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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Política externa partidária - Fernando Gabeira (O Globo)

 

Opinião Fernando Gabeira

Foto em preto e branco de homem com óculos de grau

Descrição gerada automaticamente

Fernando Gabeira

Jornalista e escritor

A guerra que mata e os jogos verbais

Apesar do discurso de frente ampla, a esquerda apresenta uma política bem mais próxima de uma visão partidária


O Globo, 26/02/2024 

 https://oglobo.globo.com/opiniao/fernando-gabeira/coluna/2024/02/a-guerra-que-mata-e-os-jogos-verbais.ghtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsdiaria


A frase que Lula disse na Etiópia repercutiu fortemente durante toda a semana. Tão fortemente que não há muito mais o que falar, exceto extrair algumas lições sobre nossa pátria amada, salve, salve.

Ouvi um repórter anunciar que a reunião do G20 trataria de três temas: as guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza e o embate diplomático entre Brasil e Israel. Meu Deus, pensei, como podem colocar no mesmo plano duas guerras reais, com gente morrendo ou sendo mutilada, com uma disputa verbal entre duas chancelarias?

Claro que o G20 não abordou o tema, mas o tom das reportagens deixa bem claro como superestimamos as situações em que o Brasil é protagonista.

Duas repercussões políticas também me impressionaram. De um lado, deputados propondo o impeachment de Lula por causa de sua frase. De outro, a declaração de Celso Amorim de que a fala de Lula sacudiu o mundo e potencialmente ajudaria a acabar com a guerra.

Há quem espere consenso a partir de uma discussão racional na política. Sou dos que acreditam que isso é impossível. A realidade é um conflito insolúvel entre valores, e só a aceitação da diversidade nos prepara, ainda assim modestamente, para a vida em comum.

Sinto que o Brasil polarizado está condenado a duas políticas externas radicais. No período Bolsonaro, havia uma crença de que o Ocidente estava ameaçado pelo marxismo cultural e de que era preciso seguir Donald Trump, o salvador dos valores ocidentais. Aquecimento global, feminismo, o que chamam de ideologia de gênero — tudo isso era arquitetado para destruir a civilização e desintegrar as famílias patriarcais.

Apesar do discurso de frente ampla, a esquerda apresenta, por seu lado, uma política bem mais próxima de uma visão partidária que uma perspectiva nacional. O mundo está dividido entre Sul Global e Norte rico, e o presidente precisa viajar incessantemente para defender os pobres.

O curioso é que o caminho do meio é cheio de saídas que as duas correntes desprezam. O Brasil é signatário de uma Declaração de Dublin em 2022, precisamente protegendo populações civis de bombardeios. A declaração é um avanço civilizatório. O país poderia, com base nisso, criticar tanto Israel quanto a Rússia.

Nesse universo político a que estamos condenados no Brasil, a Rússia está blindada. Putin é intocável para uma esquerda que o vê como adversário dos Estados Unidos e ainda encara a Rússia com a aura de uma revolução que aconteceu no início do século passado e não deixou vestígios, a não ser as atrocidades de Stálin e o corpo de Lênin no mausoléu.

Mas Putin é também admirado pela extrema direita, que o vê como defensor de valores tradicionais, inclusive um implacável perseguidor do povo gay na Rússia. Enfim, estamos condenados ao desequilíbrio, passando pano para autoritários como Putin, Viktor Orbán, Nicolás Maduro e Daniel Ortega.

Não há saída para isso num país polarizado, apesar dos acenos em tempos eleitorais. Ainda assim, precisamos garantir em nossa imagem internacional um respeito pelo sofrimento real que a guerra produz.

A guerra na Faixa de Gaza passa por um momento especial, a possibilidade de um ataque a Rafah. Mais de 1 milhão de civis estão concentrados ali. Não têm para onde fugir, pois o espaço que Israel propõe é muito pequeno para tanta gente.

Mais do que nunca, é preciso uma grande unidade entre as pessoas que querem a paz. Além de todas as críticas já repisadas por sua frase, Lula poderia pensar nisso. Ele provocou uma divisão entre as pessoas que criticam mortes de civis em Gaza, querem não só um cessar-fogo, mas também defendem a solução de dois Estados.

Precisamos de um consenso, ainda que pontual. A luta continua e, apesar dos excessos verbais, da batalha de postagens, das acusações mútuas e de toda essa agitação em redes sociais, a realidade continua áspera, e a guerra continua matando. Hora de olhar para a frente, direto no coração de tragédia.

 

 

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Uma extrema direita à espera de estudo - Fernando Gabeira (O Estado de S. Paulo)

Uma extrema direita à espera de estudo

Fernando Gabeira 

O Estado de S. Paulo, sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023


Será difícil enfrentar uma direita digital com reflexos analógicos. E mais difícil ainda se houver subestimação e um olhar fixado só nos seus aspectos folclóricos

As invasões golpistas do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF) já foram intensamente condenadas. No entanto, passado quase um mês, a sensação que tenho é de que foram pobremente analisadas.

Para dizer a verdade, a tentativa de golpe foi um fracasso, o esquema de segurança foi um fracasso, mas a interpretação não precisa também ser um fracasso.

Poucos se aventuraram a explicar por que os invasores foram a Brasília. A revista Crusoé contou uma história interessante: uma lavradora paranaense, com uma baixa renda mensal, participou da manifestação porque tinha medo de que o comunismo levasse um trator que ganhou de herança, sua única posse.

Por sugestão de Michele Prado, tenho lido, entre outros, uma autora americana que criou um laboratório para pesquisar a extrema direita, Cynthia Miller-Idriss. Como estão mais adiantados nas pesquisas, estou aprendendo muito, sempre preocupado com não aplicar mecanicamente o aprendizado no exame da extrema direita brasileira.

Lá, o medo de perder algo está relacionado com a presença dos trabalhadores estrangeiros. Há o medo de perder o emprego, de perder a cultura e até de perder o país, tornando-se uma minoria dominada.

Aqui, este medo de perder algo para estrangeiros quase não existe. A falta de habilidade do governo Lula ao anunciar investimentos no exterior abriu um flanco para a exploração da extrema direita. Como se trata apenas de um anúncio, sem explicar os ganhos que o Brasil poderia ter, voltam os velhos argumentos: o metrô de Belo Horizonte foi substituído pelo metrô de Caracas.

Pelo que observei em entrevistas e discursos populares na campanha, o medo mais forte no Brasil é o de perder algo para o comunismo: um trator, um carro Celta, um pedaço do próprio apartamento.

A extrema direita não trabalha apenas com emoções negativas, como a de perder algo, ou mesmo abrir mão de seus direitos para um povo estrangeiro. Ela explora o pertencimento a um espaço pátrio, aos símbolos nacionais, e transmite às pessoas a sensação de que devem lutar por algo mais alto: a sobrevivência do Brasil e o futuro de filhos e netos.

Ainda no prefácio de um de seus livros, Hate in the Homeland, Cynthia Miller assinala um fator que nunca foi muito estudado: o papel da pandemia na vulnerabilidade das pessoas às teses extremistas. De fato, foi um período de medo, ansiedade, depressão e, sobretudo, isolamento, de sobrevivência nas bolhas da internet.

Graças a um amigo, acompanhei a trajetória de uma presa, por meio do histórico de suas postagens no Instagram. A cada nova manifestação, ela parece mais certa da vitória final de sua luta. Era admiradora de Bolsonaro e, na campanha, mandava mensagens desesperadas para ele: Bolsonaro, por favor, não perca as eleições.

Depois da derrota, seguiu enrolada na bandeira do Brasil e dizia nas suas peregrinações: sei que estou deixando família para trás, muitas coisas, mas sei também que isto tudo é muito maior, é a salvação do Brasil.

De fato, deixou tudo para trás, marido, filho, os bichos de que cuidava nas ruas de uma pequena cidade mineira, e hoje está presa na Colmeia com uma centena de mulheres.

Alexandre de Moraes foi muito elogiado pela sua resposta enérgica. Assim agem os magistrados, dizem. Mas há questões que, às vezes, são complicadas para magistrados. São questões políticas, como esta de prender no mesmo espaço gente com treinamento militar para o golpe e alguns que vieram apenas porque ganharam uma viagem grátis.

Segundo a experiência histórica, as prisões são um excelente espaço de doutrinação. O mais inteligente, apesar de levemente mais caro, seria enviar a maioria para os seus Estados de origem.

Mas uma decisão desse tipo nasce de estratégias para enfraquecer a extrema direita. A ideia que o governo passa é de que entrou numa zona de conforto, em que qualquer desgaste é permitido por umuma boa frase de efeito.

Moeda comum com a Argentina, sem preparação dos espíritos, afirmação de que o impeachment de Dilma foi um golpe – tudo isso fornece munição desnecessária para uma extrema direita que já dispõe, por vocação, de um imenso arsenal de fake news.

A presunção de que ficaram totalmente desarticulados depois da tentativa de golpe não se sustenta. O debate nas redes sociais continua intenso. A extrema direita conseguiu mobilizar milhares de pessoas para a campanha no Senado, na defesa da candidatura de Rogério Marinho, que, por sua vez, promete enfrentar o Supremo Tribunal Federal.

As eleições de 2026 parecem muito distantes. Mas não estão. No passado, todos se acalmavam e voltavam ao assunto no ano eleitoral. Agora, há disputa, cada passo tem de ser medido num outro padrão: quem se fortalece, quem se enfraquece para a luta decisiva.

Será muito difícil, creio, enfrentar uma direita digital com reflexos analógicos. Mas isso até é secundário. Será mais difícil ainda se houver subestimação e um olhar apenas fixado nos aspectos folclóricos da extrema direita. É um movimento social e conhecê-lo melhor é um imperativo de nossos tempos

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Um novo ensaio sobre a cegueira? - Paulo Roberto de Almeida e Fernando Gabeira

 Um novo ensaio sobre a cegueira? 

Paulo Roberto de Almeida 

Em poucas épocas, fases, conjunturas, momentos, instâncias da política brasileira se teve essa impressão de completo recuo da racionalidade, do equilíbrio emocional, do sentimento moral, da responsabilidade governamental ou de qualquer princípio ético quanto nos tempos atuais. Os desatinos são tão grandes, em setores que deveriam ser responsáveis pela boa governança no país que estamos no direito de perguntar se alguma epidemia generalizada de loucura nacional, algo como o “ensaio sobre a cegueira”, não tenha acometido os donos do poder.

A julgar por este artigo do Fernando Gabeira— gentilmente enviado pelo embaixador Flavio Perri — acredito que sim: os donos do poder foram acometidos por uma grave doença mental, uma espécie de debilidade, não sei se passageira, que os impede de pensar direito. Ou então, foram contaminados por um Grande Mentecapto que se apossou do poder executivo e lá vem perpetrando todas as loucuras imagináveis num cérebro embotado pela debilidade mental e pela perversidade típica de um psicopata.

Paulo Roberto de Almeida


O COMBUSTÍVEL DA INSENSATEZ

Fernando Gabeira 

O Estado de S. Paulo, 24.06.2022


Desespero de Bolsonaro o leva a se perder em iniciativas estúpidas como a de uma CPI da Petrobras. A oposição não pode acompanhá-lo nesse abismo.

O desejo de conquistar eleitores produziu um psicodrama político em busca de soluções para conter o preço da gasolina. Tudo indica que os atores reconhecem seu fracasso, mas se esforçam para mostrar que deram tudo para evitar a derrota.

Talvez, lá atrás, tenha havido uma modesta saída, a formação de um fundo com os dividendos do governo, sócio majoritário da Petrobras, destinado a suavizar o aumento dos preços, determinado pela conjuntura internacional. Agora, é tarde, e as tentativas de última hora parecem cenas de um teatro do absurdo.

Durante duas semanas, o Congresso Nacional se dedicou a aprovar uma redução de ICMS para baixar os preços. Todos sabiam que eles estavam defasados e que, no primeiro movimento de atualização, a Petrobras neutralizaria com um novo aumento qualquer variação de ICMS. Resultado: Congresso funcionando custa dinheiro, Estados com menos recursos para educação, saúde e segurança, e, em termos de preço na bomba, resultado nulo.

No fim de semana, Bolsonaro levantou a hipótese mais fantástica: uma CPI da Petrobras. No seu discurso, intimidava os sócios minoritários com um prejuízo de R$ 30 bilhões, como se alguma CPI mágica pudesse produzir perdas para os minoritários sem atingir o sócio majoritário, que é o Estado.

Bolsonaro anunciava orgulhosamente um movimento para atingir o próprio governo que dirige – algo inédito.

Alguns analistas acharam que a oposição também apoiaria o governo para atingir a Petrobras. Felizmente, isso não aconteceu. Seria algo mais extraordinário ainda: governo e oposição juntos tentando liquidar uma empresa pública.

As tentativas não param por aí. Líderes reunidos tentam aumentar o imposto de exportação para estimular o refino no interior do País. Mas e as refinarias que faltam? Será que brotariam de agora até o momento das eleições? Pergunta inútil porque, na verdade, o resultado não interessa, mas apenas o movimento, a encenação que transmite ao eleitor a falsa ideia de que seu desejo será satisfeito.

Por mais que o governo se lance contra dirigentes que ele próprio indicou para a Petrobras, por mais que se crie a confusão, será muito difícil de escapar do desgaste provocado pela gravidade da crise econômica, da qual o preço do combustível é apenas um importante componente.

Interessante observar como nos debatemos neste labirinto no momento em que a Colômbia troca de governo e o presidente eleito, Gustavo Petro, se dispõe exatamente a reduzir a dependência de combustíveis fósseis e caminhar para uma economia de baixo carbono.

E a Colômbia é logo ali: de Tabatinga (AM) a Leticia basta andar alguns metros. As preocupações, no entanto, distam milhares de quilômetros.

Seria, é claro, inadmissível não tratar do preço dos combustíveis neste momento. Todos os governos o fizeram. Mas o ideal é que isso fosse discutido com base técnica e com uma visão realista. Talvez por esse caminho se atenuasse o impacto no bolso de todos, principalmente os mais vulneráveis. Mas, num ano de eleição, além deste necessário movimento imediato, é preciso olhar para a frente.

Não podemos continuar agindo como se a gasolina fosse um combustível eterno. Nem acreditar que as estradas rodoviárias são as únicas que podem escoar produtos.

Está mais do que na hora de combinar esforços fundamentados para reduzir os preços, mas também as medidas de transição para um futuro de baixo carbono, em sintonia com os esforços para viabilizar a vida humana no planeta.

Limitar-se a neutralizar o preço da gasolina, com recursos limitados, é uma batalha de Sísifo. Hoje, o preço está alto porque há uma guerra; amanhã, se terminar a guerra, o preço pode aumentar porque crescerá o otimismo econômico. Sem contar com o fato de que bilhões de dólares estão sendo investidos numa economia menos poluente e qualquer estímulo ao uso do petróleo servirá, também, para neutralizar o que se gastou até agora.

Verdade é que a guerra embaralhou um pouco as tentativas de progresso. Há um impulso para produzir mais petróleo fora da Rússia; e a redução do gás que os alemães importavam os faz retroceder ao consumo de carvão.

Mas a janela que se abriu com governos voltados para o futuro, como é o caso do Chile e o da Colômbia, pode indicar uma etapa na América Latina.

No caso colombiano, o esforço de realizar a transição para a economia de baixo carbono pode abrir possibilidades de cooperação continental.

Sem contar o fato de que, ao lado da questão energética, um outro tema nos aproxima não só dos colombianos, como de outros vizinhos: a Amazônia, com seus grandes desafios de preservação, sustentabilidade e segurança, diante do poderio do crime organizado.

Tanto a economia de transição para o baixo carbono como o desenvolvimento sustentável da Amazônia são grandes avenidas de oportunidade. Temas bem maiores do que um único e, até o momento, inútil esforço para baixar o preço do petróleo.

O desespero de Bolsonaro o leva a se perder em iniciativas tão estúpidas como a de uma CPI da Petrobras. A oposição não pode acompanhá-lo nesse abismo.

Artigo publicado no jornal Estadão em 24/06/2022

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Editoriais e artigos de opinião sobre o cenário político brasileiro - Editorial Estadão, Fernando Gabeira, Sergio Fausto

 Teste de estresse

O presidente Jair Bolsonaro testa as instituições democráticas de todas as maneiras desde que entrou para a política. Qual país emergirá dessa terrível experiência?

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, 8/07/2021

O presidente Jair Bolsonaro testa as instituições democráticas de todas as maneiras desde que entrou para a política. Hoje, seus crimes de responsabilidade se multiplicam, do mesmo modo como, quando era deputado, abundavam suas agressões ao decoro parlamentar – sem mencionar as suspeitas de “rachadinhas” e outras estripulias. Seus ataques à imprensa e à Justiça mostram sua ojeriza a alguns dos principais pilares da democracia. Sua campanha feroz para cindir a sociedade é antidemocrática por definição.

Como não há perspectiva de que Bolsonaro se emende – ao contrário, é bem provável que o presidente intensifique sua ofensiva liberticida, pois é de sua natureza –, pergunta-se: qual país emergirá dessa terrível experiência?

Será um país em que as instituições democráticas afinal resistiram a seu maior teste de estresse desde o fim do regime militar, fazendo prevalecer o espírito da Constituição sobre o projeto destrutivo liderado pelo bolsonarismo sob os auspícios do Centrão e de corporações parasitárias do Estado?

Ou será um país em que as instituições democráticas se deixaram emascular pelos interesses mesquinhos de quem se acomoda ao poder para ter ganhos imediatos? Em que se faz exegese heterodoxa da Constituição para fazê-la caber em projetos autoritários de poder? Em que grupos com acesso privilegiado ao Estado conseguem manipular o Orçamento sem qualquer transparência nem prestação de contas? Em que se modificam as leis eleitorais e os modelos de representação para perpetuar o atraso? Em que se considera legítimo um governo que atua contra os mais básicos preceitos éticos e técnicos da administração pública, fazendo terra arrasada na educação, na cultura e na área ambiental? Em que se fecham os olhos para a tentativa de transformar as forças militares em guarda pretoriana do presidente da República? Em que não causa comoção a transformação do Brasil em pária mundial?

Se depender dos democratas brasileiros, o País sairá fortalecido dessa provação, mas não será sem um esforço extraordinário, pois são evidentes os sinais de que os inimigos da democracia ganharam muito terreno desde a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência.

Há instrumentos constitucionais para conter a insana marcha bolsonarista. No entanto, o contubérnio de Bolsonaro com o Centrão tem garantido até aqui a sobrevivência política do presidente, mesmo diante da catástrofe que seu governo impõe ao País. Não se sabe o quanto vai durar esse arranjo – afinal, quanto mais Bolsonaro se enrosca em escândalos, mais caro fica esse apoio.

Por ora, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), eleito para o cargo com o apoio de Bolsonaro, diz que não há razões para dar andamento a um processo de impeachment contra o presidente, embora haja uma profusão de crimes de responsabilidade.

Em recente entrevista a O Globo, Lira declarou que não há votos para o impeachment, que Bolsonaro tem “base popular” e que o afastamento do presidente demanda “circunstâncias como uma política fiscal desorganizada, uma política econômica troncha”. Já os mais de 500 mil mortos na pandemia contam menos, no cálculo do presidente da Câmara, do que a aritmética dos votos no plenário.

Não é à toa que o presidente Bolsonaro referiu-se a Arthur Lira recentemente como “prezado amigo e companheiro” e qualificou como “excepcional” o trabalho do presidente da Câmara.

Para completar, Bolsonaro, no mesmo discurso, revelou seu desejo de acabar com a separação de Poderes, inscrita na Constituição, ao dizer que “não são Três Poderes, não, são dois, Arthur: é o Judiciário e nós para o lado de cá”. Ou seja, Bolsonaro transformou sua Presidência em apêndice do Centrão no Congresso, em contraposição ao Judiciário.

No entanto, as seguidas derrotas do presidente nas Cortes superiores e no encaminhamento de projetos de seu interesse no Congresso, além do suadouro que a CPI da Pandemia está lhe dando no Senado, mostram claramente que o arranjo que mantém Bolsonaro no poder ainda não pode tudo – e está ao nosso alcance fazer com que jamais possa.

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Bolsonaro no seu labirinto 

Vendo sua margem de manobra se estreitar, ele parece cada vez mais desesperado

Fernando Gabeira, O Estado de S.Paulo, 8/07/2921

É um certo desperdício usar um pensamento de Isaac Deutscher para analisar a extrema direita. Mas, como ele dizia, cada vez que a margem de manobra política se estreita as pessoas começam a fazer bobagens, independentemente até de seu nível de inteligência.

A extrema direita mundial vive um momento difícil. Eslovênia, Hungria, Polônia e agora o Brasil, todos estão às voltas com uma conjuntura negativa. E de certa forma o fracasso diante da pandemia foi fator decisivo nas eleições americanas, contribuindo para a derrota de Donald Trump.

Na Eslovênia cai a popularidade do governo, na Hungria forma-se uma ampla coalizão contra Viktor Orbán e na Polônia o governo está sendo empurrado para posições mais à esquerda.

Aqui, no Brasil, Bolsonaro está com toda a carga negativa sobre ele. Não conseguiu atender às frustrações sociais que o levaram ao governo, tornou-se órfão de Trump e realizou uma política letal no campo sanitário. O País não só ultrapassou os 500 mil mortos, como deve superar os Estados Unidos nessa contagem fúnebre.

Bolsonaro já não é muito hábil politicamente. Mas vendo sua margem de manobra se estreitar parece cada vez mais desesperado, a ponto de agredir verbalmente jovens repórteres no exercício de sua função.

O avanço da CPI da pandemia tem representado também uma grande derrota para a tese negacionista de Bolsonaro. Aos poucos vai se definindo algo que para alguns já foi obviamente demonstrado: a política do governo contribuiu para muitas mortes no País.

Outro fator de estreitamento são as próprias alianças políticas. O grupo que o apoia no Parlamento sabe explorar o espaço, aberto pelo início das grandes manifestações populares contra ele. Ainda não o suficiente para derrubá-lo, elas já representam importante agregação de valor ao apoio fisiológico: quanto mais gente na rua, mais cara se torna a amizade com o Centrão.

O mundo que o bolsonarismo encontrou ao chegar ao poder não mudou para melhor, ao contrário, as frustrações se aprofundam. Grande parte da juventude brasileira, por falta de horizonte, quer deixar o País. Isso significa que as possibilidades de derrota de Bolsonaro são grandes, mas algumas das causas que o levaram ao poder não foram removidas.

Assim como lá fora surgem alianças às vezes surpreendentes, como a de Israel e agora a da Hungria, aqui, no Brasil, a possibilidade de unificação do campo oposicionista também é, potencialmente, considerável. Em primeiro lugar, as próprias manifestações de rua, no seu crescimento, precisam atrair novas forças de oposição, ganhar uma cara de unidade nacional que transcende o poder da esquerda. Em segundo lugar, está o próprio futuro pós-Bolsonaro. Seria razoável enfrentá-lo sem levar em conta os mecanismos que impulsionaram sua ascensão?

Algumas dessas frustrações já estavam latentes no grande movimento popular de 2013. Ele é certamente interpretado de muitas maneiras. Mas havia nele um certo descontentamento diante dos serviços públicos, muito aquém da expectativa dos pagadores de impostos.

Depois de uma vitória nacional, a extrema direita não vai desaparecer. Provavelmente será reduzida a uma dimensão mais real, uma força minoritária, ainda que ruidosa.

Sempre haverá, daqui para diante, a compreensão de que ela não pode ganhar o governo, o que determina uniões republicanas, como na França, prontas para derrotá-la caso chegue ao segundo turno.

Derrotá-las nas urnas, porém, não vai resolver o problema. É necessário buscar uma estabilidade dificilmente ao alcance de uma força política única.

Collor não tinha partido, assim como Bolsonaro. Os presidentes que tinham partidos atrás de si acabaram tendo de fazer coalizões que trazem uma falsa estabilidade, uma vez que garantem votos, mas arruínam a legitimidade diante da opinião pública.

Programa e instrumento adequado de governo são temas ainda indefinidos na era pós-Bolsonaro. Não creio que seja algo muito extemporâneo. Na medida em que cresce a oposição a Bolsonaro, certamente são questões importantes. O interessante ao concluir um período como esse seria iniciar um grande estudo não só dessas, mas de todas as grandes questões que nos possam dar uma sensação de caminhar para a frente, sem esbarrar de novo nesse fantasma regressivo e autoritário que assombra a nossa História contemporânea.

Apesar do sofrimento humano e da devastação ambiental, a ascensão de Bolsonaro é também um período de aprendizado. Supor que vamos simplesmente voltar ao período anterior a ele, como se nada tivesse acontecido, é muito perigoso, pois pode nos trazer Bolsonaro de novo, ou alguma composição ainda pior que ele, por mais absurda que possa parecer essa hipótese.

Tudo isso tem um sentido maior, porque não estaremos concluindo apenas um período político. Estaremos vivendo um momento pós-pandemia. Não me lembro historicamente de outro tão estimulante como o pós-guerra na Europa. Muitas certezas cairão por terra, novas ideias afloram, seria um certo contrassenso reiniciar com fórmulas que já não respondem ao desafio do presente.

JORNALISTA

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O bicho-papão do comunismo

Hoje é a extrema direita paranoica e obscurantista que representa perigo real

Sergio Fausto, O Estado de S.Paulo, 8/07/2021

Trinta anos atrás, em agosto de 1991, o comunismo recebeu seu atestado de óbito, com a dissolução da União Soviética. Morreu de morte morrida, provocada pela esclerose múltipla de um sistema político e econômico dirigido por uma burocracia hipertrofiada a serviço de si mesma.
Quando a Cortina de Ferro começou a se entreabrir, o bloco soviético não resistiu à comparação com o nível de bem-estar alcançado pelos países da Europa Ocidental, onde havia mais liberdade e melhores condições materiais de vida. Gorbachev bem que tentou reformar o sistema para evitar a dissolução da União Soviética, mas já era tarde demais. Ela ruiu, assim como havia ruído o Muro de Berlim dois anos antes, marcando o fim do domínio soviético sobre o Leste Europeu.
Mesmo antes de morrer, o comunismo já não representava ameaça ao Ocidente. Com a ascensão de Gorbachev à Secretaria-Geral do Partido Comunista da União Soviética, em 1985, as relações entre a pátria do socialismo e as potências capitalistas mudou definitivamente de natureza. “I like Mr. Gorbachev. We can do business together” (eu gosto do sr. Gorbachev. Nós podemos trabalhar juntos), disse ninguém menos que a conservadora primeira-ministra do Reino Unido Margareth Thatcher, depois de se encontrar em Londres com uma delegação de representantes soviéticos chefiada por Gorbachev, então estrela ascendente no Politburo. Era dezembro de 1984. Bom lembrar que a outra pátria do comunismo, a China, já havia normalizado desde a década anterior as suas relações com os Estados Unidos.
Para quem conhece a História é espantoso que o comunismo tenha sido ressuscitado como arma política 30 anos após a sua morte. Como disse o velho Marx, em adendo a Hegel, a História acontece duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como farsa. A ameaça comunista hoje só existe no discurso farsesco de uma extrema direita que faz da fabricação do pânico um componente central da sua estratégia política. No passado, a ideia da ameaça comunista era plausível, embora inflada para justificar golpes de Estado e regimes autoritários, em especial na América Latina. Salvo no Chile, os partidos comunistas nunca alcançaram grande expressão político-eleitoral. Pequenos grupos mais radicais, que optaram pela via armada para combater ditaduras, foram logo massacrados. Cuba foi um caso singular.
Quem representaria hoje o bicho-papão do comunismo? Faz quase 50 anos, a China deixou de exportar revolução para exportar produtos manufaturados, cada vez com maior conteúdo tecnológico. Mais confiante que nunca na sua capacidade de superar os Estados Unidos como potência econômica, busca também expandir seu poder e influência a outras partes do mundo. Sua estratégia, porém, não passa por mudar regimes políticos, muito menos por criar uma alternativa ao capitalismo, no qual aprendeu a nadar de braçada, com estilo próprio. Ela representa um desafio às democracias liberais, não uma ameaça ao capitalismo, como no passado representou a União Soviética.
Teria a Rússia assumido esse papel? Nada disso. Ex-agente da KGB, Putin é hoje um autocrata que apela à tradição cultural e religiosa da Rússia czarista e empresta apoio à ultradireita nacionalista europeia. Venezuela, um Estado falido, Cuba, que mal se aguenta nas próprias pernas? Ora, tenhamos senso do ridículo.
Diante do evidente despautério, o bolsonarismo se apropriou da ideia de que o comunismo teria reencarnado sob novas vestes: o marxismo cultural. Essa categoria está para a compreensão do mundo como a hidroxicloroquina está para a cura da covid. Serve como droga política para arregimentar fanáticos e disseminar teorias conspiratórias. Faz crer que existe uma ideologia que articula e impulsiona toda e qualquer manifestação cultural e política de questionamento a visões ultraconservadoras sobre a religião, a pátria, o Estado e a família. Junta no mesmo saco de inimigos a combater o liberal que defende a liberdade de expressão e a laicidade do Estado, as feministas que lutam pelos direitos das mulheres, o ativista do movimento LGBT, o dirigente da ONG ambiental, o intelectual “progressista”, o artista “devasso”, o libertário “maconheiro”, o jornalista da “mídia lixo” e até mesmo militares ditos “bundas-moles”.
O velho anticomunismo tinha um pé na realidade. É fato que o Komintern (a 3.ª Internacional) existiu de 1919 a 1945 e que o movimento comunista internacional continuou a ter vida nas décadas posteriores, com centro União Soviética e partidos comunistas em diversos países. É fato que Cuba treinou guerrilheiros e financiou a luta armada. Já o bicho-papão do marxismo cultural é pura fabricação mental. O que existe é uma extrema direita paranoica e obscurantista. Os sinais dela estão por toda parte: na negação da ciência, no uso da religião para fins políticos, na indiferença à morte, no desrespeito à liberdade de expressão do pensamento, do afeto e da sexualidade, no estímulo ao ódio, na linguagem chula. Ela representa o perigo real. O comunismo é um inimigo imaginário, a seu serviço.
DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP

domingo, 4 de abril de 2021

Vacinados contra o golpe - Fernando Gabeira

 

Vacinados contra o golpe. Por Fernando Gabeira

VACINADOS CONTRA O GOLPE

VACINADOS CONTRA O GOLPE

FERNANDO GABEIRA

Sociedade está reduzida a protestos virtuais. Mas cedo ou tarde julgaremos Bolsonaro



GUERRA DAS VACINAS


ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O ESTADO DE S. PAULO
 E NO SITE DO AUTOR, www.gabeira.com.br, 
EDIÇÃO DE 2 DE ABRIL DE 2021

Enquanto os líderes mundiais lançavam um comunicado considerando a pandemia o maior problema da humanidade desde a 2ª Guerra, aqui, no Brasil, Bolsonaro quis dar um golpe para evitar o combate eficaz contra o coronavírus. Esta é a leitura que faço dos episódios da semana.

Bolsonaro pressionou o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, não apenas para demitir o comandante do Exército, mas para ter condições de neutralizar pela força as medidas restritivas que os governadores impuseram em seus Estados para salvar vidas.

Com a demissão do ministro, os comandantes das Três Armas renunciaram em protesto contra Bolsonaro. E ficou evidente ali que o Exército não se lançaria na aventura de Bolsonaro, que, em nome da economia, tinha o potencial de matar mais ainda uma população já devastada pelo coronavírus.

A divergência entre a visão do Exército e a de Bolsonaro sobre a pandemia ficou evidente na véspera da demissão do ministro Fernando Azevedo, que ao sair se limitou a dizer que manteve a instituição militar como força do Estado, e não de um governo.

Em entrevista ao Correio Braziliense, o general Paulo Sérgio, diretor do Departamento de Pessoal do Exército, mostrou como a instituição atravessou a pandemia, obedecendo os mais estritos protocolos de segurança. Previdente, como, aliás, o são todos os governos do mundo, o Exército já se preparava para uma terceira onda. O saldo do combate, na proteção de 700 mil pessoas sob sua influência, foi muito positivo. Basta comparar o índice de mortalidade na Força, que foi de 0,13%, com o do Brasil, 2,5%.

Apesar de ter processado milhares de comprimidos de hidroxicloroquina em seus laboratórios, por influência de Bolsonaro, o Exército internamente comportou-se como grande parte da humanidade, tentando seguir protocolos de segurança. Houve também a passagem desastrosa do general Pazuello pelo Ministério da Saúde. Mas no seu pronunciamento o comandante Edson Pujol ressaltou que a ida de militares para o governo era uma escolha pessoal.

A posição de Pujol a respeito da pandemia pareceu inequívoca no seu documentado encontro com Bolsonaro em Porto Alegre. Bolsonaro estendeu a mão, Pujol ofereceu o cotovelo, que é o tipo de saudação recomendado pela OMS.

Lembro-me, naquele momento, de que escrevi sobre as ligações originárias das Forças Armadas com o positivismo, o que deve ter despertado nos militares não só um respeito, mas também uma disposição de associar seu trabalho à ciência.

Felizmente, a tentativa de envolver os militares na aventura macabra de sabotar pela força as medidas contra a pandemia fracassou. Mas Bolsonaro tinha um plano B.

Ele sabe que a instituição é mais sólida do que as PMs e logo em seguida pôs o plano em prática. Por intermédio de um deputado, tentou aprovar com urgência um projeto de mobilização nacional, que lhe daria controle de todas as PMs do Brasil. Tudo indica que ele busca desesperadamente uma força militar para impor suas ideias acerca da pandemia, uma força de intimidação dos adversários ancorados no bom senso.

Fora essa tentativa desastrada de dar um golpe para aplicar sua política de morte, Bolsonaro fez uma minirreforma ministerial, que apenas colocou o Centrão dentro do palácio, com a chave do cofre, e renovou algumas indicações familiares para cargos decisivos, como, por exemplo, o Ministério das Relações Exteriores. Poucos se lembram de que o início da crise era a pressão do Senado para derrubar o pior chanceler da nossa História, Ernesto Araújo.

Araújo apenas teorizava as ideias toscas de Bolsonaro com tintas de Steve Bannon, Olavo de Carvalho e da própria Alt Right americana. O foco do nosso isolamento internacional, diria mesmo de nossa vergonha, é o comportamento do presidente Bolsonaro, que fez do Brasil uma ameaça internacional, pela destruição ambiental e pela tragédia sanitária.

Ao escolher um modesto diplomata, que jamais ocupou uma embaixada, Bolsonaro quer mantê-lo agradecido pelo cargo e aberto à sua influência – mais precisamente, à influência do filho Eduardo, um dos grandes artífices da nossa destruidora política externa.

Bolsonaro enfrenta essa crise profunda num momento em que as próprias condições de governabilidade se diluem. Uma clara demonstração disso foi o Orçamento aprovado no Congresso. Sempre se diz que o Orçamento no Brasil é uma peça de ficção. Mas este, que foi aprovado com uma hipertrofia dos gastos militares, talvez esteja mais para um filme de horror.

Não se trata apenas de governabilidade num momento qualquer, mas durante uma pandemia de que o Brasil é o epicentro mundial, campeão indiscutível em número de mortos.

Um presidente incapaz, entregue no campo político à voracidade dos seus aliados do Centrão, buscando de todas as maneiras sabotar a luta contra a pandemia – tudo isso compõe um cenário desolador, sobretudo porque a sociedade está reduzida, no momento, a protestos virtuais.

Cedo ou tarde, julgaremos Bolsonaro.


Fernando Gabeira*– é escritor, jornalista e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro. Atualmente na GloboNews, como comentarista especial. Foi candidato ao Governo do Rio de Janeiro. Articulista para, entre outros veículos, O Estado de S. Paulo e O Globo, onde escreve às segundas.

sábado, 17 de novembro de 2018

Fernando Gabeira na luta pela sobrevivência de um pais viavel...

Não sei se Gabeira está chegando ao desespero, ao ver que o Brasil simplesmente não avança, mas eu acho que vamos patinar por mais quatro anos...
Paulo Roberto de Almeida

Sobreviver ao ano que vem

"Não sei se exagero, mas sinto-me como se fosse a luta pela sobrevivência de um país viável". As impressões de Fernando Gabeira, em artigo publicado pelo Estadão:

É um momento de escolha de ministros, definição da estrutura do governo. Não importa o que saia daí, o que nos espera no ano que vem é inescapável: o Brasil pode quebrar. A reforma da Previdência não é só um momento de alívio para o governo Bolsonaro, mas também para 14 Estados em profunda crise financeira, entre eles Rio de Janeiro, Minas e Rio Grande do Sul.
Visitei Minas para ver melhor o que aconteceu nas eleições. Inédita na História, a vitória de Romeu Zema, do Partido Novo, contou com 71,8% dos votos. Foi um salto no escuro, preferível para os eleitores aos velhos partidos que dominaram o Estado: PSDB e PT.

A melhor forma de começar uma nova época é realizar a reforma da Previdência. Não resolve tudo, mas indica que o mais difícil foi feito. Paradoxalmente, a reforma é a maneira de seguir vivo até 2022, mas significa, no primeiro instante, uma perda de popularidade. Na Rússia, a reforma previdenciária roubou muitos pontos de aceitação do governo Putin. Sufocada pela Copa do Mundo, a resistência manifesta-se também numa desconfiança, uma sensação de perda. 
Segundo o Moscou Times, essa reforma foi decidida por Putin, mas seu déficit talvez pudesse ser facilmente coberto pelos excedentes do petróleo. Mas e os investimentos, a defesa? O governo precisava se antecipar.

No caso grego, a reforma talvez não tenha desgastado tanto a esquerda no poder. Era claramente inevitável. E havia a pressão da União Europeia. O ressentimento acabou canalizado para Angela Merkel.

No caso brasileiro, a reforma da Previdência tem uma chance singular. Ela é claramente uma forma de neutralizar o processo de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. Ela tem um quê de Robin Hood, mas esse encanto sozinho não basta para emplacá-la. Em primeiro lugar, será preciso convencer os pobres de que, no fundo, estão ganhando com as mudanças; em segundo lugar, e isso é colossal, vencer a resistência das corporações, algumas articuladas com partidos da esquerda.

O ajuste fiscal será a primeira grande prova tanto para Bolsonaro como para Zema.

O ano que vem marca o início de uma fase triunfante do liberalismo. Ele bateu o marxismo no terreno, mas também partilha com ele um certo idealismo. Um vê no Estado o caminho da salvação, o outro vê no mercado. Como observa John Gray na sua crítica à Nova Direita na Inglaterra, ambos ignoram que são construções humanas e, como tal, imperfeitas.

Uma conclusão de Gray é que essas correntes idealistas veem a vida política de uma forma que conduz a derrotas. Elas tendem a investir num projeto de esperanças transcendentais, numa época sem fé. O conselho realista de Gray é baixar a bola, aceitar a humilde tarefa de uma improvisação sem fim, em que um bem é comprometido para salvar outros, uma espécie de equilíbrio entre os males necessários da vida humana e a perspectiva sempre presente do desastre a ser despachada para outro dia.

Não chego a tanto. Ele teorizava sobre os liberais que concluíam sua passagem pelo governo. Aqui, os vencedores precisam pôr suas ideias em ação.

Mas não consigo esquecer a experiência vivida no Congresso. Vi muitos grandes projetos. E vi sua trajetória real. Alguns deles costumo comparar com o grande peixe pescado pelo velho Santiago no romance O Velho e o Mar, de Hemingway. Comido aos pedacinhos, chegou à praia apenas como um grande esqueleto.

Assim como foi com o marxismo, os liberais vitoriosos correm o risco do que se chama húbris ideológico. Húbris é uma palavra grega que traduzimos como excesso de autoconfiança. De modo geral, esse excesso de autoconfiança é inerente à nossa prática de perseguir princípios universais, esquecendo a política como uma humilde discussão racional, uma acomodação mutual, em busca de um modus vivendi.

De qualquer forma, o Estado brasileiro é uma carga pesada nas costas da sociedade.

Lembro-me de que há quase uma década já discutíamos isso, da ineficácia de algumas estatais aos gastos escandalosos da máquina. Numa das comissões temáticas, questionei os gastos anuais do governo com viagens: R$ 800 milhões. Naquela época já havia um leque de possibilidades tecnológicas, do Skype às teleconferências. Essa escolha liquidaria os gastos. Mas reduziria os ganhos do funcionalismo com diárias.

A relação dessa gigantesca máquina político-partidária com a sociedade precisa ser resolvida em favor das pessoas.

O aumento dos juízes do STF vai nos custar R$ 6 bilhões. É um preço alto, caro, em bens e serviços. Mas tem um lado pedagógico: ficou claro para todo mundo como a elite burocrática se apossa de uma parte maior do bolo, numa sociedade mergulhada na crise econômica.

Creio que muitas pessoas votaram contra isso. Se minha presunção é verdadeira, está em curso uma modesta revolução cultural. Muitas pessoas que viam no Estado um provedor, e de certa forma a Constituição o moldou assim, começam a vê-lo como um obstáculo, sanguessuga.

Isso é o caminho para que seja revisto, de acordo com as circunstâncias históricas e culturais do Brasil de hoje. Não será necessariamente mínimo, que é uma construção ideal. Ele será o que resultar desse que, para mim, é o grande embate de 2019.

No passado, quando terminavam as eleições as pessoas se voltavam para seus problemas, o que é saudável. A verdadeira força transformadora, no entanto, virá da sociedade, e não de esquemas ideais. É possível que, num quadro de crise, ela continue alerta, pois agora começa a viver as consequências de sua escolha.

Não será um ano fácil. Aos que podem, é recomendável ao menos uma semana de férias. Isso porque a economia é apenas uma variável. Além dos 12 milhões de desempregados, parte do território urbano é ocupada por grupos armados, as cadeias são um barril de pólvora, a corrupção se estende pelo interior.


Não sei se exagero, mas sinto-me como se fosse a luta pela sobrevivência de um país viável.

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Fernando Gabeira, entre o identitários e o universal na política (OESP)

Artigo desta sexta-feira, 2/11/2018 de Fernando Gabeira no Estadão. Ele sublinha possíveis similaridades entre a vitória de Trump nos EUA e a de Bolsonaro no Brasil, como tendo origem no esquecimento, pelos partidos "progressistas, do homem comum, em benefício das minorias estridentes e reivindicantes.
Eu já tinha sublinhado isso, embora rapidamente, numa das minhas postagens. O cidadão comum ficou esquecido, durante anos, na propaganda e nas políticas dos companheiros, preocupados em defender e promover as minorias: mulheres (que não são minoria, mas são "oprimidas"), negros, gays, e vários outros grupos que se sentem merecedores de "direitos", que podem acabar virando privilégios, como cotas e programas especiais, com o dinheiro de todo mundo.
Em 1932, no meio da Depressão americana, Franklin Roosevelt, impulsionado por um assessor, também começou a falar do "Forgotten Man", os esquecidos da grande tragédia que foi a crise seguida da depressão econômica.
Acho que foi mais ou menos isso que ocorreu com Bolsonaro: ele falou para o homem "esquecido", o desprezado nas propagandas (geralmente mentirosas) e nas políticas (equivocadas) do PT.
Deu no que deu. O homem esquecido deu o troco, e o PT perdeu muito mais do que aparentam os 47 milhões de votos. Grande parte desses votos, que não são do PT, ainda sofreram o efeito de sua propaganda viciosa, viciada, deformada, mistificadora, sobre a "ameaça do fasismo", o "retorno à ditadura", a misoginia, o racismo, e outras bobagens, das quais não escaparam sequer os grandes jornais estrangeiros, convertidos involuntariamente em "mortadelas internacionais" do PT.
Pois bem, acho que pouco a pouca a visão correta das coisas vai se impor.
Gabeira ajuda nessa tarefa.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2/11/2018

Sonhos e realidade

Associação entre o PT e as minorias trouxe para elas a desconfiança do homem comum

A vitória de Bolsonaro não é idêntica à de Trump. Mas antes e depois das duas eleições há pontos de contato. Não servem para explicar tudo, mas ajudam. 
Um dos livros em que encontro as semelhanças é de Mark Lilla, uma crítica aos liberais com um subtítulo interessante: Depois das políticas de identidade. A julgar pelo livro de Lilla (The Once and Future Liberal: After Identity Politics), a vitória de Trump suscitou o mesmo movimento nos EUA e no Brasil: resistência. Lilla põe essa palavra entre aspas, pois significa uma oposição a tudo o que Trump representa, sem ainda uma visão clara de futuro. 
A vitória de uma figura controvertida acabou despertando nos EUA uma grande solidariedade entre os derrotados, campanhas, marchas, abaixo-assinados. Mas ainda são raras aqui, no Brasil, onde Bolsonaro acaba de vencer, as visões críticas do período que abriu o caminho para que ele triunfasse. 
Lilla fala no descaminho dos democratas por se terem fixado nas políticas identitárias: mulheres, homossexuais, indígenas e negros. Não que seja contra essas lutas. 
Sua análise da campanha republicana mostra que na maior parte do tempo ela se fixava em temas nacionais, que interessam a todos. O exame do site democrata, no entanto, revela grande peso às lutas fragmentárias, que interessam a setores bem específicos do eleitorado. 
Lilla considera um erro a fixação nas lutas identitárias porque elas afastam um pouco as pessoas dos temas mais amplos, que envolvem o bem comum. As pessoas mergulhadas nessas lutas têm tendência menor a defender temas nacionais, sair para uma conversa nas ruas sobre o que ele chama o bem comum. 
Coincidência ou não, eu já tinha manifestado em artigos a mesma reserva quanto ao alcance das lutas identitárias na eleição brasileira. Também na minha crítica ressaltava a ausência da ênfase no bem comum, só que nos meus textos não usava essa expressão, mas a adesão a um projeto nacional. 
Num artigo afirmava que as lutas que ainda chamam das minorias tendem a criar a necessária solidariedade de grupo, regras e objetivos próprios. Mas ela se dá em oposição a uma sociedade que ainda não reconhece esses direitos. 
Torna-se muito difícil conversar com o homem comum, encontrar um assunto que mobilize todos, e não apenas alguns setores da sociedade. No caso brasileiro, os três grandes temas nacionais em jogo passaram um pouco ao largo das forças de esquerda. Um deles era a corrupção. A esquerda o subestima de modo geral e o escamoteia especificamente quando o PT é o maior acusado. 
Um segundo grande tema nacional foi a segurança. A visão clássica e tradicional da esquerda é condicioná-la à melhoria das condições econômicas, da educação, da renda. Como a expectativa é de respostas em curto prazo, o discurso cai no vazio e é facilmente ironizado. 
Um terceiro tema, mais intelectualizado, foi a discussão sobre o tamanho e o papel do Estado na economia. Também aí a perspectiva privatizante pareceu mais atraente. E não só pela teoria. As manifestações de 2013, em parte, revelaram a precariedade dos serviços públicos. 
A corrupção também passou a ser uma chave para explicar o fracasso do governo. Tenho a impressão de que é a conversa na rua quando não se tem nada a dizer sobre aqueles temas. 
Uma das características da luta identitária é a autoexpressão: sou gay, negro ou indígena e tenho orgulho de minha condição. Isso é irretocável na posição pessoal. No entanto, Lilla observa em seu livro que numa campanha eleitoral não é a autoexpressão que conta, mas a persuasão. 
O exemplo que usa para definir o comportamento dos liberais nos EUA talvez seja aplicado também à esquerda brasileira. Lilla compara as eleições à pesca. É preciso acordar cedo e pescar até tarde, lá onde o peixe existe, e não onde você gostaria que estivesse. Se o peixe morde a isca e se debate, dê linha e espere que se acalme. 
Mas, para o escritor, os liberais ficaram na praia discorrendo sobre os problemas do mar, sobre a necessidade de a vida aquática abrir mão de seus privilégios. Tudo na esperança de os peixes confessarem coletivamente seus pecados e nadarem mansamente para ser pescados. Se esse é o seu enfoque da pesca, lembra Lilla, o melhor é se tornar vegetariano. 
Nesta altura, não se podem comparar totalmente as táticas. No caso brasileiro, se, de um lado, a luta identitária pode ter dificultado um pouco a conquista da maioria, o caminho eleitoral das minorias acabou comprometendo o seu futuro. Isso simplesmente porque no tema central, a corrupção, o PT, embora não seja o único, é o maior acusado. A associação entre o partido e as minorias acabou trazendo para elas também a desconfiança do homem comum. 
Não sei ainda como as coisas se vão recompor. Se as lideranças minoritárias fizerem uma análise do que se passou, creio que um dos seus passos será libertar-se de governos. Para isso é preciso ter uma nova visão da importância dos recursos materiais na política. O período que se encerra foi marcado por campanhas milionárias. O PT venceu com uma em 2002 e não reaprendeu o caminho da austeridade. 
A vitória de Bolsonaro, a julgar pela de Trump, deve suscitar um grande movimento, que até lembrou aos liberais americanos que eles têm mais energia do que suspeitavam. 
Aqui, no Brasil, enquanto estiverem gravitando em torno de um partido acusado de corrupção, os simpatizantes da esquerda podem até descobrir uma energia insuspeitada. No entanto, a chance de essa energia se dissolver em vão é muito grande, sobretudo se as pessoas não pararem um segundo para pensar, achando que o momento é como a Quarta-Feira de Cinzas em Salvador, onde todos saem às ruas cantando e dançando as mesmas músicas do carnaval que passou. 
Faria bem um tempo de reflexão, estudos e debates. Foi tudo tão rápido e, para alguns, tão surpreendente que, a rigor, nem o governo nem a oposição sabem precisamente o que fazer. 

JORNALISTA

sábado, 8 de outubro de 2016

Gabeira sobre a organização criminosa, as eleições e o sistema político (OESP)

Sempre lúcido, ainda que um pouco caótico na argumentação.
Mas eu quero destacar apenas, em direção e em intenção daqueles gramscianos de academia que insistem em defender criminosos de alto coturno a pretexto de estarem defendendo um governo de "esquerda" ou "progressista", a importância de se ler não apenas os relatórios da Polícia Federal mas também as peças acusatórias do MPF e da chamada "República de Curitiba" como provas cabais daquilo que eu sempre afirmei desde o início do governo celerado (e destaco em caixa alta):
A PARTIR DE 2003, O BRASIL PASSOU A SER DIRIGIDO POR UMA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA, não apenas mafiosa, mas também inepta, pois mergulhou o país na GRANDE DESTRUIÇÃO! 
Todo mundo tem o direito de ser de esquerda, de direita, de centro, de defender quaisquer teorias ou ações que julguem adequadas para seus objetivos políticos, econômicos ou sociais.
Mas acho que NINGUÉM tem o direito de DEFENDER CRIMINOSOS políticos, que são, na verdade, bandidos comuns: assaltantes do dinheiro público (isto é, nosso), quadrilheiros vulgares.
Quem ainda insiste em fazê-lo, ante tantas evidências dos crimes cometidos pelos companheiro, seja por razões ideológicas, seja por quaisquer outras, só revela sua falta de caráter, pois já não pode alegar ignorância ou o argumento canhestro de que "todo mundo sempre fez assim".
Paulo Roberto de Almeida


VOTANDO E APRENDENDO A VOTAR
FERNANDO GABEIRA 
O Estado de S.Paulo, 07/10/2016

Não tenho o hábito de comemorar derrota de adversários, porque me lembro de que também já tive as minhas, aritmeticamente, humilhantes. No entanto, o resultado das eleições é uma espécie de confirmação eleitoral do fim de uma época.
Na verdade, o marco inaugural foi o impeachment, que muitos insistem em dizer que foi produto de uma articulação conservadora e dos meios de comunicação. Os defensores dessa tese têm uma nova dificuldade. Se tudo foi mesmo manobra de uma elite reacionária, se estavam sendo punidos pelo bem que fizeram, por que o povo não saiu em sua defesa nas urnas?
Sei que a resposta imediata é esta: a Operação Lava Jato, o bombardeio da imprensa, tudo isso produz uma falsa consciência. Esse argumento é uma armadilha. Nas cartilhas, exaltamos a sabedoria popular. Vitoriosos nas urnas, é para ela que apontamos, a sabedoria popular. De repente, foram todos hipnotizados pela propaganda?
Considero que estas eleições mostraram também uma grande distância entre campanhas e eleitores. No entanto, o declínio geral do sistema político não pode servir de refúgio para esconder a própria derrota.
Em certos momentos da História é difícil delimitar a fronteira entre um movimento político e uma seita religiosa. Mesmo antes do período eleitoral, tive uma intuição do que isso representa. Estava pedalando pela Lagoa, no Rio de Janeiro, e uma jovem com fone no ouvido gritou: “Golpista!”. Saía da natação, era uma bela manhã de setembro, sorri para ela.
Na verdade, estava a caminho de casa para ler o relatório da Polícia Federal sobre as atividades de Antônio Palocci que envolvem os governos do PT. Imaginava o que iria encontrar. Ao chegar em casa pensei nela, na moça com dois fios saindo do ouvido. Se pudesse ler isso que li e tudo o que tenho lido, talvez compreendesse o que é ser dirigido por uma quadrilha de políticos e empreiteiros.
Num raciocínio de rua, pensei ao cruzar com operários da Odebrecht que trabalham nas obras do metrô na Lagoa: esses são gentis, dizem bom-dia.
Bobagem de manhã de setembro, mas uma intuição: enquanto se encarar a queda de um governo que assaltou e arruinou o Brasil como um golpe de Estado, será muito difícil deixar os limites da seita religiosa e voltar à dimensão da vida política.
Há derrotas e derrotas. A mais desagradável é quando não existe uma única voz sensata, dizendo a frase consoladora: o pior já passou.
Quem lê o que se escreve em Curitiba, não só os contos de Dalton Trevisan, mas os relatórios da Lava Jato, percebe que muita água vai rolar.
As eleições não mostraram apenas uma derrota do PT, mas revelaram a agonia do sistema político. Certamente, as de 2018 serão ainda mais decisivas para precipitar a mudança.
Esse é um dos debates que já correm por fora. Às vezes, tocando em aspectos do problema, como o foro privilegiado, o número de partidos; às vezes, discutindo uma opção mais ampla, como a mudança do próprio regime.
Certamente, um novo eixo mais importante de debate se vai travar entre as forças que apoiaram o impeachment. Não são homogêneas, têm diferentes concepções.
A derrocada do populismo de esquerda não significa que não possa surgir algo desse tipo no outro lado do espectro político. Os eleitos de agora têm uma grande responsabilidade não somente com a aspereza do momento econômico, mas também com sua própria trajetória.
Se o sistema político está em agonia, isso não significa que será renovado a partir do zero. A História não começa nunca do zero. Um novo sistema político carregará ainda muitos feridos das batalhas anteriores. E talvez alguns mortos, por curto espaço de tempo.
Creio que o alto nível de abstenção e votos nulos possa fortalecer esse debate. Embora a abstenção elevada seja um fenômeno internacional.
No mesmo dias das eleições municipais no Brasil, a Colômbia votou o referendo sobre o acordo de paz. Abstenção: 62%. Na Hungria, votou-se o projeto europeu de cotas para receber imigrantes. O número de eleitores foi inferior a 50%, invalidando a votação.
Cada lugar tem também suas causas específicas para que tanta gente não se importe com algo que nos parece.
As eleições confirmaram que a qualidade dos políticos representa muito no aumento do descrédito. Mesmo em países com voto facultativo e, relativamente, altos níveis de abstenção, isso parece confirmar-se. Uma campanha como a de Obama atraiu mais gente para as urnas nos EUA.
Depois das eleições começa a etapa em que a superação da crise econômica entra para valer na agenda. Sempre haverá quem se coloque contra todas as reformas e projete nelas todas as maldades do mundo.
Mas entre os que consideram as mudanças necessárias é preciso haver a preocupação de que os mais vulneráveis não sejam atingidos. O instrumento para atenuar o caminho é um nível de informação mais alto sobre cada movimento.
Tenho a impressão de que o Ministério da Educação compreendeu isso na reforma do ensino médio. Outros fatores contribuem para que a discussão seja adequada ao momento. Várias vozes na sociedade já se manifestam a respeito da reforma.
E, além disso, é um tema bastante debatido. Lembro-me de que em 2008 Simon Schwartzman me alertou para o absurdo do ensino médio brasileiro. Defendi a reforma e não me recordo de ninguém que defendesse o ensino médio tal como existe hoje. Por que conter o avanço?
É o tipo do momento em que é preciso esquecer diferenças partidárias. Os índices negativos estão aí para comprovar.
O Congresso pode discutir amplamente o tema, apesar da forma, por medida provisória. Mesmo as críticas sobre a retirada da obrigatoriedade da educação física devem ser consideradas – embora eu ache a educação física facultativa mais eficaz que a obrigatória. E mais agradável para o corpo.