Teste de estresse
O presidente Jair Bolsonaro testa as instituições democráticas de todas as maneiras desde que entrou para a política. Qual país emergirá dessa terrível experiência?
Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, 8/07/2021
O presidente Jair Bolsonaro testa as instituições democráticas de todas as maneiras desde que entrou para a política. Hoje, seus crimes de responsabilidade se multiplicam, do mesmo modo como, quando era deputado, abundavam suas agressões ao decoro parlamentar – sem mencionar as suspeitas de “rachadinhas” e outras estripulias. Seus ataques à imprensa e à Justiça mostram sua ojeriza a alguns dos principais pilares da democracia. Sua campanha feroz para cindir a sociedade é antidemocrática por definição.
Como não há perspectiva de que Bolsonaro se emende – ao contrário, é bem provável que o presidente intensifique sua ofensiva liberticida, pois é de sua natureza –, pergunta-se: qual país emergirá dessa terrível experiência?
Será um país em que as instituições democráticas afinal resistiram a seu maior teste de estresse desde o fim do regime militar, fazendo prevalecer o espírito da Constituição sobre o projeto destrutivo liderado pelo bolsonarismo sob os auspícios do Centrão e de corporações parasitárias do Estado?
Ou será um país em que as instituições democráticas se deixaram emascular pelos interesses mesquinhos de quem se acomoda ao poder para ter ganhos imediatos? Em que se faz exegese heterodoxa da Constituição para fazê-la caber em projetos autoritários de poder? Em que grupos com acesso privilegiado ao Estado conseguem manipular o Orçamento sem qualquer transparência nem prestação de contas? Em que se modificam as leis eleitorais e os modelos de representação para perpetuar o atraso? Em que se considera legítimo um governo que atua contra os mais básicos preceitos éticos e técnicos da administração pública, fazendo terra arrasada na educação, na cultura e na área ambiental? Em que se fecham os olhos para a tentativa de transformar as forças militares em guarda pretoriana do presidente da República? Em que não causa comoção a transformação do Brasil em pária mundial?
Se depender dos democratas brasileiros, o País sairá fortalecido dessa provação, mas não será sem um esforço extraordinário, pois são evidentes os sinais de que os inimigos da democracia ganharam muito terreno desde a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência.
Há instrumentos constitucionais para conter a insana marcha bolsonarista. No entanto, o contubérnio de Bolsonaro com o Centrão tem garantido até aqui a sobrevivência política do presidente, mesmo diante da catástrofe que seu governo impõe ao País. Não se sabe o quanto vai durar esse arranjo – afinal, quanto mais Bolsonaro se enrosca em escândalos, mais caro fica esse apoio.
Por ora, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), eleito para o cargo com o apoio de Bolsonaro, diz que não há razões para dar andamento a um processo de impeachment contra o presidente, embora haja uma profusão de crimes de responsabilidade.
Em recente entrevista a O Globo, Lira declarou que não há votos para o impeachment, que Bolsonaro tem “base popular” e que o afastamento do presidente demanda “circunstâncias como uma política fiscal desorganizada, uma política econômica troncha”. Já os mais de 500 mil mortos na pandemia contam menos, no cálculo do presidente da Câmara, do que a aritmética dos votos no plenário.
Não é à toa que o presidente Bolsonaro referiu-se a Arthur Lira recentemente como “prezado amigo e companheiro” e qualificou como “excepcional” o trabalho do presidente da Câmara.
Para completar, Bolsonaro, no mesmo discurso, revelou seu desejo de acabar com a separação de Poderes, inscrita na Constituição, ao dizer que “não são Três Poderes, não, são dois, Arthur: é o Judiciário e nós para o lado de cá”. Ou seja, Bolsonaro transformou sua Presidência em apêndice do Centrão no Congresso, em contraposição ao Judiciário.
No entanto, as seguidas derrotas do presidente nas Cortes superiores e no encaminhamento de projetos de seu interesse no Congresso, além do suadouro que a CPI da Pandemia está lhe dando no Senado, mostram claramente que o arranjo que mantém Bolsonaro no poder ainda não pode tudo – e está ao nosso alcance fazer com que jamais possa.
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Bolsonaro no seu labirinto
Vendo sua margem de manobra se estreitar, ele parece cada vez mais desesperado
Fernando Gabeira, O Estado de S.Paulo, 8/07/2921
É um certo desperdício usar um pensamento de Isaac Deutscher para analisar a extrema direita. Mas, como ele dizia, cada vez que a margem de manobra política se estreita as pessoas começam a fazer bobagens, independentemente até de seu nível de inteligência.
A extrema direita mundial vive um momento difícil. Eslovênia, Hungria, Polônia e agora o Brasil, todos estão às voltas com uma conjuntura negativa. E de certa forma o fracasso diante da pandemia foi fator decisivo nas eleições americanas, contribuindo para a derrota de Donald Trump.
Na Eslovênia cai a popularidade do governo, na Hungria forma-se uma ampla coalizão contra Viktor Orbán e na Polônia o governo está sendo empurrado para posições mais à esquerda.
Aqui, no Brasil, Bolsonaro está com toda a carga negativa sobre ele. Não conseguiu atender às frustrações sociais que o levaram ao governo, tornou-se órfão de Trump e realizou uma política letal no campo sanitário. O País não só ultrapassou os 500 mil mortos, como deve superar os Estados Unidos nessa contagem fúnebre.
Bolsonaro já não é muito hábil politicamente. Mas vendo sua margem de manobra se estreitar parece cada vez mais desesperado, a ponto de agredir verbalmente jovens repórteres no exercício de sua função.
O avanço da CPI da pandemia tem representado também uma grande derrota para a tese negacionista de Bolsonaro. Aos poucos vai se definindo algo que para alguns já foi obviamente demonstrado: a política do governo contribuiu para muitas mortes no País.
Outro fator de estreitamento são as próprias alianças políticas. O grupo que o apoia no Parlamento sabe explorar o espaço, aberto pelo início das grandes manifestações populares contra ele. Ainda não o suficiente para derrubá-lo, elas já representam importante agregação de valor ao apoio fisiológico: quanto mais gente na rua, mais cara se torna a amizade com o Centrão.
O mundo que o bolsonarismo encontrou ao chegar ao poder não mudou para melhor, ao contrário, as frustrações se aprofundam. Grande parte da juventude brasileira, por falta de horizonte, quer deixar o País. Isso significa que as possibilidades de derrota de Bolsonaro são grandes, mas algumas das causas que o levaram ao poder não foram removidas.
Assim como lá fora surgem alianças às vezes surpreendentes, como a de Israel e agora a da Hungria, aqui, no Brasil, a possibilidade de unificação do campo oposicionista também é, potencialmente, considerável. Em primeiro lugar, as próprias manifestações de rua, no seu crescimento, precisam atrair novas forças de oposição, ganhar uma cara de unidade nacional que transcende o poder da esquerda. Em segundo lugar, está o próprio futuro pós-Bolsonaro. Seria razoável enfrentá-lo sem levar em conta os mecanismos que impulsionaram sua ascensão?
Algumas dessas frustrações já estavam latentes no grande movimento popular de 2013. Ele é certamente interpretado de muitas maneiras. Mas havia nele um certo descontentamento diante dos serviços públicos, muito aquém da expectativa dos pagadores de impostos.
Depois de uma vitória nacional, a extrema direita não vai desaparecer. Provavelmente será reduzida a uma dimensão mais real, uma força minoritária, ainda que ruidosa.
Sempre haverá, daqui para diante, a compreensão de que ela não pode ganhar o governo, o que determina uniões republicanas, como na França, prontas para derrotá-la caso chegue ao segundo turno.
Derrotá-las nas urnas, porém, não vai resolver o problema. É necessário buscar uma estabilidade dificilmente ao alcance de uma força política única.
Collor não tinha partido, assim como Bolsonaro. Os presidentes que tinham partidos atrás de si acabaram tendo de fazer coalizões que trazem uma falsa estabilidade, uma vez que garantem votos, mas arruínam a legitimidade diante da opinião pública.
Programa e instrumento adequado de governo são temas ainda indefinidos na era pós-Bolsonaro. Não creio que seja algo muito extemporâneo. Na medida em que cresce a oposição a Bolsonaro, certamente são questões importantes. O interessante ao concluir um período como esse seria iniciar um grande estudo não só dessas, mas de todas as grandes questões que nos possam dar uma sensação de caminhar para a frente, sem esbarrar de novo nesse fantasma regressivo e autoritário que assombra a nossa História contemporânea.
Apesar do sofrimento humano e da devastação ambiental, a ascensão de Bolsonaro é também um período de aprendizado. Supor que vamos simplesmente voltar ao período anterior a ele, como se nada tivesse acontecido, é muito perigoso, pois pode nos trazer Bolsonaro de novo, ou alguma composição ainda pior que ele, por mais absurda que possa parecer essa hipótese.
Tudo isso tem um sentido maior, porque não estaremos concluindo apenas um período político. Estaremos vivendo um momento pós-pandemia. Não me lembro historicamente de outro tão estimulante como o pós-guerra na Europa. Muitas certezas cairão por terra, novas ideias afloram, seria um certo contrassenso reiniciar com fórmulas que já não respondem ao desafio do presente.
JORNALISTA
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