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sábado, 19 de dezembro de 2020

O labirinto do isolamento: Bolsonaro, a China e os EUA - Mauricio Santoro (Nexo Jornal)

 O labirinto do isolamento: Bolsonaro, a China e os EUA

Maurício Santoro


Ao se aliar ideologicamente a Trump e adotar um discurso hostil contra o país asiático, o Brasil se colocou em uma situação inédita, correndo risco de retaliações de seus principais parceiros comerciais

Em 2020 o Brasil enfrentou uma sucessão de crises — sanitária, econômica, política — e ao longo do ano as relações do governo brasileiro degeneraram em hostilidade com os dois maiores parceiros comerciais do país, China e Estados Unidos. Como isso aconteceu e quais serão as consequências?

Há uma nova ordem global em gestação, marcada pela ascensão chinesa e pelo acirramento das tensões entre Pequim e Washington. As pressões cruzadas têm levado muitos países a terem que fazer escolhas difíceis: devem permitir que a Huawei, gigante chinesa de telecomunicações, participe da instalação do padrão 5G de internet? Irão aderir à Nova Rota da Seda, o projeto chinês de investimentos globais em infraestrutura? Nesse contexto, o que distingue o Brasil foi ter tomado decisões que o deixaram indisposto com ambos, sem conseguir ganhar benefícios em termos de seus interesses nacionais.

O Brasil estabeleceu relações diplomáticas com a República Popular da China em 1974. O diálogo entre a ditadura brasileira, anticomunista, e o regime marxista de Mao Tsé-Tung se deu com base na percepção de que ambos compartilhavam interesses na política internacional, como grandes países em desenvolvimento que com frequência discordavam das nações ricas do Ocidente.

Em 1993, Brasília e Pequim firmaram uma parceria estratégica. Na década de 2000, com o boom global de commodities, a China se tornou o maior mercado para as exportações brasileiras, sobretudo de soja, minério de ferro, petróleo e carnes. Em anos recentes, os chineses viraram também investidores significativos no Brasil, em especial no setor de energia elétrica.

Jair Bolsonaro é o primeiro presidente brasileiro desde Ernesto Geisel (1974-79) a chegar ao Planalto com um discurso hostil à China, que enxerga como um país comunista cuja influência econômica seria uma ameaça à segurança nacional brasileira. Contudo, a visão ideológica do capitão esbarrou nos interesses dos grandes grupos empresariais do Brasil, para os quais a China é um sócio importante. No primeiro ano de seu governo, em linhas gerais, se manteve a parceria estratégica dos 25 anos anteriores, ainda que permanecessem tensões latentes como a questão da Huawei e do 5G.

Isso mudou com a pandemia. A família Bolsonaro replicou no Brasil o discurso anti-China de Donald Trump, e os filhos do presidente usaram as redes sociais para incitar seus apoiadores contra o país asiático, a quem culpavam pelo coronavírus, e a ameaçar a Huawei. O clã presidencial se engajou na campanha pela reeleição de Trump e entrou em uma disputa partidária com o governador de São Paulo pela distribuição da vacina chinesa junto à população brasileira. Os diplomatas chineses no Brasil responderam em tom de agressividade inédita, com críticas públicas ao governo.

O MAIOR ERRO DO ALINHAMENTO COM OS EUA FOI A VINCULAÇÃO DE BOLSONARO A TRUMP, IGNORANDO A REALIDADE DE UMA SOCIEDADE AMERICANA PROFUNDAMENTE DIVIDIDA COM RELAÇÃO A SEU PRESIDENTE

A pandemia é um marco em uma diplomacia chinesa mais assertiva contra os críticos do país, com uma nova geração de diplomatas muito atuantes nas redes sociais e na política doméstica das nações onde servem — os chamados “lobos guerreiros”. O Brasil se tornou um campo para esse tipo de ativismo em política externa e corre o risco de sofrer represálias comerciais, como as que a China implementa contra a Austrália.

O pilar da política externa de Bolsonaro em seus dois primeiros anos de governo foi a busca de relação preferencial com os Estados Unidos, o que na prática significou o alinhamento ideológico com Donald Trump e conflitos com o Partido Democrata, que mesmo na oposição controlava a Câmara dos Deputados. Esses esforços resultaram em ganhos partidários para a família Bolsonaro, como visitas à Casa Branca e fotos com Trump, mas não renderam benefícios tangíveis para o Brasil. Produtos brasileiros sofrem com o impacto negativo do aumento do protecionismo americano e o país se indispôs com parceiros importantes na Organização Mundial do Comércio e nas instituições latino-americanas por seguir as diretrizes de Washington em detrimento das posições de outras nações em desenvolvimento.

O alinhamento com os Estados Unidos havia sido uma parte importante da diplomacia brasileira no passado, em particular no período em que o barão do Rio Branco foi ministro (1902-12) e na Segunda Guerra Mundial. Nesses dois momentos, os americanos eram o maior mercado para as exportações brasileiras de café, produto que dominava o comércio exterior do Brasil. O cenário hoje é distinto, e atualmente os Estados Unidos não compram sequer 10% das exportações nacionais, que se tornaram mais diversificadas tanto em mercadorias quanto em mercados, com parceiros significativos na Ásia, União Europeia e América Latina

Contudo, o maior erro dessa estratégia foi a vinculação de Bolsonaro a Trump, ignorando a realidade complexa de uma sociedade americana profundamente dividida com relação a seu presidente. A vitória dos democratas nas eleições presidenciais de 2020 leva de volta à Casa Branca agendas de meio ambiente e direitos humanos, em conflito com as ações de Bolsonaro, em particular no que toca ao desmatamento da Amazônia e a seus impactos sobre o aquecimento global.

O Brasil tem pela frente um 2021 bastante difícil, com a pandemia se aproximando dos 200 mil mortos no país e os impactos mais duros da recessão, com o fim do auxílio emergencial. Em meio a tudo isso, a situação inédita de correr risco de retaliações de seus dois principais parceiros comerciais, China e Estados Unidos. O Brasil é uma das dez maiores economias do mundo, ator-chave em várias negociações globais, do comércio à mudança climática. Os conflitos e isolamento que o país arrisca não são uma tragédia inevitável, são fruto de escolhas ideológicas. Como, aliás, sua catástrofe humanitária durante a pandemia.

Maurício Santoro é doutor em ciência política pelo Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e professor-adjunto do departamento de relações internacionais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).


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