econômico plus en vue do partido reformista soviético, prevê que nos anos 90 a economia soviética conhecerá uma redução do papel do Estado para 30% ou menos. O próprio Gorbachev já se declarou disposto a reformar o sistema de alocação de matérias-primas para as empresas soviéticas, sem passar pelo planejamento central, mas ele ainda não enfrentou seriamente a questão do sistema de formação de preços, pedra angular de todo sistema econômico "racional".
A opção pelo mercado, que aparece como inevitável na transição do socialismo ao "capitalismo" empreendida sub-repticiamente pelas economias socialistas, implica igualmente aceitar todas as suas distorções e efeitos desestabilizadores sobre as unidades produtivas e sobre a distribuição de renda ao nível dos consumidores. Quando o sistema de preços de mercado guiar toda a economia e tiver sido abolido o "pecado original" ligado à apropriação de lucros privados, o socialismo realmente existente se terá desfeito de seus últimos mitos econômicos e poderá enfim penetrar no purgatório do sistema capitalista.
No que se refere ao último aspecto, a opção já parece ter sido tomada: Nikolay Shmelyov, um dos conselheiros econômicos do partido da reforma, declarou expressamente que a atitude de desconfiança em relação ao lucro é uma espécie de "desentendimento histórico", o custo da ignorância econômica de pessoas que pensaram que o socialismo poderia eliminar lucros e perdas. A legislação para introduzir um sistema de taxação individual e para legalizar o papel do lucro consagrarão esse reencontro com a história. No que se refere ao sistema de preços, sua implementação exigirá, provavelmente, um penoso sacrifício de adaptação às exigências da competitividade, eliminando do "mercado socialista" diversos dinossauros introduzidos pelos planos quinquenais.
Qualquer que seja o sucesso relativo do processo reformista na União Soviética e nos demais países do socialismo realmente existente, a nova postura revisionista de seus dirigentes mais lúcidos constitui o elemento estratégico suscetível de alterar o padrão de relacionamento global no eixo Leste-Oeste. Os últimos anos do século parecem assistir a uma rara combinação de détente estratégico-militar e de détente político-ideológica.

5. O FIM DA GUERRA FRIA
Deve-se observar, antes de mais nada, que o equilíbrio estratégico entre as duas superpotências não será necessariamente rompido pelo movimento de re-acomodação interna num dos lados da balança, já que o "fardo imperial" impõe responsabilidades das quais não se pode escapar facilmente, mesmo se elas não são de natureza exclusivamente militar.
O quadro de rivalidades geopolíticas, no entanto, tende a esmaecer-se num cenário em transformação, como o que se assiste atualmente na zona do socialismo real. A bipolaridade permanece real, mas a força agregadora de cada um dos lados da balança será cada vez menos determinada pelo conflito ideológico global.
Numa época em que alguns representantes modernos dos ideólogos - que são os sociólogos - identificam sinais de "fim das ideologias", perde-se por vezes a visão de como o elemento ideológico influenciou a construção do mundo contemporâneo. A Europa, nos últimos setenta anos, e o Ocidente em geral, nos últimos quarenta anos, viveram sob o signo das relações Leste-Oeste. Sua face mais ameaçadora produziu o que acertadamente ficou identificado como "guerra fria". Depois de pelo menos quatro décadas de livre circulação, essa hantise ideológica parece agora encaminhar-se lentamente para o museu das antiguidades.
A guerra fria não foi certamente apenas um produto de ideologias conflitantes, mas foram as racionalizações construídas a partir das "intenções malévolas" do concorrente estratégico que lhe deram uma dimensão jamais vista nas antigas disputas hegemônicas. Ainda aqui um retorno ao passado pode contribuir para esclarecer os contornos dessa "projeção utópica do futuro" que é o final da guerra fria.
Um exame imparcial da história do período anterior mostraria que não foi a oposição entre ideologias capitalistas - ou, digamos, liberais - e socialistas - conceda-se-lhes, cum grano salis, o epíteto de marxistas - que provocou o quadro de instabilidade política e militar e precipitou conflitos que retiraram definitivamente da Europa as alavancas do poder mundial. Ao contrário, foram os conflitos de natureza quase "feudal" - como diria o historiador Arno Mayer - latentes no continente europeu que permitiram o surgimento do poder socialista e, com ele, do conflito ideológico global.
Não se deve, com efeito, esquecer que o surgimento da dimensão Leste-Oeste no contexto político europeu é virtualmente o resultado prático de um pequeno, mas fecundo, "acidente" histórico, desencadeado involuntariamente por um dos beligerantes durante a Primeira Guerra Mundial: o retorno à Rússia de um punhado de bolcheviques exilados, quase desanimados pela ausência de perspectivas revolucionárias. O voluntarismo oportunista da diplomacia do Kaiser, que buscava apenas provocar um pequeno "tremor" político na frente oriental, podendo servir a interesses militares imediatos, transformou-se porém em "cataclismo" histórico de proporções inimagináveis, dando nascimento aliás ao próprio conceito de relações Leste-Oeste.
Uma vez instalado o poder bolchevique, as diversas invasões do território russo contribuíram mais para alimentar a oposição ideológica irredutível com os países capitalistas do que uma suposta "luta de classes" em escala internacional. Para Stalin, por exemplo, a razão de Estado sempre teve preeminência sobre o "internacionalismo proletário", este último invariavelmente servindo de travestimento ideológico aos interesses do Estado soviético.
Se se pode afirmar, portanto, que foi a vocação imperial, mais do que a militância ideológica, que esteve na origem da chamada "guerra fria", foi contudo o elemento ideológico que exacerbou extraordinariamente o fator da segurança estratégica na ordem mundial contemporânea, fenômeno ainda ressaltado pelo caráter militarmente inédito da arma nuclear. Esta última seguramente impediu uma guerra "suicida" entre o capitalismo e o socialismo, mas, no mesmo momento em que a capacidade de retaliação ficou assegurada também do lado soviético, ela deixou de ser uma "arma", no sentido militar do termo, para se tornar um fator de dissuasão.
Evidentemente, os chefes militares e muitos líderes políticos vão continuar acreditando na guerra nuclear e na possibilidade do emprego da arma nuclear, daí a modernização continuada do equipamento nuclear e as dificuldades de estabelecimento de um comprehensive nuclear test ban. Mas, a concepção de que uma guerra nuclear é "racional" ou factível tem cada vez menos adeptos. A dissuasão nuclear vai continuar existindo, pois ninguém vai se desfazer de suas armas sem a garantia de que o adversário potencial está seguindo o mesmo caminho. As alianças passaram no entanto a trabalhar com cenários não-nucleares e estratégias não-ofensivas de defesa.
Ainda que o mundo pós-nuclear possa ser uma utopia, a superação da oposição Leste-Oeste não o é, desde que não se dê a esse conceito uma elasticidade duvidosa para fazê-lo abrigar igualmente os fenômenos de competição econômica ou de concorrência política no âmbito de conflitos regionais. O esmaecimento da Guerra Fria deriva não apenas do clima de détente militar propiciado pelo processo de desarmamento estratégico e regional, mas também e principalmente da nova postura internacional assumida pela União Soviética.
Os motivos dessa mudança significativa no comportamento externo da superpotência socialista não têm tanto a ver com o "novo pensamento" ou com os conceitos de "segurança mútua" e de "interdependência", como com a dura realidade do desequilíbrio tecnológico. Enquanto que o declínio do "império americano" é largamente imaginário, o do rival socialista não pode mais ser disfarçado: as bases econômicas do poder soviético, em sua forma socialista de organização, passaram do estado de erosão ao de desagregação irremediável.
A dimensão Leste-Oeste continuará, é verdade, a desempenhar um papel relevante no jogo político-diplomático do continente europeu no futuro imediato. Mas, a delimitação dos interesses em causa obedecerá cada vez menos a critérios de natureza ideológico-militar, para se concentrar nos imperativos da cooperação econômica e do intercâmbio comercial. A Europa oriental, liberando-se da ideologia que prometia enterrar o capitalismo, abre campo a que a Europa ocidental por sua vez possa libertar-se do fantasma de uma defesa superdimensionada.
Os contornos da nova realidade são relativamente previsíveis: um grande espaço Mitteleuropeu no qual em lugar de manobras de divisões adversárias se observará a circulação de mercadorias e serviços. O cenário pode parecer róseo, mas o otimismo em direção ao futuro parece ser uma mania daqueles que costumam lidar com os desastres do passado.

 [Genebra, 06.06.88/27.07.88]
Relação de Trabalhos nº 164