O horror, o horror diplomático
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org; http://diplomatizzando.blogspot.com)
[Objetivo: indignação com a letargia nas alturas; finalidade: despertar repulsa legítima]
Gostaria, em primeiro lugar, de me desculpar com meus colegas diplomatas por publicar, na véspera de Natal, uma mensagem de tons mais conradianos do que dickensianos. Mas, eu não seria fiel à minha própria trajetória na carreira, ao longo de mais de quatro décadas – durante as quais nunca hesitei em defender minhas próprias convicções e os argumentos que sempre corresponderam a um estudo sério das posturas que fundamentam nossa atividade profissional – se eu não transmitisse aos membros de minha corporação de Estado os sentimentos que me animam neste melancólico final de ano, por razões que todos devem deduzir facilmente, em função do que já escrevi nos últimos 24 meses.
Todos nós, diplomatas, com a possível exceção de dois ou três (que eu não hesito em retirar da categoria de “colegas”), estamos cumprindo dois anos de profunda decepção, de justificada frustração e de sincera repulsa por um quadro de verdadeiro horror na instituição que está próxima de seu bicentenário, talvez menos repugnante do que o relato conradiano sobre as violações de direitos humanos no âmbito do colonialismo, mas que não deixa de ser, para nós, uma ruptura fundamental com tudo o que se sabe da história do Itamaraty.
Esse horror começou a ser revelado ainda antes das eleições, a partir de uma matéria de jornal, no final de setembro de 2018, que desvendou a identidade de um animador de blog bolsonarista atuando de forma militante em favor de seu candidato, e atacando de forma vil os adversários, inclusive a política externa da qual tinha sido protagonista durante cerca de três décadas. O autor de diatribes acerbas contra a política externa em curso, e contra toda e qualquer política pública existente, teve de, apressadamente, desculpar-se junto às chefias da Casa, junto às quais encontrou complacência para seguir adiante com seu blog, que por acaso levava o título de “Metapolítica 17: contra o globalismo”. Fez-se então a junção com o nome do autor do infeliz artigo “Trump e Ocidente”, que havia sido publicado na revista do IPRI, que eu dirigia, Cadernos de Política Exterior (n. 6, 2017). Não demorou muito para que o seu autor – provavelmente motivado por esse exato objetivo – fosse confirmado como o chanceler escolhido para conduzir uma “diplomacia sem ideologia”, o que, diga-se, destoava radicalmente de todo o conteúdo impressionista revelado naquele artigo.
No meu caso, foi um pouco mais de dois anos, pois, em meados de 2018, eu já tinha tido contato com quase toda a equipe econômica envolvida na campanha do candidato – que me recebeu como se eu fosse me juntar àquela tropa, o que nunca foi minha intenção –, de quem ouvi e captei intenções de política econômica externa (que foi o tema exclusivo de meu diálogo naquele encontro) que já considerei como incrivelmente ingênuas ou equivocadas, no confronto com o que sempre se soube do candidato em questão. Afastei-me definitivamente de todos eles quando, em meados de agosto seguinte, foi tornado público o programa de governo desse personagem singular na política brasileira, contendo cinco extraordinários parágrafos relativos à “futura política externa”, infelizmente reveladores da tremenda miséria intelectual e diplomática que se prenunciava. Imediatamente elaborei um memorando – reservado ao início, depois revelado em meu blog, criticando severamente aqueles propósitos aloprados e alinhando algumas diretrizes que eu julgava relevantes para orientar a futura diplomacia (aqueles interessados em ler minhas observações podem acessar esta postagem: “Um programa insuficiente de política externa: comentários pessoais”, Brasília, 15/08/2018, 5 p. Comentários à parte de política externa do programa do candidato Bolsonaro; blog Diplomatizzando, link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/08/um-programa-insuficiente-de-politica.html). Na sequência, nunca mais tive contato com algum membro daquela equipe, a não ser para novamente recusar, peremptoriamente, qualquer associação minha com aquelas políticas, antes ou depois daquele único e solitário encontro.
Depois disso, eu tinha certeza de que seria exonerado no primeiro dia do governo Bolsonaro, mas antes mesmo da posse e da inauguração do gabinete, já tínhamos tido, nós os diplomatas, os primeiros sinais do horror que logo se abateria, intencionalmente ou na prática, sobre a diplomacia e a política externa, e que eu resumo por alguns poucos exemplos: denúncia do Acordo de Paris e do Pacto Global das Migrações (este realizado); o afastamento das “nefastas” ideologias “climatistas” e “comercialistas” e das políticas ligadas à “ideologia de gênero”; o distanciamento da China e de qualquer outra manifestação de “comunismo”; a mudança da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém, considerada a legítima capital israelense; uma estreita aliança com os Estados Unidos e com o presidente Trump em especial; o combate ao “marxismo cultural”, supostamente entranhado num Itamaraty que se tinha promiscuído nos governos companheiros – como se o chanceler escolhido não tivesse servido fielmente a todas as administrações anteriores – e, cúmulo da ideologia, a retomada do espírito conservador e religioso do “povo brasileiro”, com o qual estaria estreitamente vinculada a “nova política externa”.
Tudo isso foi ouvido e repetido em diversas ocasiões – novos artigos, entrevistas, e declarações públicas – em novembro e dezembro de 2018, e triunfantemente repetido, para estupefação geral do corpo diplomático, no dia 2 de janeiro de 2019, o que justificadamente legitimou o apelido de “Beato Salu”, com o qual foi agraciado o chanceler acidental. Minha exoneração demorou ainda um pouco, pois não tinham ainda quem me substituísse, mas ela finalmente ocorreu no Carnaval de 2019, com toques de humilhação: fui, na sequência, lotado na Divisão do Arquivo, sob a chefia de um primeiro secretário, que precisa “autorizar” toda e qualquer providência administrativa de que eu que possa necessitar (férias, ausências, etc.). Não me constrangi com a nova situação, minha velha conhecida desde os tempos – que agora julgo mais amenos – dos companheiros, quando passei anos e anos na Biblioteca, lendo muito, refletindo e escrevendo o que eu pensava sobre o Itamaraty e sobre relações exteriores e sobre nossa história diplomática (livros todos relacionados na minha página pessoal).
Desde então, a despeito de alguns contratempos funcionais, já conhecidos dos que me seguem neste espaço, tenho mantido invariavelmente a mesma rotina: acompanhamento atento de todas as fontes de informação fiáveis – algumas pouco confiáveis também –, a leitura sistemática de tudo aquilo que tenha a ver com a política internacional, as relações externas e a diplomacia do Brasil, os cenários político, econômico e cultural do Brasil e do mundo, e a produção de dezenas de artigos e vários livros sobre esses temas, vários deles, senão todos livremente disponíveis a partir de minhas ferramentas de comunicação social.
Independentemente do tom mais irônico ou mais sério dessas diversas produções, o que se pode ressaltar, tanto para mim como para a maioria (pelo menos imagino) dos meus colegas, é o HORROR a que somos confrontados desde aproximadamente dois anos de uma diplomacia e de uma política externa extraordinariamente em desacordo, nas antípodas de tudo aquilo a que assistimos nas últimas décadas, e talvez em toda a nossa história, de um exercício ponderado, não ideológico (muito pouco inclusive sob a ditadura militar) e quase nunca partidário da diplomacia profissional, quase sempre colada à governamental (para nosso alívio e satisfação intelectual). Quaisquer que tenham sido os matizes da diplomacia dos governos anteriores, desde o Império, ela sempre correspondeu grosso modo ao núcleo básico do interesse nacional – o desenvolvimento com autonomia decisória – e quase nunca nos colocou em confronto direto com nossos vizinhos e com o resto do mundo, a não ser em face de desafios à nossa própria dignidade (guerras do Prata e dois conflitos globais).
O fato é que o atual governo se identifica com os estratos mais reacionários e mais repressivos de setores da ditadura militar e que, em nossa área, a atual diplomacia se vincula a concepções obscurantistas e conspiratórias do mundo, o que jamais tínhamos assistido na história bissecular do Brasil e do Itamaraty. Saudosistas dos momentos mais sombrios da ditadura militar e patéticos elementos anti-iluministas e fundamentalistas foram chamados a se exercerem em vários setores da administração, para imenso desconforto de tecnocratas racionais, de diplomatas normais e de militares identificados com sua missão essencial. O termo de horror conradiano se justifica amplamente, portanto, nesta mensagem de “Natal”, que poderia ter sido mais realisticamente dickensiana se outras fossem as circunstâncias.
Desculpando-me, junto a meus colegas, por um texto que não me deu nenhum prazer em redigir e ao divulgá-lo em momento provavelmente impróprio, gostaria, ainda assim, de desejar a todos um excelente 2021, com a retomada oportuna da sensatez política e de uma necessária racionalidade na concepção e na implementação de uma política externa mais conforme nossos padrões conhecidos de qualidade substantiva e excelência operacional. Só desejo um 2021 pior do que este ano que se encerra a quem vocês adivinham quem seja, mas isto nada mais é do que simples manifestação de sinceridade intelectual e de ousadia pessoal (o que sempre foi, como todos sabem, uma de minhas marcas no exercício da carreira e das atividades acadêmicas).
Com as minhas melhores saudações,
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3825, 22 de dezembro de 2020
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