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Uma fórmula para conquistar hegemonia

A fórmula descrita abaixo é a do neopopulismo (ou do populismo de esquerda que floresceu, sobretudo na América Latina, no dealbar do presente século). Mas ela vale, mutatis mutandis, para qualquer processo de conquista de hegemonia (inclusive pelos intentados pelo populismo-autoritário, dito de extrema-direita) em regimes democráticos eleitorais (e até, como exceção, liberais).

Vamos aqui descrevê-la por meio de quinze verbos. O papel do líder populista, dos militantes, dos analistas e jornalistas, dos juristas e dos artistas famosos na sociedade: Apadrinhar e Mesmerizar, Defender e Atacar, Interpretar e Disseminar, “Legalizar” e Legitimar, Empatizar e Mitificar. E o papel de militantes e simpatizantes no Estado: Eleger, Nomear, Controlar, Conduzir e Aparelhar. Tudo isso levando a um décimo-sexto verbo, do Estado para a sociedade: Educar.

O diagrama abaixo apresenta os quinze primeiros verbos (ou ações fundamentais para conquistar hegemonia):

Antes, porém, é necessário chegar a um acordo sobre o conceito de hegemonia, tal como será empregado neste artigo.

Hegemonia não é a capacidade de mandar nas pessoas, exigindo e obtendo o cumprimento de ordens. É não precisar mandar. A perfeição é alcançada quando as pessoas pensam sob comando, não apenas quando agem sob comando; ou seja, quando as pessoas obedecem porque acham que é a coisa natural ou normal a ser feita ou assentem sem se incomodar porque se simpatizam com a entidade hegemônica. Por isso o objetivo de todo organismo hegemonista é converter extensos setores da população (no limite, toda a população) em simpatizantes do organismo, ou do seu líder – führerduceou condottiere.

APADRINHAR E MESMERIZAR

Um líder com alta gravitatem é fundamental para dar um curto circuito nos mecanismos de proteção da democracia contra a tirania do Estado e a tirania da maioria. Ele deprime o sistema imunológico da democracia ao estabelecer uma ligação direta com as massas, bypassando as mediações institucionais, inabilitando seus sistemas de freios e contrapesos. A popularidade do líder é função da sua capacidade de apadrinhar as pessoas (identificando-se com elas e vendendo a ideia de que será capaz de resolver os seus problemas por elas) e de mesmerizar as massas, criando poços de potencial que deformam o campo interativo da convivência social. É como um buraco negro que suga todas as energias da sociedade, sulcando creodos e causando anisotropias nesse campo.

DEFENDER E ATACAR

Então a primeria providência para conquistar hegemonia é constituir um organismo vocacionado à hegemonia (ou seja, o organismo deve ser hegemonista) composto por militantes habilitados à praticar a política como continuação da guerra por outros meios, dirigidos estes, por sua vez, por um líder populista identificado com o próprio organismo. Ao fazer guerra, defendendo (seus integrantes e aliados) e atacando (seus oposicionistas dissidentes e inimigos), os militantes tribalizam a política, obrigando todas as demais forças políticas a fazer o mesmo: os sem-tribo ficam completamente inabilitados para interagir no cenário político. E o fato dos outros também se tribalizarem reforça a degeneração da política como guerra do “nós” contra “eles” (ou seja, todos que não são “nós” ou não estejam subordinados à nossa direção).

A manutenção do organismo é sempre o maior imperativo. Organismos desse tipo, uma vez conformados, adquirem certa autonomia em relação às circunstâncias nas quais foram erigidos. Eles criam uma réplica do mundo, como percebeu Hannah Arendt (1951) estudando o totalitarismo (em Origens do Totalitarismo), para dar “a impressão de que todos os elementos da sociedade estão representados em seus escalões”. Porque seu fim último é “organizar” toda a população “como simpatizante”.

A conquista da hegemonia se dá primeiramente na sociedade e só depois no Estado. Uma vez tendo controlado o Estado, o organismo hegemônico avança em direção ao seu propósito de transformar a população em simpatizante da sua causa.

Os militantes então buscam estabelecer sua hegemonia nas mídias, nos partidos (da coalizão hegemonista), nas universidades e escolas, nas corporações (sindicais e assemelhadas), nos movimentos sociais e ONGs (que passarão a atuar como correias de transmissão do organismo hegemônico) e nos órgãos estatais.

INTERPRETAR E DISSEMINAR

Mas isso não é o suficiente. É necessário que um contingente ponderável (idealmente majoritário) de analistas e jornalistas políticos interpretem e disseminem (broadcasting) versões favoráveis às visões e propósitos do organismo. Aproveitando a lição aprendida com os populismos-autoritários, é necessário infestar as mídias sociais (e os programas de mensagens) com milícias digitais capazes de promover swarm attacks baseados em fake news, para destruir os meios de comunicação tradicionais ou profissionais que não se alinham às diretivas do organismo hegemonista, cancelar os considerados inimigos e reescrever a história a partir da repetição de versões pós-verdadeiras.

“LEGALIZAR” E LEGITIMAR

Além disso, é necessário que um contencioso de juristas esteja pronto para “legalizar” e legimitar as ações do organismo e do seu líder. O principal papel dos juristas é reduzir problemas políticos a problemas legais, com isso evitando juízos políticos desfavoráveis ao organismo e ao seu líder, posto que, de pontos de vista estritamente legais (em geral procedimentais-formais), sempre há uma maneira de defender que não há delito. Assim, se um julgamento foi anulado por erros processuais ou por decurso de prazo, isso passa a significar que o réu foi absolvido e, portanto, que é inocente.

EMPATIZAR E MITIFICAR

E ainda no âmbito da sociedade é necessário que diferentes plantéis de famosos, como os artistas de todas as áreas (atores de novelas e filmes, cantores, compositores e músicos etc.) admirados por extensas parcelas da população, contribuam para aumentar a empatia com o organismo e com seu líder, chegando ao ponto de mitificar este último. Tudo isso, que deve parecer espontâneo, é organizado – pelo menos inicialmente – pela força política hegemonista.

ELEGER, NOMEAR, CONDUZIR, APARELHAR

Com o cumprimento desses requisitos fica mais fácil chegar ao Estado, inicialmente pela eleição de parlamentares e executivos em todos os níveis. Ocupar o governo e estabelecer maiorias nos parlamentos (por qualquer meio, legal ou ilegal, legítimo ou ilegítimo – alugando parlamentares por meio de mesadas em dinheiro, da liberação de verbas para emendas legislativas ou da nomeação de seus apaniguados para cargos públicos) de sorte a poder conduzí-lo é fundamental para conseguir aparelhar a administração pública, as empresas estatais e os órgãos de controle, até – se for possível – as forças armadas e policiais e controlar o judiciário, seja por meio de nomeações legais, seja através de um processo de sedução ou de captura envolvendo, em alguns casos, a oferta de benesses indiretas e, em outros, a chantagem pura e simples (ameaçando revelar segredos comprometodores dos não-alinhados).

EDUCAR

Uma vez controlando o governo e os órgãos chaves do Estado, o processo de conquista de hegemonia volta-se novamente para a sociedade. Caberá então ao Estado, controlado pelo organismo, educar a sociedade para estabelecer sua hegemonia de longa duração sobre ela.

Educar é tudo para a autocracia. Platão, o patriarca do pensamento autocrático ocidental, lançou os fundamentos dessa ação na sua distopia (ou retropia) totalitária, incorretamente intitulada ou traduzida como A República. Não havia, em Platão, um projeto propriamente político e sim um projeto pedagógico, um projeto de educação.

Está certo! Quem quer conquistar hegemonia não se dedica propriamente à política. Seu objetivo é extra-político. Hannah Arendt (1951), em obra ja citada aqui, estudando as maiores experiências autoritárias do século 20, concluiu que “um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe”.