Retorno ao futuro, Parte I:
a
ordem internacional no horizonte 2000
Paulo Roberto de Almeida
Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro: Ano XXXI, 1988/2, n. 123-124, pp. 63-75).
Relação de
Trabalhos n. 164; Publicados n. 049.
1. PROFECIA E HISTORIA
As análises prospectivas,
segundo seus críticos, têm o hábito de pecar duplamente: pelo que contêm e
também pelo que deixam de conter. Trata-se, aparentemente, de um "pecado
original" da futurologia, partilhado em igual medida pelas diversas
variantes do gênero. Quer abordando o futuro pela ótica estatística e
quantitativa, quer fazendo-o segundo os padrões do ensaio interpretativo,
muitas dessas análises tendem a atribuir importância desproporcional a
elementos secundários ou, inversamente, a negligenciar fatores potencialmente
estratégicos.
Em qualquer hipótese, porém,
elas frequentemente revelam-se incapazes de impedir sua própria esclerose
precoce quando confrontadas, alguns anos depois, à realidade que supostamente
deveriam descrever. O processo de envelhecimento é ainda mais rápido quando o
cenário projetado pretende prevenir a eclosão (ou alertar sobre a intervenção)
de riscos e catástrofes considerados "iminentes": colapsos nas bolsas
de ações, crise financeira mundial, revolução no mercado dos produtos de base
ou - por que não? - eclosão da Terceira Guerra Mundial. Mesmo análises mais bem
comportadas de trends futuros
costumam revelar-se doucement naïves
quando o futuro bate à porta. A razão é ao mesmo tempo uma pergunta: modelos
econométricos, projeções de computador ou induções geniais terão algum dia o
poder de antecipar, em todos seus detalhes, o caminho que tomará o carro de
Cronos ?
O curto "ciclo de
vida" da maior parte das análises prospectivas não é apenas devido às
deficiências metodológicas intrínsecas a toda projeção futura de tendências do
presente. É preciso referir-se também a um defeito mais grave, ainda que mais
prosaico: os exercícios de futurologia soem constituir uma fixação inconsciente
(e muitas vezes arbitrária) dos preconceitos políticos e das preferências pessoais
de seus autores. O uso "adequado" da imaginação permite quase sempre,
aos que se dedicam a essa espécie de "leitura das estrelas", acomodar
estimativas contraditórias sobre a evolução das sociedades, quando não imaginar
cenários políticos fantasiosos com base em forças e tendências conjunturalmente
dominantes.
O perigo de ver uma análise
caducar prematuramente é por certo maior no caso das projeções de natureza
econômica e social estabelecidas a partir do universo atual do mundo
desenvolvido, onde a rapidez do progresso tecnológico e a mutação das
estruturas sociais invalidam em breve espaço de tempo as tendências apontadas
nos melhores estudos macrossociológicos. O cemitério do "futuro" está
repleto de previsões não realizadas, desde o anedotário dos desastres
ecológicos ou das quebras nas Bolsas, até as estimativas mais sérias lidando
com os preços das matérias-primas, o desemprego tecnológico ou os ciclos de
crescimento e de estagnação, de longo ou de curto prazo.
As projeções envolvendo as
relações internacionais, por sua vez, tendem ser mais sóbrias, se o que está em
causa não é evidentemente o mero desejo de emplacar algum sucesso no mercado
dos best sellers. Aqui, a fúria
futurologista de alguns analistas apressados pode eventualmente construir cenários
movimentados, onde o roteiro vai da chantagem nuclear ao day after, passando pela subida aos extremos e a guerra total.
Mas, as relações
internacionais propriamente ditas, enquanto matéria de reflexão universitária,
seriam relativamente menos propensas a esse tipo de exercício futurológico, já
que lidando com atores e cenários dotados de maior estabilidade estrutural: o
Estado-Nação e o sistema de equilíbrio estratégico derivado da lógica
westfaliana. Estas duas categorias constituem o padrão de referência básica da
teoria das relações internacionais, assim como o soldado e o diplomata são os
elementos conceituais par excellence
quando se passa da formulação doutrinária para a análise operacional da
política internacional.
A experiência histórica dos
últimos cinco séculos demonstra que, em se tratando da ordem
política interestatal, as linhas de continuidade tendem a ocupar um espaço
comparativamente maior àquele representado pelos momentos de ruptura. Estes
também têm o seu peso próprio, mas costumam apresentar-se inseridos naquela, as
sucessões dos Estados na hierarquia do poder internacional servindo mais para
reforçar as características do sistema do que para alterar a forma de seu
funcionamento. As projeções relativas ao ordenamento futuro do sistema
internacional, para serem credíveis, devem operar um verdadeiro retorno ao
passado, isto é, apoiar-se em sólidas fundações históricas, uma vez que os
modelos disponíveis de organização da sociedade internacional não são em número
infinito. O horizonte histórico do Estado-nação, por exemplo, em que pese a
lenta emergência de uma soberania coletiva no cenário europeu, afigura-se
temporariamente estável, ou seja estruturalmente insuperável pelas próximas
décadas. Da mesma forma, a despeito da transnacionalização crescente dos
circuitos produtivos e da internacionalização dos instrumentos monetários, o
sistema internacional permanecerá econômica e politicamente heterogêneo num
futuro previsível, ainda que possa vir a reduzir, de maneira lenta, seu coeficiente
de anarquia. Em outros termos, a política de poder não está próxima de ser
substituída por uma ordem jurídica supranacional construída segundo os
princípios da equidade e da justiça.
A estrutura das relações
internacionais em vigor nos últimos séculos - digamos, desde o século XVI -
constituiu-se de maneira extremamente lenta e não se modifica senão em ritmo
igualmente lento. A incorporação de novas áreas geográficas ao mundo então
civilizado - o que fez com que a política internacional se tornasse
verdadeiramente mundial - se fez sob a emprise
dos novos Estados europeus, cuja política nacional passou a refletir a
crescente relevância dos assuntos externos, em seu sentido mais amplo. A política
mundial torna-se europeia, ou melhor dito ocidental, e como tal
permaneceu desde então, pelo menos no sentido cultural
da palavra. Foi a racionalidade ocidental, mais que a superioridade militar, a
exploração colonial ou o intercâmbio desigual, que assegurou a continuidade,
por tão longo tempo, da dominação ocidental sobre os negócios do mundo: uma
combinação específica de espírito inventivo - a inovação e a descoberta
científica aplicada à economia - e de organização social esteve na origem dessa
performance historicamente inédita.
Mas, dada essa invenção
propriamente europeia que é o Estado-nação, a hegemonia cultural ocidental
nunca logrou transformar-se em hegemonia tout court . As grandes potências, e
os variados sistemas de alianças militares forjados por elas, anularam
reciprocamente seus drives hegemônicos, conformando sucessivas "balanças
de poder" ao longo desses últimos cinco séculos. Estas, de forma precária
ou efetiva, continuarão cumprindo sua missão histórica por um período de tempo
ainda indefinido.
O padrão referido acima
permanece válido em suas grandes linhas. Ou seja, a despeito da "ascensão"
e "queda" dos mais variados atores nacionais ao longo desse período,
as tentações hegemônicas e a vontade de poder imperial de candidatos sucessivos
ao "domínio global" nunca chegaram a debilitar fundamentalmente o
sistema interestatal de relações internacionais que se constituiu no início da
era moderna e se desenvolveu de maneira extraordinária desde então. O sistema
mostrou-se por exemplo resistente a tentativas de constituição de algum império
verdadeiramente universal, fundado sobre o modelo da pax romana.
Nesse sentido, o analista que
pretenda oferecer reflexões sobre a evolução provável do sistema internacional
contemporâneo tem de ser necessariamente modesto quanto ao escopo transformista
de suas projeções. Estas devem, em todo caso, sustentar-se nas tendências já
reveladas pela história passada, desdobrando-se cuidadosamente em direção ao
futuro. O mais recente e mais brilhante exemplo desse tipo de exercício, ainda
que limitado às performances futuras de atores individuais, é representado pelo
último capítulo do livro de Paul Kennedy sobre a ascensão e queda das grandes
potências.
Um dos limites impostos pela
"longa duração" à ação da "conjuntura histórica de
transformação" parece ser constituído pela extraordinária vitalidade
demonstrada pelo Estado-nação enquanto fundamento e princípio organizador das
relações internacionais na era moderna e contemporânea. O sistema internacional
- organizado sobre a base da independência política formal dos Estados e de sua
interação concorrente na administração de recursos que garantam o exercício de
um poder soberano - continuará previsivelmente sua trajetória histórica bem
além das primeiras décadas do século XXI.
Ainda assim, o observador
atento poderia formular algumas suposições sobre as possibilidades de
transformação desse sistema com base em tendências que começam a desenhar-se
lentamente no horizonte 2000. Sem aspirar à futurologia, o ensaio que se segue
pretende oferecer algumas idéias e reflexões sobre a possível evolução do
cenário internacional nas próximas décadas. A ênfase analítica será colocada
nos elementos econômicos e políticos já em processo de mutação (e portanto mais
suscetíveis de influenciar o curso da ação futura dos Estados), bem como nos
fatores que poderão desempenhar papel relevante no destino ulterior das
relações Leste-Oeste, clássico terreno dos estudos geopolíticos e nó crucial
das relações internacionais contemporâneas.
Na tentativa de identificar as
características futuras do sistema mundial emergente, o observador deve
necessariamente operar uma seleção dentre os cenários potencialmente
"realizáveis". Algumas das linhas evolutivas já se encontram
presentes na atualidade, outras representam apenas uma promessa de possível implementação,
ainda que alimentadas por "inferências lógicas" a partir das
"tendências prováveis" do sistema contemporâneo. Mesmo que não se
pretenda traçar aqui uma lista exaustiva, as seguintes tendências poderiam
fornecer a base de um exercício moderado de "futurologia
internacional", sem que a ordem de apresentação signifique o
estabelecimento de uma interação cronológica necessária no desenvolvimento de
cada uma delas: o declínio do condominium bipolar, a preeminência estratégica e
econômica do saber tecnológico, o abandono das últimas ilusões econômicas do
socialismo realmente existente, o esmaecimento do conflito ideológico global e
a consequente superação histórica da oposição Leste-Oeste.
Os elementos selecionados não
representam aliás a introdução de nenhum processo fundamentalmente novo de
transformação histórica, já que todos eles se encontram presentes, em maior ou
menor grau, na agenda contemporânea das relações internacionais.
Qualquer que seja a validade
relativa das conjeturas aqui realizadas, seu autor não pretende eximir-se da
responsabilidade apontada acima, qual seja, a tendência a fixar nas projeções
preferências pessoais quanto ao curso futuro da História. Max Weber afirmava, a
esse propósito que é quase impossível fazer ciência social liberado de todo a
priori analítico. Que seu exemplo sirva de consolo, no sentido em que, se a
imparcialidade política é dificilmente alcançável, a busca honesta da
objetividade permanece, em princípio, possível.
2. O DECLINIO IMPERIAL
Desengajamento estratégico,
revisão unilateral dos compromissos assumidos com os aliados e realismo
econômico: estes parecem ser os elementos característicos da nova política
imperial num fin-de-siècle decididamente neomercantilista.
"De acordo",
responderia o observador “imparcial”, apenas para perguntar em seguida:
"Mas, de qual império se está falando ?" A questão, talvez
dispensável de um ponto de vista essencialmente formal, assume acuidade prática
quando se trata de determinar os contornos do sistema internacional emergente e
o papel que nele deverão jogar as atuais superpotências. O politólogo pode
se permitir brincar com formulações "ideal-típicas" a
propósito do jogo imperial, mas não o estadista ou o diplomata, que necessitam
apoiar suas propostas de ação governamental numa análise sóbria das relações de
poder realmente existentes e seu impacto nas diretrizes nacionais relativas à
segurança estratégica e à política econômica.
Em princípio, os termos do
problema poderiam ser aplicados indiferentemente a uma ou outra das duas
superpotências, Estados Unidos ou União Soviética, adaptando-se a ênfase
atribuida a cada elemento em função do aspecto que se pretende ressaltar num ou
noutro caso: reconhecimento do fracasso do intervencionismo ou introdução da
doutrina da dissuasão discriminada, incapacidade em assumir os custos militares
do império ou revisão conceitual da política aliancista, necessidade de reforma
econômica ou tentativa de corrigir dificuldades de natureza comercial e
problemas de ordem orçamentária.
Em cada um dos lados da
equação estratégica, os problemas podem se colocar de maneira diferente, mas
seu efeito converge para as realidades tangíveis de uma problemática comum:
racionalização das despesas militares, repartição dos gastos em defesa com as
respectivas alianças militares e reestruturação econômica interna. Ainda que o
discurso sobre o desarmamento da cada uma das superpotências possa conservar a
velha retórica de sempre, a mutação de prioridades é uma necessidade que deverá
se impor de forma natural: inevitavelmente ocorrerá algum tipo de burden-sharing soviético, como se poderá
assistir a alguma forma de perestroika norte-americana.
Sem embargo, porém, da suposta
bidirecionalidade do foco analítico, deve-se reconhecer que a reconversão
imperial não significa a mesma coisa para os atores em presença, nem ocupa a
mesma prioridade nas agendas de seus respectivos líderes políticos: de um lado,
impõe-se o que se poderia chamar de necessidade sistêmica de reformas
estruturais, de outro, sugere-se introduzir uma correção de rumos em função de
dificuldades conjunturais.
Apesar de que em ambos os
casos se convencionou falar de "declínio imperial" e de "ocaso
do poder", o processo de transformação num dos lados é relativamente
administrado, enquanto que no outro ele afigura-se como verdadeiro
"imperativo categórico", determinado por uma realidade econômica
praticamente insustentável. Em termos explícitos, o conceito de revisão da
política imperial aplica-se mais adequadamente à União Soviética, cuja retórica
oficial passou a refletir as necessidades de uma diplomacia mais conforme com
as reais possibilidades de seu sistema econômico e cuja política internacional
teve de dobrar-se aos limites efetivos dos recursos disponíveis.
O livro já citado de Paul
Kennedy permitiu identificar no chamado "imperial over-reach" - a
super-extensão imperial - a razão principal da enfermidade senil que parece
atingir, a partir de um certo momento, todo poder imperial. A assunção ampliada
de obrigações propriamente "policiais" tende a introduzir uma
desproporção crescente entre os recursos alocados a tarefas de defesa e de
controle externo e os recursos destinados ao investimento produtivo,
necessários para manter a estrutura econômica inovadora e próspera.
Esta tese é, contudo, especialmente
relevante no caso soviético, onde parece realmente ter-se congelado uma relação
de mútua exclusão entre os setores civil e militar da economia, como sublinhava
há alguns anos Cornelius Castoriadis. O investimento nas indústrias ligadas à
defesa representou, do ponto de vista da economia norte-americana, uma
verdadeira bonança, tanto no sentido de reduzir a defasagem entre a produção e
o "consumo" de vários produtos feitos para não serem
"consumidos", como no de estimular a inventividade técnica e o
desenvolvimento à outrance de setores ligados à comunicações e ao tratamento de
informações. O programa SDI, finalmente, poderia ser considerado, do ponto de
vista econômico, como uma grande demonstração de "keynesianismo
militar".
Assim, se as duas
superpotências enfrentam este final de século firmemente comprometidas com uma
política de desengajamento estratégico, de redistribuição de papéis no sistema
aliancista e de austeridade econômica interna, a administração equilibrada
desses processos paralelos assume extrema acuidade no caso soviético, onde a
margem de manobra é extremamente reduzida pela maior rigidez estrutural do
sistema produtivo e pela inadequação do aparelho político. Em qualquer
hipótese, a URSS de Gorbachev está condenada a auto-reformar-se: não parece
haver alternativas a um programa de révision déchirante das prioridades ou
escolhas do passado.
Não se pode porém pretender
que o declínio mais acelerado de um dos dois parceiros do condomínio bipolar do
pós-guerra abrirá espaço para o estabelecimento de uma pax imperial no velho
estilo. A natureza da dominação imperial americana, de natureza mais econômica
que militar, abriu espaço a uma verdadeira multilateralização dos circuitos de
extração de recursos, paralelamente à emergência das "legiões
modernas" que são as empresas transnacionais.
Mais do que qualquer profissão
de fé democrática, o sistema produtivo baseado na corporação multinacional foi
o verdadeiro agente da difusão acelerada dos centros de poder, no sentido de
uma maior atomização dos núcleos decisórios.
A desconcentração do poder
mundial constitui, assim, uma das características mais salientes de nossa
época, com a emergência de novos centros regionais de dominação que não parecem
dispostos a repetir, ou não são capazes de assumir, os compromissos e
obrigações das duas potências rivais. Em lugar de um único centro com
periferias sucessivas, passam a coexistir diversos centros com interpenetração
de periferias. Os mecanismos de dominação e de exploração são provavelmente os
mesmos, embora com consequências diferentes para a nova ordem internacional.
Por outro lado, a nova
repartição de cartas ligada a esse processo de desconcentração hegemônica não
significa tampouco a re-atualização do antigo esquema ligado à "balança de
poder", já que os novos parceiros não parecem pretender assentar sobre
instrumentos propriamente militares os fundamentos de uma preeminência non
avouée . Não está evidentemente excluída a utilização dos meios clássicos de
dissuasão e de pressão, embora pareça mais provável que a imposição da vontade,
no novo padrão, terá mais a ver com o economic statecraft do que com a gun-boat
diplomacy .
O núcleo do processo decisório nesses novos
centros já não colocará tanto ênfase no planejamento estratégico quanto na
administração de performances econômico-comerciais. O padrão de referência das
relações internacionais poderia, assim, estar deslocando seu eixo conceitual:
passaríamos de uma visão baseada na concepção político-militar para uma
concepção baseada no comércio, ou o que Rosecrance chamou de "expansão do
Estado comercial".
3. DO PODER SOBERANO À
SOBERANIA ECONOMICA
O maciço livro de Paul Kennedy
trata da interação entre economia e estratégia no sistema interestatal moderno
e contemporâneo. Suas teses centrais são relativamente simples: "existe
uma relação causal entre as mudanças ocorridas com o correr do tempo nos
equilíbrios econômicos e produtivos e a posição ocupada pelas Potências
individuais no sistema internacional... as mudanças econômicas anunciando a
ascensão de novas Grandes Potências que um dia teriam um impacto decisivo na
ordem militar/territorial. (...) Da mesma forma, o registro histórico sugere a
existência de uma clara conexão no longo prazo entre a ascensão e a queda
econômica de uma Grande Potência determinada e seu crescimento e declínio como
poder militar importante" (xxii).
A riqueza e o poder, ou a
força econômica e o poderio militar, são sempre relativos e, como todas as
sociedades estão sujeitas a uma inexorável tendência à mudança, os equilíbrios
internacionais não podem ser permanentes. Para referir-se ao exemplo que tem
motivado discussões acaloradas: a dominação norte-americana sobre os negócios
do mundo é decrescente não porque o país tenha se tornado mais pobre ou mais
fraco, mas porque outras nações tornaram-se mais fortes e ricas. O veredito de
Kennedy é o de que os EUA poderiam se tornar mais ricos ainda, no longo prazo,
se suas elites dominantes aceitassem gentilmente uma diminuição relativa de seu
atual status estratégico e militar.
Mas, essas elites ainda não se
resignaram a passar de uma visão do mundo baseada na "teoria da
estabilidade hegemônica" para uma outra baseada na "teoria do
equilíbrio de poderes", segundo os termos de Richard Rosecrance. O
diagnóstico, na verdade, se aplica tanto às elites políticas e militares dos
Estados Unidos quanto às sua homólogas na União Soviética. Em ambos os casos,
elas ainda não abandonaram a pretensão de pretender moldar o futuro com base
numa estratégia político-militar para aceitar esse mesmo futuro de acordo com
uma estratégia comercial.
Mas, ambas as teorias são
essencialmente falhas, no sentido em que permitem preservar a lógica
westfaliana da territorialidade, que por sua vez serviu de fundamento à
conhecida equação geopolítica "espaço é poder". Na opinião de
Rosecrance, tanto os Estados Unidos como a União Soviética continuam
hipnotizados pelo território, pelo espaço e pelo poder, esquecendo-se da quarta
dimensão: a perseguição de uma estratégia comercial consequente, como forma de
revitalizar e potencializar suas economias.
As lideranças políticas e
militares das duas superpotências partilham da mesma visão westfaliana do
mundo, com seus conceitos chaves organizados em torno da soberania política
absoluta, da independência militar, de garantias territoriais e fronteiriças e
do poderio militar de seus respectivos Estados. Kissinger, por exemplo,
concebia sua estratégia nos mesmos termos em que Metternich dispunha, em sua
época, da ordem política e territorial europeia. Os dirigentes e estrategistas
soviéticos, por sua vez, mostram-se tão obsecados com a defesa de seu
território quanto seus antecessores russos da época imperial.
Tanto Kennedy quanto
Rosecrance demonstram, com riqueza de detalhes, a inadequação de uma estratégia
baseada na super-extensão imperial: os poderes hegemônicos revelam-se, a partir
de um certo momento, incapazes de sustentar uma relação viável entre suas
pretensões geopolíticas e seus recursos econômicos. Apesar de que os
investimentos militares possam servir, em última instância, à causa do
desenvolvimento tecnológico e científico, a experiência indica que os gastos
militares não aumentam a produtividade nacional. Alguns estudos consultados por
Rosecrance demonstraram a existência de uma correlação negativa entre os dois
elementos: maiores despesas militares significam menor investimento produtivo.
A concepção comercial das
relações internacionais, propugnada por Rosecrance, não deve ser confundida com
uma visão otimista da realidade. Isto é, ela não pode ser vista, apenas, como
uma oportunidade de reforçar os elementos de paz no sistema interestatal
contemporâneo, opondo-se portanto à lógica dos enfrentamentos que por muito
tempo caracterizou o cenário mundial. Ela é também decorrente das novas
características estruturais que passou a assumir o crescimento econômico, hoje
fortemente dependente de investimentos maciços em pesquisa e desenvolvimento
nos setores de alta densidade tecnológica.
Aliás, qualquer que seja o
futuro das relações políticas entre as superpotências, a concorrência entre
ambas, pacífica ou militar, será cada vez mais dependente das performances
respectivas alcançadas nos terrenos econômico e tecnológico, inclusive e
principalmente no que se refere à modernização de seus arsenais ofensivos e sistemas
de defesa. O verdadeiro princípio estratégico no mundo atual se chama
superioridade tecnológica.
Curiosamente, embora ambas as
superpotências sejam igualmente reticentes em abandonar a concepção
territorial-militar das relações internacionais, é a União Soviética o Estado
mais empenhado em reformular as bases materiais de seu poder soberano.
Paradoxalmente, ela só conseguirá fazê-lo se aceitar precisamente uma
diminuição do grau de independência econômica nacional (que no seu caso é o
equivalente de autarcia) em prol de uma decidida opção pela interdependência em
escala regional e internacional. As concepções econômicas do socialismo
realmente existente representam, porém, um sério obstáculo à consecução dessa
tarefa, no mesmo sentido, talvez, em que as relações feudais de produção
representavam, na Europa pré-moderna, uma grande barreira ao desenvolvimento
das forças produtivas. O avanço em direção ao futuro do socialismo parece,
assim, situar-se, num certo retorno ao passado em termos de história econômica.
4. A TRANSIÇÃO DO SOCIALISMO
AO CAPITALISMO
Durante muito tempo os
estudiosos do socialismo real se perguntaram se os sistemas de tipo soviético,
em que pese toda a rigidez weberiana das burocracias totalitárias, poderiam
realmente passar por algum outro tipo de mudança que não fosse de natureza
traumática, reconhecendo, implicitamente, que eles tinham pouca ou nenhuma
possibilidade de evoluir ou de se auto-reformar. Atualmente, o que se questiona
é se os regimes do socialismo realmente existente podem mudar lentamente ou se
eles terão de se reformar em ritmo mais rápido.
Em escala histórica, a evolução social tende a
ser vista em termos de ruptura ou de continuidade. A Revolução bolchevista de
1917 inscreve-se seguramente à sombra do primeiro conceito, enquanto que os
três lustros da era brejnevista teriam certamente de ser vistos sob o ângulo da
continuação, quando não da estagnação. O período gorbacheviana já pode ser
considerado, usando-se a terminologia da école des Annales, como tendo inaugurado uma "conjuntura histórica de
transformação" (como diria o historiador Ernest Labrousse), ainda que,
falhando ou afastando a tentativa de operar uma brusca mudança política com o
passado, ele se contente em administrar um lento processo de mutação social e
econômica, mais de acordo com a "longa duração", cara a Fernand
Braudel.
Os processos de transformação
social, econômica ou política numa determinada sociedade e numa época
determinada não podem ser facilmente catalogados em função de modelos dicotômicos
de racionalização histórica senão a posteriori, quando todos suas possíveis
consequências e implicações já se fizeram sentir, deixando aos historiadores o
cuidado de medir a amplitude da transformação societal. O caso das revoluções
violentas é evidentemente particular, uma vez que, antes do historiador, o
cronista mundano já teve oportunidade de sentir seus efeitos devastadores para
o cenário social em que atua. Mas, as transformações verdadeiramente
revolucionárias são extremamente raras nos laboratórios da História, a maior
parte das sociedades conhecendo apenas pacíficos processos de modernização
social.
Poderia a perestroika
gorbacheviana ser interpretada como um modelo de transformação revolucionária,
isto é, um movimento suscetível de alterar fundamentalmente a estrutura social
e econômica da sociedade soviética e de operar a passagem a um novo regime de
poder e a um novo sistema político ? Alguns observadores diriam que faltam-lhe
os elementos estruturais mais essenciais de uma típica transformação radical da
ordem social ou política, não cabendo pois a identificação com o modelo teórico
proposto pela maioria dos historiadores para o conceito de ruptura fundamental
na continuidade histórica.
Sem embargo, a conjuntura
histórica de transformação em curso na URSS tem sido vista, em perspectiva
comparada, como assumindo um significado similar ao dos grandes processos
reformistas do início da era moderna. Com efeito, os observadores não deixaram
de notar a similitude de intenções entre o atual "revisionismo"
socialista e as grandes aventuras reformistas dos séculos XV a XVII, chegando
mesmo a traçar paralelos entre a tentativa transformista de Gorbachev e os
processos deslanchados por figuras históricas como Henrique VIII ou Lutero.
As analogias históricas são,
em grande parte, mistificadoras, mas não se pode realmente negligenciar a
poderosa capacidade sintetizadora dos exemplos do passado para auxiliar no
esforço explicativo do presente. O problema da maior parte dessas análises
centradas sobre o que se poderia chamar - retomando mais uma vez conceitos
trabalhados pela escola dos Annales - de histoire événementielle (inclusive no
que se refere o apelo a figuras exponenciais) é a tendência à personalização do
jogo político e social, com a consequente atribuição do "sucesso" ou
"fracasso" de um determinado movimento às qualidades pessoais de seu
líder.
Que Mikhail Gorbachev seja
comparado a Henrique VIII ou a Lutero - Calvino, aliás, conviria melhor, já que
se trata igualmente de uma tentativa de reestruturação autoritária de uma visão
do mundo formulada anteriormente - não modifica em nada o conteúdo
historicamente original dos desafios enfrentados pelo líder soviético. A esse
título, se poderia, por exemplo, dizer do movimento de reformas políticas na
URSS que este significa, para a autocracia socialista, o que o despotismo
esclarecido representou para as monarquias absolutas do Ocidente entre os
séculos XV e XVIII. A busca de "déspotas esclarecidos" é no entanto
um expediente eventualmente utilizado pela imaginação histórica quando o curso
dos acontecimentos se confunde com o destino particular de um líder
providencial, sem que o "historiador" consiga separar o contingente
do necessário. Nesse caso específico, por acaso, a comparação não é de todo absurda:
o "comunismo esclarecido" que eventualmente emergirá do entrechoque
de posições entre o partido da reforma e o da conservação na URSS permitirá ao
dirigente soviético em exercício reunir condições políticas para acelerar o
processo de modernização do país, de forma a aproximá-lo das nações mais
avançadas.
Sem pretender descurar o peso
decisivo muitas vezes exercido por certas personalidades individuais sobre o
curso de determinados acontecimentos históricos, o recurso à analogia
histórica, no caso do atual movimento reformista na União Soviética, talvez
ganhasse em consistência se se fizesse referência a certos processos do passado
que igualmente serviram para alterar as bases de funcionamento da sociedade em
causa, sem modificar no entanto a composição social das elites envolvidas na
transformação societal.
Nesse sentido, se poderia
comparar a "revolução" da perestroika com a Inovação Meiji no Japão
do século passado, quando a elite dominante se abriu para uma maior
ocidentalização do país, no sentido da abolição de certos privilégios feudais,
na constituição de um parlamentarismo de fachada e na incorporação acelerada
das conquistas estrangeiras em ciência e tecnologia. Como no caso, igualmente,
da transformação bismarckiana operada nas instituições políticas, sociais e
econômicas da Alemanha imperial, assiste-se, na União Soviética, a uma
Revolution von oben cujo objetivo é o de
modernizar o país sem trazer prejuízo àqueles que ocupam as alavancas do poder
político e social.
É dessa perspectiva que talvez
possam ser vistos os eventos de maior impacto político sobre a história recente
da URSS. Tanto o 27º Congresso do PCUS, em fevereiro-março de 1986, como a 19ª
Conferência do PCUS, em junho-julho de 1988, visavam permitir a aceleração do
processo de reestruturação da economia soviética. Em que pese o conjunto de
afirmações em contrário nos círculos dirigentes, a reforma do sistema tem de
ser dirigida precisamente contra a estrutura ossificada do Partido Comunista,
que se converteu no principal obstáculo à mutação econômica e política da
sociedade. A tarefa é tanto mais árdua na medida em que o partido renovador na
URSS não pode implementar o conjunto de reformas sem passar pelo intermédio do
aparelho organizacional do velho Partido burocratizado. Para contornar o
obstáculo, surge a proposta de constituição de um novo tipo de poder
"executivo" - a Presidência de um Soviet Supremo ampliado, através do
recurso ao voto secreto - como forma de dar legitimidade à direção política
renovadora contra eventuais manobras obstrucionistas do Comitê Central e dos
comitês provinciais. A intenção é claramente de transformar a administração
econômica da sociedade sem ter de confrontar-se ao veto político da máquina
partidária.
Aqui parece residir a
contradição fundamental do novo "revisionismo" socialista: a solução
para a maior parte dos problemas estruturais das sociedades socialistas passa
por uma reforma radical do sistema de organização econômica, mas essa
transformação teria de ser operada em detrimento do monopólio político
partidário. Mesmo os sistemas que avançaram mais longe no caminho das reformas
econômicas, nomeadamente Hungria e China, não ousaram ainda demolir a
exclusividade da representação política atribuída ao Partido Comunista.
O movimento de reformas econômicas
é no entanto irrefreável, no sentido em que ele representa a condição mesma da
sobrevivência da maior parte dos regimes do socialismo realmente existente. Já
o processo de mudanças políticas será em parte determinado pelo sucesso das
reformas empreendidas na esfera econômica, mas dependerá igualmente da
estrutura social própria a cada país da área. Em outros termos, nos países
caracterizados pela existência de uma sociedade civil historicamente
independente do Estado (Hungria, Polônia e, em parte, Iugoslávia) a marcha para
a democracia política será provavelmente mais rápida. A tendência deverá ser
marcada pelo lento desenvolvimento do pluralismo partidário e sindical e pela
introdução das regras mais elementares da competitividade eleitoral na esfera
das instituições políticas de representação popular. O monopólio do Partido
Comunista será assim erodido gradualmente, num processo de transição tutelada e
administrada.
Nos países dotados de maior
rigidez estrutural nas instituições de representação ou cuja estrutura social é
marcadamente fragmentária e heterogênea, o processo de transição política
deverá assumir contornos conflitivos. É o caso, por exemplo, da maior parte dos
países balcânicos, da China e da própria União Soviética. As crises de legitimidade
política reforçarão em consequência a natureza autoritária do processo de
reforma política, de acordo aliás com o modelo de Revolution von oben .
No campo econômico, onde os
desafios serão maiores, a revolução pelo alto passa pela diminuição da participação
do Estado na esfera produtiva, alocando espaços à iniciativa privada. Abel
Aganbegyan, o conselheiro econômico plus en vue do partido reformista
soviético, prevê que nos anos 90 a economia soviética conhecerá uma redução do
papel do Estado para 30% ou menos. O próprio Gorbachev já se declarou disposto
a reformar o sistema de alocação de matérias-primas para as empresas
soviéticas, sem passar pelo planejamento central, mas ele ainda não enfrentou
seriamente a questão do sistema de formação de preços, pedra angular de todo
sistema econômico "racional".
A opção pelo mercado, que
aparece como inevitável na transição do socialismo ao "capitalismo"
empreendida sub-repticiamente pelas economias socialistas, implica igualmente
aceitar todas as suas distorções e efeitos desestabilizadores sobre as unidades
produtivas e sobre a distribuição de renda ao nível dos consumidores. Quando o
sistema de preços de mercado guiar toda a economia e tiver sido abolido o
"pecado original" ligado à apropriação de lucros privados, o
socialismo realmente existente se terá desfeito de seus últimos mitos
econômicos e poderá enfim penetrar no purgatório do sistema capitalista.
No que se refere ao último
aspecto, a opção já parece ter sido tomada: Nikolay Shmelyov, um dos conselheiros
econômicos do partido da reforma, declarou expressamente que a atitude de
desconfiança em relação ao lucro é uma espécie de "desentendimento
histórico", o custo da ignorância econômica de pessoas que pensaram que o
socialismo poderia eliminar lucros e perdas. A legislação para introduzir um
sistema de taxação individual e para legalizar o papel do lucro consagrarão
esse reencontro com a história. No que se refere ao sistema de preços, sua
implementação exigirá, provavelmente, um penoso sacrifício de adaptação às
exigências da competitividade, eliminando do "mercado socialista"
diversos dinossauros introduzidos pelos planos quinquenais.
Qualquer que seja o sucesso
relativo do processo reformista na União Soviética e nos demais países do
socialismo realmente existente, a nova postura revisionista de seus dirigentes
mais lúcidos constitui o elemento estratégico suscetível de alterar o padrão de
relacionamento global no eixo Leste-Oeste. Os últimos anos do século parecem
assistir a uma rara combinação de détente estratégico-militar e de détente
político-ideológica.
5. O FIM DA GUERRA FRIA
Deve-se observar, antes de
mais nada, que o equilíbrio estratégico entre as duas superpotências não será
necessariamente rompido pelo movimento de re-acomodação interna num dos lados
da balança, já que o "fardo imperial" impõe responsabilidades das
quais não se pode escapar facilmente, mesmo se elas não são de natureza
exclusivamente militar.
O quadro de rivalidades
geopolíticas, no entanto, tende a esmaecer-se num cenário em transformação,
como o que se assiste atualmente na zona do socialismo real. A bipolaridade
permanece real, mas a força agregadora de cada um dos lados da balança será
cada vez menos determinada pelo conflito ideológico global.
Numa época em que alguns
representantes modernos dos ideólogos - que são os sociólogos - identificam
sinais de "fim das ideologias", perde-se por vezes a visão de como o
elemento ideológico influenciou a construção do mundo contemporâneo. A Europa,
nos últimos setenta anos, e o Ocidente em geral, nos últimos quarenta anos,
viveram sob o signo das relações Leste-Oeste. Sua face mais ameaçadora produziu
o que acertadamente ficou identificado como "guerra fria". Depois de
pelo menos quatro décadas de livre circulação, essa hantise ideológica parece
agora encaminhar-se lentamente para o museu das antiguidades.
A guerra fria não foi
certamente apenas um produto de ideologias conflitantes, mas foram as
racionalizações construídas a partir das "intenções malévolas" do
concorrente estratégico que lhe deram uma dimensão jamais vista nas antigas
disputas hegemônicas. Ainda aqui um retorno ao passado pode contribuir para
esclarecer os contornos dessa "projeção utópica do futuro" que é o
final da guerra fria.
Um exame imparcial da história
do período anterior mostraria que não foi a oposição entre ideologias
capitalistas - ou, digamos, liberais - e socialistas - conceda-se-lhes, cum grano salis, o epíteto de marxistas
- que provocou o quadro de instabilidade política e militar e precipitou conflitos
que retiraram definitivamente da Europa as alavancas do poder mundial. Ao
contrário, foram os conflitos de natureza quase "feudal" - como diria
o historiador Arno Mayer - latentes no continente europeu que permitiram o
surgimento do poder socialista e, com ele, do conflito ideológico global.
Não se deve, com efeito,
esquecer que o surgimento da dimensão Leste-Oeste no contexto político europeu
é virtualmente o resultado prático de um pequeno, mas fecundo,
"acidente" histórico, desencadeado involuntariamente por um dos
beligerantes durante a Primeira Guerra Mundial: o retorno à Rússia de um
punhado de bolcheviques exilados, quase desanimados pela ausência de
perspectivas revolucionárias. O voluntarismo oportunista da diplomacia do
Kaiser, que buscava apenas provocar um pequeno "tremor" político na
frente oriental, podendo servir a interesses militares imediatos,
transformou-se porém em "cataclismo" histórico de proporções
inimagináveis, dando nascimento aliás ao próprio conceito de relações
Leste-Oeste.
Uma vez instalado o poder
bolchevique, as diversas invasões do território russo contribuíram mais para
alimentar a oposição ideológica irredutível com os países capitalistas do que
uma suposta "luta de classes" em escala internacional. Para Stalin,
por exemplo, a razão de Estado sempre teve preeminência sobre o
"internacionalismo proletário", este último invariavelmente servindo
de travestimento ideológico aos interesses do Estado soviético.
Se se pode afirmar, portanto,
que foi a vocação imperial, mais do que a militância ideológica, que esteve na
origem da chamada "guerra fria", foi contudo o elemento ideológico
que exacerbou extraordinariamente o fator da segurança estratégica na ordem
mundial contemporânea, fenômeno ainda ressaltado pelo caráter militarmente
inédito da arma nuclear. Esta última seguramente impediu uma guerra
"suicida" entre o capitalismo e o socialismo, mas, no mesmo momento
em que a capacidade de retaliação ficou assegurada também do lado soviético,
ela deixou de ser uma "arma", no sentido militar do termo, para se
tornar um fator de dissuasão.
Evidentemente, os chefes
militares e muitos líderes políticos vão continuar acreditando na guerra
nuclear e na possibilidade do emprego da arma nuclear, daí a modernização
continuada do equipamento nuclear e as dificuldades de estabelecimento de um comprehensive nuclear test ban. Mas, a
concepção de que uma guerra nuclear é "racional" ou factível tem cada
vez menos adeptos. A dissuasão nuclear vai continuar existindo, pois ninguém
vai se desfazer de suas armas sem a garantia de que o adversário potencial está
seguindo o mesmo caminho. As alianças passaram no entanto a trabalhar com
cenários não-nucleares e estratégias não-ofensivas de defesa.
Ainda que o mundo pós-nuclear
possa ser uma utopia, a superação da oposição Leste-Oeste não o é, desde que
não se dê a esse conceito uma elasticidade duvidosa para fazê-lo abrigar
igualmente os fenômenos de competição econômica ou de concorrência política no
âmbito de conflitos regionais. O esmaecimento da Guerra Fria deriva não apenas
do clima de détente militar propiciado pelo processo de desarmamento
estratégico e regional, mas também e principalmente da nova postura
internacional assumida pela União Soviética.
Os motivos dessa mudança
significativa no comportamento externo da superpotência socialista não têm
tanto a ver com o "novo pensamento" ou com os conceitos de
"segurança mútua" e de "interdependência", como com a dura
realidade do desequilíbrio tecnológico. Enquanto que o declínio do
"império americano" é largamente imaginário, o do rival socialista
não pode mais ser disfarçado: as bases econômicas do poder soviético, em sua
forma socialista de organização, passaram do estado de erosão ao de
desagregação irremediável.
A dimensão Leste-Oeste
continuará, é verdade, a desempenhar um papel relevante no jogo
político-diplomático do continente europeu no futuro imediato. Mas, a
delimitação dos interesses em causa obedecerá cada vez menos a critérios de
natureza ideológico-militar, para se concentrar nos imperativos da cooperação
econômica e do intercâmbio comercial. A Europa oriental, liberando-se da
ideologia que prometia enterrar o capitalismo, abre campo a que a Europa
ocidental por sua vez possa libertar-se do fantasma de uma defesa
superdimensionada.
Os contornos da nova realidade
são relativamente previsíveis: um grande espaço Mitteleuropeu no qual em lugar
de manobras de divisões adversárias se observará a circulação de mercadorias e
serviços. O cenário pode parecer róseo, mas o otimismo em direção ao futuro
parece ser uma mania daqueles que costumam lidar com os desastres do passado.
[Genebra, 06.06.88/27.07.88]
Relação de Trabalhos nº 164