Somente uma reforma estrutural do sistema judicial, com uma redução drástica da competência do Supremo, poderá resolver o histórico de ineficiência, lentidão, insegurança e injustiça. Artigo do juiz federal e professor aposentado José Jácomo Gimenes, publicado pela Gazeta do Povo:
O Brasil tem um amplo controle de constitucionalidade de leis e normas. Combinou o modelo europeu, abstrato e concentrado, com o modelo americano, concreto e difuso. O controle de constitucionalidade abstrato é concentrado no Supremo Tribunal Federal, por meio de Ação Direta de Constitucionalidade (ADC), Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). O controle concreto, sempre a partir de um conflito real judicializado, é feito de forma difusa, por todos os juízes de primeira instância (cerca de 18 mil) e todos os tribunais (91, sendo 61 federais e 30 estaduais), necessitando de confirmação do Supremo para ter validade nacionalmente.
Assentados estes pontos, duas perguntas essenciais pedem respostas: por que temos tanta demora processual e insegurança jurídica com um controle de constitucionalidade tão poderoso? Como se explica um estoque de 1.986 ações de constitucionalidade pendentes no Supremo, apesar do reconhecido esforço e trabalho dos 11 ministros da corte constitucional? Este modesto artigo tem por objetivo ensaiar respostas e incentivar debate responsável sobre o excesso de competência processual do Supremo e o estoque de processos esperando julgamento na nossa suprema corte. Vamos aos números.
O Supremo recebeu 90.039 processos em 2019, sendo 20.125 (22,4%) da competência originária (processos que começam no Supremo) e 69.914 (77,6%) da competência recursal (processos que vêm das instâncias inferiores). Dentro da competência originária, destacam-se a entrada de 349 novas ações de controle concentrado de constitucionalidade em 2019 e o julgamento de 271 (200 em 2018) dessa mesma espécie. Em 2019, o Supremo proferiu mais de 16,6 mil decisões colegiadas de um total de 110 mil, considerando também as decisões monocráticas e despachos. O estoque de processos na fila de julgamento do Supremo, mesmo festejado como menor, é estrondoso: 30.662 processos.
Os explosivos números acima evidenciam que há alguma coisa errada ou, no mínimo, mal estruturada. Na comparação com as demais cortes supremas das grandes democracias, os números do nosso Supremo pairam no patamar do inacreditável, da chacota. Basta lembrar dois exemplos: a Corte Suprema americana recebe por volta de 5 mil processos por ano, escolhe em média 120 para julgamento e arquiva os demais; a Corte Suprema da Alemanha produz uma média de 7 mil decisões por ano. Os espantosos números do nosso Supremo (mais de 110 mil decisões por ano, 16,6 mil colegiadas) indicam que a corte é quase juízo universal da nação: nada escapa, parecendo um insaciável resolvedor dos conflitos do país, assim perdendo o foco de sua função diretiva do sistema judicial.
Como se vê, o nosso Supremo está atolado em seus poderes processuais, muito além da capacidade de trabalho de seus 11 ministros e de sua natural função de corte constitucional. Em um país continental, com 210 milhões de habitantes, com uma Constituição extensa, regulando quase todos os aspectos da vida nacional, o Supremo não pode ter competência para decidir processos de casos subjetivos, só porque debatem questões constitucionais. O recebimento de 69 mil recursos e 20 mil ações originais em um ano é prova suficiente dessa conclusão. O caminho deve ser outro.
O Supremo recebe mais de 300 ações diretas de constitucionalidade de leis e normas por ano, processos sobre questões objetivas (controle concentrado e abstrato), trabalho (e responsabilidade) de importância fundamental e até prioritário para uma corte constitucional, pois podem resolver com rapidez questões constitucionais e evitar propagação de milhões de processos pelo país afora. Com o estoque atual de quase 2 mil ações constitucionais diretas, o Supremo levaria seis a sete anos para colocar a casa em ordem, sem contar a entrada de novas 300 ações a cada ano, que acumularia novo passivo igual ou maior no mesmo período. Só por esse ângulo já temos uma situação insustentável, que exige atitude de mudança.
O outro megaproblema dos 69 mil recursos de processos subjetivos e das 20 mil ações de competência originária tem de ser resolvido com mudança estrutural, com a transferência de poderes processuais para os importantes tribunais superiores nacionais (STJ, TST, TSE e STM) decidirem também as questões constitucionais de todos os processos subjetivos, concluindo a jurisdição dos processos subjetivos na terceira instância, acabando com o famoso Recurso Extraordinário e congêneres, que encaminham milhares de processos ao Supremo.
O necessário controle da constitucionalidade nesses milhares de casos decorrentes de conflitos reais deve ser feito por ações autônomas de constitucionalidade, similares às existentes, mas sobre a jurisprudência consolidada resultante nos tribunais superiores (normas de efeito concreto), reduzindo substancialmente o número de processos no Supremo, libertando a corte da monstruosa carga atual, impossível de ser vencida, permitindo que cumpra com eficiência e rapidez sua verdadeira e fundamental função constitucional.
As grandes democracias adotam um sistema de duas instâncias de julgamento para processos subjetivos ou, no máximo, três instâncias. O Brasil instituiu um sistema de até quatro instâncias, na jurisdição comum e até nos juizados especiais, levando ao Supremo milhares de processos subjetivos, casos particulares, especialmente na área criminal, inviabilizando a nossa suprema corte de bem cumprir a sua função essencial de corte constitucional. O excesso de instâncias e burocracia judicial é uma tragédia que está sendo escrita com a cumplicidade dos poderes constituídos, gerando malefícios para toda a sociedade.
É incompreensível manter um sistema que não funciona, que não atende razoavelmente seus objetivos de pacificação social. A sociedade tem o direito de mudar um sistema ineficiente. O Supremo tem obrigação histórica de colaborar efetivamente para esse aprimoramento, apresentando soluções e entregando poderes aos demais tribunais. Não se pode perder de vista que os poderes são concedidos pela sociedade aos órgãos estatais para atender bem sua função institucional. Se o poder está desmedido, atrapalhando o funcionamento eficiente do serviço estatal, deve ser repactuado. Além de reforma administrativa e tributária, o Brasil precisa desesperadamente de uma boa reforma judicial.
Quem ganha e quem perde com o atual sistema judicial de quatro instâncias, recheado de dezenas de recursos e ações paralelas, doentiamente dependente do Supremo em razão de sua exorbitante competência, demorado e altamente custoso (1,6% do PIB, maior índice do planeta)? Sem intenção de ofensa ou desconsideração de importantes categorias de trabalho, o quadro permite afirmar que ganham os que estão incluídos na colossal máquina judicial, numa zona de conforto protegida, com empregos garantidos, amplo espaço de poder e excelentes rendimentos. Perde a sociedade brasileira, que vê o crescimento do país atravancado por um sistema judicial altamente burocrático, caro e pouco funcional.
A doutrina jurídica tem debatido continua e sabiamente princípios, conceitos, institutos e formas possíveis de aplicação da lei. Entretanto, parece não haver a mesma preocupação com o monstruoso problema real que os números processuais e demoras decorrentes constituem. Não se pode esquecer que a legitimidade e respeitabilidade dos órgãos estatais e, por consequência, do próprio sistema judicial dependem essencialmente de procedimentos decisórios razoavelmente rápidos, eficientes e justos. Somente uma reforma estrutural do sistema judicial, com uma redução drástica da competência do Supremo, poderá resolver o histórico de ineficiência, lentidão, insegurança e injustiça, permitindo conclusão mais rápida dos processos, jurisprudência constitucional estabilizadora em tempo mais curto, segurança jurídica, pacificação social e progresso econômico.
José Jácomo Gimenes é juiz federal e professor aposentado do Departamento de Direito Privado e Processual da Universidade Estadual de Maringá.
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