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domingo, 27 de dezembro de 2020

O Islã tem salvação? Sim, embora seja difícil

 O prefácio de Roger Scruton ao livro A Mentalidade Muçulmana, de Robert Reilly.


O livro A Mentalidade Muçulmana: As Raízes da Crise, de Robert R. Reilly, tem tradução brasileira pela LVM, São Paulo, 2020 (336 páginas), e conta com versão para Kindle, da Amazon. O prefácio do saudoso filósofo Roger Scruton é publicado com exclusividade neste blog: 


As raízes da civilização ocidental estão na religião de Israel, na cultura da Grécia, e no direito de Roma, e a síntese resultante floresceu e decaiu de mil maneiras durante os dois milênios que se seguiram à morte de Cristo. Tenha sido expandindo-se para novos territórios ou retirando-se para as cidades, a civilização ocidental experimentou, continuamente, novas instituições, novas leis, novas formas de ordem política, novas crenças científicas e novas práticas nas artes. E essa tradição de experimento levou, com o tempo, ao Iluminismo, à democracia, e a formas de ordem social nas quais as liberdades de opinião e de religião são garantidas pelo Estado. 

Por que não aconteceu algo parecido no mundo islâmico? Por que essa civilização, que brotou com tanta abundância de energia no século VII da nossa era, e que se espalhou pelo norte da África e pelo Oriente Médio produzindo cidades, universidades, bibliotecas, e uma florescente cultura cortês que deixou uma marca permanente no mundo, hoje é, em tantos lugares, muda, violenta, ressentida? Por que o islã hoje parece não apenas tolerar a violência de seus defensores mais enérgicos, mas também endossá-la e pregá-la? Por que as minorias muçulmanas na Europa, que emigram para gozar dos benefícios de uma jurisdição secular, pedem outro tipo de lei, ainda que tão poucas delas pareçam concordar com o que essa lei diz ou com quem tem o direito de promulgá-la? 

Neste livro lúcido e fascinante, Robert R. Reilly propõe-se a responder essas perguntas. Seu objetivo é mostrar que a civilização islâmica, que levou aos principados urbanos da Andaluzia no ocidente, e ao riso místico dos sufis no oriente, passou por uma crise moral e intelectual entre os séculos IX e XI, quando voltou as costas para a filosofia e refugiou-se no dogma.

Vários fatores são responsáveis por essa súbita ossificação, mas o principal, na visão de Reilly, foram a ascensão da seita asharita, no século X, e a derrota da seita rival, a mutazalita. Os asharitas encontraram uma voz potente no imame al-Ghazali (†1111), filósofo e teólogo brilhante, cujo espírito atormentado, enfim, encontrou refúgio em uma unidade mística com Alá. A razão humana nos ensina a questionar as coisas, a descobrir as coisas, e a fazer leis para nos governarmos melhor. Por isso, a razão era – para al-Ghazali – inimiga do islã, que exige uma submissão absoluta e sem questionamentos à vontade de Alá. Em seu celebrado tratado A Incoerência dos Filósofos, al-Ghazali propôs-se a mostrar que a razão, como reverenciada nos textos de Platão, de Aristóteles (384-322 a.C.), e de seus seguidores, não leva a nada além de trevas e de contradições, e que a única luz que brilha na mente do homem é a luz da revelação. Apesar de os argumentos de al-Ghazali serem perfeitamente refutados por Averróis (1126-1198) – também conhecido como Ibn Rushd – em seu A Incoerência da Incoerência, o islã apressou-se em abraçar a doutrina asharita, que tornava a ideia de submissão muito mais compreensível. Averróis foi mandado da Andaluzia para o exílio, e a voz da razão deixou de ser ouvida nas cortes dos príncipes muçulmanos sunitas. 

O ataque à filosofia veio junto com um ataque igualmente determinado à lei e à jurisprudência (fiqh). Os primeiros juristas islâmicos tentaram conciliar o Corão e as tradições com as exigências da justiça comum, e desenvolveram um sistema jurídico que podia ser aplicado às circunstâncias da vida social e comercial que iam se desenvolvendo. A interpretação da lei era sujeita ao estudo e a emendas pelo esforço individual (ijtihad) dos juristas, que, por isso, capacitavam-se para adaptar as frágeis injunções do Livro Sagrado à realidade das sociedades muçulmanas. No século X ou XI da nossa era, tornou-se aceito que “a porta da ijtihad se fechara” – como o próprio al-Ghazali declarara. Desde então, o islã sunita adotou a posição oficial de que nenhuma nova interpretação da lei poderia ser buscada, e que aquilo que parecia certo no Cairo do século XII há de parecer certo hoje. Será, então, de se surpreender caso ninguém consiga encontrar um modo claro de conciliar a sharia com os fatos da vida e do governo modernos, ou que um dos principais juristas de al-Azhar, a antiga universidade do Cairo, possa decidir que não há problema em um homem e uma mulher que não se conhecem estarem juntos sozinhos, desde que ele chupe seus seios?"


Filosofia e dogma, lei civil e lei divina, sempre são difíceis de conciliar. Porém, no mundo islâmico, a tensão entre eles assumiu um caráter especial, pois envolve um conflito entre duas interpretações rivais do Corão. Numa interpretação, a dos mutazalitas, o Corão foi criado por Deus no momento de sua revelação. Assim, ele deve ser interpretado segundo as circunstâncias em que foi revelado, e segundo o propósito de Deus ao revelá-lo. Na interpretação asharita, o Corão é incriado, coevo com o Todo-Poderoso, sua palavra eterna, que nada deve às contingências da vida na Arábia de Maomé, dilacerada pela guerra. O resumo apresentado por Reilly dessa disputa é particularmente esclarecedor, sugerindo o quanto será difícil obter, em nossas relações com os líderes autonomeados da comunidade sunita, as interpretações flexíveis da fé que permitiriam o crescimento de uma tolerância real e duradoura daqueles que a rejeitam.

A brilhante explicação de Reilly do efeito de longo prazo da “limitação da mentalidade muçulmana” é uma leitura que dá o que pensar. As sociedades islâmicas, como ele mostra, raramente se adaptaram às formas da política moderna, à perspectiva da ciência moderna, ou às exigências da migração global. Se Reilly tem razão – e certamente tem – então o ressentimento que anima o terrorista muçulmano deve ser atribuído não a nosso sucesso, mas ao fracasso muçulmano. Esse fracasso não é o resultado inevitável do islã; trata-se, antes, do efeito de um ato de suicídio cultural e intelectual, que ocorreu oito séculos atrás. Reilly oferece uma explicação persuasiva não do quê deu errado, mas de por que deu errado. Ele localiza a origem de tal erro em uma teologia deformada gestada nos séculos IX e X e na cultura disfuncional que surgiu dela. A ortodoxia asharita, afirma ele, legou ao islã o conceito errado de Deus

Fiquem atentos, planejadores de políticas públicas: a menos que vocês estejam dispostos a admitir que estão enfrentando um problema essencialmente teológico no Oriente Médio, não prescrevam soluções, porque vocês podem efetivamente piorar a situação – particularmente por criar a falsa impressão de que programas econômicos, sociológicos ou políticos podem consertar aquilo que, na verdade, é um delírio de fé. Não podem. Como argumenta Reilly, com persuasão, o problema precisa ser abordado no nível em que existe. O grande mérito deste livro está em formular claramente os termos desse profundo problema teológico, a crise a que ele nos levou, e, por fim, as escolhas que hoje duramente se apresentam aos muçulmanos contemporâneos. Como mostra Reilly, há muçulmanos que sabem como sair do atoleiro, mas eles raramente podem encontrar plateias ou governos dispostos a ouvi-los e a protegê-los. 

O resultado do embate dentro do islã hoje terá grandes consequências para todos nós. Ao nos ajudar a entender esse embate, este livro serve a um propósito pelo qual todos devemos ficar profundamente gratos.

Roger Scruton

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