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domingo, 20 de dezembro de 2020

Uma História Monetária... não monetarista; Resenha de Carlos Manuel PELAEZ e Wilson SUZIGAN: História Monetária do Brasil (1993)

Uma História Monetária... não monetarista

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 26/04/1993

 

Carlos Manuel PELAEZ e Wilson SUZIGAN:

História Monetária do Brasil: Análise da 

Política, Comportamento e Instituições Monetárias

(2ª edição, revisada e ampliada. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 1981; Coleção Temas Brasileiros, 15)

 

No Brasil, falar em monetarismo costuma ser uma receita quase garantida de opróbio e danação, já que ser identificado com esse conceito é um caminho certo para a conspurcação pelos “desenvolvimentistas”. E, no entanto, não existe maior incompreensão do que essa, ou seja, ver no interesse pelos problemas monetários do País apenas um sinal de frieza tecnocrática, insensibilidade economicista ou seja lá o que for. O desconhecimento do – ou o desinteresse pelo – lado “monetário” da economia costumam enganosamente passar por uma identificação reversa com o estruturalismo e a economia social, como se a busca do desenvolvimento pudesse dispensar o País de praticar uma saudável política monetária, ainda que não “monetarista”. Muitos desses equívocos derivam de uma incompreensão real do que foi – e do que é – a questão monetária no desenvolvimento brasileiro ou do que seja o papel da política monetária no correto encaminhamento dos atuais problemas de estabilização e de luta contra a inflação.

 

Uma história monetária schumpeteriana

É precisamente a um passeio pela história da moeda e seu papel na economia brasileira a que nos convida o livro de Carlos Manuel Peláez e Wilson Suzigan, resultado de quinze anos de pesquisa segundo os melhores modelos e teorias disponíveis na disciplina: a “interpretação monetária da história” de Friedman-Schwartz-Cagan, filiada ao chamado modelo da “teoria neo-quantitativa da moeda”; a abordagem mais eclética desenvolvida pelo Professor Rondo Cameron, que adota os argumentos de Joseph Schumpeter e Gurley-Shaw sobre o papel da intermediação financeira no desenvolvimento econômico; e a interpretação histórica de Alexander Gerschenkron sobre a ênfase no papel do sistema bancário durante os estágios iniciais do processo de industrialização. 

Publicado originalmente em 1976, pela Editora Atlas, esse livro deve ser lido junto com um segundo trabalho desenvolvido pelos autores num mesmo projeto, Economia Monetária: Teoria, Política e Evidência Empírica (São Paulo: Editora Atlas, 1978), ou com o livro de Carlos Manuel Pélaez, História Econômica do Brasil (São Paulo: Editora Atlas, 1979). História Monetária do Brasil, na edição ampliada oportunamente publicada pela Editora da UnB, apresenta-se como uma análise econômica das moedas brasileiras, da evolução das instituições e da política monetária no Brasil e das relações entre o setor monetário com os demais setores da economia brasileira ao longo dos dois últimos séculos.

O primeiro capítulo, que é propriamente metodológico, enfoca as abordagens disponíveis para o estudo da história monetária, segundo as três interpretações já referidas, de Friedman-Schwartz-Cagan, de Cameron e de Gerschenkron e, em função desses métodos, trata da experiência monetária brasileira de longo prazo, com ênfase nas relações entre a moeda, a renda e os preços no desenvolvimento brasileiro.

A abordagem de Milton Friedman e seus colaboradores enfoca principalmente a covariância entre a moeda e a atividade econômica e, para tal, privilegia a análise dos determinantes do volume dos meios de pagamentos, resultando numa “interpretação monetária da história”. O “enfoque Cameron” é mais eclético, partindo da constatação de que o desenvolvimento dos atuais países avançados foi acompanhado pela diversificação e crescimento das instituições financeiras: essa relação, no entanto, pode ser de natureza passiva, mas também pode, alternativamente, facilitar ou, ao contrário, restringir o crescimento econômico. Trabalhando segundo os métodos da história comparativa, Cameron e seus colaboradores examinaram as etapas iniciais da industrialização nos países desenvolvidos, onde a principal função da estrutura financeira e bancária é permitir uma crescente monetização da economia. A teoria de Gerschenkron é baseada, como se sabe, no argumento sobre as “vantagens do atraso”, que atribui maior papel relativo ao sistema bancário e ao Estado na impulsão inicial do crescimento, em substituição à capacidade empresarial mais escassa.

 

Brasil: crescimento = desenvolvimento?

Na parte sobre a experiência monetária brasileira de longo prazo, os autores indicam, antes de mais nada, o extraordinário dinamismo da economia brasileira desde o século XIX até os anos 1970. Com base nos indicadores de crescimento real eles se lançam numa uma profecia retrospectiva extremamente arriscada, pelo menos em termos sociológicos. Com efeito, a partir dos dados brutos de crescimento para uma série de países, eles afirmam que “Se o crescimento tivesse ocorrido a partir de um nível maior do produto por habitante, na década de 1850, quando o Brasil começou a modernização, o país encontrar-se-ia hoje entre os mais desenvolvidos” (p. 20, ênfase agregada).

Cabe contudo questionar a legitimidade desse tipo de afirmação que coloca o desenvolvimento como um efeito necessário do crescimento do produto per capita, quando sabemos que outros fatores propriamente sociais estão em jogo, como a capacidade de inovação e de difusão tecnológica, a qualidade dos recursos humanos e, sobretudo, a natureza da estrutura social, que pode ser mais ou menos propensa à distribuição social da riqueza e, portanto, dos ganhos da acumulação. O famoso livro de Celso Furtado sobre a história econômica brasileira — Formação Econômica do Brasil — também não deixou de enfatizar que o nível de renda média nas regiões exportadoras de açúcar do Brasil colonial (séculos XVI e XVII) se aproximava bastante dos índices conhecidos na Europa dessa época, sem que com isso se possa chegar à conclusão de que a estrutura social brasileira pudesse conduzir ao mesmo tipo de desenvolvimento que o experimentado pelas sociedades europeias nos séculos XVIII e XIX.

É verdade, como indicam os autores, que o Brasil conseguiu diminuir o diferencial de renda em relação aos países desenvolvidos, tendo gerado um processo de crescimento autossustentado, pelo menos até os anos 1970. Mas, também é verdade, como eles não deixam de sublinhar, que “a aceleração do crescimento coincidiu com a aceleração do fenômeno inflacionário” (p. 23), com as distorções resultantes em termos de redistribuição de renda. Caberia no entanto indagar se a péssima distribuição de renda é causada tão simplesmente pelo fenômeno da inflação crônica, ou se outros fatores sociais não estão também em jogo, como o baixíssimo nível de educação formal da maior parte da população. 

Em todo caso, a análise conduzida nesse capítulo sobre a relação entre moeda, renda e preços no crescimento brasileiro é tecnicamente bem estruturada, com base num modelo das variações percentuais entre renda nacional e estoque de moeda. Eles evidenciam que os impulsos de política monetária afetam plenamente a atividade econômica corrente mensurada pela renda nominal e que as flutuações a curto prazo na economia se originam nos choques de política econômica (pp. 26-7). Eles ilustram a análise através da experiência de três programas de controle inflacionário: 1947-49, 1964-67 e 1976-78, quando se tentou reverter a pressão inflacionária através de políticas monetárias e fiscais austeras que criaram uma defasagem entre inflação e moeda.

Na fase mais recente do período examinado, isto é, anos 70, o governo passou a ter menor controle sobre o estoque de moeda, devido à crescente complexidade da inflação e do próprio sistema financeiro. “Consequentemente, os esforços de controle inflacionário encontrarão, necessariamente, maiores dificuldades do que no passado” (p. 27), uma conclusão que se tornou ainda mais verdadeira para o período atual, no qual as expectativas inflacionárias alimentam continuamente o processo.

 

Estrutura e conteúdo dos capítulos

Os oito capítulos centrais, do II ao IX, tratam pormenorizadamente da moeda na evolução econômica brasileira e seus títulos respectivos são um indicativo de seu conteúdo. Um rápido sumário de cada um deles, com maior ênfase sobre o período republicano, pode dar uma ideia da estrutura e conteúdo dessa obra exemplar de história econômica.

 

II. Monopólio dos Serviços Bancários

Discorre sobre as origens do liberalismo econômico no Brasil, o deslocamento da monarquia portuguesa e seu impacto na formação do sistema monetário brasileiro, a constituição do primeiro banco oficial e seu desempenho, antes e depois da Independência, que se conclui aliás pela liquidação do Banco do Brasil em 1829.

 

III. O Insucesso na Reforma do Mercado Monetário e o Estabelecimento dos Bancos Emissores, 1830/51

Este capítulo cobre os problemas do estoque de moeda no período regencial, o debate sobre o cobre e o papel-moeda, a lei do padrão-ouro e a legislação alfandegária de 1844.

 

IV. Consolidação do Sistema Monetário Brasileiro, 1849/69 

Trata da política econômica do Segundo Reinado, com a Lei Bancária de 1853 e o estabelecimento do segundo Banco do Brasil, a Lei Bancária de 1860, ademais da pluralidade de emissão e os diversos “pânicos” por que passou, em 1857 e 1864, o sistema bancário brasileiro, em face da “desordem” emissionista nessas fases. “A reforma monetária metalista de 1860 foi elaborada com o propósito de restringir a atividade bancária na crença de que o rápido crescimento dos bancos emissores durante o período 1850/60 teria sido a principal causa da crise de 1857. O objetivo da reforma foi assegurar a conversibilidade do papel-moeda em ouro e o pleno funcionamento do sistema do padrão ouro. (...) O rápido desenvolvimento do sistema bancário foi um dos aspectos mais significativos do progresso mundial durante o século XIX, sob o padrão ouro, nos países que se beneficiavam com o crescimento do comércio internacional, mas o Brasil impediu intempestivamente esse desenvolvimento com a reforma monetária de 1860” (p. 107).

 

V. A Política e Instituições Monetárias durante o Segundo Ciclo do Preço Internacional do Café, 1869/85

Cobre o período final do Império brasileiro, tratando do problema do financiamento da guerra do Paraguai e da política monetária nesses anos, a estrutura do sistema bancário nessa fase, inclusive o “pânico” de 1875 e a lei bancária de 1888, terminando por um resumo da história monetária durante o Império. A lei bancária de 1888, introduzida para paliar os efeitos da abolição e concedendo autorização para criação de bancos de emissão, foi, segundo os autores, “o marco institucional de onde se propagou uma das inflações mais notórias na história brasileira” (p. 121).

 

VI. A Política e as Instituições Monetárias durante a Primeira República

Este importante capítulo cobre um vasto e complexo período, com diversos experimentos monetaristas, emissionistas e deflacionistas a começar por uma análise do terceiro ciclo dos preços do café e o movimento dos indicadores agregados. Sobre a política restritiva de Murtinho, os autores são claros: “Enquanto o Brasil sempre teve um padrão fiduciário, a experiência de 1898/1904 constituiu um de muitos casos em que se imitava o comportamento do padrão ouro mas com grandes custos sociais em termos de desemprego e redução do bem estar” (p. 148). Murtinho foi muito além dos “ortodoxos” dos países desenvolvidos ao argumentar que a indústria não era viável no Brasil devido à inferioridade racial de seus habitantes em relação aos países já industriais: o progresso apenas viria através do libre intercâmbio comercial, da construção de ferrovias e de políticas monetárias austeras.

É dada ênfase particular à política monetária durante a valorização do café, entre 1906 e 1912, com seus efeitos nefastos para o desenvolvimento do País. O impacto da Primeira Guerra na economia brasileira é tratado numa seção especial, segundo a teoria dos períodos adversos, isto é, de fechamento externo, que, aliás, não favoreceram absolutamente o desenvolvimento industrial. Faz-se, finalmente, uma análise do insucesso das políticas monetária e fiscal na década de 1920.

Concluem os autores que, “no longo prazo, a ênfase do Brasil em unir-se ao clube do padrão ouro não conduziu ao crescimento. (...) O caso brasileiro é um bom exemplo de como estruturas financeiras deficientes podem retardar o crescimento e a modernização. (...) Muito se tem dito sobre a influência da teoria clássica sobre a distribuição desfavorável dos lucros do comércio exterior e do progresso técnico entre os países industriais e as regiões menos desenvolvidas. [Nota de rodapé: “As políticas do padrão ouro seguidas no Brasil baseavam-se nos trabalhos de economistas como Heinrich Grossen, The Laws of Human Relations...”.] A história brasileira mostra a existência de uma transmissão das políticas econômicas ortodoxas. Mas aquelas políticas jamais foram favorecidas pelos economistas clássicos” (pp. 148-150).

 

VII. A Grande Depressão e a II Guerra Mundial 

Aqui se ensaia uma explicação keynesiana revista da depressão brasileira e se analisa a política cafeeira ao longo de todo o período. Já no capítulo anterior os autores tinham enfatizado o argumento de que “a experiência refuta o postulado básico da teoria dos períodos adversos, de que a indústria somente poderia estabelecer-se nas economias de exportação latino-americanas em períodos de redução maciça do comércio exterior” (p. 174). Eles também tinham sublinhado o fato de que “a redução do comércio internacional e a interrupção do fluxo de ideias e capital impediram a modernização do País sobre alicerces realmente eficientes” (p. 175).

Neste capítulo os autores fornecem base empírica para confirmar que, efetivamente, o Brasil contornou a Depressão da melhor forma possível, mas que “dificilmente se poderia considerar aqueles anos como período de progresso ou confirmação empírica das vantagens do modelo latino-americano de crescimento introvertido e muito menos como justificativa para maiores controles governamentais da atividade econômica” (p. 214).

 

VIII. A Política Monetária do Brasil, 1947/72

Cobre um vasto período com experimentos os mais diversos de política monetária, desde a fase da taxa de câmbio supervalorizada (seguindo no caso as recomendações do FMI emanadas de Bretton Woods), passando pelas reformas do mercado cambial dos anos 1950, até as diversas políticas tentativas de controle do problema inflacionário, com as diversas estratégias, graduais ou lentas, de correção, inclusive já no regime militar. Uma das mais notórias foi o Plano Nacional de Estabilização (PNE), de 1958, motivado pelo descontrole inflacionário e a crise cambial e abandonado em junho do ano seguinte sob forte ataque dos “estruturalistas”, que argumentavam que uma inflação de 20% ao ano era “compatível com as necessidades de desenvolvimento da economia brasileira”. Segundo os autores, “o que aconteceu foi a explosão inflacionária, caos econômico, tensão social e crise política” (p. 259).

O primeiro período militar coincide com importantes reformas estruturais, permitindo ao Governo obter recursos não inflacionários para financiar o déficit público, segundo receitas de um “monetarismo eclético” (p. 268). A partir de 1967, a política de gradualismo, com a combinação de medidas anti-inflacionárias de caráter monetário, fiscal e salarial, começou a dar resultados, a despeito mesmo da introdução de taxas de juros reais positivas. A partir de 1968, foi adotada a política de taxa de câmbio flexível, caracterizada por minidesvalorizações graduais e constantes, promovendo as exportações e incentivando os investimentos.

 

IX. A Crise do Petróleo e a Diversificação da Estrutura Financeira 

Parte do processo de industrialização na fase de grande crescimento dos anos 1970 e focaliza com maior detalhe a reforma do sistema financeiro brasileiro, seus instrumentos (como a correção monetária) e o desempenho geral desse período. O Brasil utilizou-se de instrumentos ortodoxos e não ortodoxos para melhorar o nível de eficiência de seu sistema econômico e permitir o crescimento sustentado. A crise do petróleo, aliás, reforçou ainda mais o planejamento estatal e o estímulo à industrialização, mas a inflação voltou a crescer, ainda que em ritmo de stop and go. Os desequilíbrios generalizados, a introdução de medidas compensatórias e o desenvolvimento da intermediação financeira conduziram a uma inflação crônica ou inercial, facilitada ainda pela correção monetária.

 

A Experiência Monetária do Brasil

O capítulo final, bastante sistemático, traz conclusões sobre cada um dos períodos analisados anteriormente, tanto do ponto de vista do comportamento monetário brasileiro, como das instituições monetárias em cada uma das fases selecionadas. Importância particular é dada ao mercado do café, o grande determinante dos equilíbrios fiscais e monetários durante boa parte da evolução econômica no Brasil independente. Na verdade, o período de defesa do café se estende até uma fase ainda recente da economia brasileira, mas sua importância era evidentemente maior na fase anterior à Segunda Guerra Mundial.

Como indicam os autores, uma grande deficiência das séries monetárias brasileiras é a impossibilidade, para quase todos os períodos enfocados, de identificar os fatores que influenciaram a variação da base monetária. Igualmente difícil é definir as relações entre a moeda em poder do público e o estoque de moeda, por um lado, e entre o encaixe bancário e os depósitos, por outro, que deveriam refletir, respectivamente, o comportamento do setor público, do público e dos bancos. A razão é que não existe, para o período anterior à Segunda Guerra Mundial, dados sobre o balanço de pagamentos, o estoque de ouro e outros dados importantes, a partir dos quais se poderia intentar “explicar as variações dos determinantes próximos do estoque de moeda” (p. 6). Eles indicam suas diferenças de método em relação ao modelo proposto por Friedman e Schwartz para os Estados Unidos, por exemplo, demonstrando como, no Brasil, se deve incluir os depósitos à vista no Banco do Brasil na base monetária, uma vez que essa instituição quase sempre funcionou como autoridade monetária e como banco comercial.

Ademais da construção de séries estatísticas, uma grande importância é igualmente dada às mudanças institucionais, particularmente importantes num país em que a política monetária se caracteriza por enormes descontinuidades, em todas as épocas.

Como demonstrado amplamente no livro, e a própria experiência se encarrega de confirmar, no século XX, a inflação e o crescimento do estoque de moeda aceleram-se consideravelmente no Brasil, a despeito mesmo do crescimento satisfatório do produto real per capita. Apenas no período do regime de 1964 (e somente em sua primeira fase) o Brasil conheceria crescimento econômico com taxas declinantes de inflação, sem ter no entanto conseguido resolver o problema secular do processo inflacionário: deficiências na política de financiamento do orçamento. Durante a maior parte de nossa história republicana (e mesmo imperial), a falta de responsabilidade fiscal dos governos resultava em déficits crônicos financiados por emissão de dinheiro, e o aumento da base monetária provocava sempre novos aumentos do estoque de moeda. 

No período anterior à Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o crescimento se deu a modestas taxas anuais de 1,7% [um número que talvez devesse ser revisto], ao passo que o estoque de moeda aumentava à razão de 10% anuais e os preços ao nível mais modesto de 4,6% ao ano. Já no período 1947/1970, o produto real per capita cresceu a taxas médias anuais de 3,3%, enquanto os preços o faziam a um ritmo de 23%, e o estoque de moeda em cerca de 27% (p. 335). Em 1964 se tentou interromper esse processo vicioso, com a introdução de uma reforma monetária e financeira.

Aliás, segundo os autores, um importante fator do atraso econômico brasileiro, em todo o período coberto pelo trabalho, foi a incapacidade de reformar os mercados monetários segundo os padrões requeridos para um desenvolvimento continuado. É claro que outros fatores também pesaram, como a alta taxa de crescimento demográfico, o baixo nível de investimento em educação e alfabetização em geral, as políticas nocivas de valorização do café que desviavam recursos e renda de setores ligados ao mercado interno, bem como o ambiente pouco propício à difusão de tecnologia, seja por problemas externos (crises e guerras mundiais), seja por fatores propriamente internos, mas o trabalho procura concentrar-se nas deficiências das instituições financeiras como fator de atraso.

Tentativas foram feitas, é verdade, de se corrigir o problema. No século passado, homens como Mauá e Souza Franco procuraram desenvolver instituições bancárias com direito de emissão, seguindo exemplos bem sucedidos na Europa. “A escola papelista de intermediação financeira foi derrotada pela escola metalista defensora do padrão ouro, das restrições ao desenvolvimento bancário, de um estoque de moeda puramente metálico e do monopólio de emissão e de quase todos os serviços bancários pelo Banco do Brasil, estritamente controlado pelo Governo. Conquanto o Brasil não obtivesse o estoque de moeda puramente metálico, o Banco do Brasil recebeu privilégios extraordinários que lhe permitiram absorver a maior parte dos bancos de emissão existentes.  Desde seu estabelecimento, a instituição controlou um mínimo de um terço dos serviços bancários brasileiros, contribuindo em alguns dos períodos para o financiamento inflacionário do déficit orçamentário” (pp. 336-338). 

No começo da República houve uma reversão nessas práticas, com autorização para o estabelecimento de instituições bancárias com direito de emissão, mas o aparente sucesso da contra-reforma de 1898-1902 aumentou o prestígio das políticas metalistas no Brasil, padrão ao qual se ateve a grande maioria das autoridades monetárias nas décadas seguintes. A estrutura bancária brasileira sempre foi muito deficiente, com um grande banco para assuntos governamentais – “servindo a determinados grupos de atividade privada de acordo com a tônica mutante do favorecimento político” – e um número reduzido de grandes bancos tradicionais fracionando o negócio bancário remanescente. Na verdade, o grande banco oficial também servia a interesses privados e, no mais das vezes, de instrumento relevante do processo inflacionário.

Para aqueles que consideram que a fixação de um limite máximo para a taxa de juros é uma loucura própria aos constituintes de 1988, cabe lembrar, como o fazem os autores, que uma Lei de Usura de 1933 fixou um teto para os juros. Como agora, a prática se encarregou de corrigir a deformação legal: “Se a Lei tivesse sido cumprida estritamente, todo o setor bancário brasileiro teria ido à falência. Contudo, os bancos encontraram outros expedientes para contornar o problema e cobrar juros maiores. Dentro dessa conjuntura irracional, fazia-se cada vez mais difícil emprestar dinheiro a taxas de juros reais positivas. Como as taxas de juros pagas aos depositantes eram também taxas reais negativas, o setor bancário descobriu uma fonte de lucros na atração de depósitos. Essa concorrência por atrair depósitos do público, assim como o interesse em adquirir propriedade urbana para contornar a inflação, explicam a alta artificial no número de estabelecimentos bancários. Tal experiência mostra o insucesso e adiamento da reforma bancária no Brasil. O resultado foi a criação de um sistema bancário altamente ineficiente e custoso” (p. 336).

 

Crescimento em fase de abertura ou retração externa?

No período anterior à Segunda Guerra, de modo geral, a defesa do café foi uma política consistentemente seguida pelos diversos governos republicanos, antes e depois da crise de 1929 e da revolução de 1930: essa defesa “concentrou artificialmente a renda no setor cafeeiro em detrimento dos outros ramos da atividade econômica, constituindo-se num fenômeno social lamentável” (p. 344). No que se refere à crise de 1929 e a depressão que se seguiu, os autores demonstram que o Brasil sofreu menos que os Estados Unidos e sua recuperação foi mais rápida. De toda forma, o Brasil já tinha experimentado uma contração econômica durante os anos 1920, resultado de políticas restritivas, e quando, nos anos 1930, os controles cambiais dificultaram as importações, as indústrias já instaladas receberam um estímulo para o crescimento da produção. Eles negam, assim, algumas virtudes proclamadas da teoria da industrialização substitutiva, preferindo ver o fenômeno como uma espécie de “acidente histórico”.

No geral, os períodos “extrovertidos” foram mais favoráveis à industrialização do que os “introvertidos”, estes fortemente marcados pela redução nos níveis de intercâmbio, inclusive importação de tecnologia e know-how. “Na verdade, um dos fatores do atraso do Brasil reside na ocorrência dos períodos adversos. O processo de modernização e industrialização do País já tinha começado em condições de expansão do comércio internacional e é possível especular que na ausência das guerras e da Grande Depressão o Brasil teria progredido em ritmo muito mais acelerado” (p. 350). A despeito disso, o fato é que, no período posterior à Segunda Guerra, o Brasil segue, com algumas exceções em anos isolados, “políticas típicas de desenvolvimento introvertido”. A substituição de importações foi premiada e as foram exportações penalizadas. “De fato, o Brasil caracterizou-se por uma das piores experiências em matéria de exportação no mundo” (p. 350).

É também nesse período que a inflação cresce para patamares nunca conhecidos. “A irresponsabilidade orçamentária e a política de maximização das receitas de divisas provenientes da exportação de café constituíram os fatores mais importantes da inflação brasileira. A base monetária contribuiu com quase todo o aumento do estoque de moeda. O processo de aumento da base monetária resultou do financiamento do déficit orçamentário, da conta café e do crédito a diversos grupos de atividade empresarial privada de acordo com o favoritismo político esporádico feito através do Banco do Brasil. A inflação causou as mais diversas distorções da atividade econômica salientadas nos livros-texto assim como todas as injustiças sociais concomitantes” (p. 351). O Plano de Estabilização intentado no Governo Kubitschek, com a combinação de medidas graduais de política orçamentária, monetária e salarial, foi abandonado por motivos políticos, originando-se aí a forte onda inflacionária que assolou a economia brasileira no começo dos anos 60.

 

Uma História Monetária não monetarista

Esse mesmo quadro de irresponsabilidade orçamentária e favorecimentos políticos parece caracterizar o cenário econômico brasileiro no período da redemocratização ulterior a 1985, que está obviamente fora do período coberto pelo excelente trabalho de Peláez e Suzigan. Seríamos tentados a aplicar o tradicional refrão sobre a repetição da história, mas os próprios autores advertem, no parágrafo final sobre história e política econômica, que a principal contribuição da história econômica — talvez a única, eles sublinham — é proporcionar parte dos alicerces culturais de um país; mais do que isso, ela não pode fazer. “Mesmo dentro desse esquema, a contribuição dos historiadores econômicos é bem reduzida por poderem somente fornecer algumas partes empíricas de uma estrutura cuja harmonia global depende das contribuições dos historiadores-padrão dotados de visão schumpeteriana do processo social” (pp. 351-2).

O livro contém um excepcional apêndice estatístico, com tabelas relativamente completas de dados relativos ao papel-moeda emitido no Brasil, aos volumes de encaixe nos bancos comerciais e de moeda em poder do público, em depósito e o estoque de moeda, desde meados do século passado até o começo dos anos 1970, com uma indicação detalhada de todas as fontes e da metodologia utilizada na reconstrução serial. Elas constituem, desde já, a base indispensável a outros estudos pormenorizados de história monetária do Brasil. Infelizmente, a bibliografia, tanto a de caráter teórico geral, como a de cunho empírico-histórico sobre o Brasil, está disseminada em notas de rodapé ao longo dos capítulos, quando teria sido útil uma visualização sistemática ao final do trabalho.

O livro, em todo caso, é um brilhante exemplo de utilização de teorias econômicas e de comprovação histórica por via de uma fundamentação empírica real, aplicadas ao caso brasileiro. Os autores acreditam, acertadamente, que “é cientificamente impossível isolar relações puras e unidirecionais de causa e efeito em economia, e muito menos em história econômica” (p. 7). Para eles, “a história econômica deve usar a teoria para identificar os aspectos substantivos da experiência econômica passada. Mas a solução não é teoria sem realidade. Muito pelo contrário, o sucesso em adquirir conhecimento sobre os aspectos fundamentais do passado econômico depende da conjugação apropriada da teoria com a realidade” (p. 352).

 

[Brasília, 26.04.93]

[Revisto em 21.05.93]

[Relação de Trabalhos nº 338]

 

 

338. “Uma História Monetária... não Monetarista”, Brasília: 26 abril 1993, 12 pp., revisto em 21 maio 1993, 12 p. Resenha do livro de Carlos Manuel PELAEZ e Wilson SUZIGAN: História Monetária do Brasil: Análise da Política, Comportamento e Instituições Monetárias (2ª ed., revista e ampliada. Brasília: Editora Universidade de Brasília: 1981; Coleção Temas Brasileiros, 15). Inédito.

 

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