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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

FakeNews na História - Café História

 Fake News na história: uma bibliografia comentada

Por Bruno Leal Pastor de Carvalho

Um antigo provérbio português diz que “a mentira corre mais que a verdade”. Na “Era do WhatsApp” é difícil duvidar dessa máxima popular. Hoje, a mentira parece ter fôlego de maratonista. As fake news, ou, em bom português, as notícias falsas, correm rápido nas tramas das redes sociais; aparecem na forma de vídeo, de texto e de áudio. Misturam-se ao fantasioso, ao fanatismo e principalmente às teorias conspiratórias. Apresentam-se como notícias propriamente ditas, alertas salvadores e até mesmo como história.

Uma pesquisa internacional realizada e divulgada em 2019 pelo Centro para a Inovação em Governança Internacional (CIGI), sediado no Canadá, revelou que 86% das pessoas admitiram ter acreditado em pelo menos uma notícia falsa. Foram ouvidas na pesquisa pessoas de 25 países, e em 82% dos casos essas fake news, segundo os respondentes, estavam em redes sociais como Facebook e Twitter. É bastante assustador.

Fake News na história: uma bibliografia comentada 1
Fake News: um dos maiores fenômenos sociais e políticos de nosso tempo. Foto: Pixaby.

Mas as notícias falsas não são uma novidade. É possível encontrá-las muito facilmente no passado, em suas múltiplas denominações e formatos. Muito antes do surgimento da imprensa moderna e de Donald Trump, elas já estão regulando e deformando as relações sociais, derrubando governos e destruindo reputações. São usadas para diversos fins: políticos, econômicos, sociais, pessoais e coletivos. As notícias falsas, como a mentira de uma forma geral, são constitutivas da experiência humana ao longo do tempo.

Nessa bibliografia comentada, escolhi 10 leituras, entre artigos e livros, em português e inglês, que podem ajudar o leitor a ter uma visão histórica das fake news. A ideia é mostrar como as notícias falsas sempre fizeram parte de nossas comunidades. Na verdade, as leituras aqui sugeridas falam não só das notícias falsas, mas de várias manifestações do falseamento: as meias-mentiras, os boatos, os plágios, os exageros, os impostores, os golpes, as fraudes, os livros apócrifos, a falsidade ideológica, o perjúrio e as campanhas difamatórias. 

Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa
Autor: Danilo Angrimani
Ano: 1995
Editora: Summus Editorial
Lançado em 1995, o livro de Danilo Sobrinho Angrimani é uma versão condensada da sua tese de doutorado, defendida em 1993 na Universidade de São Paulo. Como o título deixa claro, o autor faz uma análise da imprensa sensacionalista, desde o seu surgimento, na Europa do século XIX, até o final do século XX, quando os tabloides e outros forma-tos populares vão explorar perversões, fetiches e o voyeurismo para vender seus exempla-res. Angrimani examina vários produtos impressos do passado que se valem do inverídi-co e di insólito. Um desses produtos são as chamadas occasionnels, brochuras que circu-laram na França dos séculos XVII e XVIII. As occasionnels eram especializadas no rela-to dos fait divers (notícias insólitas e pitorescas do cotidiano) e se caracterizavam pelo “exagero, a falsidade ou inverossimilhança (…) imprecisões e inexatidões”.
História da mentira: prolegômenos
Autor: Jacques Derrida
Ano: 1996
Editora: Revista Estudos Avançados
A mentira conquistou a atenção do conhecido filósofo francês Jacques Derridá nos últi-mos anos de sua vida. Em 1996, Derridá publicou um ensaio, traduzido para o português, intitulado “História da mentira: prolegômenos”. Nesse texto ele defende, por exemplo, que a mentira é sempre um “ato intencional”. Suas próprias palavras: “mentir seria dirigir a outrem (pois não se mente senão ao outro, não se pode mentir a si mesmo, a não ser a si mesmo enquanto outro) um ou mais de um enunciado, uma série de enunciados (constati-vos ou performativos) cujo mentiroso sabe, em consciência, em consciência explícita, te-mática, atual, que eles formam asserções total ou parcialmente falsas; é preciso insistir desde já nessa pluralidade e complexidade, até mesmo heterogeneidade. Tais atos intenci-onais são destinados ao outro, a outro ou outros, a fim de enganá-los, de levá-los a crer (a noção de crença é aqui irredutível, mesmo que permaneça obscura) naquilo que é dito, numa situação em que o mentiroso, seja por compromisso explícito, por juramento ou promessa implícita, deu a entender que diz toda a verdade e somente a verdade”. O artigo poder ser baixado de graça aqui.
Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news
Autor: Matthew D’Ancona
Ano: 2018
Editora: Faro Editorial
Este livro é indicado para quem deseja compreender o fenômeno das fake news nos dias de hoje, das mídias digitais, bem como a sua relação com a pós-verdade (que, brevemente, pode ser explicada como uma época em que os aspectos emocionais da narrativa falam mais alto do que os fatos). D’Ancona é jornalista e escreve uma coluna semana no jornal The Guardian, da Inglaterra. O livro dele traz várias problematizações importantes para se pensar o tema. É um texto jornalístico. Então, não espere notas de rodapé e debates aca-dêmicos muito aprofundados, embora o material seja bem documentado e argumentado. O autor examina a retórica de Trump, discute a questão do “Bexit” e também o negacionismo do Holocausto. D’Ancona usa o termo “nova audiência política” para tentar compreender a forma como as pessoas consomem notícias na atualidade.
Renaissance impostors and proofs of identity
Autor: Miriam Eliav-Feldon
Ano: 2012
Editora: Springer
Livro interessantíssimo sobre uma antiga forma da mentira: o impostor. Nesta obra sobre impostores na renascença, a historiadora explica que é possível considerar a Europa Mo-derna como a “Era dos Impostores”. Em suas palavras, “homens e mulheres de todas as esferas da vida estavam inventando, fabricando e se disfarçando, mentindo sobre quem eram ou fingindo ser alguém que não eram”. E isso, diz a historiadora, incomodava as autoridades, tanto as religiosas quanto as seculares, que trabalhavam freneticamente a fim de desenvolver novos meios para auferir a identidade de uma pessoa. A autora, a propósi-to, tem um sólido e reconhecido trabalho sobre a “história da mentira”. Vale a pena conhecer o artigo Invented Identities: Credulity in the age of prophecy and exploration e o livro Dissimulation and Deceit in Early Modern Europe. Infelizmente, não há nenhum trabalho de Miriam Eliav-Feldon em português.
Regimes of posttruth, postpolitics, and attention economies
Autor: Jayson Harsin
Ano: 2015
Editora: Revista Communication, culture & critique
Esse é um texto bem importante para quem quer se aprofundar no debate sobre a chamada pós-verdade. Como você já deve ter percebido,o termo “pós-verdade” é muito corrente hoje na literatura que se debruça sobre as notícias falsas. Em 2015, o filósofo e especialista em comunicação digital Jayson Harsin cunhou uma variação dele: “regime de pós-verdade”. Mas ele não quer inventar a roda. O pesquisador estadunidense complexifica o tema ao situar a pós-verdade dentro de regimes de temporalidade e verdade. Apoiando-se na obra de Foucault, Harsin diz que cada tempo possui o seu próprio regime de verdade. O nosso engloba a proliferação daquilo que ele descreve como “mercado de verdade”. Não sabe inglês? Não tem problema. Você pode ler aqui, em português, uma entrevista que o autor deu a revista “Época” em abril de 2017.
Presidente Donald Trump em jornal. No lugar da boca, um rasgo.
O ex-presidente Donald Trump fez circular inúmeras notícias falsas durante o seu mandato. Foto: Charles Deluvio, Unplash.
Broadcast Hysteria: Orson Welles’s War of the Worlds and the Art of Fake News
Autor: Brad Schwartz
Ano: 2015
Editora: MacMillan
O historiador Brad Schwartz esquadrinha um caso clássico de fake news no século XX: a fatídica transmissão de “Guerra dos Mundos”, de Orson Welles, em 1938. Muita gente desavisada achou que o programa radiofônico de Welles fosse verdade, e que os Estados Unidos estavam sendo atacado por marcianos. Pois bem: Schwartz diz que a imprensa exagerou ao relatar as reações dos populares. A histeria foi menor do que a divulgada pelos jornais, embora tenha existido. O mais importante sobre esse caso, diz o autor, é que nós ainda não entendemos plenamente as suas lições. A persistente leitura exagerada do episódio, segundo ele explica, não só interpretaria mal o poder persuasivo da mídia e a forma como as notícias falsas realmente funcionam, como nos impediria de lidar asserti-vamente com o problema das fake news no presente. Para Schwartz, a pergunta-chave seria outra: por que “A Guerra dos Mundos” assustou algumas pessoas, mas outras não? Schwartz explica que em 1938 muitos estudiosos acreditavam que o rádio poderia sim-plesmente injetar ideias diretamente na mente das pessoas, convencendo-as de qualquer coisa. O historiador, assim, defende que a transmissão de Welles não teria simplesmente passado por cima do consciente das pessoas a fim de convencê-las de algo em que elas não acreditavam e nem acreditariam de qualquer outra forma; a grande questão em jogo aqui é que a transmissão de Welles mobilizou medos, atitudes e crenças que já existiam no imaginário de cada pessoa. Segundo resume o historiador, a mídia não consegue conven-cer o público de algo que vai contra suas atitudes ou ideias preexistentes, o que ela pode fazer – e o que ela faz, de fato – é reforçar aquilo em que as pessoas já acreditam.
The” Great Moon Hoax” of 1835
Autor: István Kornél Vida
Ano: 2012
Editora: Hungarian Journal of English and American Studies
A história da transmissão de Orson Welles em 1938 se tornou uma espécie de paradigma no campo da comunicação social, mas há uma outra história, igualmente incrível, e que também aconteceu também nos Estados Unidos, que merece a nossa atenção. Trata-se do “Grande embuste sobre a lua”. Essa história incrível é contada e examinada por István Kornél Vida nesse artigo, que pode ser lido gratuitamente aqui (caso você esteja usando a rede de uma universidade pública). Em 1835, o jornal The New York Sun precisava vencer a concorrência e decidiu apelar: inventou uma série de notícias sobre o relevo e – pasmem – as formas de vida na Lua, algumas muito parecidas com unicórnios. As vendas do jor-nal dispararam. Até mesmo gigantes do setor, como o The New York Times, deram crédito a narrativa falsa do jornal. De acordo com Vida, antes da mentira ser revelada, o que levou algumas semanas, muita gente encarou a “descoberta” como uma grande oportunidade: “Diversos grupos religiosos começaram a planear atividades missionárias entre os habi-tantes da Lua; um clérigo solicitou membros de sua congregação por fundos para comprar Bíblias para os extraterrestres. A sociedade filantropista em Londres organizou várias reuniões no Exeter Hall em Londres visando “suprir as necessidades dos povos da Lua, e, acima de tudo, abolir a escravidão caso ela existisse entre os habitantes de lá.”
O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício
Autor: Carlo Ginzburg
Ano: 2007
Editora: Editora Companhia das Letras
Carlos Ginzburg é um dos historiadores mais respeitados na atualidade. Ele e outros his-toriadores italianos desenvolveram, a partir da década de 1970, um método de análise e abordagem histórica chamada “micro-história”, que olha para pequenos aspectos do coti-diano (de uma localidade) a fim de explorar a sua relação com estruturas maiores. Em “O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício”, Ginzburg traz um pouco de sua micro-história para afalar sobre as relações entre fato e ficção. O livro combina muita erudição com deba-te teórico e estudos de caso. Não é um livro fácil para não-historiadores, mas a leitura é possível. Dentre os “causos” do livro, está o dos fatídicos “Protocolos dos Sábios de Si-ão”. Dividido em 24 capítulos, o livro apresenta-se como a cópia fiel das atas de supostas reuniões secretas envolvendo várias lideranças judaicas (“os sábios de Sião”) que tinham o intuito de dominar o mundo. Para isso, os judeus controlariam as finanças, o governo, a política e a educação. O livro, que é falso, surgiu na virada do século XIX para o XX. Mesmo tendo a farsa vindo à tona, ele continuou sendo publicado e traduzido, alimentan-do diferentes movimentos antissemitas ao redor do mundo. No livro, Ginzburg discute como essa narrativa surgiu e se tornou tão poderosa.
O abscôndito da mentira
Autor: Fernando Catroga
Ano: 2020
Editora: Revista Estudos Literários
Neste artigo acadêmico, que pode ser lido na íntegra aqui, gratuitamente, o famoso histori-ador português Fernando Catroga discute as transformações histórico-conceituais sofridas pelo conceito de “mentira”, bem como a sua relação com o de “verdade” e, sobretudo, com o de “veracidade”. Segundo Catroga, “A história da mentira não pode ser descrita como um desfile em que, paulatinamente, ela vai sendo derrotada; ela não é a parusia de uma Verdade absoluta que, definitivamente, acabará por construir a plena translucidez do mun-do. O seu percurso é traçado por uma luta sempre inconclusa, em que podem ser surpre-endidas as metamorfoses das formas, das motivações, das técnicas, das vias e dos efeitos que plasma as necessidades subjetivas e sociais do mentir. Histórica e sociologicamente falando, a mendacidade não é unívoca nos seus modos de expressão, e a pele que veste não é homogénea e inseparável dos campos e níveis em que se manifesta.”

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Fake News na história: uma bibliografia comentada. (Bibliografia Comentada). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/fake-news-na-historia/. Publicado em: 21 dez. 2020. ISSN: 2674-5917.



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