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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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terça-feira, 14 de março de 2023

Política externa brasileira em tempos de isolamento diplomático, Article by Ana T. L. Marra et ali.

Isolamento diplomático é um eufemismo: o Brasil anos sumido porque isso contraria de discutir os fundamentos conceituais das diplomacia brasileira. Autononomia é um deles, mas ainda não se chegou lá.

Pautlo Roberto de Almeida


 Resenha
Sousa, Ana Teresa Lopes Marra de; Azzi, Diego Araujo; Rodrigues, Gilberto Marcos Antonio (orgs.) (2022) Política externa brasileirem tempos de isolamento  diplomático. Rio de Janeiro, Telha, 192 pp.

Cuadernos de Política Exterior Argentina (Nueva Época), 136, diciembre 2022, pp. 143-145; ISSN 0326-7806 (edición impresa) - ISSN 1852-7213 (edición en línea)


Os manuais de história, ao abordarem o processo político e social brasileiro ao longo dasdécadas, costumam sintetizar os governos a partir de suas características principais, ficando a política externa, na maior parte das vezes, alijada de referências. Provavelmente este não será ocaso do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), dada a enorme inflexão de sua política externa,e a atenção que fatores domésticos e o próprio presidente da República despertaram nacomunidadinternacional. isolamentdiplomáticbrasileirneste período, as ações prejudiciais ao interesse nacional praticadas em todas as frentes de atuação internacional, são ostemas centrais do livro organizado por Ana Teresa Lopes Marra de Sousa, Gilberto MarcosAntonio Rodrigues e Diego  Araújo    Azzi, docentes da Universidade Federal do  O abraço do  (UFABC).    A obra resulta de reflexões realizadas pelo Observatório de Política Externa Brasileira (OPEB),constituído por docentes e discentes do Bacharelado e do Programa de Pós-Graduação emRelações Internacionais da UFABC. Os capítulos analisam diversas facetada inserçãointernacional brasileira, focadas especialmente no ano de 2021, uma vez que já foram lançadosanteriormente dois volumes que centraram atenções nas primeiras movimentações do governoBolsonaro no sistema internacional, e em sua atuação frente à pandemia de Covid-19. Todos ostextos foram coordenados por docentes e receberam a contribuição dos discentes vinculados aoreferido observatório.O primeiro capítulo, coordenado por Giorgio R. Schutte, demonstra a falta de visão estratégicana inserção econômica do Brasil que, ao contrário de países como China e EUA, se pautou pelaausência de investimento público em áreas econômicas estruturais, e pela manutenção de políticas neoliberais evidenciadas, por exemplo, nos leilões de infraestrutura na política de preços da Petrobrás. Os autores refletem sobre a necessidade de reversão deste cenário, a partir de uma projeção internacional baseada em uma economia soberana e sustentável. O capítuloseguinte, coordenado por Lucas Tasquetto, trata das interações entre a política externa brasileirae os temas de saúde e propriedade intelectual, explicitando a ruptura da tradição brasileira dedefesa dos interesses dos países em desenvolvimento no campo da saúde e do comérciointernacional. A posição do Brasil na Organização Mundial do Comércio, contrária à suspensãotemporária da propriedade intelectual sobre as vacinas contra a Covid-19, é um dos exemplosmais eloquentes dessa inflexão.O abandono de tradições no campo multilateral se mantém como tema relevante nos capítulosque tratam da política ambiental e de direitos humanos do Brasil. Os docentes Diego A. Azzi eOlympio Barbanti Jr. coordenam o texto que aborda a mudança de postura do Brasil nasnegociações mundiais sobre o clima e o meio-ambiente. Nessa seara o país passou de ativo partícipe para ator isolado, que causa preocupações na comunidade internacional. Gilberto M.A. Rodrigues coordena o texto acerca da desconstrução doméstica e internacional dos direitoshumanos, relatando como se deram as alianças com países de extrema-direita e a inflexão dosvotobrasileiros em âmbito multilateral, em queses como direitos damulheres,reconhecimento de direitos dos povos originários e das minorias LGBTQIA+. O texto tambémanalisdescasgovernamentacom pauta de direitos humanono enfrentamentà pandemia, tomando como referência, entre outras ações, as nebulosas negociações políticas paraa compra de vacinas.
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Cuadernos de Política Exterior Argentina (Nueva Época), 136, diciembre 2022, pp. 143-145ISSN 0326-7806 (edición impresa) - ISSN 1852-7213 (edición en línea)
As relações entre Brasil e EUA são centrais em dois capítulos. Flávio R. de Oliveira analisa asinterações entre as Forças Armadas brasileiras e os Estados Unidos, e traça um panoramahistórico dessa aproximação, adensada a partir de 2019. O capítulo descreve episódios recentes,comencontro de liderançacastrenses norte-americanabrasileiras, os exercíciosconjuntos praticados pelas Forças Armadas de ambos os países, com atenção especial àquelesrealizados na costa africana. Já as relações bilaterais entre Brasil e EUA, a partir da posse de JoeBiden, são analisadas no capítulo coordenado por Tatiana Berringer, no qual argumenta-se que,embora tenha havido ajuste de posição ideológica com a derrota de Donald Trump, não houvemudança no perfil de subordinação passiva do Brasil ao imperialismo. São abordados temasconflituosos e divergentes entre os governos Biden e Bolsonaro, como os referentes à políticaambiental e aos projetos econômicos.As relações entre Brasil e China são discutidas no capítulo coordenado por Ana Teresa L. M.Sousa, que avalia os desafios enfrentados, especialmente pelo Brasil, diante da interdependênciaeconômica e das assimetrias cada vez maiores com o gigante asiático. Os impasses nas relaçõescom a África são o alvo do capítulo coordenado por Mohammed Nadir e Flávio Francisco, quedemonstra as contradições entre o descaso governamental com a política africana e os interesseseconômicos do agronegócio no continente. A presença de igrejas brasileiras neopentecostais emAngola e África do Sul, é abordada de forma a denunciar a instrumentalização dos recursosdiplomáticos no favorecimento a esse setor, que se constitui em uma das bases internas desustentação do governo Bolsonaro.O texto sobre a América Latina foi escrito por Gilberto Maringoni, que tece interessantesconsiderações sobre a imprecisão do termo “progressista” para denominar os governos latino-americanos em vigência no início do século XXI. O autor observa que tais governos forammarcados por avanços sociais, mas também pela incapacidade de alterar as estruturas dedependências históricas da região. O capítulo analisa as recentes vitórias da centro-esquerda naAmérica Latina, e isolamento do Brasil frente essa realidade. O diplomata Antonio CottasFreitas, idealizador do Programa “Diplomacia para a Democracia”, assina o posfácio, no qual elenca as ações necessárias para a retomada de uma inserção internacional baseada na soberania e na democracia.Os textos evidenciam, em maior ou menor grau, como as demandas pragmáticas ou ideológicas de grupos domésticos adentraram a formulação da política externa, e chamam à reflexão sobre as fragilidades de uma política pública que, ao responder aos desejos e visões de mundo dos setores dominantes a partir de 2019, comprometeu o interesse nacional.O livro que aqui apresentamos cumpre o desafio de lidar com as limitações inerentes às avaliações de processos em andamento, mas certamente se constituirá em uma fonte documental relevante para futuros pesquisadores, especialmente para aqueles que desejarem entender como os contemporâneos a esse período enxergaram a inflexão do Brasil no cenário internacional, em suas múltiplas dimensões. A obra também se constitui em exemplo notável das potencialidades dos projetos extensionistas na formação de excelêncidos estudantedas Universidades públicas brasileiras. A interação entre docentes e discentes do OPEB no processo de elaboração dos textos mostra a viabilidade de uma produção de conhecimento baseada na pluralidade, e na defesa de uma inserção altiva e soberana do Brasil no mundo.

p. 144

domingo, 23 de maio de 2021

A diplomacia bolsolavista no contexto mundial e comparada aos antecedentes lulopetistas: um depoimento pessoal - Paulo Roberto de Almeida

 A diplomacia bolsolavista no contexto mundial e comparada aos antecedentes lulopetistas: um depoimento pessoal 

Paulo Roberto de Almeida

Entrevista para estudantes da Pós-graduação em Economia da FEA-USP – EPEP

e para membros do LAI - Laboratório de Análise Internacional Bertha Lutz, IRI-USP. Texto de apoio a mentoria, em 28/05/2021; EPEP-FEA-USP.

 

Perguntas do EPEP-FEA-USP e respostas de Paulo Roberto de Almeida (PRA):

1. A gestão do Ernesto Araújo frente ao Itamaraty, como o senhor bem coloca em seus textos, foi desastrosa para a imagem do Brasil no exterior. Com esse novo chanceler, o Carlos França, parece que o governo brasileiro está tentando reduzir alguns atritos construídos da gestão anterior. Quais o senhor diria que são os caminhos para a reconstrução da imagem brasileira pós-Ernesto Araújo? O que o Itamaraty pode fazer agora para amenizar a condição de “pária internacional” do Brasil? (possivelmente: uma saída de Bolsonaro é condição necessária para isso?)

PRA: Como um dos poucos diplomatas da ativa – talvez o único – a ter oferecido resistência aos despautérios perpetrados contra a nossa política externa por essa coisa horrorosa e disfuncional que eu chamei de bolsolavismo diplomático, recebi diversas demandas de jornalistas tão pronto o desequilibrado chanceler acidental foi, finalmente, afastado da direção do Itamaraty, em 29 de março de 2021, depois de dois anos e três meses de sua obra nefasta de demolição da diplomacia profissional. Todos os jornalistas formulavam a mesma pergunta: o que se poderia esperar de “diferente” na nova gestão, comparada à do seu esquizofrênico antecessor.

Eu imediatamente argumentei que “nada” haveria a esperar de “diferente” no Itamaraty, e sim a continuidade do que sempre tinha sido a nossa ferramenta e ação diplomáticas. Diferente havia sido, sim, e com um imenso grau de potencial destrutivo, a inacreditável não-gestão da Casa de Rio Branco pelo vergonhoso capacho do guru presidencial (o Rasputin de Subúrbio) e da família Bolsonaro, numa cadeira na qual ele nunca deveria ter se sentado. À nova gestão bastaria ser exatamente igual ao que sempre foi o Itamaraty, ou seja, nada de diferente do que sempre fizemos, nós os diplomatas profissionais, na condução das relações internacionais do Brasil, na agenda externa do país e na excelência dos serviços diplomáticos que sempre soubemos prestar à nação.

(...)


As perguntas adicionais são estas: 

 

2. O Itamaraty sempre foi considerado uma das instituições de Estado mais respeitáveis e idôneas do Brasil. Que tenha havido um ponto fora da curva dentro do Ministério como o Ernesto Araújo pode causar estranho, mas não é estatisticamente significante. O que causa espanto, porém, é que parece que ele conseguiu cooptar (ou sequestrar, como o senhor usa no título do seu livro) o Itamaraty para o projeto bolsolavista do governo. Como isso foi possível? O senhor acha que houve conivência interna suficiente?

 

3. Embora o senhor tenha se tornado amplamente conhecido por opor-se à política externa de Bolsonaro, sabemos que também foi bastante crítico da diplomacia sob os governos do PT. Qual é a sua visão hoje, com algum distanciamento temporal, sobre a política externa de Lula e Dilma? Sua opinião mudou desde que o PT saiu do poder?

 

4. O senhor é muito vocal nas suas opiniões, muitas vezes críticas às direções tomadas na política externa brasileira. No Itamaraty, qual é a extensão da liberdade de expressão que os ‘soldados de terno’ têm? Diplomatas podem criticar livremente o comando do MRE? Na sua percepção, isso mudou sob Bolsonaro?

 

5. Em 28 de junho de 2019 foi assinado o tratado de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Entretanto, ele ainda precisa ser ratificado no âmbito econômico pelos congressos nacionais dos países sul-americanos e pelo Parlamento Europeu. Este processo tem sido dificultado pela repercussão dos escândalos ambientais recentes dos países do Mercosul, especialmente o Brasil, e pela resistência de representantes dos setores agrícolas de alguns países europeus, como os da França. Qual é a expectativa de que esse acordo seja posto em prática por ora?

 

6. O Itamaraty é muito conhecido por grandes nomes do seu pensamento diplomático. Figuras como Rio Branco, San Tiago Dantas e Oswaldo Aranha deram à política externa brasileira um conjunto de ideias para - como você mesmo escreveu - “sustentar-lhe as ações”. Como o senhor vê o pensamento diplomático brasileiro hoje em dia? Quais contribuições o Itamaraty tem trazido para esse campo nos últimos anos?


7. Nos últimos 20, 30 anos, exceção feita aos últimos três, algumas pautas foram constantes na diplomacia nacional. A reforma do conselho de segurança da ONU, bem como a integração latino-americana e a afirmação da multipolaridade marcaram a condução da política externa brasileira - ainda que com variações importantes entre governos distintos. Em sua visão, qual o futuro dessas pautas para a agenda do MRE?

 

8. Teoricamente, política externa deve ser uma política de Estado. Entretanto - e o senhor tem sido bastante crítico disso em diversas instâncias -, ela muitas vezes acaba sendo cooptada para interesses políticos internos, tornando-se muito mais uma política de governo. Como impedir que, nas mãos de governantes eleitos e que buscam agradar sua base, a política externa seja “sequestrada” como política de governo?

 

9. Muitos dentre nós pensam em tentar seguir carreira diplomática. Que dica o senhor daria para universitários que querem perseguir esse caminho?

 

10. Um conceito bastante em voga nas relações internacionais é o de “armadilha de Tucídides”, do Graham Allison. Segundo ele - puxando o exemplo da Guerra do Peloponeso entre Esparta e Atenas, analisado pelo historiador grego Tucídides -, o crescimento de uma nova potência em ascensão sempre irá criar tensões com uma velha potência estabelecida, a ponto de irem à guerra. Esse conceito é muito usado para analisar as relações conflituosas entre EUA e China, sugerindo que um conflito armado seria inevitável. Na sua opinião, os EUA e a China, na condição de potências concorrentes, estão fadados a uma escalada nas suas relações conflituosas, levando, por exemplo, à guerra?

 

11. Desde o governo Sarney, a integração econômica latino-americana esteve entre as prioridades da diplomacia brasileira. Esse tema perdeu relevância não só no Brasil, como também em outros países historicamente defensores do Mercosul. Qual é a sua opinião, enquanto diplomata, sobre o futuro da integração regional?

 

Ler a íntegra das respostas às perguntas acima, neste link da plataforma Academia.edu: 

https://www.academia.edu/49026031/3918_A_diplomacia_bolsolavista_no_contexto_mundial_e_comparada_aos_antecedentes_lulopetistas_um_depoimento_pessoal_2021_


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Minha mensagem de final de ano a colegas diplomatas e acadêmicos: O Horror Diplomático - Paulo Roberto de Almeida

 O horror, o horror diplomático 

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivoindignação com a letargia nas alturasfinalidadedespertar repulsa legítima]

  

Gostaria, em primeiro lugar, de me desculpar com meus colegas diplomatas por publicar, na véspera de Natal, uma mensagem de tons mais conradianos do que dickensianos. Mas, eu não seria fiel à minha própria trajetória na carreira, ao longo de mais de quatro décadas – durante as quais nunca hesitei em defender minhas próprias convicções e os argumentos que sempre corresponderam a um estudo sério das posturas que fundamentam nossa atividade profissional – se eu não transmitisse aos membros de minha corporação de Estado os sentimentos que me animam neste melancólico final de ano, por razões que todos devem deduzir facilmente, em função do que já escrevi nos últimos 24 meses.

 

Todos nós, diplomatas, com a possível exceção de dois ou três (que eu não hesito em retirar da categoria de “colegas”), estamos cumprindo dois anos de profunda decepção, de justificada frustração e de sincera repulsa por um quadro de verdadeiro horror na instituição que está próxima de seu bicentenário, talvez menos repugnante do que o relato conradiano sobre as violações de direitos humanos no âmbito do colonialismo, mas que não deixa de ser, para nós, uma ruptura fundamental com tudo o que se sabe da história do Itamaraty. 

Esse horror começou a ser revelado ainda antes das eleições, a partir de uma matéria de jornal, no final de setembro de 2018, que desvendou a identidade de um animador de blog bolsonarista atuando de forma militante em favor de seu candidato, e atacando de forma vil os adversários, inclusive a política externa da qual tinha sido protagonista durante cerca de três décadas. O autor de diatribes acerbas contra a política externa em curso, e contra toda e qualquer política pública existente, teve de, apressadamente, desculpar-se junto às chefias da Casa, junto às quais encontrou complacência para seguir adiante com seu blog, que por acaso levava o título de “Metapolítica 17: contra o globalismo”. Fez-se então a junção com o nome do autor do infeliz artigo “Trump e Ocidente”, que havia sido publicado na revista do IPRI, que eu dirigia, Cadernos de Política Exterior (n. 6, 2017). Não demorou muito para que o seu autor – provavelmente motivado por esse exato objetivo – fosse confirmado como o chanceler escolhido para conduzir uma “diplomacia sem ideologia”, o que, diga-se, destoava radicalmente de todo o conteúdo impressionista revelado naquele artigo.

No meu caso, foi um pouco mais de dois anos, pois, em meados de 2018, eu já tinha tido contato com quase toda a equipe econômica envolvida na campanha do candidato – que me recebeu como se eu fosse me juntar àquela tropa, o que nunca foi minha intenção –, de quem ouvi e captei intenções de política econômica externa (que foi o tema exclusivo de meu diálogo naquele encontro) que já considerei como incrivelmente ingênuas ou equivocadas, no confronto com o que sempre se soube do candidato em questão. Afastei-me definitivamente de todos eles quando, em meados de agosto seguinte, foi tornado público o programa de governo desse personagem singular na política brasileira, contendo cinco extraordinários parágrafos relativos à “futura política externa”, infelizmente reveladores da tremenda miséria intelectual e diplomática que se prenunciava. Imediatamente elaborei um memorando – reservado ao início, depois revelado em meu blog, criticando severamente aqueles propósitos aloprados e alinhando algumas diretrizes que eu julgava relevantes para orientar a futura diplomacia (aqueles interessados em ler minhas observações podem acessar esta postagem: “Um programa insuficiente de política externa: comentários pessoais”, Brasília, 15/08/2018, 5 p. Comentários à parte de política externa do programa do candidato Bolsonaro; blog Diplomatizzando, link:  https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/08/um-programa-insuficiente-de-politica.html). Na sequência, nunca mais tive contato com algum membro daquela equipe, a não ser para novamente recusar, peremptoriamente, qualquer associação minha com aquelas políticas, antes ou depois daquele único e solitário encontro. 

Depois disso, eu tinha certeza de que seria exonerado no primeiro dia do governo Bolsonaro, mas antes mesmo da posse e da inauguração do gabinete, já tínhamos tido, nós os diplomatas, os primeiros sinais do horror que logo se abateria, intencionalmente ou na prática, sobre a diplomacia e a política externa, e que eu resumo por alguns poucos exemplos: denúncia do Acordo de Paris e do Pacto Global das Migrações (este realizado); o afastamento das “nefastas” ideologias “climatistas” e “comercialistas” e das políticas ligadas à “ideologia de gênero”; o distanciamento da China e de qualquer outra manifestação de “comunismo”; a mudança da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém, considerada a legítima capital israelense; uma estreita aliança com os Estados Unidos e com o presidente Trump em especial; o combate ao “marxismo cultural”, supostamente entranhado num Itamaraty que se tinha promiscuído nos governos companheiros – como se o chanceler escolhido não tivesse servido fielmente a todas as administrações anteriores – e, cúmulo da ideologia, a retomada do espírito conservador e religioso do “povo brasileiro”, com o qual estaria estreitamente vinculada a “nova política externa”. 

Tudo isso foi ouvido e repetido em diversas ocasiões – novos artigos, entrevistas, e declarações públicas – em novembro e dezembro de 2018, e triunfantemente repetido, para estupefação geral do corpo diplomático, no dia 2 de janeiro de 2019, o que justificadamente legitimou o apelido de “Beato Salu”, com o qual foi agraciado o chanceler acidental. Minha exoneração demorou ainda um pouco, pois não tinham ainda quem me substituísse, mas ela finalmente ocorreu no Carnaval de 2019, com toques de humilhação: fui, na sequência, lotado na Divisão do Arquivo, sob a chefia de um primeiro secretário, que precisa “autorizar” toda e qualquer providência administrativa de que eu que possa necessitar (férias, ausências, etc.). Não me constrangi com a nova situação, minha velha conhecida desde os tempos – que agora julgo mais amenos – dos companheiros, quando passei anos e anos na Biblioteca, lendo muito, refletindo e escrevendo o que eu pensava sobre o Itamaraty e sobre relações exteriores e sobre nossa história diplomática (livros todos relacionados na minha página pessoal).

Desde então, a despeito de alguns contratempos funcionais, já conhecidos dos que me seguem neste espaço, tenho mantido invariavelmente a mesma rotina: acompanhamento atento de todas as fontes de informação fiáveis – algumas pouco confiáveis também –, a leitura sistemática de tudo aquilo que tenha a ver com a política internacional, as relações externas e a diplomacia do Brasil, os cenários político, econômico e cultural do Brasil e do mundo, e a produção de dezenas de artigos e vários livros sobre esses temas, vários deles, senão todos livremente disponíveis a partir de minhas ferramentas de comunicação social.

Independentemente do tom mais irônico ou mais sério dessas diversas produções, o que se pode ressaltar, tanto para mim como para a maioria (pelo menos imagino) dos meus colegas, é o HORROR a que somos confrontados desde aproximadamente dois anos de uma diplomacia e de uma política externa extraordinariamente em desacordo, nas antípodas de tudo aquilo a que assistimos nas últimas décadas, e talvez em toda a nossa história, de um exercício ponderado, não ideológico (muito pouco inclusive sob a ditadura militar) e quase nunca partidário da diplomacia profissional, quase sempre colada à governamental (para nosso alívio e satisfação intelectual). Quaisquer que tenham sido os matizes da diplomacia dos governos anteriores, desde o Império, ela sempre correspondeu grosso modo ao núcleo básico do interesse nacional – o desenvolvimento com autonomia decisória – e quase nunca nos colocou em confronto direto com nossos vizinhos e com o resto do mundo, a não ser em face de desafios à nossa própria dignidade (guerras do Prata e dois conflitos globais). 

O fato é que o atual governo se identifica com os estratos mais reacionários e mais repressivos de setores da ditadura militar e que, em nossa área, a atual diplomacia se vincula a concepções obscurantistas e conspiratórias do mundo, o que jamais tínhamos assistido na história bissecular do Brasil e do Itamaraty. Saudosistas dos momentos mais sombrios da ditadura militar e patéticos elementos anti-iluministas e fundamentalistas foram chamados a se exercerem em vários setores da administração, para imenso desconforto de tecnocratas racionais, de diplomatas normais e de militares identificados com sua missão essencial. O termo de horror conradiano se justifica amplamente, portanto, nesta mensagem de “Natal”, que poderia ter sido mais realisticamente dickensiana se outras fossem as circunstâncias.

 

Desculpando-me, junto a meus colegas, por um texto que não me deu nenhum prazer em redigir e ao divulgá-lo em momento provavelmente impróprio, gostaria, ainda assim, de desejar a todos um excelente 2021, com a retomada oportuna da sensatez política e de uma necessária racionalidade na concepção e na implementação de uma política externa mais conforme nossos padrões conhecidos de qualidade substantiva e excelência operacional. Só desejo um 2021 pior do que este ano que se encerra a quem vocês adivinham quem seja, mas isto nada mais é do que simples manifestação de sinceridade intelectual e de ousadia pessoal (o que sempre foi, como todos sabem, uma de minhas marcas no exercício da carreira e das atividades acadêmicas).

Com as minhas melhores saudações,

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3825, 22 de dezembro de 2020

 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Uma política aparentemente externa, sem qualquer programa de política externa, uma diplomacia pouco diplomática - Paulo Roberto de Almeida

 Seleciono abaixo alguns trechos de um trabalho mais amplo, sobre a ausência de qualquer programa de política externa no governo atual: 

A política externa e a diplomacia em tempos excepcionais: sem qualquer programa

A falta de uma exposição prévia, abrangente, explícita, por ocasião da inauguração do novo governo – de caráter geral, pelo presidente, ou de escopo setorial, no caso do chanceler e da política externa –, talvez seja a caraterística básica da nova era bolsonarista. (...) Essa lacuna já estava evidente desde a apresentação do programa do candidato, em agosto de 2018, uma série de slides muito vagos sobre as grandes linhas do que se pretendia fazer – muitas promessas e poucas realizações até aqui – e quatro miseráveis parágrafos sobre uma “não” política externa, absolutamente estapafúrdios em sua linguagem e sem qualquer conexão com uma política externa e uma diplomacia operacionais. 

Não se registrou, nem no discurso de posse do presidente, em 1º de janeiro de 2019, nem em sua primeira mensagem ao Congresso, na abertura da sessão legislativa, em fevereiro seguinte, menções explicitas à política externa ou às prioridades diplomáticas que seriam seguidas ou implementadas em seu governo. No discurso de posse, no Congresso Nacional, as referências foram as mais parcas possíveis, como a promessa de “respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O presidente se comprometeu ainda com que o Brasil “voltará a ser um País livre das amarras ideológicas”, sem, no entanto, esclarecer quais seriam essas amarras, supostamente as da esquerda (quando esta tinha sido já afastada mais de dois anos antes). A política externa recebeu uma única linha em seu discurso, assim expressa: “A política externa retomará o seu papel na defesa da soberania, na construção da grandeza e no fomento ao desenvolvimento do Brasil.” O mesmo ocorreu no discurso de recebimento da faixa presidencial, no Palácio do Planalto, quando a política externa recebeu uma única e obscura referência: “Vamos retirar o viés ideológico de nossas relações internacionais.” Apenas isso e nada mais.

Na posse do novo chanceler, a audiência foi surpreendida com um discurso altamente ideológico, muito pouco voltado para a política externa e bem mais para questões ideológicas e filosóficas de caráter geral. Seu discurso começou com uma frase em grego, seguida de sua tradução para o vernáculo: “Gnosesthe ten aletheian kai he aletheia eleutherosei humas; Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Todo o resto seguiu nessa linha, inclusive com rezas em tupi-guarani, sem muitas explicitações quanto à política externa concreta, mas com uma abundância de recriminações aos diplomatas e promessas grandiosas, antecipando sobre realizações futuras, em meio a fortes doses de olavismo explícito, como nestas poucas frases selecionadas: 

O presidente Bolsonaro está libertando o Brasil, por meio da verdade. Nós vamos também libertar a política externa brasileira, vamos libertar o Itamaraty, como o presidente Bolsonaro prometeu que faríamos, em seu discurso de vitória.

 

Não se seguiram recomendações precisas sobre como se faria ou como se daria essa “libertação”, em nome da “verdade”, prometida pelo chefe de governo, mas o longuíssimo discurso do chanceler empossado se excedeu em críticas, admoestações e lições aos diplomatas sobre a necessidade de que tais objetivos fossem alcançados, sem uma prescrição sobre como eles o seriam, como refletido nesta seleção de frases grandiosas: 

Para libertar o Itamaraty através da verdade, precisamos recuperar o papel do Itamaraty como guardião da continuidade da memória brasileira. (...)

O presidente Bolsonaro disse que nós estamos vivendo o momento de uma nova Independência. É isso que os brasileiros profundamente sentimos. E deveríamos senti-lo e vivê-lo ainda mais aqui no Itamaraty, onde a história está tão presente. Deveríamos deixar fluir por estes salões e corredores a emoção deste novo nascimento da pátria. (...)

Nós [os diplomatas] temos tradições, é claro, mas precisamos empregá-las como estímulo para buscar a verdade e a liberdade, como serviço à pátria, como serviço a todos os brasileiros, tanto os mais humildes, quanto os mais afortunados do nosso povo, esse povo que uma ideologia perversa não mais divide. (...)

Nós nos apegamos muito à nossa própria autoimagem e fizemos dela uma espécie de um ídolo, e ficamos nos olhando um pouco no espelho e dizendo que nós somos o máximo, e dizendo que os Governos não nos entendem, mas que o Itamaraty está acima dos Governos. Nós nos tornamos diplomatas que fazem coisas que só são importantes para outros diplomatas. Isso precisa acabar. Deixemos de olhar no espelho e passemos a olhar pela janela. Ou melhor ainda, vamos sair à rua para o Brasil verdadeiro. (...)

O Itamaraty não pode achar que é melhor do que o Brasil. O Itamaraty não pode achar que não faz parte do Brasil. Fazemos parte, voltamos a fazer parte de uma aventura magnífica.

A partir de hoje, o Itamaraty regressa ao seio da pátria amada.

O Itamaraty voltou, porque o Brasil voltou.

Por muito tempo o Brasil dizia o que achava que devia dizer. Era um país que falava para agradar os administradores da ordem global. Queríamos ser um bom aluno na escola do globalismo, e achávamos que isso era tudo. Éramos um país inferior, (...)

Nós buscaremos as parcerias e as alianças que nos permitam chegar aonde [sic] queremos, não pediremos permissão à ordem global, o que quer que ela seja. Defenderemos a liberdade e a vida. Defenderemos o direito de cada povo de ser o que é, com liberdade e dignidade, com a dignidade que unicamente a liberdade proporciona.

Quem ama, luta pelo que ama. Então nós admiramos quem luta, admiramos aqueles que lutam pela sua pátria e aqueles que se amam como povo, por isso admiramos por exemplo Israel, que nunca deixou de ser uma nação, mesmo quando não tinha solo – em contraste com algumas nações de hoje, que mesmo tendo seu solo, suas igrejas e seus castelos já não querem ser nação. Por isso admiramos os Estados Unidos da América, aqueles que hasteiam sua bandeira e cultuam seus heróis. Admiramos os países latino-americanos que se libertaram dos regimes do Foro de São Paulo. (...) Admiramos os que lutam contra a tirania na Venezuela e em outros lugares. Por isso admiramos a nova Itália, por isso admiramos a Hungria e a Polônia, admiramos aqueles que se afirmam e não aqueles que se negam. (...)

O globalismo se constitui no ódio, através das suas várias ramificações ideológicas e seus instrumentos contrários à nação, contrários à natureza humana, e contrários ao próprio nascimento humano. (...) 

Hoje escutamos que a marcha do globalismo é irreversível. 

Mas não é irreversível.

Nós vamos lutar para reverter o globalismo e empurrá-lo de volta ao seu ponto de partida.

Nós queremos levar a toda parte o grito sagrado da liberdade, eleuthería. Esse foi o primeiro grito de guerra do Ocidente em seu nascimento, na batalha de Salamina, Eleutheroûte Patrída. Libertai a pátria.

 

As promessas mais explicitamente vinculadas à missão do Itamaraty são referidas a seguir, mas sem mencionar que, desde o dia anterior, por decreto presidencial com data de 1º de janeiro, o novo ministério da Economia assumia responsabilidade pelas negociações econômicas internacionais, ao passo que o Itamaraty passava apenas a “acompanhá-las”:

Um dos instrumentos do globalismo, para abafar aqueles que se insurgem contra ele, é espalhar que, para fazer comércio e negócios, não se pode ter ideias nem defender valores. Nós provaremos que isso é completamente falso. O Itamaraty terá, a partir de agora, o perfil mais elevado e mais engajado que jamais teve na promoção do agronegócio, do comércio, dos investimentos e da tecnologia. De fato, ao se distanciar do Brasil e do povo brasileiro, o Itamaraty havia se distanciado também do setor produtivo nacional. Pois agora estaremos junto com o setor produtivo nacional, como nunca estivemos. Nós não vamos mais apenas “acompanhar os temas”, como se diz no jargão antigo, o jargão daquele Itamaraty fechado ao povo. O Itamaraty não será mais um Ministério que só fica olhando. Vamos trabalhar sem descanso para promover o comércio agrícola, a indústria, o turismo, a inovação, a capacitação tecnológica, os investimentos em infraestrutura e energia, avançando ombro a ombro com os outros Ministérios – graças a essa extraordinária equipe ministerial que o presidente Bolsonaro criou com um espírito de harmonia e um sentido de missão sem precedentes.

 

Não prática, nada disso ocorreu, pois o Itamaraty entrou em um ritmo letárgico.

Em seguida o discurso retoma o tom monocórdio das admoestações e recomendações de natureza abstrata, sem uma visão concreta das tarefas que caberiam ao “novo” Itamaraty, o que certamente intrigou a maior parte dos diplomatas presentes, pois que, depois de aplaudir de forma entusiasta ao discurso de despedida do chanceler Aloysio Nunes, os diplomatas de carreira aplaudiram apenas de forma muito moderada o discurso do “flamante” chanceler: 

Não deixem o globalismo matar a sua alma em nome da competitividade. Não acreditem no que o globalismo diz quando diz que para ter eficiência econômica é preciso sufocar o coração da pátria e não amar a pátria. Não escutem o globalismo quando ele diz que paz significa não lutar.

Os senhores me perguntarão: e como faremos isso?

Pela palavra.

Acreditemos no poder infinito da palavra, que é o logos criador.

O presidente Jair Bolsonaro está aqui, chegou até aqui, e nós com ele, porque diz o que sente. Porque diz a verdade. E isso é o logos. (...)

Tudo o que temos, tudo de que precisamos, é a palavra. Ela está aprisionada, mas com amor e com coragem havemos de libertá-la. (...) [A integra do discurso pode ser conferida neste link: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas-categoria/ministro-das-relacoes-exteriores-discursos/19907-discurso-do-ministro-ernesto-araujo-durante-cerimonia-de-posse-no-ministerio-das-relacoes-exteriores-brasilia-2-de-janeiro-de-2019]

 

Trechos do seguinte trabalho: 

3673. “A política externa e a diplomacia brasileira em tempos de pandemia global”, Brasília, 18-20 maio 2020, 28 p. Ensaio opinativo sobre a temática do título, para servir como texto de apoio a palestra online para alunos dos cursos de Direito e de Relações Internacionais. Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/43208735/A_politica_externa_e_a_diplomacia_brasileira_em_tempos_de_pandemia_global_2020_).

domingo, 1 de novembro de 2020

Vitória de Biden colocaria viés ideológico do atual Itamaraty em xeque - Ricardo Della Coletta, Daniel Carvalho (FSP)

 

Vitória de Biden colocaria viés ideológico do atual Itamaraty em xeque

RICARDO DELLA COLETTA E DANIEL CARVALHO


BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Ainda que uma vitória de Joe Biden nas eleições americanas coloque em xeque o forte componente ideológico da política externa do governo Jair Bolsonaro (sem partido), auxiliares do presidente afirmam acreditar que o democrata buscará uma relação pragmática com Brasília devido a interesses comerciais e geopolíticos.

Por outro lado, é provável que o relacionamento entre ambos seja marcado por animosidades e má vontade, o que traria dificuldades para a agenda do líder brasileiro. O cenário foi traçado por conselheiros e aliados do presidente, além de diplomatas, que falaram com a reportagem sob condição de anonimato.

Auxiliares preveem que, para não se indispor com Biden, Bolsonaro seria pressionado a mudar a orientação da política externa, reduzindo a carga ideológica e procurando manter uma agenda com Washington pautada em interesses comerciais.

Sem os EUA, seria mais difícil para o Brasil, por exemplo, embarcar em iniciativas que defendem, em fóruns internacionais, valores conservadores, como o recente apoio à Declaração de Consenso de Genebra, documento político contra o aborto e em defesa da família baseada em casais heterossexuais.

Nas palavras de um diplomata, Bolsonaro pode ter de adotar uma tática de "centrão" na política externa --numa referência à aproximação do presidente com partidos que flutuam ao sabor do momento no Congresso, deixando de lado o discurso contra a chamada velha política em nome da governabilidade.

Um conselheiro próximo a Bolsonaro lembrou da convivência dos ex-presidentes George W. Bush e Luiz Inácio Lula da Silva. À época, o petista liderou iniciativas que contrariavam os interesses dos EUA, mas manteve bom relacionamento pessoal com o republicano, que visitou o Brasil em duas ocasiões.

Assessores, porém, ressalvam que qualquer processo de moderação das diretrizes da diplomacia brasileira depende, antes de tudo, de uma decisão do próprio Bolsonaro --e até o momento ele não deu mostras de que pretende se distanciar do trumpismo.

Em discurso no fim de outubro, o chanceler Ernesto Araújo, por sua vez, intensificou a aposta numa agenda radicalizada nos costumes e pela defesa do conservadorismo. "O Brasil hoje fala em liberdade através do mundo. Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária", declarou.

Assessores também se preocupam com um flanco que Biden poderia explorar para colocar pressão e até mesmo "dar o troco" pela simbiose do brasileiro com Donald Trump: o meio ambiente.

O temor é que o ex-vice dos EUA seja cobrado pela ala mais progressista do Partido Democrata a mostrar compromisso com a agenda. E Bolsonaro --frequentemente retratado no exterior como um líder de tendências autoritárias que minimiza os incêndios na Amazônia-- pode ser o alvo mais óbvio para tal.

No primeiro debate presidencial nos EUA, Biden, ao se referir à Amazônia, disse que "a floresta tropical no Brasil está sendo destruída". Indicou que atuaria para oferecer recursos ao país para a preservação ambiental e, ao mesmo tempo, sugeriu retaliações econômicas ao Brasil se o desmatamento não diminuir. Bolsonaro classificou a fala como "lamentável".

As diferenças entre eles fazem com que analistas comparem o eventual panorama à eleição do democrata Jimmy Carter em 1976 e a pressão exercida à época sobre o regime militar no Brasil.

Eles destacam ainda que, nesse cenário, o brasileiro se encontraria na incômoda situação de manter relações estremecidas com os principais atores globais. Afinal, Bolsonaro já protagonizou choques com a China, maior parceiro comercial do país, e com líderes como o presidente francês, Emmanuel Macron, e a chanceler da Alemanha, Angela Merkel.

A perspectiva de um futuro relacionamento difícil é reforçada pela própria postura de Bolsonaro nas últimas semanas. Em vez de se distanciar da disputa, recebeu em 20 de outubro uma delegação chefiada pelo Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Robert O'Brien.

Na ocasião, disse torcer pela vitória de Trump e que, "se for a vontade de Deus", comparecerá "à posse do presidente brevemente reeleito nos EUA". "Não preciso esconder isso, é do coração", afirmou Bolsonaro.

Assessores, no entanto, apostam que o país ficaria fora do foco democrata num primeiro momento. Embora estratégico na América Latina, o Brasil sempre esteve longe das prioridades americanas --Biden deve dar atenção especial à China, à Rússia, à reaproximação com a Europa Ocidental e ao Oriente Médio.


domingo, 18 de outubro de 2020

Celso Lafer: Negacionismo na política externa (OESP)

Opinião

Diplomacia e conhecimento

O negacionismo nos isola no mundo e compromete a nossa inserção internacional.

Celso Lafer

O Estado de S.Paulo, 18 de outubro de 2020 | 03h00

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,diplomacia-e-conhecimento,70003478204

 

Robert Zoellick, ex-presidente do Banco Mundial, acaba de publicar o livro America in the World. Nele, com conhecimento e experiência diplomática, examina o papel da política externa na construção do poderio dos Estados Unidos no mundo. Um capítulo é dedicado a Vannevar Bush, por ele qualificado como o “inventor do futuro”.

Bush dirigiu o Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento nos governos Roosevelt e Truman. Escreveu Science: The Endless Frontier, excepcional documento de 1945, que inspirou a criação da Fapesp. A Vannevar Bush se deve a concepção do sistema americano de ciência e tecnologia após a 2.ª Guerra Mundial, levando em conta a interdependência da ciência básica e aplicada e da complementariedade entre os distintos papéis do governo, de uma comunidade científica e universitária livre e independente, da indústria e dos empresários privados. 

A implementação das concepções de Bush criou um modelo de inovação que eclipsou o sistema soviético, estatal. Esse é um dos dados do sucesso americano na dinâmica da bipolaridade Leste/Oeste. O desafio do presente é a competição entre o modelo de pesquisa e inovação dos EUA e o que vem sendo construído com apreciável sucesso pela China.

Bush antecipou a velocidade com que a cultura científica da pesquisa expande vertiginosamente as fronteiras do conhecimento e vem trazendo mudanças significativas em todas as esferas e dimensões, alterando as condições da vida em escala planetária e impactando a dinâmica da ordem mundial. Henry Kissinger observou que a era digital colonizou o espaço físico e permitiu a ubiquidade do funcionamento das redes que operam na instantaneidade dos tempos. Isso vem induzindo grandes transformações, até na maneira de conduzir a política externa e de atuar no campo diplomático.

Ciência e conhecimento são dados de base do cenário mundial do século 21, o que confere realce especial à afirmação de Bacon “conhecimento é poder”, nela se incluindo o poder da sociedade de dar rumos aos seus caminhos. 

Desde o Renascimento a ciência é uma atividade internacional que se alimenta do intercâmbio de ideias e descobertas. Daí as atividades internacionais das academias científicas, incluída a brasileira, no exercício de uma diplomacia da ciência. 

As formas como a ciência se insere na pauta internacional e interna levaram a Royal Society inglesa a elaborar novas formulações que vão além da tradicional diplomacia da ciência. Daí o destaque dado à ciência na diplomacia e nas políticas públicas em geral e da ciência em prol da diplomacia. Essas vertentes são ingredientes de grande relevo para um juízo diplomático apropriado para identificar as necessidades internas do País e avaliar possibilidades de melhor inserção internacional.

Dois itens da pauta interna e internacional são reveladores de um negacionismo do papel da ciência e do conhecimento nas políticas públicas e na diplomacia do governo Bolsonaro. O primeiro diz respeito à sua postura no enfrentamento da crise da covid-19, que fez aflorarem novos riscos para a saúde do mundo. A gestão desses riscos requer conhecimento e cooperação internacionais. Demanda as pontes de um multilateralismo permeado pela ciência na diplomacia. Não está no horizonte de uma diplomacia de confronto, que rejeita o acervo de realizações da tradição da política externa brasileira e se alinha aos muros dos unilateralismos excludentes.

O segundo diz respeito ao meio ambiente, tema global, transversal, que permeia a vida internacional. Foi o conhecimento que identificou os riscos que põem em questão a integridade dos ecossistemas, que, no seu conjunto, sustentam a vida na Terra. Foi o aprofundamento do conhecimento que ampliou o escopo operativo da gestão de riscos nessa matéria.

O paradigma do desenvolvimento sustentável consagrado na Rio-92 assinala a presença internacional ativa do Brasil nesse campo e é um exemplo da ciência na diplomacia. O desenvolvimento sustentável é o caminho para lidar, com o apoio do conhecimento, com a interligação economia e meio ambiente.

O desabrido negacionismo do governo Bolsonaro, por atos e palavras, em relação ao tema do meio ambiente é uma denegação do prévio acervo de realizações das políticas públicas brasileiras e de suas instituições de conhecimento. Corrói a credibilidade internacional do Brasil. Põe em questão a nossa capacidade, como país, de lidar criativa e construtivamente, pelo conhecimento, com a riqueza da nossa natureza e com o nosso potencial de crescimento econômico.

Em síntese, como diz o provérbio, “pior cego é o que não quer ver e pior surdo, o que não quer ouvir”, manifestado neste governo por um duplo e interconectado negacionismo: a denegação da importância dos fatos que a ciência e o conhecimento revelam e a recusa do papel da ciência e do conhecimento como o caminho para o seu deslinde. É o que nos isola no mundo e compromete a nossa inserção internacional.


PROFESSOR EMÉRITO DA USP, EX-PRESIDENTE DA FAPESP (2007-2015), EX-MINISTRO DE RELAÇÕES EXTERIORES (1992 E 2001-2002), É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS.

 


quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Os descaminhos da política externa brasileira - Luís Antonio Paulino (Bonifácio)

Excelente artigo do Professor Luis Antonio Paulino, sobre os terríveis equívocos de nossa política externa e a submissão vergonhosa, escrota, asquerosa, rastejante (completem os xingamentos, por favor) ao Grande Mentecapto do presidente americano, que aliás, faz uma dupla patética com o nosso Grande Mentecapto.

Paulo Roberto de Almeida

Os descaminhos da política externa brasileira

Se considerarmos o fato de que o destino e a geografia nos obrigaram a habitar no mesmo hemisfério da maior e mais agressiva potência econômica e militar do planeta, é compreensível que a nossa política externa tenha de levar em conta a presença desse vizinho incômodo. Recomenda o bom senso que qualquer um que se veja em situação semelhante deve tomar duas providências elementares: manter um relacionamento o mais amistoso possível e evitar intimidades.

Quando se observa a história política do País, pelo menos até o governo Bolsonaro, é possível afirmar que essas atitudes sempre orientaram a formulação de nossa política externa. Embora em alguns momentos a proximidade tenha sido maior que o recomendável, nossa política externa se caracterizou, na maior parte do tempo, inclusive durante o regime militar, por uma posição independente e de não alinhamento automático. E sempre foi essa atitude prudente do Brasil que granjeou respeito internacional e uma grande capacidade de mediação de conflitos. O Brasil sempre foi visto como parte da solução e nunca como parte do problema. O Brasil sempre soube compensar sua falta de poder duro – militar e econômico – com o poder brando, derivado exatamente de sua grande capacidade de mediação e diálogo. Isso contribuiu para o aumento do prestígio internacional do Brasil e trouxe benefícios concretos para o país.

A ascensão de Bolsonaro ao poder marcou uma guinada radical nessa tradição de independência e mediação da nossa política externa. De uma política externa autônoma e altiva passamos para uma política externa dependente e subserviente. Ao alinhar-se de forma incondicional aos Estados Unidos, ou mais especificamente a uma parte deles, pois os Democratas, que poderão assumir o poder em novembro próximo, o abominam, o Brasil passou a ser visto no mundo e, sobretudo, na América Latina como parte dos problemas, uma vez que, como afirmou o ministro das Relações Exteriores, “o Brasil tem um lado”, o lado dos Estados Unidos.

Não seria exagero afirmar que hoje, além dessa metade Republicana dos Estados Unidos, os únicos aliados do Brasil são países dirigidos por políticos de extrema direita cujo traço comum é o desprezo à democracia e o flerte com ideologias extremistas. A atitude negacionista de Bolsonaro em relação à pandemia da Covid-19, fazendo eco às posições de Donald Trump e não por acaso colhendo os mesmos frutos amargos que o presidente americano em termos de infecções e mortes, a atitude negligente e abertamente hostil em relação aos problemas ambientais, sobretudo na Amazônia, o desprezo aos direitos das minorias, nomeadamente das populações indígenas, a apologia à violência policial e ao comércio de armas, a maneira bruta e grosseira de referir-se a outros chefes de Estado que por ventura o critiquem, tornou Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, párias internacionais, que nem mesmo seu maior aliado, o presidente Trump ousa defender abertamente. Ao contrário, em mais de uma ocasião referiu-se pejorativamente ao Brasil. Difícil imaginar, depois da pandemia, algum líder mundial importante que vá querer ser fotografado dando um abraço em nosso presidente.

“A ascensão de Bolsonaro ao poder marcou uma guinada radical nessa tradição de independência e mediação da nossa política externa. De uma política externa autônoma e altiva passamos para uma política externa dependente e subserviente.”

Fosse esse alinhamento incondicional do Brasil aos Estados Unidos, promovido por Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores, resultado de uma avaliação de que seria o melhor para o Brasil, a crítica poderia circunscrever-se ao acerto ou não dessa avaliação e aos riscos potenciais a que o Brasil estaria exposto por tal atitude. A questão, entretanto, é que, como os fatos vêm demostrando, não se trata apenas de uma avaliação equivocada, mas de atitudes deliberadas de sabotagem dos interesses nacionais em nome de um alinhamento incondicional com uma determinada corrente política e ideológica, em nome da qual não hesitam em sacrificar os interesses do país. Ao invés do “Brasil acima de tudo” como retoricamente apregoam fica evidente que a sua política externa visa colocar interesses políticos e ideológicos particulares desse grupo acima de tudo, inclusive do Brasil. E isso não é tolerável, pois o Brasil não pode ser tratado como o botim de um aventureiro, que se sente à vontade de dele fazer o que melhor lhe aprouver de acordo com seus interesses pessoais, ou como propriedade de um determinado grupo político que conseguiu, seja da forma que for, chegar ao poder. Mas vamos aos fatos.

A questão das cotas de importação do etanol

Em agosto de 2019, já sob protestos dos produtores brasileiros, o Brasil havia renovado e aumentado a cota de importação de etanol sem tarifa de 600 milhões de litros/ano para 750 milhões de litros/ano, beneficiando principalmente os produtores de milho e etanol dos Estados Unidos, que respondem por 90% das importações brasileiras do produto.

A justificativa para o aumento da cota naquela época era a mesma de hoje. Que esse gesto supostamente facilitaria as negociações para o aumento da exportação de açúcar do Brasil para os Estados Unidos, atualmente limitadas por uma cota muito reduzida. A produção brasileira de açúcar, em 2020, será de 25 milhões de toneladas, mas a cota de exportação de açúcar para os Estados Unidos é de apenas 152,7 mil toneladas. A República Dominicana que produz apenas 530 mil toneladas tem uma cota de exportação para os Estados Unidos de 183,3 mil toneladas.

Passados 12 meses, nada ocorreu, o que levou o governo brasileiro, em agosto de 2020, a anunciar, sob pressão dos produtores locais e do Ministério da Agricultura e do Ministério das Minas e Energia, que a cota não seria renovada. Tal medida chegou a ser concretizada, pois como a cota não foi renovada dentro de seu prazo de vigência, ou seja, até 30 de agosto de 2020, acabou por perder a validade.

Tal decisão evidentemente não agradou ao governo dos Estados Unidos e muito menos ao presidente Trump, para quem a não renovação da cota significou uma derrota política. A não renovação desagradou particularmente os fazendeiros americanos dos estados de Iowa, Indiana e Missouri, do chamado “Corn Belt” dos Estados Unidos, que tradicionalmente votam com os republicanos, mas que neste ano estão sob ataque do candidato democrata Joe Biden.

Diante da insatisfação de Trump, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, entrou em campo para fazer lobby a favor dos Estados Unidos e convencer o setor produtivo e seus colegas de governo contrários à renovação a rever sua posição sob a justificativa de que a renovação da cota facilitaria as negociações para aumentar o acesso do açúcar brasileiro ao mercado norte-americano.

Ninguém, evidentemente, entrou nessa conversa, dado que nos 12 meses anteriores os Estados Unidos tiveram tempo suficiente para tratar do assunto e não tomaram medida nenhuma. Além disso, no dia 28 de agosto, o presidente Trump anunciou novas restrições às exportações brasileiras de aço semiacabado para os Estados Unidos, sob a justificativa de que as importações de outros países haviam caído substancialmente, mas que as importações do Brasil haviam apresentado uma queda pouco expressiva.

“Trata-se, sim, de um caso inédito de um ministro das Relações Exteriores cuja obrigação é defender os interesses nacionais, mas que decide fazer lobby para um governo estrangeiro e agir contra os interesses do País, claramente explicitados pelo setor privado nacional e setores do próprio governo, para favorecer eleitoralmente um determinado grupo político estrangeiro, com o qual ele e o presidente se identificam ideologicamente.”

O ministro Araújo não se fez de rogado e continuou a fazer lobby dentro do governo a favor de Trump, mesmo diante de todas as evidências de que a renovação não fazia nenhum sentido, contrariava os interesses nacionais e representava um prejuízo à indústria nacional de etanol, sobretudo a de etanol de milho, que está em fase de estruturação no centro-oeste brasileiro – Goiás e Mato Grosso – e já vinha enfrentando dificuldades com a queda do consumo de combustíveis em decorrência da pandemia da Covid-19 e de distorções tributárias que favorecem o produto importado. De janeiro a julho de 2020, o Brasil produziu 1,3 bilhão de litros de etanol de milho, 93% a mais que no mesmo período de 2019, mas o consumo caiu. As vendas domésticas de etanol na primeira semana de agosto diminuíram 16% em relação ao mesmo período do ano anterior e estoques em 31 de julho de 2020 estavam 55% maiores.

Apesar da resistência generalizada, dentro e fora do governo, Ernesto Araújo intensificou o lobby a favor de Trump e no final acabou prevalecendo. No dia 09 de setembro o presidente Bolsonaro anunciou aos produtores que iria renovar proporcionalmente a cota (187,5 milhões de litros) por 90 dias, ou seja, até novembro, quando ocorrerão as eleições presidenciais nos Estados Unidos.

Para fingir que estava retribuindo o gesto brasileiro, Trump anunciou no dia 20 de setembro que do aumento de 90,7 mil toneladas de açúcar bruto adicionadas à cota da safra atual, 80 mil toneladas serão para o produto brasileiro. Além de ser um procedimento rotineiro, trata-se de valor insignificante se considerarmos que apenas em agosto de 2020 o Brasil exportou 3,7 milhões de toneladas de açúcar. Esse aumento representaria, caso venha a se concretizar, uma receita extra, pelos preços médios atuais, de apenas US$ 23 milhões. Já a cota de 187,7 milhões de litros de etanol renderia aos exportadores americanos à cotação atual do produto (US$ 1,3029/galão) o triplo desse valor, algo em torno de US$ 65 milhões, mais os subsídios que recebem do governo americano. Para os importadores brasileiros, com impostos e sem os custos de internalização (R$ 2.490/metro cúbico e R$ 5,25/dólar), colocados no Porto de Suape, em Pernambuco, custariam algo em torno de US$ 90 milhões. Uma coisa não compensa a outra.

A questão, entretanto, não é aritmética; poderia ser até o contrário, mesmo porque não há garantias de que vamos importar todo esse etanol ou exportar essa ninharia de açúcar. Trata-se, sim, de um caso inédito de um ministro das Relações Exteriores cuja obrigação é defender os interesses nacionais, mas que decide fazer lobby para um governo estrangeiro e agir contra interesses do País, claramente explicitados pelo setor privado nacional e setores do próprio governo, para favorecer eleitoralmente um determinado grupo político estrangeiro, com o qual ele e o presidente se identificam ideologicamente.

A eleição do novo presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)

Atropelar o Brasil, adotando medidas contra os interesses do país, sem tomar o menor conhecimento da alardeada amizade com o presidente brasileiro, tornou-se um hábito de Trump. A recente eleição do novo presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) foi apenas o episódio mais recente.

Desde que o banco foi criado, em 1959, tem valido a regra não escrita de que o presidente da instituição de desenvolvimento voltada para a América Latina é sempre um latino-americano, da mesma forma que o presidente do FMI é um europeu e o presidente do Banco Mundial (BIRD) um americano. Nos últimos 60 anos o BID teve apenas quatro presidentes, todos latino-americanos. Isso faz sentido porque, mesmo sendo os Estados Unidos o maior acionista do banco, com 30% das cotas, o BID atende os países da região, financiando, sobretudo, projetos de infraestrutura.

Trump resolveu quebrar essa tradição e decidiu indicar para a presidência da instituição um de seus assessores, Mauricio Claver-Carone e que, até recentemente, ocupava a direção para a América Latina do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. O objetivo da indicação, como o próprio Claver-Carone afirmou, é o de transformar o BID em um peso-pesado financeiro para conter a influência da China no hemisfério ocidental. Em outras palavras, transformar um instrumento de desenvolvimento regional, criado sob inspiração da CEPAL, em instrumento político dos Estados Unidos para manter sua hegemonia na região.

México, Chile, Argentina e Costa Rica, que conjuntamente detêm 22% dos votos, posicionaram-se logo de início contrários ao pleito norte-americano e propuseram, por causa da pandemia da Covid-19, adiar por seis meses as eleições, que estavam marcadas para o dia 12 de setembro. A expectativa era de que uma eventual derrota de Trump, em novembro próximo, poderia criar um novo quadro político e reverter a situação, mesmo porque com um eventual presidente democrata, ter um ex-assessor de Trump como presidente do BID seria algo complicado até para os Estados Unidos.

O Brasil se posicionou favoravelmente à manutenção do pleito, impedindo que se alcançassem os 25% necessários para não dar quórum e adiar as eleições. Trump deve, portanto, em grande medida, ao Brasila indicação de seu assessor para a presidência do BID.

Segundo noticiado pelo jornal New York Times, quando a candidatura de Claver-Carone foi lançada, este teria telefonado para as autoridades brasileiras pedindo a retirada do candidato brasileiro Rodrigo Xavier, que o Brasil pensava eleger com o apoio de Trump. O presidente americano nem tomou conhecimento da demanda brasileira e o Brasil, obsequiosamente retirou seu candidato e foi um dos poucos países a declarar abertamente apoio ao candidato norte-americano.

Diz-se que o Brasil teria retirado a candidatura brasileira em troca de ter no número 2 do banco, mas, ao que tudo indica, isso pode não acontecer, e o Brasil corre o risco, mesmo sendo o principal responsável, na região, pela eleição do americano, de ficar com menos influência no banco do que tem hoje, uma vez que Claver-Carone teria feito outros acertos com outros países  também oferecendo posições de destaque. Trata-se de mais uma concessão que Bolsonaro e Ernesto Araújo fazem aos Estados Unidos, em prejuízo do Brasil e, neste caso, dos vizinhos latino-americanos, a troco de nada. Ou melhor, mais uma vez o governo Bolsonaro sacrifica os interesses do Brasil para favorecer um grupo político estrangeiro ao qual está ligado ideologicamente.

A visita de Mike Pompeo a Roraima

A menos de 50 dias para as eleições nos Estados Unidos, a vinda do Secretário de Estado dos Estados Unidos ao Brasil para realizar uma visita relâmpago ao centro de acolhimento de refugiados venezuelanos em Boa Vista, capital do estado de Roraima, pode ser vista, no plano mais imediato, como parte da estratégica eleitoral de Trump com o objetivo de conquistar votos republicanos no estado da Flórida. Mas vai muito além disso.

Mostrar-se duro contra o governo de Nicolás Maduro e determinado a removê-lo do poder, seja porque meio for, é uma forma de atrair o voto da comunidade conservadora latina da Flórida. Boa parte dessa comunidade latina é composta por membros da elite econômica da Venezuela,  de Cuba e de outros países da região, inclusive do Brasil, que migraram para os Estados Unidos..  

O problema, porém, é ninguém saber até que ponto Trump deseja ir com essas provocações. Há o risco real de Trump replicar na América do Sul a mesma estratégia que utilizou no Oriente Médio – afinal, lá e cá há petróleo em jogo – e mergulhar a região em uma guerra fraticida de consequências potencialmente devastadoras para a região. Transformar, portanto, território brasileiro em palanque eleitoral para Trump em clara violação dos princípios constitucionais que orientam a política externa brasileira é um erro grave a respeito do qual o governo deve ser responsabilizado.

Mais uma vez estamos frente a um caso de violação da soberania nacional por membros do governo brasileiro, cuja primeira obrigação deveria ser defendê-la, apenas com o objetivo de favorecer um grupo político estrangeiro ao qual o presidente brasileiro e seu ministro das Relações Exteriores se alinham ideologicamente. Isso não é aceitável.

E não é aceitável não só porque é uma humilhação para o Brasil, que se rebaixa à condição de colônia dos Estados Unidos, que se dá ao desfrute de usar o território brasileiro para ameaçar um país vizinho, como se nosso território fosse um protetorado norte-americano ao qual eles têm livre acesso para fazer o bem entendem, mas também porque isso prejudica concretamente os interesses do Brasil na região e arrisca transformar a América do Sul em um novo Oriente Médio.

Nunca é demais lembrar que a América do Sul tem sido uma região livre de guerras em grande parte graças à diplomacia brasileira, cujo símbolo maior é o Barão do Rio Branco que, à frente do Itamaraty, engrandeceu o papel do Brasil ao resolver disputas de fronteiras e garantir a resolução pacífica de conflitos.

 O Brasil, como a maior economia da região, tem se beneficiado grandemente disso, não só porque, ao longo de décadas, pôde se preocupar apenas com seus problemas internos como, principalmente, graças a essa relação amistosa com todos os países da região, tem garantido mercados para exportação de seus produtos, sobretudo manufaturados, de maior valor agregado, e aberto oportunidades para o investimento externo de empresas brasileiras. Nunca é demais lembrar que em todo lugar que se vá da América Latina, inclusive na Venezuela, vamos encontrar empresas brasileiras atuando nos mais diversos setores e frequentemente dominando fatias expressivas dos mercados locais.

Tudo isso o governo Bolsonaro e seu inacreditável ministro das Relações Exteriores estão jogando para o ar, ao fomentar a fragmentação política da região em blocos antagônicos, como os que se formaram na eleição do presidente do BID – México, Chile e Argentina, de um lado, e Brasil e Colômbia, do outro. Como lembrou o economista Pedro Silva Barros em artigo recente publicado no jornal Folha de S.Paulo[1], “O contexto de fragmentação política e desintegração comercial da América do Sul torna nosso subcontinente um palco aberto para disputas de potências extrarregionais” – leia-se Estados Unidos, Rússia e China – e não resta a menor dúvida: o grande prejudicado será o Brasil.
A questão do 5G

O Brasil vem sendo pressionado há meses pelo presidente americano Donald Trump a excluir a empresa chinesa Huawei, líder mundial na produção de equipamentos de telecomunicações para tecnologia 5G, do rol das empresas habilitadas a fornecer os equipamentos para a rede 5G brasileira que começará a ser implantada no próximo ano. A alegação dos norte-americanos é de que haveria risco de os equipamentos chineses serem utilizados em atividades de espionagem, comprometendo a segurança dos Estados Unidos e seus aliados. Não há, contudo, nenhuma comprovação técnica dessa possibilidade e muito menos de que a China teria intenção de fazer isso, dando um tiro no próprio pé. Tudo indica que o real motivo desse cerco à empresa chinesa seja o de impedir que a China abocanhe uma fatia importante do mercado global de alta tecnologia, até agora dominado sobretudo por empresas norte-americanas.

“Mais uma vez estamos frente a um caso de violação da soberania nacional por membros do governo brasileiro, cuja primeira obrigação deveria ser defendê-la, apenas com o objetivo de favorecer um grupo político estrangeiro ao qual o presidente brasileiro e seu ministro das Relações Exteriores se alinham ideologicamente.”

O leilão das frequências para as operadoras de 5G estava previsto para 2020, mas foi adiado para 2021, o que levou ao adiamento da deliberação final sobre se a empresa chinesa Huawei poderá ou não participar do fornecimento dos equipamentos para o Brasil.

Entretanto, há sinais concretos de que o Ministério das Relações Exteriores esteja operando a favor dos Estados Unidos, mais uma vez sem levar em conta os interesses do Brasil. Como destaca matéria publicada no jornal Folha de S.Paulo, em 12/6/2020, “O ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, general Augusto Heleno, convenceram o presidente Jair Bolsonaro de que o leilão do 5G deve oferecer restrições aos fabricantes chineses de equipamentos como a Huawei. Resultado dessa pressão, Bolsonaro afirmou em transmissão via internet, na quinta-feira (11/6), que o certame levará em conta a “soberania, a segurança de dados e a política externa”[2]. Ou seja, a escolha dos novos padrões tecnológicos da telefonia deixou de ser técnica e ganhou conotação geopolítica.

Caberia novamente neste caso perguntar onde está o interesse nacional e que medida o posicionamento do Ministério das Relações Exteriores e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) estão agindo de acordo ou contrariamente aos interesses do Brasil apenas para agradar o presidente norte-americano, que fez do combate à China um ponto importante de sua agenda política e eleitoral.

O alegado risco de espionagem, se existe, com certeza não é maior do que o risco existente no uso de qualquer equipamento produzido por outro fabricante em qualquer lugar do mundo. O país que utiliza de forma mais intensiva a espionagem eletrônica são os próprios Estados Unidos. Em 2013, foi revelado que os Estados Unidos estavam monitorando as conversas da então presidente Dilma, por meio de seu telefone celular, o que levou ao cancelamento de uma visita que ela faria os EUA naquele mesmo ano. Conforme matéria do jornal O Globo: “A Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA) monitorou o conteúdo de telefonemas, e-mails e mensagens de celular da presidente Dilma Rousseff e de um número ainda indefinido de “assessores-chave” do governo brasileiro. Além de Dilma, também foram espionados pelos americanos nos últimos meses o presidente do México, Enrique Peña Nieto, — quando ele era apenas candidato ao cargo — e nove membros de sua equipe”[3]

Operadoras de serviços de telecomunicação, assim como diversos setores do próprio governo, inclusive militares, são contrários à proibição da participação da empresa chinesa na rede brasileira de 5G. Apontam que liberar a participação chinesa não teria maiores consequências negativas para o Brasil. Talvez, a retirada do apoio americano à entrada do Brasil na OCDE, o que não muda muito a situação atual, já que inúmeros países europeus são contra. Fala-se também que os Estados Unidos poderiam excluir o Brasil de seu programa de capacitação em segurança cibernética, mas, como revelou recentemente reportagem do jornal Valor[4], os militares preferem não depender dos Estados Unidos nessa seara.

Por outro, a exclusão da empresa chinesa seria uma clara sinalização de que o Brasil está definitivamente alinhado com os Estados Unidos em sua guerra contra a China. Isso obviamente teria consequências potencialmente devastadoras para nossa economia. Onde iríamos achar mercado para os quase US$ 70 bilhões que exportamos para a China todo ano? Iriam os Estados Unidos, que concorrem conosco em exportações agrícolas, absorver o que deixaríamos de exportar para a China? Evidentemente que não!

De acordo com a já citada reportagem da Folha de S.Paulo, no documento enviado pelo ministério das Relações Exteriores à Presidência da República, justificando a posição contrária do MRE sobre a liberação da participação da empresa chinesa, o ministro Ernesto Araújo “defende que o Brasil não sofreria nenhum tipo de sanção comercial porque a China possui como maiores fornecedores de matérias-primas e alimentos os Estados Unidos, o Brasil e a Austrália. Para ele, se os três se juntassem em apoio a Donald Trump, os chineses não teriam saída e continuariam importando desses países”. Já a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, segundo a mesma matéria, não pensa assim. Para ela, qualquer tipo de restrição à China na oferta de equipamentos de rede 5G terá efeitos danosos sobre o desempenho do agronegócio, único setor ativo neste momento de pandemia.

É preciso ainda destacar que a exclusão da Huawei da implementação do 5G no Brasil, além de não fazer nenhum sentido geopolítico e econômico, uma vez que o Brasil não tem nada a ganhar com isso, representará um prejuízo concreto ao país, cujo custo será arcado pelo conjunto dos brasileiros na forma de tarifas mais caras e atraso na oferta dos serviços. Isso porque os equipamentos da Huawei, além de melhores e mais baratos, têm a vantagem de “falar” com todos os equipamentos dos demais fabricantes – Nokia, Ericsson e Samsung – coisa que os equipamentos desses fabricantes não fazem. Como parte da rede atualmente em operação nas tecnologias 3G e 4G utilizam equipamentos da Huawei, o uso exclusivo dos equipamentos desses outros fabricantes na rede 5G obrigaria as operadoras a trocar todos os equipamentos da Huawei atualmente utilizados nas redes 3G e 4G, o que significaria um custo maior, que ao fim e ao cabo recairiasobre os usuários, e uma demora muito maior para que essa nova tecnologia com grande potencial para revolucionar inúmeros serviços e aumentar a produtividade das empresas fique à disposição das pessoas, empresas e governos. Na Inglaterra, país muito menor que o Brasil, o custo dessa troca foi estimado em £2 bilhões e um atraso de 3 anos na implantação da rede[5].

Como nos casos anteriormente analisados, fica mais uma vez evidente que a posição do Ministério das Relações Exteriores nesse assunto não tem nada a ver com os interesses nacionais e está orientada exclusivamente para atender aos interesses de uma potência estrangeira e da chamada “ala ideológica” do governo brasileiro.

A ação conjunta do Brasil e dos Estados Unidos na OMC contra a China

Estados Unidos e Brasil submeteram conjuntamente na OMC uma proposta estabelecendo que o princípio de economia de mercado tenha de valer para todos os seus membros, para garantir condições equitativas de competição econômica no comércio internacional. Trata-se de um ataque direto à China, organizado pelos Estados Unidos, com o objetivo de, ou excluir a China daquela organização, ou forçar mudanças profundas nas suas regras que permitam aos Estados Unidos e seus aliados imporem as sanções que bem entendam à China.

A China reagiu, argumentando, com razão, que o assunto é complexo demais e que não cabe à OMC definir o que é ou não uma economia de mercado, mas apenas verificar se as regras de comércio internacional por ela estabelecidas estão sendo cumpridas pelos seus membros. Até mesmo a Índia, que está em séria disputa com a China por questões de fronteiras que levou, recentemente, a confrontos que deixaram mortos dos dois lados, não apoiou a posição do Brasil, alegando que se alguém tem dúvida quanto a isso deveria recorrer ao Órgão de Apelação da OMC que, diga-se de passagem, está paralisado pelos Estados Unidos, que não aceitam a nomeação de novos juízes, como forma de chantagear o órgão. Apenas União Europeia (27 países), Japão, Austrália, Canadá, Suíça, Coréia do Sul, Noruega e Taiwan apoiaram a proposta brasileira e americana. O fato de os Estados Unidos terem escolhido o Brasil para apresentar conjuntamente a proposta, quando havia inúmeros outros países que poderiam fazê-lo, é um recado para a China de que aqui quem manda são eles. Trata-se, evidentemente, de uma provocação totalmente desnecessária ao nosso principal parceiro econômico. O Brasil não tem absolutamente nada a ganhar com isso.

Conclusão

Poderíamos continuar a desfiar um rosário de situações em que o mesmo padrão de comportamento do Ministério das Relações Exteriores, sob o comando de Ernesto Araújo, se repete sistematicamente: submeter os interesses nacionais à agenda política de um grupo aninhado no governo brasileiro, alinhado ideologicamente com a extrema direita norte-americana, cujos interesses são totalmente estranhos ao Brasil. Agem orientados por essa verdadeira Internacional da extrema-direita e não hesitam em sacrificar os interesses nacionais em nome de seus objetivos políticos. É preciso reagir a isso. O Brasil acima de tudo!


[1] Barros, P. S. Mike Pompeo na Ilha das Guianas. Folha de S. Paulo, 18/9/2020,

[2] Wiziack, J. e Uribe, G. Bolsonaro transforma 5G em disputa geopolítica e leilão deve ficar para 2021. Folha de S. Paulo, 12/6/2020.

[3] Tardáguila, C. e Gama, J. EUA espionam Dilma. O Globo, 01/09/2013;

[4] Exman, F. A desconstrução da ala ideológica no 5G. Valor, 08/07/2020.

[5] Fildes, N. e Warrell, H. Why UK has decided to ban use of Huawei’s 5G kit. Financial Times, 14/7/2020.