Para que não se diga que eu só comecei a criticar os petistas a partir de 2003. Já na primeira campanha presidencial, em 1989, descrevi as propostas de política externa do PT, mas ficou incluída numa ampla análise de todos os programas dos principais candidatos. Aqui figura uma análise dedicada exclusivamente ao PT, feita em Paris, em 1994.
430. “A política externa nas eleições presidenciais: a plataforma de um governo PT”, Paris, 18 maio 1994, 4 pp. Texto sobre as posições do PT em matéria de política externa, mencionando texto de Lula publicado no Boletim ADB. Inédito.
Paulo Roberto de Almeida
A POLÍTICA EXTERNA NAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS: A PLATAFORMA DE UM GOVERNO PT
Paulo Roberto de Almeida
No Brasil, a temática das relações internacionais está geralmente ausente das plataformas ou dos debates pré-eleitorais conduzidos pelos candidatos em eleições, inclusive as presidenciais. Nestas poucos são os que apresentam, aliás, verdadeiros programas de Governo e, os que o fazem, costumam esquecer a política externa. Será que a próxima campanha presidencial vai romper com essa lacuna notável, num momento em que o Brasil se insere cada vez mais no sistema internacional? Qual a experiência passada nessa matéria?
Das mais de duas dezenas de candidatos nas eleições de 1989, apenas cinco (Affonso Camargo, Guilherme Afif, Lula, Covas e Ulysses Guimarães) contavam, efetivamente, com programas de governo, incluindo uma plataforma de política externa. Outros três (Collor, Roberto Freire e Ronaldo Caiado), apesar de contarem com programas, não tinham nenhum posicionamento escrito em matéria de política externa e outros dois (Brizola e Maluf) sequer chegaram a apresentar programas de governo até o primeiro turno das eleições (15 de novembro).
De forma geral, os candidatos não se manifestaram objetivamente sobre as relações internacionais do Brasil e, nas referências ao tema, não transpareceu nenhuma disposição consistente de implementar mudanças radicais nas linhas gerais de política externa oficial. Sem querer cair nos mitos da unanimidade e do apoio consensual tributados à política externa oficial, não parece exagerado dizer que, na prática, os desentendimentos em torno da postura externa do Brasil eram, então como hoje, bem menores do que, por exemplo, em relação à política econômica interna ou aos custos sociais da luta anti-inflacionária.
Na verdade, a campanha de 1989 não foi marcada, em absoluto, por uma disputa entre programas ou metas de governo, mas tão simplesmente por acusações recíprocas e ataques pessoais entre os candidatos. A exceção, como seria de se esperar, foi o candidato do PT, já então Luis Inácio Lula da Silva, que procurou apresentar de forma sistemática sua plataforma de ação para o País. Bem antes do primeiro turno das eleições de 1989, o candidato do PT apresentou um amplo e abrangente programa de governo e, em acordo com as resoluções políticas adotadas pelo Partido em seu IV Encontro Nacional (junho de 1989), poderia propor uma “política externa independente e soberana, sem alinhamentos automáticos, pautada pelos princípios de auto-determinação dos povos, não-ingerência nos assuntos internos de outros países e pelo estabelecimento de relações com governos e nações em busca da cooperação à base de plena igualdade de direitos e benefícios mútuos”.
Mesmo se esses princípios, expressos de forma geral, não se distanciam muito da política externa efetivamente seguida pelo Brasil, ainda assim uma vitória do candidato-trabalhador poderia representar uma reavaliação radical das posturas brasileiras na área. Por força das alianças eleitorais feitos pelo PT, no âmbito da “Frente Brasil Popular”, o candidato se comprometia em adotar uma “política anti-imperialista, prestando solidariedade irrestrita às lutas em defesa da autodeterminação e da soberania nacional, e a todos os movimentos em favor da luta dos trabalhadores pela democracia, pelo progresso social e pelo socialismo”. Um hipotético Governo da Frente, com Lula na Presidência, procuraria defender a “luta dos povos oprimidos da América Latina” e o candidato chegou mesmo a propor a decretação de uma moratória unilateral para “solucionar” a questão da dívida externa.
Na fase posterior às eleições, concretizando promessa feita como candidato derrotado à Presidência da República, o líder do PT anunciou, em coalizão com alguns outros partidos de esquerda, a formação de um “governo paralelo”, seguramente um dos poucos exemplos de shadow cabinet ao sul do Equador. Infelizmente, a experiência não chegou realmente a frutificar, pelo menos no que se refere à atividade de um “ministro paralelo” das relações exteriores. Não se teve notícia de que o chanceler “paralelo” – designado na pessoa do eminente filósofo e professor Carlos Nelson Coutinho – tivesse avançado elementos concretos de uma “política externa alternativa”, dotada de propostas concretas parta o relacionamento externo do Brasil.
Desde então, muito progresso foi feito no desenvolvimento das linhas de ação do PT na área internacional, sobretudo no que se refere aos problemas da integração regional e da dívida externa. O candidato de 1989, que também passou a viajar mais, é hoje um homem afeito aos principais problemas internacionais enfrentados pelo Brasil, com um maior conhecimento a respeito das opções na frente externa. Qual seria, nesse contexto, a política externa de um possível Governo PT a partir de 1995?
Com a provável exceção de alguns poucos militantes da ala radical do PT, o candidato designado não parece acreditar que exista uma política externa com “caráter de classe”, que representaria apenas os interesses das elites dominantes e de seus aliados estrangeiros. Ainda que se possa argumentar que toda ação institucional – e a política externa não é exceção – reflete, de certo modo, a estrutura econômica e social e o sistema político em vigor no País, a grande questão nesse terreno é saber se, efetivamente, a política externa brasileira tem correspondido às necessidades da Nação e aos interesses de seu Povo. Não se trata apenas de retomar as críticas habituais e dizer, por exemplo, que as relações exteriores têm sido traçadas em gabinetes fechados, sem a necessária participação da sociedade, mas de verificar se as posições assumidas pelo Brasil externamente contemplam apenas os interesses de um grupo da sociedade, que manipula a máquina do Estado para servir seus fins particulares, ou se elas servem o grande objetivo do desenvolvimento, que é a verdadeira ideologia do povo brasileiro.
Nesse particular, Lula insere claramente a política externa no quadro mais amplo de uma política nacional dotada de objetivos comprometidos com uma certa visão do Brasil no contexto internacional. Em artigo assinado publicado pelo Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros, ADB (ano II, n° 11, 03/94, pp. 8-9), o candidato começa por uma afirmação que não poderia ser mais cristalina: “O principal problema que enfrenta a política externa brasileira é a ausência de um projeto nacional de desenvolvimento há mais de quinze anos”. Ele reconhece que “durante os governos militares, mais particularmente no período do general Geisel, existia um projeto nacional, politicamente autoritário e socialmente excludente” que, a despeito das críticas que seu partido pode fazer, “abriu brechas para que o Brasil reorientasse sua política externa”.
Hoje, o País é uma “nau sem rumo, corroído pela inflação, por uma crise econômica e social de grande profundidade e de repercussão fortemente negativa no exterior”. Depois de listar algumas das transformações por que passou o mundo no período recente, o candidato Lula indica alguns elementos para a formulação de uma “nova política externa para o Brasil”.
“Em primeiro lugar, o Brasil só poderá ter uma política externa consistente se tiver um claro projeto nacional de desenvolvimento, com o correspondente fortalecimento da democracia, o que significa universalização da cidadania, do respeito aos direitos humanos, reforma e democratização do Estado”. Esse projeto nacional de desenvolvimento compreende um “modelo de crescimento que favoreça a criação de um gigantesco mercado de bens de consumo de massas que permita redefinir globalmente a economia, dando-lhe, inclusive, novas condições de inserção e de cooperatividade [sic] internacionais”. “Em segundo lugar, o Brasil não pode sofrer passivamente a atual (des)ordem mundial. Ele tem de atuar no sentido de buscar uma nova ordem política e econômica internacional justa e democrática”.
O candidato reafirma mais adiante seus pressupostos de atuação: “A política externa não vem depois da definição de um projeto nacional. Ela faz parte deste projeto nacional”. Este parece ser, verdadeiramente, o nó do problema, já que, em diversas ocasiões, a política externa oficial apresentou-se como algo destacado e aparentemente independente dos demais problemas nacionais. Não se trata de um defeito próprio à política externa ou aos diplomatas, mas de efeito derivado da ausência, precisamente, de um projeto nacional claramente formulado.
Nessas condições, o que significaria uma “nova política externa” para o País? É evidente que não há respostas simples a um conjunto de desafios externos que são basicamente comuns aos países em desenvolvimento: dívida externa, acesso a mercados e a novas tecnologias, inserção econômica internacional, mobilização de recursos externos para fins de desenvolvimento nacional, participação plena nas grandes decisões políticas e econômicas que afetam a comunidade internacional e o planeta, etc. As respostas a essas questões não podem ser equacionadas, nos níveis internacional ou regional, com base apenas em slogans ou frases de efeito. Elas requerem um pouco mais de consistência, mas, também e sobretudo, capacidade externa de implementá-las. É essa capacidade, que depende basicamente dos recursos globais de um país (econômicos, políticos, culturais e também, por que não?, militares), que tem historicamente feito falta ao Brasil. A superação dessas “lacunas de poder” depende apenas e tão somente da implementação de um projeto nacional de desenvolvimento.
Com todos os percalços internos criados por governos hesitantes na última década e meia, a política externa até que tem respondido bem aos anseios da Nação, caracterizando-se por uma atuação moderada e realista, mais conforme ao nosso perfil de País complexo e diversificado. Se o compromisso de nossas elites com o desenvolvimento econômico e social parece ser meramente retórico, tal falha não pode ser creditada aos profissionais do Itamaraty, que não podem simplesmente transmutar sua ação diplomática na área externa em medidas internas de correção das desigualdades econômicas, dos desequilíbrios regionais ou das injustiças sociais mais gritantes.
De maneira acertada, Lula acredita que a política externa é, antes de mais nada, uma questão de política interna. Parafraseando hipoteticamente Clausewitz, o candidato do PT poderia também dizer: “A política externa é a continuação da política interna por outros meios”.
Paulo Roberto de Almeida
Paris, 18 de maio de 1994