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quinta-feira, 16 de agosto de 2018

O acordo do Brasil com o FMI em 2002 - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil e o acordo com o FMI: reflexões diplomáticas

Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)

1.         Concluído o mais recente acordo de sustentação financeira entre o Brasil e o FMI, cujas dimensões especificamente financeiras foram suficientemente ressaltadas pelos observadores econômicos, caberia fazer uma análise de seu impacto na e para a política externa bem como suas implicações diplomáticas para o Brasil, dentro e fora da região. Esta reflexão não deve ater-se tão simplesmente ao acordo concluído em 7 de agosto de 2002, mas colocar-se igualmente na perspectiva das duas experiências precedentes, em 1998 e 2001, respectivamente, uma vez que o relacionamento do Brasil com o FMI – e as demais entidades financeiras de Washington, aí incluído o Tesouro americano – tem sido caracterizado por uma certa continuidade de propósitos e por uma convergência de pontos de vista com a chamada “mainstream economics”, durante toda a administração do Presidente Fernando Henrique Cardoso.

2.         Ressalte-se, em primeiro lugar, o reconhecimento do papel do Brasil, não apenas no cenário regional, mas de certa forma também seu impacto na economia mundial, o que explica, em grande medida, que, independentemente das filosofias diversas das duas administrações americanas que se sucederam entre 1992 e 2000 e a que agora ocupa a Casa Branca, os acordos de 1998, sua adaptação em 1999, o de 2001 e agora este mais recente tenham sido concluídos após prazos mais ou menos rápidos de negociações, não tenham gerado tensões maiores no curso das conversações e tenham sido anunciados sempre em condições bastante mais satisfatórias do que o previsto na fase precedente pelos mais diversos observadores econômicos. Esse reconhecimento vem sendo dado não apenas pela administração americana e pelas principais lideranças européias, mas igualmente por representantes institucionais dos principais organismos financeiros e por grandes interlocutores e do setor privado, como o demonstra o volume relativamente importante de fluxos voluntários e de empréstimos logrados pelo País na última década.

3.         Ainda que se possa arguir, sem muita fundamentação empírica, sobre a abordagem supostamente mais restritiva da atual administração, em comparação com o que teria sido uma posição de princípio mais favorável a socorros emergenciais por parte da administração anterior, o fato é que o Brasil conseguiu se fazer reconhecer como um país chave no contexto regional, tanto em virtude de seu peso específico na conjuntura econômica da América do Sul, como em função de seu importante papel econômico em escala mais vasta, tendo em vista a massa importante de investimento direto estrangeiro já presente como estoque produtivo acumulado por centenas de empresas multinacionais na economia brasileira, como pela dimensão dos fluxos de ativos – ligados a operações comerciais ou a atividades diretamente financeiras – se movimentando entre o Brasil e as principais praças financeiras do planeta, em especial na América do Norte e na Europa ocidental. 

4.         Compare-se, por exemplo, as dificuldades traumáticas registradas em certos casos anteriores de montagem de pacotes de sustentação financeira – a exemplo de alguns países asiáticos, da própria Rússia, ou da infeliz Argentina atualmente – com a relativa tranquilidade, para não dizer facilidade, com que se logrou concluir pouco mais de três processos negociadores de acordos de empréstimo desde 1998, mesmo à época em que ainda vigia o controverso sistema de banda cambial. Isto deve-se, sem dúvida, não apenas à qualidade da gestão macroeconômica em vigor no Brasil desde 1994, com a qual está identificado o ministro Pedro Malan, mas também à comprovada capacidade de liderança política, inclusive no plano internacional, do presidente FHC. Em outros termos, ademais dos componentes propriamente técnicos no estabelecimento dos três acordos formais concluídos com o Fundo desde 1998, incluído o ajuste do primeiro no seguimento da desvalorização e da mudança de regime cambial em janeiro de 1999, pode-se mencionar a tomada em consideração de elementos políticos e mesmo de caráter diplomático na condução bem sucedida desses processos negociadores relativamente complexos, para os quais o elemento confiança parece ter desempenhado um importante papel.

5.         Assim, mesmo o approach “caso a caso”, supostamente privilegiado na atual administração, contribuiu para destacar o Brasil dos demais casos de montagem de programas emergências em casos de turbulências financeiras, como os que estamos assistindo desde meados da década passada, a começar pelo caso do México. Ressalte-se, em primeiro lugar, que à diferença de todos aqueles casos, na própria região, na Ásia ou na Europa, nenhum dos pacotes concluídos com o Brasil foi ex-post, ou seja, montado para restabelecer uma situação de desequilíbrio grave de balanço de pagamentos em virtude de uma crise financeira de proporções dramáticas. Todos os acordos do Brasil feitos com o Fundo o foram de maneira preventiva, justamente para remediar uma ameaça de desequilíbrio que poderia precipitar uma crise de dimensões mais graves. Em 1998, o Brasil inagurou, assim, a utilização do novo mecanismo de saque criado no âmbito do FMI, a Supplemental Reserve Facility, assim como ele pode dispor, em cada uma das oportunidades, de recursos em montantes tão generosos a ponto de se permitir utilizar a metade, se tanto, de cada uma das linhas de crédito estendidas. 

6.         Dessa forma, mesmo na ausência de um relacionamento político e pessoal mais íntimo entre as lideranças máximas do Brasil e dos EUA, como existia anteriormente, as duas administrações econômicas puderam criar laços de diálogo direto e canais de entendimento que redundaram, agora, num pacote preventivo de dimensões respeitáveis, mesmo em termos da história recente do FMI (recorde-se a propósito que o pacote de apoio ao México tinha muitos recursos de governos nacionais, a começar pelos EUA e que o da Coréia se deu no seguimento de uma ruptura dramática das atividades bancárias e mesmo industriais daquele país). Deve-se portanto evidenciar desse fato – economistas sublinharam o caráter inédito desse “biggest IMF loan in history” – que os EUA reconhecem no Brasil um ator político e econômico de importância especial no cenário regional e mesmo mundial, a partir inclusive da constatação de que a presença de suas empresas em nosso mercado adquiriu uma dimensão tal que justifica o tratamento de certa forma favorável quando comparado a outros parceiros fora do núcleo central da economia capitalista avançada. 

7.         Esse aspecto — o do impacto de eventuais turbulências no Brasil não apenas sobre o setor financeiro dos EUA, mas sobre sua economia real e nas demais economias da região – adquiriu preeminência sobre todas as outras considerações de ordem política ou ideológica, como evidenciado numa certa luta de editoriais e artigos de opinião entre os dois principais jornais nacionais americanos (o Washington Poste o New York Times) e mesmo o tradicionalmente circunspecto Financial Times, por um lado, e o arqui-conservador The Wall Street Journal, recomendando, obtusamente, a maneira dura contra o Brasil. Esse fato deverá contribuir para a melhoria de certa forma “psicológica” que poderá ser observada a partir daqui no tratamento a ser concedido pelos analistas da mesma Wall Street em relação à situação econômica do Brasil, cujos prognósticos pessimistas de algumas semanas atrás foram agraciados com o epíteto de “terrorismo econômico” por representantes da oposição política no Brasil. O elemento destoante, mas por razões independentes do julgamento político da administração americana, tem sido representado pelo Secretário do Tesouro ele mesmo, Paul O’Neill, cujas declarações recolhem a unanimidade dentro e fora dos EUA quanto à inoportunidade econômica e sua inconveniência política, o que tem sido compensado, amplamente, pelas boas relações pessoais mantidas entre o presidente do Banco Central Arminio Fraga e o secretário de relações internacionais do Tesouro John Taylor. 

8.         Não se trata apenas de inserir o Brasil, dadas as suas dimensões próprias e seu impacto no entorno regional, naquela categoria conhecida como “too big to fail”, uma vez que a Rússia era igualmente grande – além de nuclearmente armada – e falhou rotundamente em 1998, mas de reconhecer que a seriedade e competência reconhecidas do atual governo e da diplomacia econômica do Brasil, desde muito, permitiram ao País desfrutar de uma situação invejável de apoio político nas três ou quatro circunstâncias que redundaram em acordos formais de sustentação financeira com os principais organismos econômicos internacionais – compreendidos aqui não apenas o FMI e os bancos multilaterais de desenvolvimento, mas igualmente o BIS e um número apreciável de países membros deste último, a começar pelos próprios EUA. Configura-se, assim, uma situação de credibilidade política e diplomática que pode e deve contribuir para uma transição política interna relativamente mais tranquila entre o terço final de 2002 e o início de 2003, qualquer que seja a orientação política vencedora nas eleições de outubro. 

9.         Passam, assim, a adquirir dimensão menor, no novo cenário político-diplomático que se abre a partir de agora, os elementos associados à especulação financeira, às turbulências econômicas vinculadas às incertezas do quadro eleitoral e ao estado de certa forma lamentável de nossos vizinhos imediatos do Cone Sul. Ao ganhar o Brasil, por repetidas vezes desde o início da atual fase de crises financeiras globais, atestados passados pelo Fundo e pela própria administração americana comprovando nossas “sound economic policies” ao longo de todo o período, configura-se um novo quadro de diálogo no plano internacional que contrasta notavelmente com o ambiente conhecido nos anos 80 – da crise da dívida e da moratória – e no inicio dos 90 – ameaças de hiperinflação e de descontrole monetário. Trata-se de uma janela de oportunidade que deveria ser, ao lado de nossa já tradicionalmente reconhecida capacidade de intelocução diplomática no plano das políticas comerciais, habilmente explorada neste final de administração FHC pelas principais lideranças políticas brasileiras para deixar as bases de uma acrescida presença internacional do Brasil, nos planos regional, hemisférico e multilateral.

10.       Ao assumir agora a presidência pro-tempore do Mercosul e proximamente a co-presidência do processo de negociações hemisféricas no âmbito da Alca, pode o Brasil demonstrar não apenas a solidez de seus fundamentos macroeconômicos, mas também sua capacidade de liderança, seu espírito inovador e sua habilidade diplomática nestas próximas etapas da agenda negociadora externa. A primeira definição de natureza política deve ser dada, justamente, em torno do Mercosul, cuja paralisia ameaça gerar uma crise de credibilidade diplomática cujas conseqüências não podem ainda ser bem avaliadas, mas cujo impacto se exercerá com certeza em detrimento de nossos interesses nos planos da Alca e das negociações UE-Mercosul, ademais de outras esferas. O segundo desafio é representado pelo início da co-presidência brasileiro-americana do processo da Alca, que terá lugar precisamente no momento da transição política para uma nova administração no Brasil. Aqui, o diálogo intenso com o administração americana no curso dos próximos meses é não apenas indicado, como desejável e mesmo necessário.

11.       Caberá, assim, ao Itamaraty, como um dos principais guardiões da continuidade política da presença mundial brasileira ao longo do tempo, mobilizar seus recursos intelectuais – já que financeiros ou econômicos não os há – para preservar o capital de credibilidade política e diplomática amealhado ao longo dos últimos oito ou nove anos de presença continuada de algumas personalidades da administração FHC à cabeça do País, a começar pelo próprio presidente, mas também pelo ministro Pedro Malan. A próxima administração, nos palácios do Planalto e do Itamaraty, deverá conduzir a bom termo, se tal for possível, complexas negociações regionais e multilaterais que vão determinar, em certa medida, aspectos decisivos de nossa inserção internacional nas próximas décadas, assim como alguns dos elementos constitutivos das próprias características da economia nacional no futuro de médio prazo. 

12.       À administração que sai conviria deixar um roteiro de bordo o mais possível completo para um bom itinerário por parte do próximo governo. Tranquilizado o cenário na frente financeira, graças ao recente acordo com o Fundo Monetário, pode o Itamaraty assegurar que a presença do Brasil nos cenários regional e mundial continue a gozar do prestígio externo logrado pelo titular da economia e pelo próprio presidente da República.

Washington, 932: 9 de agosto de 2002

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