O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

Mostrando postagens com marcador Mauricio Santoro. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Mauricio Santoro. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Cabo de Guerra no Mar - Thayz Guimarães (O Globo)

Cabo de Guerra no Mar

Thayz Guimarães
O Globo, 23/12/2023


Sabe aquela reportagem que você insiste, insiste, insiste, até convencer o editor de que ela realmente é interessante? Desde que voltei da Colômbia, em maio, depois de escrever a série “Guerra Suja”, venho insistindo sobre a nessecidade de falarmos das disputas marítimas (que são tão ou mais complicadas que as terrestres). Mas como 2023 foi um ano quentíssimo pro noticiário internacional, apesar da relevância do tema, custamos a encontrar uma janela (ou um gancho, melhor dizendo) que fizesse sentido para publicar essa história. Tudo mudou com o retorno da pendenga entre Venezuela e Guiana pela região do Essequibo.

A fronteira terrestre entre a Guiana e a Venezuela tem sido alvo de disputas desde o período colonial, há quase 200 anos. Mas a descoberta de um vasto campo de petróleo na costa guianesa, em 2015, adicionou novos contornos a essa briga histórica, transformando-a, por procuração, numa disputa também pelo mar. Com uma área de aproximadamente 160 mil km2, a região do Essequibo é majoritariamente constituída por uma selva quase impenetrável. No entanto, controlar essa área — que hoje responde por dois terços do território da Guiana — daria à Venezuela o direito de também explorar um litoral cujo potencial de produção é estimado em 10 milhões de barris. São justamente recursos como esses escondidos debaixo de centenas ou milhares de metros de água, que estão por trás de disputas que se arrastam há décadas entre diversos países e, em alguns casos, têm contribuído para um acirramento de tensões internacionais.

Tamanho potencial faz com que sejam necessárias regras bastante claras de divisão territorial dos mares. Segundo especialistas, cerca de 40% de todas as fronteiras marítimas do mundo ainda hoje são disputadas — 180 das 460 fronteiras em mares e oceanos possíveis no planeta estão no centro de controvérsias entre dois ou mais países.

Para explicar essa confusão marítima, conversei com o almirante da reserva Antonio Ruy de Almeida Silva, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense ; o cientista político Mauricio Santoro, professor de Relações Internacionais e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha do Brasil; o professor de Geopolítica na Escola de Guerra Naval Leonardo Mattos; e Danilo Marcondes, professor da Escola Superior de Guerra . A reportagem completa está disponível no jornal O Globo.

https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/12/23/sem-fronteiras-maritimas-definidas-paises-entram-na-briga-por-recursos-naturais-e-rotas-de-comercio-bilionarias.ghtml

            

Perspectiva 2024

Estados Unidos Argentina Guerra na Ucrânia Alemanha 

Mundo 

Sem fronteiras marítimas definidas, países entram na briga por recursos naturais e rotas de comércio bilionárias

Até o final de 2020, das 460 fronteiras marítimas possíveis, apenas 280 foram acordadas, deixando 180 disputas pendentes, ou aproximadamente 39%, segundo levantamento

Por 

Thayz Guimarães 

O Globo, 23/12/2023 04h30 Atualizado há 5 dias 

Navios da Guarda Costeira chinesa lançam canhões de água contra um barco do governo filipino no Mar do Sul da China

Navios da Guarda Costeira chinesa lançam canhões de água contra um barco do governo filipino no Mar do Sul da China — Foto: Camille Elemia/The New York Times 

A fronteira terrestre entre a Guiana e a Venezuela tem sido alvo de disputas desde o período colonial, há quase 200 anos. Mas a descoberta de um vasto campo de petróleo na costa guianesa, em 2015, adicionou novos contornos a essa briga histórica, transformando-a, por procuração, numa disputa também pelo mar. Com uma área de aproximadamente 160 mil km2, a região do Essequibo é majoritariamente constituída por uma selva quase impenetrável. No entanto, controlar essa área — que hoje responde por dois terços do território da Guiana — daria à Venezuela o direito de também explorar um litoral cujo potencial de produção é estimado em 10 milhões de barris. São justamente recursos como esses escondidos debaixo de centenas ou milhares de metros de água, que estão por trás de disputas que se arrastam há décadas entre diversos países e, em alguns casos, têm contribuído para um acirramento de tensões internacionais. 

Tamanho potencial faz com que sejam necessárias regras bastante claras de divisão territorial dos mares. Segundo especialistas, cerca de 40% de todas as fronteiras marítimas do mundo ainda hoje são disputadas — 180 das 460 fronteiras em mares e oceanos possíveis no planeta estão no centro de controvérsias entre dois ou mais países. 

— As fronteiras marítimas, ao contrário das terrestres, ainda estão em processo de demarcação, o que tem levado ao aumento das tensões entre os países em meio a uma tendência de crescente importância dos mares, tanto do ponto de vista econômico como militar — disse ao GLOBO o almirante da reserva Antônio Ruy de Almeida Silva, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (Inest/UFF). — Nos últimos anos, o mar deixou de ser somente via de comércio para também se tornar fonte de produção. 

Segundo dados da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, hoje, aproximadamente 90% de todo o comércio internacional é realizado por via marítima, enquanto 99% da transmissão de dados de comunicações depende de cabos submarinos. Estima-se ainda que os setores ligados ao oceano contribuam com US$ 1,5 trilhão (cerca de R$ 7,4 trilhões) por ano em valor agregado para a economia global, sustentando cerca de 31 milhões de empregos. Os mares também respondem pela subsistência de mais de 3 bilhões de pessoas em todo o mundo, de acordo com a ONU

Problemas à vista

Desde 1982, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar estabelece, entre outros aspectos, que todos os Estados costeiros têm direito a 200 milhas náuticas de Zona Econômica Exclusiva (ZEE), o que na prática significa permissão para explorar os recursos vivos e não-vivos das águas e do subsolo de uma área que se estende por cerca de 320 km em linha reta a partir da costa. 

No entanto, embora tenha servido de base para organizar a soberania dos países nos mares, o documento da ONU, que vigora desde 1994, “pouco fez para ajudar a resolver o problema que surgiu como consequência: as reivindicações marítimas sobrepostas e disputas de limites entre os Estados”, pondera Andreas Østhagen, professor associado de Relações Internacionais no Fridtjof Nansen Institute da Noruega, em artigo de 2021. 

Entre as principais disputas estão os limites do Mar do Sul da China, uma área de 3,5 milhões de quilômetros quadrados que se estende de Singapura ao Estreito de Taiwan, no Pacífico. 

Pequim alega que 90% do mar, incluindo grupos de ilhas e águas também reivindicadas por partes vizinhas, são seus. O país usa a Linha das Nove Raias para definir suas reivindicações marítimas na região, cujo traçado diz ser baseado em atividades históricas que datam de séculos atrás. Mas Brunei, Malásia, Filipinas, Vietnã e Taiwan contestam a legitimidade dessas fronteiras. 

 — Foto: Editoria de Arte

— Foto: Editoria de Arte 

Para Maurício Santoro, cientista político, professor de Relações Internacionais e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha do Brasil, as disputas territoriais no Mar do Sul da China podem ser consideradas “as maiores e mais graves envolvendo limites marítimos no mundo”. 

— Existem guerras que são horrendas do ponto de vista humanitário, mas que têm pouco ou nenhum efeito na economia global, como a guerra no Iêmen ou mesmo a guerra em Gaza — afirma o especialista. — Mas no Mar do Sul da China é diferente. Uma guerra naquela região, mesmo com poucas mortes, teria um efeito econômico seria devastador e, provavelmente, lançaria o mundo numa recessão. 

O Mar do Sul da China é hoje o principal ponto de passagem das rotas de comércio marítimo internacional, além de ser muito relevante do ponto de vista militar e dos recursos naturais. Mais da metade da frota mercante mundial e da produção global de gás natural liquefeito, bem como quase um terço do petróleo não refinado do mundo passam pelas águas do Mar do Sul da China. Seu potencial energético estimado varia de 5,4 trilhões de metros cúbicos e 11 bilhões de barris, de acordo com a Agência de Informação Energética dos EUA, a 14 trilhões de metros cúbicos de gás natural e 125 bilhões de barris de petróleo, segundo a Companhia Nacional de Petróleo Offshore da China. 

A região é vizinha a Taiwan, considerada uma província rebelde pela China, e um palco recorrente de tensões com os Estados Unidos, que possuem bases militares nos arredores e têm aumentado sua presença no Pacífico nos últimos anos como estratégia para frear as ambições de Pequim. Em 2016, um tribunal internacional chegou a decidir que a reivindicação chinesa no Mar do Sul da China não tinha base legal, mas a China ignorou a decisão e continuou expandindo sua presença, inclusive com a construção de ilhas artificiais e instalações de bases militares nas áreas que reivindica. 

Não muito distante dali, no Mar da China Oriental, a China também contesta o domínio das Ilhas Senkaku pelo Japão — Pequim se refere a elas como Ilhas Diaoyu e garante ser seu dono legítimo. Apesar de pequena e desabitada, a região possui grandes reservas petrolíferas e é uma importante rota comercial para países como Coreia do Sul, Japão e Taiwan. 

 — Foto: Editoria de Arte

— Foto: Editoria de Arte 

De um oceano a outro

As disputas de fronteiras marítimas não se limitam à região do Pacífico. Há anos, Chipre e Turquia estão envolvidos em uma disputa sobre a extensão de suas zonas econômicas exclusivas, ostensivamente provocada pela exploração de petróleo e gás no Mediterrâneo. A parte norte da ilha mediterrânea é ocupada há décadas pela Turquia, que se opõe à perfuração cipriota em águas que Chipre reivindicou com base no direito marítimo internacional. Ancara é o único Estado-membro das Nações Unidas que não reconhece Nicósia e também é um dos poucos que não assinaram a Convenção sobre o Direito do Mar de 1982. 

— Em situações em que não é possível estabelecer o mar territorial de cada país, quando as distâncias entre um território e outro são menores do que as previstas na Convenção da ONU, o acordo prevê que as partes devem resolver a questão amigavelmente — explica Leonardo Mattos, professor de Geopolítica da Escola de Guerra Naval. — Mas nem sempre isso acontece, então a Corte Internacional de Justiça é acionada, como no caso de Essequibo. Só que a Turquia não reconhece a convenção de 1982, por isso, na prática, acaba valendo a vontade do mais forte. 

Disputa marítima no Mediterrâneo — Foto: Arte O Globo

Disputa marítima no Mediterrâneo — Foto: Arte O Globo 

À medida que o aquecimento global derrete o gelo do Ártico, empresas comerciais e potências globais também reivindicam a região polar, “tornando-a a mais nova fronteira na batalha pelo controle das águas compartilhadas da Terra e dos preciosos recursos naturais que se encontram sob o mar congelado”, aponta uma análise publicada pelo Council on Foreign Relations (CFR) em março deste ano. 

O Círculo Polar Ártico, localizado no Polo Norte da Terra, pode conter cerca de 160 bilhões de barris de petróleo e 30% de gás natural não descobertos, segundo estimativas do Serviço Geológico dos Estados Unidos. A possibilidade de usá-lo como rota de navegação devido ao derretimento de suas geleiras também reduziria em 40% o tempo de viagem entre a Ásia e a Europa, poupando cerca de 14 dias aos navios, afirma Danilo Marcondes, professor da Escola Superior de Guerra. 

 — Foto: Editoria de Arte

— Foto: Editoria de Arte 

“Com o aquecimento do Ártico, essas valiosas commodities se tornaram mais extraíveis, proporcionando um poderoso incentivo financeiro para aqueles dispostos a desbravar as novas águas navegáveis”, afirma o relatório do CFR. “Para países como os Estados Unidos e a Rússia, o Círculo Polar Ártico poderia se tornar um local tático para expandir as operações navais e nucleares. Enquanto isso, países como a Rússia e a China estão ansiosos para reduzir custos navegando pelas novas rotas marítimas do Ártico.” 

Noruega, Rússia, Suécia, Finlândia, Islândia, Estados Unidos, Canadá e Dinamarca (dona também da Groenlândia) são os países com território ou águas territoriais dentro do Círculo Polar Ártico. 

Elevação do Rio Grande

O Brasil não está envolvido em nenhuma disputa marítima, já que sua costa fica a mais de 4 mil milhas náuticas ou 7 mil quilômetros de distância em linha reta do território mais próximo, o continente africano. Mas o país pleiteia junto à ONU a extensão de sua plataforma continental na região conhecida como Elevação do Rio Grande, uma antiga ilha tropical atualmente submersa no Atlântico Sul. 

A região é rica em recursos minerais raros, utilizados na produção de chips, baterias, painéis solares e outras inovações “verdes”. Sua localização fica a mais de 200 milhas náuticas da costa brasileira, ou seja, acima do limite previsto pela convenção da ONU para o estabelecimento de uma zona econômica exclusiva. Mas o país poderia explorar seu assoalho marítimo caso fique provado que há uma continuidade geográfica da área com o território do Brasil. 

 — Foto: Editoria de Arte— Foto: Editoria de Arte 

 

 

 

sábado, 19 de dezembro de 2020

O labirinto do isolamento: Bolsonaro, a China e os EUA - Mauricio Santoro (Nexo Jornal)

 O labirinto do isolamento: Bolsonaro, a China e os EUA

Maurício Santoro


Ao se aliar ideologicamente a Trump e adotar um discurso hostil contra o país asiático, o Brasil se colocou em uma situação inédita, correndo risco de retaliações de seus principais parceiros comerciais

Em 2020 o Brasil enfrentou uma sucessão de crises — sanitária, econômica, política — e ao longo do ano as relações do governo brasileiro degeneraram em hostilidade com os dois maiores parceiros comerciais do país, China e Estados Unidos. Como isso aconteceu e quais serão as consequências?

Há uma nova ordem global em gestação, marcada pela ascensão chinesa e pelo acirramento das tensões entre Pequim e Washington. As pressões cruzadas têm levado muitos países a terem que fazer escolhas difíceis: devem permitir que a Huawei, gigante chinesa de telecomunicações, participe da instalação do padrão 5G de internet? Irão aderir à Nova Rota da Seda, o projeto chinês de investimentos globais em infraestrutura? Nesse contexto, o que distingue o Brasil foi ter tomado decisões que o deixaram indisposto com ambos, sem conseguir ganhar benefícios em termos de seus interesses nacionais.

O Brasil estabeleceu relações diplomáticas com a República Popular da China em 1974. O diálogo entre a ditadura brasileira, anticomunista, e o regime marxista de Mao Tsé-Tung se deu com base na percepção de que ambos compartilhavam interesses na política internacional, como grandes países em desenvolvimento que com frequência discordavam das nações ricas do Ocidente.

Em 1993, Brasília e Pequim firmaram uma parceria estratégica. Na década de 2000, com o boom global de commodities, a China se tornou o maior mercado para as exportações brasileiras, sobretudo de soja, minério de ferro, petróleo e carnes. Em anos recentes, os chineses viraram também investidores significativos no Brasil, em especial no setor de energia elétrica.

Jair Bolsonaro é o primeiro presidente brasileiro desde Ernesto Geisel (1974-79) a chegar ao Planalto com um discurso hostil à China, que enxerga como um país comunista cuja influência econômica seria uma ameaça à segurança nacional brasileira. Contudo, a visão ideológica do capitão esbarrou nos interesses dos grandes grupos empresariais do Brasil, para os quais a China é um sócio importante. No primeiro ano de seu governo, em linhas gerais, se manteve a parceria estratégica dos 25 anos anteriores, ainda que permanecessem tensões latentes como a questão da Huawei e do 5G.

Isso mudou com a pandemia. A família Bolsonaro replicou no Brasil o discurso anti-China de Donald Trump, e os filhos do presidente usaram as redes sociais para incitar seus apoiadores contra o país asiático, a quem culpavam pelo coronavírus, e a ameaçar a Huawei. O clã presidencial se engajou na campanha pela reeleição de Trump e entrou em uma disputa partidária com o governador de São Paulo pela distribuição da vacina chinesa junto à população brasileira. Os diplomatas chineses no Brasil responderam em tom de agressividade inédita, com críticas públicas ao governo.

O MAIOR ERRO DO ALINHAMENTO COM OS EUA FOI A VINCULAÇÃO DE BOLSONARO A TRUMP, IGNORANDO A REALIDADE DE UMA SOCIEDADE AMERICANA PROFUNDAMENTE DIVIDIDA COM RELAÇÃO A SEU PRESIDENTE

A pandemia é um marco em uma diplomacia chinesa mais assertiva contra os críticos do país, com uma nova geração de diplomatas muito atuantes nas redes sociais e na política doméstica das nações onde servem — os chamados “lobos guerreiros”. O Brasil se tornou um campo para esse tipo de ativismo em política externa e corre o risco de sofrer represálias comerciais, como as que a China implementa contra a Austrália.

O pilar da política externa de Bolsonaro em seus dois primeiros anos de governo foi a busca de relação preferencial com os Estados Unidos, o que na prática significou o alinhamento ideológico com Donald Trump e conflitos com o Partido Democrata, que mesmo na oposição controlava a Câmara dos Deputados. Esses esforços resultaram em ganhos partidários para a família Bolsonaro, como visitas à Casa Branca e fotos com Trump, mas não renderam benefícios tangíveis para o Brasil. Produtos brasileiros sofrem com o impacto negativo do aumento do protecionismo americano e o país se indispôs com parceiros importantes na Organização Mundial do Comércio e nas instituições latino-americanas por seguir as diretrizes de Washington em detrimento das posições de outras nações em desenvolvimento.

O alinhamento com os Estados Unidos havia sido uma parte importante da diplomacia brasileira no passado, em particular no período em que o barão do Rio Branco foi ministro (1902-12) e na Segunda Guerra Mundial. Nesses dois momentos, os americanos eram o maior mercado para as exportações brasileiras de café, produto que dominava o comércio exterior do Brasil. O cenário hoje é distinto, e atualmente os Estados Unidos não compram sequer 10% das exportações nacionais, que se tornaram mais diversificadas tanto em mercadorias quanto em mercados, com parceiros significativos na Ásia, União Europeia e América Latina

Contudo, o maior erro dessa estratégia foi a vinculação de Bolsonaro a Trump, ignorando a realidade complexa de uma sociedade americana profundamente dividida com relação a seu presidente. A vitória dos democratas nas eleições presidenciais de 2020 leva de volta à Casa Branca agendas de meio ambiente e direitos humanos, em conflito com as ações de Bolsonaro, em particular no que toca ao desmatamento da Amazônia e a seus impactos sobre o aquecimento global.

O Brasil tem pela frente um 2021 bastante difícil, com a pandemia se aproximando dos 200 mil mortos no país e os impactos mais duros da recessão, com o fim do auxílio emergencial. Em meio a tudo isso, a situação inédita de correr risco de retaliações de seus dois principais parceiros comerciais, China e Estados Unidos. O Brasil é uma das dez maiores economias do mundo, ator-chave em várias negociações globais, do comércio à mudança climática. Os conflitos e isolamento que o país arrisca não são uma tragédia inevitável, são fruto de escolhas ideológicas. Como, aliás, sua catástrofe humanitária durante a pandemia.

Maurício Santoro é doutor em ciência política pelo Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e professor-adjunto do departamento de relações internacionais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).


sábado, 11 de janeiro de 2020

O Brasil e o conflito Irã-EUA - Entrevista com o Prof. Mauricio Santoro (UERJ)

Como o governo Bolsonaro reage à crise entre EUA e Irã
Estêvão Bertoni
Nexo Jornal, 07 de jan de 2020(atualizado 08/01/2020 às 15h43)

O professor da Uerj Maurício Santoro fala ao ‘Nexo’ sobre os possíveis efeitos que o alinhamento brasileiro ao governo americano pode ter nas relações do Brasil com países do Oriente Médio
Foto: Alan Santos - 18.mar.2019/Presidência da República 
O presidente Jair Bolsonaro, o chanceler Ernesto Araújo e o deputado Eduardo Bolsonaro (ao fundo) durante evento nos Estados UnidosO presidente Jair Bolsonaro, o chanceler Ernesto Araújo e o deputado Eduardo Bolsonaro (ao fundo) durante evento nos Estados Unidos
O governo do Irã pediu explicações ao Brasil sobre a nota divulgada pelo Itamaraty em apoio à operação dos Estados Unidos no Iraque que resultou no assassinato do general Qassim Suleimani, principal liderança militar iraniana. O pedido ocorreu no domingo (5), dois dias depois da divulgação da posição do governo brasileiro sobre o caso.
O general foi morto na madrugada de sexta-feira (3) após o carro em que estava ser atingido por um míssil disparado por um drone americano, perto do aeroporto internacional de Bagdá, no Iraque. A ação foi autorizada pelo presidente Donald Trump, que acusou Suleimani de planejar atentados a diplomatas e funcionários americanos na região. 
Logo após a morte do general, o líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, pediu vingança. Na noite de terça-feira (7), o país atacou com mísseis pelo menos duas bases aéreas que abrigavam tropas americanas no Iraque, em retaliação à ação dos EUA.
No domingo (5), Trump havia dito que responderia “de maneira desproporcional” a qualquer ação iraniana contra americanos no exterior. Em discurso nesta quarta (8), o presidente americano afirmou que a ofensiva do Irã contra as bases não deixou mortos e, adotando um tom mais brando, não falou em em retaliação militar. Em suas redes sociais, Bolsonaro gravou uma live acompanhando o pronunciamento.
A morte do general causou comoção no país persa e levou centenas de milhares de pessoas às ruas durante seu cortejo fúnebre. Um tumulto durante o funeral do militar, na cidade de Kerman, sua terra natal, deixou mais de 50 mortos e cerca de 200 feridos na terça-feira (7).
O pedido de explicações
O questionamento sobre a nota foi feito a representantes brasileiros em Teerã, capital do Irã. Encarregada de negócios da embaixada brasileira na cidade, Maria Cristina Lopes se reuniu com as autoridades iranianas no Ministério das Relações Exteriores do país para dar explicações, mas o teor da conversa não foi revelado. O embaixador do Brasil no Irã, Rodrigo Azeredo, não foi ao encontro por estar de férias. 
O Ministério das Relações Exteriores brasileiro, comandado pelo chanceler Ernesto Araújo, confirmou a reunião, mas disse que seu teor é “reservado”. Segundo o Itamaraty, a conversa transcorreu com “cordialidade”, “dentro da usual prática diplomática”. Convocações do tipo são vistas, entretanto, como reprimendas.
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, Maria Cristina Lopes foi orientada a dizer às autoridades iranianas que a nota do governo brasileiro não era uma manifestação contra o Irã e que a relação entre os dois países não poderia se reduzir ao tema abordado no comunicado.
Inicialmente, o presidente Jair Bolsonaro sinalizou que o governo poderia se manter distante do caso, mas a nota do Itamaraty criou um problema com um parceiro comercial. Em 2018, o Brasil exportou US$ 2,26 bilhões para o Irã, em produtos como milho, soja, açúcar e carne. Já as importações brasileiras de produtos semimanufaturados de ferro e aço do Irã somaram US$ 39 milhões. 
As manifestações brasileiras sobre o caso
Consulta a Heleno e preço do combustível
Numa das primeiras manifestações sobre o tema, Bolsonaro disse a jornalistas, ao deixar o Palácio do Alvorada na sexta-feira (3), que iria se encontrar com o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, para “se inteirar” sobre o caso e poder “emitir seu juízo de valor”. Também se mostrou preocupado com o aumento do preço do petróleo devido ao conflito. “Já está alto o combustível, se subir muito, complica”, afirmou.
Sem armas nucleares para poder opinar
No final da sexta-feira, Bolsonaro voltou a tratar do assunto em entrevista à TV Band e disse que precisava tomar “cuidado com as palavras”. Ele disse seguir uma linha “pacífica” e que não podia dar “opinião tranquilamente sem sofrer retaliações” porque o Brasil não tem “forças armadas nucleares”. Mesmo assim, sugeriu que a ação americana se tratava de um exemplo de combate ao terrorismo.
A nota do Itamaraty pró-EUA
Na noite de sexta-feira (3), o Itamaraty divulgou uma nota sobre os “acontecimentos no Iraque”, sem abordar especificamente o ataque dos EUA ao general iraniano. O texto usa a palavra “terrorismo” cinco vezes, sem dizer abertamente do que se tratava, o que sugeriu que Suleimani, uma alta autoridade responsável por comandar a unidade de elite da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã, seria um terrorista. Os únicos episódios que o governo brasileiro condenou no comunicado foram os ataques à embaixada dos EUA em Bagdá, dias antes. Segundo o site UOL, a nota foi duramente criticadadentro do próprio Itamaraty por colocar em risco os interesses nacionais e quebrar uma tradição diplomática de propor o diálogo.
Ordem para manter silêncio sobre o caso
Na terça-feira (7), Bolsonaro evitou falar sobre o assunto e reafirmou repudiar o terrorismo. Ele disse que vai esperar o ministro Ernesto Araújo voltar de férias para tratar do episódio em que o Irã pediu explicações. Afirmou ainda que não houve nenhuma retaliação comercial contra o Brasil e que o país continuará fazendo negócio com os iranianos. Segundo o jornal O Globo, a ordem no Planalto é não falar mais do tema. A ala militar do governo considera que o país tem que se manter distante do conflito, mesmo que concorde com os EUA.
Uma análise sobre a posição brasileira
Nexo conversou com Maurício Santoro, professor-adjunto do departamento de relações internacionais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) para entender as consequências da posição adotada pelo governo brasileiro em relação à crise no Oriente Médio. 
Como o sr. avalia a nota do Itamaraty?
Maurício Santoro Na minha avaliação, é uma nota de apoio aos EUA e à morte do general Suleimani. Embora o texto não cite explicitamente o ataque que matou o general, toda a argumentação, toda a estrutura da nota é de apoio a essa morte, com a justificativa de que ela faz parte do combate ao terrorismo. E tem também uma condenação explícita, com todas as letras, aos protestos em Bagdá que culminaram no ataque à embaixada americana. É uma nota que, no seu tom e no seu estilo, foi mais longe do que a nota da Otan a respeito do ataque, ou a nota do Reino Unido, que são aliados tradicionalíssimos dos EUA. A Otan é uma organização militar da qual os próprios EUA são parte. É realmente algo que destoa do que é o posicionamento tradicional brasileiro nas guerras no Oriente Médio. 
Com a nota, o Brasil classifica as forças iranianas como terroristas?
Maurício Santoro Ao contrário, por exemplo, da União Europeia, ou dos EUA, o Brasil não tem, ou pelo menos não tinha até o governo Bolsonaro, uma lista de organizações ou regimes políticos considerados como terroristas. O que o Brasil fazia era condenar atos individuais de terrorismo, mas não classificar, por exemplo, o Hezbollah, como terrorista. O que o Brasil fazia era simples: fazer a crítica dos atos em si. A nota é muito abrangente, mas dá a entender, e acho que é uma interpretação legítima, de que a força Al Quds, que era a unidade comandada pelo general Suleimani, seria uma organização terrorista ou envolvida em crimes desse tipo, uma vez que o assassinato de seu comandante se justificaria como parte desse combate internacional terrorista.
O que significou o pedido do Irã de explicações ao Brasil?
Maurício Santoro Significa que o embaixador brasileiro vai ter que dizer exatamente o que essa nota significa. Com todas as letras: o que o Brasil pensa sobre o assassinato do Suleimani, qual é a posição brasileira em relação às ameaças que estão sendo feitas contra o Irã. Do ponto de vista diplomático, é um indicador muito forte de que “nós não gostamos do que vocês escreveram e me deem o detalhes disso”. Eu não acredito, a princípio, que isso resulte em nenhuma grande perda para o Brasil. O Brasil não é um ator importante dentro dessas tensões armadas que estão se desenhando no Oriente Médio. Ao mesmo tempo, é um fornecedor relevante de comida para o Irã. As exportações agrícolas brasileiras, e a carne, são importantes para o Irã. Não acredito que o Irã vá correr algum risco em relação a esse comércio por causa da retórica exacerbada do Brasil. Mas é uma coisa que traz uma tensão desnecessária para a diplomacia brasileira, que traz um problema onde antes não existia nenhum. O que realmente destoa do que tradicionalmente é a política externa brasileira para o Irã ou para o Oriente Médio em geral. 
O caso pode aumentar a tensão entre as alas militares e ideológica dentro do governo brasileiro?
Maurício Santoro Certamente. Eu diria que, na verdade, há uma tensão entre os militares e o agronegócio, pressionando por uma posição mais moderada por parte do Brasil, e essa ala que envolve o chanceler Araújo, o [deputado] Eduardo Bolsonaro, a família do presidente de uma maneira geral. E a gente vê essa queda de braço dentro do próprio governo nas manifestações contraditórias do Brasil desde a morte do Suleimani. Por exemplo, logo no início, as primeiras falas do Bolsonaro foram indicadores de que o Brasil não ia ter uma declaração de peso, de que a gente não tem capacidade nuclear para falar disso. Depois, veio essa nota do Itamaraty. Isso mostra, também, que já há um debate acontecendo dentro do próprio governo e que pelo menos, momentaneamente, foi vencido por esse lado mais radical que está enxergando nessa crise do Oriente Médio uma oportunidade de o Brasil afirmar uma vez mais a busca dessa relação preferencial com os EUA. Foi uma busca que, diga-se de passagem, ao longo de 2019 não resultou em benefícios econômicos para o país. Pelo contrário. Houve uma série de disputas: aquele anúncio do Trump de querer aumentar a tarifa para o aço brasileiro, depois o Bolsonaro disse que o Trump tinha voltado atrás, mas o Trump até agora não confirmou nada disso. Foi uma diplomacia que não apresentou os resultados esperados pela ala ideológica do governo no primeiro ano. Num certo sentido, é uma diplomacia que está na berlinda, sob questionamento.
Que impacto pode ter no Oriente Médio esse alinhamento aos EUA?
Maurício Santoro No longo prazo, pode ser que aponte para uma diplomacia brasileira mais complicada no Oriente Médio. Não foi o que aconteceu no primeiro ano do governo Bolsonaro. O que a gente viu, passado aquele primeiro momento de uma retórica de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel, o que houve foi a manutenção das posições tradicionais do Brasil, sobretudo por causa da pressão do agronegócio. Tanto o Irã quanto os países árabes são parceiros econômicos importantes para o Brasil, que tem superávits bilionários no comércio com esses países. Se a gente estiver diante de uma crise prolongada no Oriente Médio, que degenere para uma nova guerra na região, é possível que isso perturbe esse tenso equilíbrio do primeiro ano do governo Bolsonaro e que leve a uma diplomacia mais ideológica para o Oriente Médio, nessa busca de afirmar essa relação especial com os EUA. 
A preocupação é estritamente comercial?
Maurício Santoro Até houve no governo Lula uma tentativa de ter uma posição política mais forte no Oriente Médio, aquele esforço do Brasil e da Turquia de mediar um acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, mas essa tentativa acabou abandonada depois que houve uma rejeição muito grande das grandes potências a isso, e ela não foi retomada nem no governo Dilma nem nos governos posteriores. Basicamente o que tem sido a política externa brasileira para o Oriente Médio, ao longo do últimos dez anos, é basicamente a busca de mercados, a ampliação dessa oportunidade para o agronegócio, sem que haja um grande envolvimento do Brasil em negociações políticas na região.