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Uma classificação de comportamentos políticos do ponto de vista da democracia

Conservadores e reacionários, inovadores e revolucionários

CONSERVADORES E REACIONÁRIOS

O termo conservador, em política, surgiu na França, por volta de 1810, para designar aqueles que se opunham à Revolução Francesa e a Napoleão defendendo o Antigo Regime, quer dizer, a volta ao domínio da aristocracia fundiária.

Mas o comportamento político conservador surgiu muito antes, a partir de 509 a.C., na resistência da aristocracia fundiária (olha que coincidência!) ao surgimento da democracia. Quando surgem em Atenas os conservadores se declaram ‘patriotas’, para dizer com isso que queriam voltar ao “regime de nossos país” (o antigo regime autocrático do domínio da aristocracia fundiária, o “ancien régime” daquela época  – olha, de novo, que coincidência!).

Conservadores, por definição, se contrapõem a inovadores, mas surgiram historicamente combatendo os revolucionários (o que não é a mesma coisa).

Conservadores podem se converter à democracia e quando o fazem é mais para manter um modelo de governança onde se ajustaram do que para dar continuidade ao processo de democratização (que é sempre uma sequência de inovações que, paulatinamente, desconstituem padrões de organização hierárquicos e modos autocráticos de regulação de conflitos).

Conservadores jamais teriam inventado e reinventado a democracia – que foi a maior inovação política e social já surgida na história – e, se depender deles, as democracias nas quais vivem correm o risco de se cristalizar ou degenerar como oligarquias. Mas, enquanto respeitam as normas democráticas – o Estado democrático de direito, o império da lei, as instituições que dinamizam o sistema de freios e contrapesos, enfim, os direitos políticos e as liberdades civis -, conservadores são players válidos do regime democrático.

O mesmo não se pode dizer, entretanto, dos reacionários, que não querem manter nada, ou seja, não querem conservar e sim retrogradar para formas pretéritas de regime político autocráticas.

A fronteira entre um conservador e um reacionário é muito nebulosa pois, na sua gênese, o comportamento político conservador (tanto na Grécia clássica, como resistência às reformas de Clístenes e Efialtes, quanto na Bretanha dos “Les Chouans” – os nobres franceses que resistiam à Revolução Francesa) aparece sempre como reação, como volta a um passado que foi abolido por alguma mudança.

INOVADORES E REVOLUCIONÁRIOS

O termo inovador, em política, nunca foi usado para designar uma corrente de pensamento ou um comportamento determinado de um grupo de agentes (como foi usado, por exemplo, o termo conservador). Mesmo assim há um comportamento político inovador que se diferencia do comportamento revolucionário: é o caso, precisamente, do comportamento dos democratas.

Os democratas nunca foram propriamente revolucionários (como os jacobinos da revolução francesa e os bolcheviques da revolução russa) e sim inovadores (como Clístenes e Efialtes, inventores da primeira democracia em Atenas, em 509 e 461 a.C., ou como os parlamentares ingleses que editaram os Bill of Rights no século 17 contra o poder despótico de Carlos I e de outros representantes da monarquia absolutista, reinventando a democracia na modernidade). Esses inovadores democráticos eram mais, digamos, reformistas do que revolucionários. Introduziram reformas importantes, mas não se dispuseram a impor, pela força, as mudanças que pretendiam realizar (na verdade, nem tinham muito claro quais seriam os resultados das reformas que implantaram, apenas agiram de acordo com o que imaginavam ser o viver sem estar submetido ao jugo de um senhor).

Já os considerados revolucionários não apenas tentaram implementar as mudanças que preconizavam para a sociedade, obtendo, pela persuasão, a concordância ou o assentimento dos demais atores políticos e da população, mas desfecharam insurreições ou outras formas de guerra para aplicá-las na marra ou, então, numa versão mais contemporânea, tentaram usar instrumentalmente as vias institucionais degenerando a política como continuação da guerra por outros meios (por exemplo, usando as eleições contra a democracia).

Com efeito, talvez por isso a democracia nunca tenha nascido da guerra. E nenhum processo revolucionário (conhecido ou designado como tal) tenha resultado em democracia ou mais-democracia.

A tensão que mantém viva a democracia (e permite a continuidade do processo de democratização) é entre conservadores e inovadores, não a oposição entre reacionários e revolucionários. O fato de o principal pensador conservador ser Edmund Burke (1790) e de ele ter afirmado seu pensamento em oposição ao comportamento dos revolucionários franceses, revela como é tênue a linha divisória entre um conservador e um reacionário. Mas tudo bem que os conservadores se oponham aos revolucionários, sobretudo por discordar de seus métodos. O problema é quando um conservador se opõe a um inovador de modo a deslegitimá-lo: neste caso ele passa para o campo dos reacionários.

Revolucionários e reacionários, em geral, falam em nome de um povo imaginário, que não é o conjunto da população e sim o de seus seguidores. Ambos veem a sociedade como dividida em uma única clivagem – povo versus elite – e se comportam encorajando essa polarização e praticando a política como guerra do “nós” contra “eles”. Além disso, são majoritaristas, quer dizer, imaginam que é preciso fazer maioria em todo lugar, acumulando forças para conquistar hegemonia sobre a sociedade. Ambos acham que as minorias políticas (antipopulares) não devem ser toleradas (e devem até ser deslegitimadas) quando impedem a realização das políticas populares. Avaliam que a legalidade institucional (o sistema, erigido para servir às elites) não deve ser respeitada quando se contrapõe aos interesses do povo (dos quais eles se acham os únicos intérpretes legítimos). Sim, os comportamentos políticos de reacionários e revolucionários apresentam vários isomorfismos. Pode-se dizer que reacionários são revolucionários para trás. Tanto revolucionários como reacionários aderiram às formas mais malignas de demagogia que são os populismos contemporâneos (por exemplo, o neopopulismo bolivarianista e o populismo-autoritário bannonista).

Por outro lado, ao contrário dos conservadores, os inovadores não acham que devam conservar um modelo e sim criar condições para o seguimento de um processo de inovação contínua na política (que, no caso da democracia, é o processo de democratização ou de desconstituição de autocracia).

UMA CLASSIFICAÇÃO DO PONTO DE VISTA DA DEMOCRACIA

Examinemos o diagrama abaixo.

Na democracia caminhamos na linha horizontal (a abscissa, em verde). O que significa que quanto mais próximo da linha verde, mais conforme à democracia é um comportamento político. O quadrante I não é significativo (não existem praticamente revolucionários conservadores), assim como o III (não existem praticamente inovadores reacionários). Restam, portanto, os quadrantes II e IV.

No quadrante II aparecem os conservadores. Eles são playersimportantes nos regimes democráticos na medida em que alguma ordem (no caso, a ordem democrática: as normas, instituições e procedimentos da democracia) precisa ser conservada contra os que querem derruí-la (sejam os revolucionários ou os reacionários). Todavia, quando atribuem que a ordem – e não a liberdade – é o sentido da política, eles travam as mudanças que são próprias do processo de democratização (que, afinal, é o que propriamente devemos chamar de democracia) e podem se tornar reacionários. É nessa medida que os conservadores se opõem aos inovadores. Por outro lado, eles exercem também um papel moderador, diminuindo o ritmo (que às vezes pode ser alucinante e perigoso) das mudanças políticas. A partir de certo, digamos, ritmo, o constante inovar pode descambar para mudanças que não permitam que a conservação da adaptação e a conservação da organização se deem pelo mesmo movimento, colocando em risco a democracia (em outros termos, isso tem a ver com a sustentabilidade da democracia). O inovador vira então um revolucionário.

No quadrante IV aparecem os inovadores. Inovadores pertencem ao domínio do começar (archein) alguma coisa (nova). Mas começar não implica necessariamente agir (prattein) para levar ao fim a coisa começada. Para tanto é necessário não apenas inovar, mas também conservar (não propriamente uma coisa, mas o processo que a gerou). Em outras palavras, a democracia que temos (suas normas, instituições e procedimentos) precisa ser conservada para podermos alcançar as democracias que queremos (o affair dos inovadores). Sem democracia não se produz mais-democracia.

Nos quadrantes II e IV também aparecem os reacionários e revolucionários. Todavia, se a tensão for entre reacionários e revolucionários, aproximando-se da linha vertical (o eixo das ordenadas, em vermelho), não estaremos mais no campo da democracia (ou a democracia estará em risco de recessão, depressão e colapso). A democracia só se mantém (ou adquire certa estabilidade, embora esteja sempre afastada do estado de equilíbrio) quando a tensão entre reacionários e revolucionários é marginal (e as forças políticas que têm esses comportamentos situem-se nos extremos do espectro político). Forças reacionárias e revolucionárias são metabolizáveis pela democracia se não ocuparem o centro de gravidade da política. Se crescerem além de certo patamar, marginalizando conservadores e inovadores (ou mesmo expulsando-os na cena política), a democracia pode desaparecer em meio a uma acirrada polarização adversarial. Neste caso, a política (propriamente dita) falece: é substituída ou derrotada pela guerra, ainda quando seja uma guerra não-violenta, travada por meio da política (ou antipolítica) como continuação da guerra por outros meios, na fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin.


Notas

Este artigo, de certo modo, recoloca um ponto de vista já apresentado, no início de 2019, no texto Conservadores x inovadores não é a mesma coisa que reacionários x revolucionários.

Sobre a fronteira nebulosa entre conservadores e reacionários vale a pena ler meus comentários sobre os 10 princípios conservadores de Russel Kirk.