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sábado, 4 de agosto de 2018
Souza Dantas, o querido embaixador - Luiz Antônio Araujo (BBC)
Souza Dantas, um justo entre os justos, um grande diplomata, que soube preservar a dignidade nos momentos mais sombrios da história, com a Europa dominada pelo nazi-fascismo e o Brasil sob a ditadura do Estado Novo, quando Vargas e seu ministro da Justiça denegavam oficialmente vistos para cidadãos de "origem semita". O filme de Luiz Fernando Goulart, "Querido embaixador", é baseado na obra "Quixote nas trevas" do historiador Fabio Koifman, e meu amigo Fabio Pereira Ribeiro está preparando uma tese, na Sorbonne, sobre os anos franceses do embaixador Souza Dantas. Excelente matéria da BBC. Paulo Roberto de Almeida
Quem foi o embaixador brasileiro que contrariou Hitler e Vargas para ajudar fugitivos do nazismo
Luiz Antônio AraujoDe Porto Alegre para a BBC Brasil
Raphael Zimetbaum guarda na memória os detalhes do dia em que seu pai viajou de Marselha, cidade portuária do sul da França, com destino a Vichy. Corria o ano de 1940, e os Zimetbaum, oriundos de Antuérpia, na Bélgica, compartilhavam com milhões de outros europeus a condição de refugiados num continente mergulhado na Segunda Guerra Mundial. Entre os indesejáveis pelo ditador nazista da Alemanha, Adolf Hitler, a família de Raphael tinha um agravante contra si: eram judeus.
Quando a França foi invadida pela máquina de guerra do Terceiro Reich, e o governo local trocou a capital francesa de Paris para Vichy, a única esperança de salvação para os judeus em solo francês passou a ser a imigração. Poucos países, porém, permitiam-se acolher os fugitivos, concedendo-lhes vistos de entrada. O Brasil, sob a ditadura do Estado Novo, encabeçada por Getúlio Vargas, não era exceção. Ainda assim, a viagem do pai de Raphael tinha o objetivo de fazer contato com o embaixador brasileiro.
"Meu pai e meu tio foram de Marselha para Vichy de trem. Foram recebidos pelo embaixador no hotel. Ele disse: 'Não há muito que eu possa fazer', e mostrou o telegrama que o proibia de dar vistos. Meu pai insistiu. Ao final da conversa, o embaixador disse: "Já é tarde. Por que vocês não se hospedam num hotel aqui perto e voltam amanhã de amanhã, que eu vou pensar?".
Ao retornar no dia seguinte, os Zimetbaum receberam um papel timbrado da embaixada do Brasil. O documento, redigido em francês, dizia: "Bom para entrar no Brasil". Era o visto que salvaria a vida da família, permitindo-lhe escapar pelo Atlântico da morte certa na Europa ocupada.
O homem que desafiou duas ditaduras para auxiliar pelo menos mil fugitivos do nazismo não era um jovem idealista e temerário. O embaixador Luiz Martins de Souza Dantas tinha 64 anos em 1940 e só não havia sido aposentado compulsoriamente por idade quatro anos antes em razão de uma exceção aberta por Getúlio Vargas, "tendo em vista os notórios serviços prestados ao governo brasileiro pelo seu atual embaixador na França".
Nasceu em 1876 no Rio, então capital imperial, numa família carioca de origem baiana, e ingressara no serviço diplomático aos 20 anos, menos de um mês depois da graduação em Direito. Fez uma longa e exitosa carreira. Servira em Berna (Suíça), São Petersburgo (Rússia), Roma, Buenos Aires e novamente Roma, com uma passagem de alguns meses pelo comando do Itamaraty.
Nomeado embaixador em 1919, na capital italiana, Souza Dantas era um diplomata da velha escola do Império, que recrutava servidores entre a elite e valorizava relações pessoais. "Isso explica por que tinha um retrato de Mussolini pendurado na parede da embaixada", escreveu Orlando de Barros, professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Quando Souza Dantas trocou a embaixada de Roma pela de Paris, em 1922, o ditador Benito Mussolini foi pessoalmente à estação de trem se despedir, tal era sua popularidade, revela Luiz Fernando Goulart, diretor da filme Querido embaixador, uma cinebiografia com estreia prevista para este sábado (5).
A embaixada na França era o posto mais importante da diplomacia brasileira nos anos 1920. Paris era a capital política e intelectual do mundo, e o francês era a língua franca da diplomacia, das ciências e das artes. Na chamada Cidade Luz, Souza Dantas firmou reputação de bon vivant. Gastava fortunas em jantares e recepções, colhendo, em contrapartida, um prestígio que lhe permitiu ficar no posto por quase um quarto de século.
Além da foto autografada de Mussolini, exibia na embaixada as imagens do rei da Itália Vittorio Emmanuele; de Santos Dumont, do ex-presidente francês Raymond Poincaré e do poeta italiano Gabriele D'Annunzio (que o chamava de "ambasciatore delle grazie" - embaixador das graças).
Relatos atribuem ao diplomata brasileiro um time de amantes, especialmente atrizes: Madeleine Carlier - a quem presenteou com uma casa de campo em Nantes -, Marie Bell e Arletty. Segundo um contemporâneo, "os colunistas mediam a importância de qualquer reunião pela nota de sua presença". Seu amigo Heitor Lyra contava que, um dia, convidado pelo embaixador para jantar no Ritz, viu a estilista Coco Chanel, que morava no hotel, abrir um "largo sorriso" e perguntar ao amigo se ele tinha ido visitá-la.
Solteiro até os 57 anos, o embaixador casou-se em 30 de setembro de 1933 com Elise Meyer Stern, viúva americana residente em Paris. Era irmã de Eugene Meyer, dono do jornal The Washington Post. Embora a noiva fosse judia, a cerimônia seguiu o rito católico.
Informado como poucos, Souza Dantas teria comunicado o Itamaraty da queda de Paris em junho de 1940 antes do exército alemão (chamado de Wehrmacht) entrar na cidade. Os nazistas suspeitaram até o final de que fizesse espionagem para os Aliados. Com a retirada do governo francês para Bordeaux e, depois, para Vichy, e a capitulação final ao Reich, a França sofreu uma grave fratura política. Os alemães mantiveram autoridade sobre o Norte, incluindo Paris, enquanto a porção sulista, chamada de Zona Livre, era entregue ao governo colaboracionista do marechal Philippe Pétain.
Souza Dantas teria sido o primeiro embaixador a se transferir para Vichy, numa decisão posteriormente seguida por outros representantes estrangeiros. Permitia, no entanto, que alguns de seus subordinados mantivessem contato com as autoridades alemãs em Paris, a fim de trocar informações que repassava ao Itamaraty.
Pouco antes de deixar a cidade ocupada, passou a expedir vistos diplomáticos para quem os pedisse sem exigir nada em troca. A atitude era uma desobediência frontal à política migratória de Vargas, que, na época, proibia a concessão de vistos a "semitas e outros indesejáveis". Antes mesmo da instauração da ditadura do Estado Novo, em novembro de 1937, o governo Vargas tentara impedir o ingresso de judeus no país por meio das chamadas "circulares secretas" do Itamaraty - a primeira delas, sob o nº 1.127, fora editada em junho daquele ano.
A maioria dos chefes de missões brasileiras no Exterior cumpria à risca a determinação. Em abril de 1938, menos de um ano depois da emissão da primeira circular, o cônsul-geral em Budapeste, Mário Moreira da Silva, comunicou ao ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, a recusa de visto de entrada no Brasil a 55 indivíduos, "todos declaradamente de origem semita".
"Os refugiados estávamos submetidos aos maiores escárnios, às maiores torturas, os soldados franceses pegando ratos e enfiando no colo das mulheres, no peito, para espantar, coisa horrorosa. E, no meio disso, nós ficamos, até que, de repente, se ouve que existia um Dom Quixote que se chamava... meu Deus do céu, me escapa agora... o famoso embaixador Dantas, que disse o seguinte: 'Abra as portas da embaixada que eu vou dar vistos diplomáticos'. E deu", conta o ator e diretor teatral polonês Ziembinski, um dos beneficiados pelo diplomata.
A legislação brasileira estabelecia que vistos só poderiam ser concedidos mediante apresentação de documentos como certidões negativas de antecedentes policiais e atestados de saúde, de profissão e de "origem étnica", inacessíveis para refugiados naquelas condições. A maioria dos que procuravam Souza Dantas era portadora dos chamados passaportes Nansen, fornecidos pela defunta Liga das Nações para apátridas.
"Ele assinava vistos até em cardápios de restaurantes", afirma Goulart.
Em 12 de dezembro de 1940, Oswaldo Aranha expediu a circular 1.498, pela qual era reiterada a proibição de concessão de vistos a judeus. Souza Dantas passou então a assinar os documentos com datas anteriores à da circular. Nem todos os que auxiliou se dirigiram ao Brasil. Em fins de 1941, depois de ter sido repreendido pelo governo brasileiro por sua prodigalidade no fornecimento de vistos, tornou-se alvo de inquérito administrativo. Na época, porém, a pressão dos Estados Unidos fazia Vargas se inclinar em favor dos Aliados, e o Brasil romperia relações com o Eixo em janeiro de 1942.
Enquanto as investigações no Itamaraty prosseguiam, os nazistas invadiram a Zona Livre e bateram à porta da embaixada brasileira em Vichy à procura de arquivos. O conselheiro Trajano Medeiros do Paço, que vivera em Berlim e era fluente em alemão, disse aos militares que os papéis haviam sido queimados. Ao oficial da Gestapo que lhe perguntou a razão da medida, respondeu: "Porque nós conhecemos vocês".
Os policiais invadiram a embaixada. Chamado em sua residência, Souza Dantas, aos 66 anos, protestou energicamente: "Os senhores estão violando as leis das convenções internacionais. Estamos aqui em solo brasileiro. Peço-lhes imediatamente que se afastem". E ficou sob a mira das pistolas da Gestapo. Foi retido por 14 meses na Alemanha, sendo libertado em troca de prisioneiros alemães detidos no Brasil.
De volta ao Rio, soube que o inquérito do Itamaraty havia sido arquivado, mas foi relegado ao ostracismo até o final da Segunda Guerra. Afetada pela senilidade, a esposa, Elisa, foi levada pela família para os Estados Unidos, onde morreu em 1952. Em abril de 1954, quase octogenário e com a saúde debilitada, foi a vez de Souza Dantas morrer em seu último endereço parisiense, um quarto do Grand Hôtel, na Praça da Ópera. O inventário listava poucos bens. O corpo foi trasladado para o Brasil.
O nome de Souza Dantas está inscrito no Jardim dos Justos entre as Nações, em Israel, como um dos que ajudaram a salvar judeus do Holocausto.
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