Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: comentários a um programa de política externa; finalidade: esclarecimento]
Insuficiente, segundo o dicionário do Google (convertido em “pai dos burros”, nos tempos que correm), é a condição ou qualidade de alguma coisa, qualquer coisa, “que não é suficiente” – o que é, obviamente, uma redundância – ou então que é “pouco, escasso”, ou então “que não alcança a qualidade necessária; fraco, medíocre, insatisfatório”. Pois bem, por que digo isto?
Acabo de tomar conhecimento do programa do candidato Bolsonaro ao governo do Brasil, um documento sintético de 81 páginas, com muitos adjetivos e grandes exclamações, das quais, confesso, não ter lido mais do que meia página, a 79, relativa à política externa que o candidato pretenderia exercer. Na verdade, essa seção, ínfima, portanto correspondendo inteiramente às definições acima, não se dedica exatamente ao tema, como se pode verificar que transcrição que efetuo aqui abaixo:
O “programa” de política externa
O NOVO ITAMARATY(p. 79 do documento)
• A estrutura do Ministério das Relações Exteriores precisa estar a serviço de valores que sempre foram associados ao povo brasileiro. A outra frente será fomentar o comércio exterior com países que possam agregar valor econômico e tecnológico ao Brasil.
• Deixaremos de louvar ditaduras assassinas e desprezar ou mesmo atacar democracias importantes como EUA, Israel e Itália. Não mais faremos acordos comerciais espúrios ou entregaremos o patrimônio do Povo brasileiro para ditadores internacionais.
• Além de aprofundar nossa integração com todos os irmãos latino-americanos que estejam livres de ditaduras, precisamos redirecionar nosso eixo de parcerias.
• Países, que buscaram se aproximar mas foram preteridos por razões ideológicas, têm muito a oferecer ao Brasil, em termos de comércio, ciência, tecnologia, inovação, educação e cultura.
• Ênfase nas relações e acordos bilaterais.
Feita a transcrição, vejamos o que eu poderia dizer sobre esse “programa” que não é um programa, e sim um ajuntamento de frases, manifestamente a cargo de um neófito – definição deste substantivo masculino, tudo relativo à religião: “pagão recém-convertido ao cristianismo; pessoa que vai receber o batismo ou recentemente batizada; cristão-novo” –, pouco afeito aos temas de política externa, a quem encarregaram de dizer algumas coisas sobre o que se imagina ser o trabalho do Itamaraty. Vou apenas analisar topicamente o que me parecem ser a insuficiências desse “programa”, e depois elaborar um pouco a respeito do seria um conjunto de propostas na área externa.
A política externa de um governo não pode limitar-se ao Itamaraty, ainda que ele seja chamado de “novo”. O “velho” Itamaraty, do seu lado, sempre se ocupou de política externa, mas a instituição, por mais venerável que fosse, ou seja, é apenas um instrumento, uma espécie de “ferramenta”, a serviço da política externa, que é definida, vale lembrar, pelo presidente da República. Sua estrutura, seja alguma nova ou mantida a “velha”, não tem muito a ver com a substância mesma dessa política externa, pois trata-se de uma ferramenta operacional que pode ser mudado segundo os requerimentos da política externa, que tampouco pode ser resumida unicamente aos “valores do povo brasileiro”, ou às atividade de “comércio exterior”. Ela abrange uma vasta gama de temas – bilaterais, regionais e multilaterais – nos terrenos político, econômico, ou de cooperação científica e tecnológica e de assistência ao desenvolvimento, assim como de apoio à capacitação do Brasil numa série de terrenos, como por exemplo, de atração de investimentos e até de engajamento em operações de paz, eventualmente determinadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.
O segundo item do “programa” não é exatamente uma proposta, mas uma simples invectiva contra as deformações daquilo que pode ser chamado de “diplomacia lulopetista”. É certo que o lulopetismo diplomático cultivou boas relações diplomáticas – e até em outras esferas – com as ditaduras mais execráveis da região e do mundo, mas uma mudança nessa área significa apenas retornar ao padrão normal do Itamaraty, que sempre foi o de manter relações corretas com quaisquer países, sem expressar opiniões ou manter “relações paralelas” – clandestinas ou secretas, como infelizmente foi o caso naquele regime – com alguns deles, em função de simpatias ideológicas, ou até de interesses não exatamente republicanos, possivelmente na linha daquilo que o lulopetismo fazia no próprio plano interno, sobretudo em matéria de iniciativas econômicas ou acordos “espúrios” com essas ditaduras. Não cabe, no entanto, num programa de governo, efetuar distinções desse tipo, apontando para certos países e não outros; se for para seguir o padrão “normal” do Itamaraty, que é o de uma diplomacia universalista, e portanto, não discriminatória, o correto está em manter relações com todos os demais membros da comunidade internacional, segundo nossos interesses.
O mesmo tipo de discriminação ocorre, em certa medida, no item seguinte, que diz expressamente isto: “Além de aprofundar nossa integração com todos os irmãos latino-americanos que estejam livres de ditaduras, precisamos redirecionar nosso eixo de parcerias.” O conceito de integração é muito vago, pois depende de qual conteúdo se lhe pretende imprimir, se zona de livre comércio, ou uma simples área de preferências tarifárias, ou mesmo a continuidade desse projeto de mercado comum, que é o objetivo do Tratado de Assunção, que criou o Mercosul. Um programa de governo não deveria expressar essa restrição qualitativa no caso de “ditaduras”, pois introduziria certo grau de subjetivismo nas políticas de governo, uma vez que existem outras ditaduras com as quais o Brasil mantém relações normais, sem todavia pretender aprofundar qualquer tipo de integração ou cooperação mais estreita.
O Brasil, na verdade, necessita de maior inserção internacional, o que pode ser feito por abertura econômica e liberalização comercial, até de forma unilateral se for o caso. Processos de integração requerem negociações bilaterais ou plurilaterais que são necessariamente lentas e difíceis, mas mesmo isso exige uma definição prévia de qual seria a sua política comercial, de modo estrito, e, de modo amplo, a sua política econômica externa. Por outro lado, “redirecionar o eixo de parcerias” não prejulga minimamente quanto à natureza ou a orientação dessa “reorientação”.
Não parece haver, por outro lado, uma estratégia muito clara quanto a esses “países que foram preteridos por razões ideológicas”, pois a frase soa mais como uma reclamação contra o lulopetismo diplomático (que de resto já, mudou desde os dois anos decorridos desde o final do regime companheiro) do que como um programa de governo. O Itamaraty sabe exatamente quais são os países que podem oferecer as melhores oportunidades em todos esses campos mencionados, ainda que algumas escolhas anteriores – como as de grupos regionais como Ibas, Unasul e Brics – permaneçam na agenda diplomática da atualidade, o que caberia, talvez, revisar.
Por fim, pretender atribuir “ênfase nas relações e acordos bilaterais” é uma, entre várias outras modalidades de relações exteriores, que passam ainda pelo regionalismo, multilateralismo, interregionalismo, plurilateralismo, ou simplesmente universalismo, com base numa definição ad hoc, ou seja, uma estratégia adaptada às diferentes circunstâncias dessas relações externas, de acordo com a natureza do assunto a ser tratado com parceiros estrangeiros. O bilateralismo estrito é necessariamente redutor das oportunidades oferecidas pela economia global, quando se assistem a negociações de mega-acordos comerciais, ou de investimentos, mobilizando um número muito variado de países (a exemplo do TPP ou de outros na área da Ásia Pacífico).
Um programa de política externa
Um programa consistente de política externa deve partir de diretrizes gerais, que são definidas basicamente a partir das grandes orientações diplomáticas e econômicas de um governo determinado, para depois se debruçar sobre áreas temáticas: relações políticas nos planos bilateral, regional e multilateral, justamente, ou sobre os objetivos econômicos que se pretende alcançar, = situados nas área de comércio, investimentos, laços de cooperação em ciência e tecnologia, etc. Cabe dar devida atenção à “geografia” da política externa, ou seja, as prioridades no imediato entorno geográfico e a amplitude que se pretende dar às grandes parcerias externas: a Ásia, com destaque para a China, se afirma claramente como a área de maior dinamismo relativo na economia global, mas a África também parece oferecer boas perspectivas de crescimento econômico nos próximos anos.
Existem, por outro lado, temas que já estão colocados na agenda internacional, e sobre os quais o Brasil precisa ter posições claras, e definir alianças pragmáticas, não aquelas ditadas por simpatias ideológicas como parecia ser o caso anteriormente. Outros temas podem resultar da própria iniciativa do Brasil, como o aprofundamento da integração regional, por exemplo. Muitos dos temas que devem necessariamente integrar uma agenda de política externa passam, antes, por reformas internas, pois parece meridianamente claro que é o Brasil que se encontra defasado em relação à agenda da globalização, introvertido e protecionista como ele sempre foi, e ainda é.
Diretrizes setoriais precisam ser definidas com clareza em função dessas mesmas necessidades (ou carências) internas, e elas passam, por exemplo, por uma agenda de produtividade, que por sua vez remete a um programa – talvez a uma verdadeira revolução – no plano educacional, provavelmente o maior desafio que a sociedade brasileira tem para consigo mesma. A política externa pode ser orientada para essas áreas, mas as diretrizes a serem dadas ao Itamaraty – bem como às outras agências do governo – precisam partir do presidente, ou de seu gabinete, com uma visão clara, integrada, de como a agenda de reformas internas vai se coordenar com a ação externa do Itamaraty. Relações regionais e com grandes parceiros também precisam adequar-se a essa lista de prioridades gerais do governo, e não serem definidas de modo abstrato, ou principista, para serem conduzidas de modo mecânico pelo Itamaraty.
De forma geral, o Brasil precisa passar por reformas radicais no plano interno, e a política externa tem de ser coadjuvante desse processo. O ingresso do Brasil na OCDE, por exemplo, não pode ser visto como um objetivo em si, mas meramente como um meio para acelerar, aprofundar, qualificar esse processo de reformas internas, preferencialmente visando à intensificação de nossa inserção na economia global, o único caminho para uma modernização exitosa das estruturas internas.
Havendo uma definição clara de quais objetivos o Brasil pretende atingir nos planos interno e externo, o Itamaraty, novo ou “velho”, será perfeitamente capaz de adaptar suas estruturas e ferramentas para coadjuvar esse processo de reformas modernizantes.
Brasília, 15-16 de agosto de 2018
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